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 Marcos Bagno

 A VINGANÇA DA COBRA

Série Vaga-Lume

Editora Ática, 1995

TEXTOEditor:

Fernando PaixãoEditora Assistente:

Carmen Lucia Campos

Suplemento de trabalho:Januária Cristina Alves

 ARTEEditor:

Isabel CarballoIlustrações:

Rogério SoudPaginação eletrônica:

G & C Associados

Digitalização: SCS

Contracapa:

O velho Otto era o morador mais querido de Ocaporã e seusremédios naturais eram utilizados por quase todos da cidadezinha.Que interesse alguém poderia ter em prejudicá-lo? Seus remédiosestariam mesmo envenenando pessoas, como estavam dizendo?

Quem eram aqueles forasteiros que chegaram na cidade justamentequando a confusão começou?

Nino e Mariinha enfrentam situações perigosas e intrigantespara ajudar Otto a provar sua inocência nessa misteriosa história emque toda a atenção é necessária. Mas cuidado, pois o veneno dacobra pode estar em qualquer canto!...

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Sumário

0. O nó do novelo .........................................................................................5 1. Placa de São Paulo....................................................................................7 2.

 Manhã

 no

 laboratório ............................................................................10 3. Visita ameaçadora..................................................................................14 

4. Insônia....................................................................................................20 5. Solidariedade no albergue......................................................................22 6. Ligação a cobrar......................................................................................23 7. Rádio Ocaporã informa...........................................................................25 8. A mudança de Otto ................................................................................28 9. O beijo gostoso.......................................................................................30 10. Vasculhando o quarto...........................................................................32 11.

 Todos

 da

 mesma

 família.......................................................................34 

12. A linguagem das flores .........................................................................36 13. Planos para a noite...............................................................................39 14. Descobertas de Nino ............................................................................40 15. Nino fora, Geraldo dentro ....................................................................41 16. Impaciência de Nino.............................................................................45 17. Mariinha se arrisca ...............................................................................46 18. No túnel do tempo (I)...........................................................................48 19. Mariinha em apuros .............................................................................51 20.

 Conversa

 de

 madrugada.......................................................................55 

21. Telefonema de Afonso..........................................................................58 22. Perseguição ao falso inimigo ................................................................59 23. No túnel do tempo (II)..........................................................................61 24. O dilema de Geraldo ............................................................................62 25. Coletando provas..................................................................................65 26. Afonso chega ........................................................................................66 27. No túnel do tempo (III).........................................................................66 28.

 

Impostores 

em 

Ocaporã .......................................................................69 

29. No túnel do tempo (IV).........................................................................71 30. A melancolia de Otto............................................................................74 31. A confissão de Otto ..............................................................................75 32. A rendição de Otto ...............................................................................79 33. Gran finale............................................................................................80 34. Festa em Ocaporã.................................................................................81 35. Viagem à Alemanha .............................................................................82 36. Despedida.............................................................................................84 

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O Veneno Da Cobra

 Alguém tão sensível quanto o cientista Otto não poderia fazermal a ninguém. Sua forma de ajudar o mundo era estudar a flora brasileira e extrair dela remédios naturais. Será que essesmedicamentos produzidos com tanto cuidado e carinho poderiammesmo estar envenenando as pessoas?

Em  A vingança da cobra, Nino e Mariinha lutam paraencorajar Otto e salvar seu trabalho. Durante a aventura enfrentamtraição, armações, perigos, veneno, crime e muito suspense. Quemestaria por trás dessa trama?

 Você também pode ajudar Nino e Mariinha a descobrir o querealmente está acontecendo. Siga com eles as pistas desteempolgante mistério. Mas leia o livro com cuidado, a cobra podesurpreender você.

Conhecendo Marcos Bagno

Depois de ter assistido a uma

reportagem na TV sobre um velhocientista europeu que estudava plantasmedicinais da Mata Atlântica, MarcosBagno viu surgir um tema interessantepara um livro. Em  A vingança dacobra, ele usa de muita imaginaçãopara contar a triste realidade dasatividades de multinacionaisfarmacêuticas, que nem sempre

respeitam os limites da ética e dahonestidade.

O autor nasceu em Cataguases,Minas Gerais, morou em vários estadosdo país, e hoje vive em São Paulo.Bagno escreve contos, romances e

poesias e já recebeu vários e importantes prêmios em todos essesgêneros literários. O que nem todos sabem é que um de seus hobbiesé cozinhar: Marcos Bagno faz bolos e sobremesas de dar água na

 boca...

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0. O nó do novelo

Em algum lugar do mundo, num ponto qualquer do tempo,dois homens estão se falando. Um é muito velho, tem olhos de umcinzento mortiço, é calvo e tem o rosto marcado por rugas profundase numerosas. O outro, de muito menos idade, é louro, alto e temolhos muito azuis.

O velho está sentado a uma mesa grande e escura. Diante dela,senta-se o jovem, num pequeno sofá.

O idoso, depois de examinar várias vezes os muitos papéisdistribuídos sobre a mesa, tira os óculos e diz:

— Quer dizer que ele não morreu?

— Não, vovô — responde o mais jovem. — Mortos nãomovimentam contas bancárias na Suíça.

— Você conseguiu penetrar nos segredos bancários suíços? Édifícil acreditar... — duvida o velho.

— Mas acredite. Afinal, o senhor me disse que não poupasseesforços nem dinheiro para descobrir o paradeiro dele.

— Muito bem... Agora, temos de descobrir para onde ele foi.— Vê este mapa? — diz o neto, desdobrando uma folha depapel que tirou de uma pasta de couro preta. — Ele está aqui — eassinala com o dedo indicador um ponto mínimo no mapa.

O velho recoloca os óculos, força a vista, já muita fraca, e lê onome escrito naquelas coordenadas. Um sorriso se esboça em suaface muito enrugada. Sorriso que logo se transforma em riso largo,em gargalhada rouca, em acesso de riso, em verdadeira crisehistérica...

O neto se assusta. O velho começa a tossir. O outro tentaajudá-lo, mas ele faz com a mão sinal de que permaneça sentado.

Levanta-se com dificuldade. Apoiado numa grossa bengala, dáuma volta pela sala. Depois, aproxima-se do outro e lhe diz:

— Você terá à sua disposição todo o meu dinheiro, estáouvindo? Todo o meu dinheiro para realizar finalmente a minha

 vingança... Quem diria... Tive de esperar você nascer, crescer e setornar homem para poder me vingar...

O neto vai ouvindo com avidez. Tão ambicioso quanto o avô,prontificou-se a ajudá-lo a tramar sua vingança pessoal. Em troca,

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recebeu a promessa de ser nomeado o único herdeiro de toda afortuna acumulada pelo velho.

— Não se preocupe, vovô. O senhor terá sua vingança. E não vai demorar...

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1. Placa de São Paulo

Num lugar pequeno feito Ocaporã, no interior de MinasGerais, qualquer coisa diferente logo chama a atenção. Por isso é queNino, antes de entrar no Albergue Casa Bonita, detém-se ummomento depois de encostar a bicicleta junto ao meio-fio. Admira ocarro reluzente e grande, estacionado diante do único hotel dacidade. É azul-escuro, tem quatro portas e vidros pretos que nãodeixam a gente ver o interior. Placa de São Paulo.

Nino procura algum nome e encontra, entre os dois faróis, nomeio exato da frente do carro, a pequena chapa redonda com as três

letras BMW. Muito bem. De quem será?Nino entra na portaria. Vê dona Dalva ao balcão de madeira

escura da recepção. Sorri para ela, que retribui o cumprimento e diz:

— Bom dia, Nino. Já chegou tão cedo?

— Já, dona Dalva. A senhora sabe que eu não gosto de atrasarnenhuma entrega. Além disso, tenho que passar em outros lugaresainda hoje.

Dona Dalva recebe do rapaz o pequeno pacote envolvido em

papel pardo. Desembrulha-o: é uma caixa de papelão. Retira atampa, confere o conteúdo. Depois, guarda-a sob o balcão. Emseguida, abre uma gaveta e pega algum dinheiro.

— Guarde o troco, Nino — diz ela, com voz simpática.

— Obrigado, dona Dalva — agradece ele. — E a Mariinha? Jáestá de pé?

— Já. Ela deve estar lá na cozinha terminando de tomar o caféda manhã.

Dona Dalva responde e finge não perceber que Nino estáesperando que ela diga mais alguma coisa.

Mariinha é a filha mais nova de dona Dalva. Ajuda a mãe noalbergue, ocupando-se dos papéis, das contas e de outrasprovidências. É da mesma idade de Nino. Os dois se gostam muito, edona Dalva sabe disso.

— Por que você não vai lá dentro dar bom-dia a ela? — sugere amãe de Mariinha, piscando um olho matreiro para Nino.

Nino sorri para a dona do albergue e aceita a sugestão. Cruza agrande sala de entrada do velho casarão, atravessa um corredor

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comprido e escuro, com alguns cômodos fechados, e chega à portada cozinha, que está aberta.

Mariinha, alertada pelo som dos passos no corredor, fica emposição de espera. Ao ver quem chega, um sorriso brejeiro se

estampa em seu rosto redondo e salpicado de sardas cor deferrugem.

— Ei — cumprimenta Nino, sentando-se na cadeira vazia pertoda de Mariinha.

— Ei — retribui ela.

— Tem gente que a esta hora já está pelo mundo trabalhando— ironiza ele —, enquanto outros ficam tomando café a manhãtoda...

Ela nem se abala:— Pois é, mas tem gente que se levantou antes das seis, serviu

o café da manhã a todos os hóspedes, tirou as mesas e varreu a salade jantar...

Nino gosta da inteligência rápida de Mariinha, que tem semprerespostas prontas e precisas na ponta da língua.

— Quer um cafezinho? — oferece ela, apontando o buleenquanto morde uma torrada coberta de geléia.

— Não, obrigado. Mas aceito um pedacinho desse queijo-de-minas com um pouquinho de doce de leite.

Mariinha pega um prato de sobremesa, corta uma fatia doqueijo muito branco e ao lado dele põe uma colherada generosa dodoce de leite, que está numa bela compoteira de cristal azul.

— Pode comer à vontade — diz, colocando o prato à frente deNino —, você sabe que essas coisas são proibidas para mim.

Mariinha preocupa-se com as formas. Afinal, não é muito alta

e tem o corpo já bem "cheiinho", como ela mesma diz. Nino acha-a bonita assim mesmo, e para agradá-la vive repetindo que não gostadesse tipo de mulher que anda na moda, alta e magra como um

 varapau.

— De quem é aquele carrão aí na frente, Mariinha? Algumhóspede novo? — ele pergunta, saboreando devagar o doce.

— Hum, hum... — confirma Mariinha, com a boca cheia.

— E quem é?

Ela engole o que estava mastigando:

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— Dois senhores muito alinhados, elegantes, bem-vestidos queprecisa ver. Chegaram ontem pouco depois das duas da manhã. Tivede me levantar para atender eles. Você sabe que de madrugada arecepção fica fechada, e cada hóspede tem uma chave da porta da

frente... Mas eles apertaram tanto a campainha que eu tive de ir ver... Nunca deixo que a minha mãe se levante à noite, coitadinha, játrabalha tanto... Por isso é que estou com essa cara linda de quemnão dormiu direito... Acho que eles dois ainda devem estardormindo.

Mariinha levanta-se e começa a colocar pratos sujos namáquina de lavar louça. Nino apressa-se em terminar de comer odoce para poder ajudá-la. Enquanto vai passando os pratos para ela,continua perguntando:

— E eles estão de passagem?— Parece que não. Trouxeram foi muita bagagem, viu? Pelo

 jeito como já foram arrumando tudo nos armários do quarto, achoque vão demorar por aqui...

Mariinha fecha a máquina e a põe para funcionar. Nino quersaber ainda:

— E de onde é que eles vêm?

— Vêm de Brasília.

— De Brasília? — interessa-se o rapaz.

— Foi o que eu entendi. Não li ainda a ficha que elespreencheram, estava com muito sono e preguiça. Mas pelo que ouviminha mãe comentar, parece que são do governo...

"Vai ver é mais uma das visitas para o padrinho", pensa Nino.

— E o Geraldo? Já começou a trabalhar lá com vocês? —pergunta Mariinha, mudando de assunto.

— Xi, o Geraldo! — lembra-se Nino, de repente. — Já ia meesquecendo! Tenho que voltar logo para o sítio porque o Geraldo jádeve ter chegado lá e eu prometi ao padrinho que ia ajudar a ensinaro serviço para ele...

Mariinha acompanha Nino até a calçada. Despede-se dele, jámontado na bicicleta, com dois beijinhos no rosto moreno do rapaz.Ele sorri, acena para ela e se vai, descendo pelos paralelepípedos darua inclinada.

Mariinha fica acompanhando a bicicleta com o olhar até ela

desaparecer na primeira esquina. Depois, tira do bolso uma presilha

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de cabelo. Arruma os longos cachos vermelhos num rabo-de-cavalo e volta para dentro do albergue.

2. Manhã no laboratório

Quando Nino chega de volta ao Sítio Liberdade, onde mora, vêque a bicicleta de Geraldo já está encostada junto à porta dolaboratório, que fica um pouco afastado da casa. Deixa a sua,

 vermelha, ao lado da dele, azul, e entra no laboratório.

 Vê Geraldo e Otto conversando.

— Oi, gente, desculpe o atraso! — diz ele, sorrindo.

— Que bom que você chegou, Nino — diz Otto —, eu ia tentareksplicar as coisas ao Geraldo, mas nem sabia por onde começar.

— Deixa comigo, padrinho. Eu já sei direitinho o que o Geraldo vai fazer...

Geraldo é um rapaz magro, de rosto ossudo e olhos grandes,pretos. É um ano mais velho que Nino, mas tem um jeito de meninoque se esqueceu de crescer. O cabelo é curto e castanho-escuro, e apele é muito branca. Fala baixo, é tímido, parecendo daquelaspessoas que detestam chamar a atenção sobre si mesmas.

— Oi, Geraldo! — cumprimenta Nino, simpático. — Vamosdeixar o padrinho aqui, estudando. Eu quero que você me ajude acolocar os rótulos nos vidros. Vem cá comigo.

Geraldo, mudo, acompanha Nino até uma grande mesa brancano fundo do amplo laboratório. Está coberta de pequenos frascos de

 vidro marrom.

— Você vai me ajudar a colar os rótulos nesses frascos, tá? —começa Nino.

Geraldo balança a cabeça afirmativamente.

— Os rótulos já vêm prontos da gráfica. A gente só precisaescrever a mão o prazo de validade e colar no vidro. Fácil, né? Todoesse lote aqui é de "Saudades do Matão".

Geraldo sorri e fala com Nino pela primeira vez:

— Eu sempre gostei dos nomes dos remédios do seu Otto.

— Eu também. Ele sempre fez questão de fugir daqueles nomes

de remédio que dão medo na gente.

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— Meu avô também gostava muito — comenta Geraldo, jásentado num tamborete e anotando com letra caprichada o prazo de

 validade que Nino lhe mostrou escrito num rótulo-modelo.

Ocaporã é uma dessas centenas de cidadezinhas escondidasentre as montanhas de Minas Gerais. Mal aparece nos mapas. Émuito antiga, tem um pequeno rio de água barrenta que a corta aomeio. O povo é tranqüilo, sem pressa para nada. Tinham razão osíndios ao dar àquelas terras o nome de Ocaporã, "casa bonita". A região é bela, com morros altos, cobertos de mata muito verde.

Desse verde é que o doutor Otto Freimann colhe o materialpara seus milagres. Pois são verdadeiras maravilhas o que eleconsegue fabricar com as folhas, flores, sementes e cascas das ervase árvores da mata. Seus remédios naturais são produzidosartesanalmente no laboratório que construiu junto à casa do sítio,onde vive desde que chegou a Ocaporã.

— Já tem mais de trinta anos que o seu Otto veio da Alemanhapara o Brasil, não é, Nino? — pergunta Geraldo.

— É — responde Nino. — Para você ter uma idéia, ele chegouaqui com quarenta anos e já está com setenta e quatro...

— Meu avô dizia que quando o seu Otto apareceu aqui, falando

com muito sotaque, com o cabelo grande e despenteado, o pessoal deOcaporã se assustou. Acho que pensaram que ele era algum cientistamaluco... — conta Geraldo, sorrindo.

— Ninguém podia imaginar que depois ele ia virar a pessoamais querida da cidade — comenta Nino, lançando um olhar para o

 velho padrinho, que, numa outra mesa mais afastada, toma notasnum caderninho de coisas que vai lendo num livro enorme.

 A magia de Otto Freimann, além da personalidade agradável,

está na sua arte. Seu Otto é farmacêutico, como ele mesmo seapresenta. Mas não é um farmacêutico desses que a gente conhece.Não tem uma farmácia onde vende caixinhas de comprimidos e

 vidros de xarope. Seu Otto é um grande cientista, um pesquisadordos poderes medicinais da flora. É impressionante o tanto que sabedas plantas da mata mineira. Quando chegou, já sabia muito, e osanos de estudo e experimentação só fizeram aumentar aqueleconhecimento.

Seus remédios naturais são todos saborosos, com cheiro de flor

e gosto do mato. Aos poucos, as pessoas começaram a usar aquelaspoções estranhas e foram conhecendo seus efeitos surpreendentes.

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Quase ninguém mais em Ocaporã quer saber dos remédios caros,que às vezes têm de ser comprados fora, nas cidades maiores daregião. Até os médicos receitam os preparados do seu Otto Boticário,e a única farmácia de Ocaporã praticamente só vende o que ele

produz. Além de fazerem bem à saúde, os medicamentos têm nomesdeliciosos:  Manhã de Sol, Luar de Abril, Meu Cheirinho, Lágrimasde Santo, Óleo do Amor, Saudades do Matão, Neblina Doce, Vovôme Ama, Sonhos de Sabiá, entre outros tantos.

— De onde é que vêm essas pessoas que volta e meia aparecemaqui em Ocaporã atrás do seu Otto? — pergunta Geraldo.

— De tudo que é canto: gente de Belo Horizonte, do Rio, deSão Paulo e de Brasília já andou por aqui — responde Nino. — Uns

 vêm fazer entrevista para os jornais. Outros querem gravar

programa de televisão. Teve gente até que veio para aprender comele a fazer os remédios.

— Que legal! — comenta Geraldo.

— Isso para não falar dos convites, né?

— Que convites?

— Ah, convite para tudo...— responde Nino.— Curso emuniversidade, palestra em escola, lançamento de livro, viagem comtudo pago. Mas ele nunca aceita nada!

— Por quê? — interessa-se Geraldo.

— Coisa de cientista, eu acho. Ele diz que não há nada nomundo capaz de fazer ele arredar o pé de Ocaporã.

— Que engraçado...

Quando as investidas da imprensa e dos curiosos começaram ase tornar demasiado insistentes, o doutor Otto decidiu não maisaceitar visitas de forasteiros, a não ser as que lhe parecessemrealmente úteis para a divulgação de seu trabalho. Para justificar-se,alega estar muito velho e cansado e ocupado na publicação de umgrande dicionário das plantas medicinais brasileiras, o que lhe tomamuito tempo e exige muita pesquisa.

— Como foi que você aprendeu alemão, Nino? — perguntaGeraldo, já mais à vontade.

— Em casa. Foi meu padrinho que me ensinou. Você sabe quemeu pai morreu quando eu tinha um ano, não é?

— Sei.

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— Pois é. Meu pai trabalhava para o padrinho. Quando elemorreu, o padrinho me pegou para criar. Só falava comigo emalemão. Foi assim que aprendi. Até hoje, quando a gente estásozinho, os dois, a gente só conversa em alemão.

— Já eu tenho pai, mas sempre fui muito mais ligado ao meuavô Gabriel — explica Geraldo, passando o dedo sobre um rótulopara fixá-lo bem no vidro. — Desde pequeno, acompanhava ele nafarmácia, ficava lá brincando com as caixas de remédio vazias.Depois, fui aprendendo a trabalhar com ele.

— Você deve estar sentindo muito a perda dele, não é? —arrisca Nino.

— Nem te conto... — responde Geraldo, com voz triste.

O velho Gabriel Raposo, dono da única farmácia de Ocaporã, aDrogaria Saúde & Paz, morreu há dois meses. Otto entristeceu-semuito: o dono da farmácia foi das primeiras pessoas a reconhecer aimportância do trabalho do cientista alemão.

O pai de Geraldo, seu Duílio, que passou a cuidar dos negócios,foi quem pediu a Otto que deixasse o rapaz trabalhar no laboratório.Disse que seria uma boa maneira de Geraldo aprender a profissão esuperar a tristeza causada pela perda do avô.

— Você vai ficar vindo só de manhã, não é, Geraldo? —

certifica-se Nino.— É. À tarde eu fico na farmácia, pelo menos até as aulas

começarem de novo.

— Eu gostei muito da idéia de você vir para cá — diz Nino. — Assim, posso dividir o trabalho com você e fazer as entregas semtanta pressa. Tem vezes que eu passo um dia inteiro montado na

 bicicleta, fazendo entrega em tudo quanto é lugar...

E assim vai passando a manhã.

3. Visita ameaçadora

Duas da tarde. Terminado o almoço, Otto se recolhe um poucoem seu quarto para um cochilo habitual. Sabe que deve poupar suasenergias, por isso impôs a si mesmo este descanso diário antes de

 voltar ao trabalho à tarde.

Enquanto Otto dorme, Nino ajuda a mãe, dona Luzia, nacozinha. Ele enxuga as vasilhas e as guarda no armário.

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— Queria ver o que meu pai ia dizer se visse você fazendo essascoisas — comenta ela.

— Uai, mãe, por quê?

— Porque... ah, você sabe... seu avô era um homem muito bom,trabalhador e tudo... mas tinha essas coisas de achar que tem serviçoque só mulher pode fazer — explica dona Luzia.

— É mesmo? — surpreende-se Nino.

— É. Ele nunca punha os pés na cozinha. Lavar e enxugar alouça, então, meu Deus, nem sonhar...

Nino sorri e comenta:

— Já imaginou se ele me visse batendo aquele bolo de

chocolate que eu aprendi a fazer?Dona Luzia ri gostoso. Neste momento, ouve-se a buzina deum carro.

— Uai, quem será? — admira-se ela.

— Eu vou ver, mãe.

Nino vai até a sala e olha pela janela. Dois homens estãodescendo de um carro preto. Nino os conhece. Um é o prefeitorecém-eleito, Crisófilo Borges, jovem ambicioso que em poucos

meses conseguiu chamar a atenção dos eleitores criando muitapolêmica e fazendo denúncias estrondosas, mas nuncacomprovadas, contra os tradicionais chefes políticos da cidade. Éalto, atlético e muito vaidoso.

 A outra visita é o doutor Plínio Raposo Gomes, médico que voltou para Ocaporã há pouco, depois de concluir seus estudos emBelo Horizonte, onde trabalhou por algum tempo. Já abriuconsultório próprio na cidade. Assumiu a Secretaria de Saúde domunicípio a convite do prefeito eleito, velho amigo seu.

Dona Luzia, que já veio também para a sala e viu quem chegou,diz ao filho:

— Esses dois decerto vão querer falar com o Otto. Eu vou abrirpara eles. Acho melhor você ir lá dentro avisar seu padrinho.

Nino retira-se da sala. Bate à porta do quarto do padrinho.Entra.

— Padrinho, desculpe interromper. Tem gente aí querendo vero senhor.

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Otto levanta a cabeça, ajeita os óculos de fino metal douradosobre o nariz.

— E quem é, você sabe?

— É o prefeito mais o doutor Plínio. Que será que eles querem?

Otto levanta-se, passa a mão pela vasta cabeleira branca, queum rabo-de-cavalo mal-amarrado não consegue dominar.

— Vamos ver...

E saem ambos do quarto. Otto ainda vai ao banheiro parapassar água no rosto.

Quando chegam à sala, encontram os visitantes já sentados nosofá verde.

Otto, como sempre, sorri para seus visitantes. Eles, no entanto,não parecem nada simpáticos. Nem ao menos se levantam emrespeito à chegada do dono da casa. Otto senta-se à cadeira de

 balanço em frente aos dois. Um deles, o prefeito, começa logo afalar:

— Antes de mais nada, seu Otto, eu gostaria de dizer que oassunto que nos traz aqui é estritamente confidencial e, portanto,nossa conversa tem de ser reservada.

Dona Luzia nem espera qualquer sinal e já se retira, muda, de volta à cozinha. Nino também se vai. Mas não pôde resistir àcuriosidade, e fingindo sair pela porta da sala agacha-se debaixo da

 janela aberta que dá para a varanda. Fica ouvindo tudo. Não é hábitoseu, mas aqueles homens têm um ar demasiado sério e antipáticopara o gosto dele.

Percebendo que na sala não há mais ninguém a não ser elestrês, o prefeito retoma a palavra:

— Temos um assunto muito grave a resolver, doutor Otto. E

não vamos fazer rodeios. O Ministério da Saúde comunicou àPrefeitura que tem recebido sucessivas denúncias contra os produtosque o senhor fabrica e comercializa aqui em Ocaporã.

— Denúncias? Que denúncias? — surpreende-se Otto (e Ninotambém, no seu esconderijo).

— Denúncias muito sérias — responde Borges. — Tenho aquium relatório de casos de pessoas que, após ingerirem os seusmedicamentos, tiveram gravíssimos problemas de saúde.

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E o homem, abrindo a maleta de couro depositada ao chão junto a seus pés, retira dela um gordo maço de papéis presos dentrode uma pasta de cartolina azul e começa a ler:

— Duas crianças em Cataguases, um senhor de idade em Dores

do Indaiá, uma mulher grávida em Sete Lagoas, dois adolescentesem Nanuque, oito membros de uma só família em Cordisburgo emuitos mais...

Otto não consegue acreditar no que está ouvindo. Mas ohomem prossegue:

— Todos esses lamentáveis casos foram investigados pelasautoridades sanitárias locais. O diagnóstico foi invariavelmente omesmo: intoxicação. Por infeliz coincidência, todas as vítimastinham acabado de tomar medicamentos produzidos no SítioLiberdade, de Ocaporã. O senhor quer ver os laudos?

E Borges estende na direção de Otto aquele calhamaço defolhas impressas com o timbre do Ministério da Saúde. O velhinhopega-as com mão trêmula. Folheia tudo sem compreender muito

 bem o que está lendo. Devolve a pasta ao prefeito. Que continua:

— Sabemos que o senhor tem autorização da SecretariaEstadual de Saúde para produzir suas... ahn... drogas... e que asfórmulas foram analisadas e aprovadas por técnicos idôneos de

laboratórios de ilibada reputação..."Ele precisa falar tão complicado?", pensa Nino. "Que diabo

será ilibada?".

— No entanto — prossegue Borges —, em face dos últimosacontecimentos, fomos obrigados a vir até aqui para agir semdemora e tomar algumas medidas drásticas. E a primeira delas já foitomada. Solicitamos à Secretaria de Saúde estadual a cassação dalicença de funcionamento do seu laboratório.

Otto empalidece e sente um aperto no peito:— Cassar minha licença? Mas por quê?

— Por quê? — repete Borges em tom meio irônico. — Porque várias dessas pessoas estiveram à beira da morte, e algumas ainda seencontram em estado que inspira cuidados...

 Agachado sob a janela, Nino duvida dos próprios ouvidos."Será possível? Nossos remédios matando gente? Mas já sãofabricados há tanto tempo! Como é que de uma hora para outracomeçaram a fazer mal?"

Otto ainda tenta argumentar:

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— Meus remédios têm sido receitados até pelos médicos daquide Ocaporã.

— Mas não por todos os médicos daqui — comenta, tranqüilo,o doutor Plínio. — Aliás, eu mesmo já solicitei ao Conselho Regionalde Medicina uma investigação acerca da atividade profissionaldestes senhores, que não me parece muito ética.

"O quê?! O doutor Cordeiro e o doutor Peixoto? Que absurdo!São médicos há mais de trinta anos!", nova surpresa de Nino.

Enquanto isso, na sala, Crisófilo Borges, indiferente ao estadode choque do velhinho, prepara-se para lançar um novo ataque:

— O senhor ainda se lembra dos motivos que o fizeram vir para

o Brasil?Otto se assusta e começa a sentir-se muito mal. Fica pálido e

respira com dificuldade. Nino está curioso: "O que será que estehomem sabe da vida do padrinho antes de ele sair da Alemanha? Eumesmo quase não sei nada".

O homem, no entanto, não pára de falar:

— Como o senhor mesmo pode concluir — diz Borges —, a suasituação é bastante delicada...

— Por isso — é a vez do doutor Plínio —, viemos pessoalmenteà sua casa antes que alguma autoridade de Brasília apareça nacidade.

— Exatamente — confirma o prefeito. Viemos para lhe fazeruma... digamos assim... proposta...

— Proposta? Que proposta? — pergunta Otto com dificuldade.

Borges sorri:

— Muito simples. O senhor cessa imediatamente de fabricarseus remédios e desmonta seu laboratório, sob a nossa supervisão.

O doutor Plínio complementa:

— Digamos que o senhor vai se... aposentar... Se fizer isso,conseguiremos impedir que o senhor seja extraditado de volta a seupaís.

"Extraditado?", assusta-se Nino, que sabe o que significa apalavra.

Sem saber de onde lhe vêm as forças para falar, Otto pergunta:— E se eu non aceitar? E se quiser me defender?

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— Se o senhor não aceitar — responde o doutor Plínio —seremos obrigados a denunciá-lo ao Ministério das RelaçõesExteriores, em Brasília. Certamente, a primeira providência quetomarão será mandar o senhor de volta para a Alemanha.

E o prefeito completa:— Isso para não mencionar o problema dos seus remédios, que

pode lhe causar uma dor de cabeça sem fim...

O médico avalia:

— Como vê, seu Otto, a nossa proposta é até uma espécie deprêmio...

Otto sente-se derrotado. Não ousa pensar, falar, sentir nada.Seus visitantes levantam-se, absolutamente tranqüilos, dando a

entender que já se vão.Nino percebe o movimento. Sai de onde está e oculta-se por

trás da parede que forma o lado direito da casa.

Borges ainda diz:

— Sabemos que é uma decisão muito difícil. Por isso não temosmuita pressa. Estamos esperando uma comissão de técnicos doMinistério da Saúde que chegam em Ocaporã daqui a alguns dias. Éo seu prazo para refletir. Temos certeza, porém, de que o senhor

saberá tomar a decisão mais acertada e conveniente para o bem-estar de todos...

— Bom dia e passar bem — conclui o doutor Plínio, retirando-se atrás do prefeito.

Nino segue-os com o olhar e os vê entrar no grande carropreto. Depois, corre para ajudar o padrinho.

4. Insônia

 À noite, em seu quarto, sem conseguir fechar os olhos paradormir e com a cabeça sacudida por uma tempestade depensamentos confusos, Nino não sabe o que fazer com toda a revoltaque está sentindo. Como pode haver no mundo gente tão cruel?

Otto, atingido no que lhe é mais caro na vida, teve uma crise dechoro incontrolável. Foi preciso dar-lhe um chá e ampará-lo até acama. Nino temeu que o velhinho não resistisse a tamanha dor.

Dona Luzia, ao inteirar-se do ocorrido, também sofreu. No entanto,

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mulher forte, manteve-se firme, pois sabia que sua ajuda naquelemomento seria mais do que necessária.

Nino passou o resto do dia atordoado, sem saber o que fazer. Alguma coisa tinha de ser feita, mas o quê?

 Agora, deitado, sua memória lhe trazia de volta pedaçosdaquela terrível conversa. "Intoxicação"... "Desmontar olaboratório"... "Extraditado"... "Processos legais que podem levarinclusive à sua prisão"...

"Por isso viemos pessoalmente lhe fazer uma proposta"...

"Antes que alguma autoridade de Brasília apareça"...

"Alguém de Brasília"...

"Vêm de Brasília... Parece que são do governo"... A voz deMariinha ecoa.

"Brasília"... Brasília?

De repente, a imagem do grande carro azul importadoestacionado diante do albergue aparece na memória de Nino.Mariinha disse que os hóspedes vinham de Brasília. "Se vieram deBrasília, por que o carro tem placa de São Paulo?" O prefeito disseque só vinha gente de Brasília daqui a alguns dias. Então, quem sãoaqueles dois no albergue? Deve haver alguma coisa estranha nisso,

tem que haver! Valeria a pena agarrar-se a um pedaço de tábua tão pequeno e

frágil no meio daquele maremoto?

Lembrou-se, então, de um nome: Afonso. É claro! Afonso podeajudar!

 Afonso é o doutor Afonso Monteiro, nascido e criado emOcaporã, filho de uma das famílias mais tradicionais da cidade.Formado em Direito, em Belo Horizonte, vive hoje em Brasília, onde

é alto funcionário do Congresso Nacional. Grande amigo de Otto,que o conhece desde menino, Afonso vem freqüentemente a Ocaporãe nunca deixa de visitar o Sítio Liberdade. Fã dos remédios do

 velhinho, é ele quem cuida de toda a papelada burocrática dolaboratório.

 Apesar dos vinte anos de diferença que existem entre eles,Nino trata Afonso sem qualquer cerimônia, como se fosse um irmãomais velho. Afinal, era Afonso quem, a pedido de Otto, levava Nino,ainda criança, para passear de bote pelo rio, para empinar papagaio

e caçar rã de noite no brejo. E quando todos na cidade passaram adirigir-se ao advogado com respeito e deferência, chamando-o

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"doutor" e "senhor", nem por isso Nino deixou de tratar Afonso coma natural intimidade que a convivência criara entre eles.

"O Afonso me disse, faz pouco tempo, que a situação legal dopadrinho no Brasil estava tranqüila", lembra-se Nino. "Amanhã

mesmo vou lá no albergue e telefono para ele!"

5. Solidariedade no albergue

Nino precisa ir telefonar no albergue porque no SítioLiberdade não existe telefone. Otto sempre se recusou a ter a paz desua casa e de seu trabalho interrompida pelo ruído estridente doantipático aparelho. "Quem quiser falar com a gente, que escreva ou

 venha pessoalmente", costuma dizer o velhinho. "É muito maiseducado do que encher os nossos ouvidos com aquele cacarejohorrível!"

Nino chega ao hotelzinho perto das nove horas. Ao vê-lo, donaDalva percebe o ar preocupado do rapaz. Quer logo saber:

— Que cara de noite maldormida, cruzes! O que é que houve?

Nino então resume para ela tudo o que se passou ontem nosítio. É a vez de dona Dalva indignar-se:

— Não é possível! Meu Deus, que horror! Não dá paraacreditar numa coisa dessas! Tanta miséria por aí, tanto crime, tanta

 violência, tanta ladroagem e inventam de vir infernizar a vida de umsanto homem, escondido no meio do mato, nesse fim de mundo queé Ocaporã... Um homem incapaz de fazer mal a uma pulga, minhaNossa Senhora! Que coisa!

O tom exaltado da fala de dona Dalva chama a atenção deMariinha, no escritório que se abre por trás do velho balcão demadeira. Ela se levanta da mesa onde anotava alguma coisa e vaiinteirar-se do que há. Mal a vê surgir à porta, a mãe lhe conta, demaneira confusa e atabalhoada, a razão de suas exclamações tão

 veementes.

Mariinha custa a crer, mas Nino vai confirmando tudo comgestos de cabeça, expressões do rosto e dos olhos. A menina tambémse revolta:

— Eu nunca fui mesmo com a cara desse tal prefeitozinho dearaque, metido a galã de novela! E o doutor Plínio, hem? Que boa

 bisca não saiu?

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— Você acha que esses hóspedes novos têm alguma coisa a vercom isso, Nino? — pergunta dona Dalva.

— Não sei, dona Dalva. É isso que eu vim aqui tentar descobrir.

Dona Dalva se exalta:

— Porque se tiverem, eu vou já, já pedir satisfações!

— Isso mesmo, mãe! A gente acaba com aquela pose deles!

Nino fica comovido com a solidariedade das duas. Mas tentaacalmá-las:

— Gente, vamos deixar tudo como está por enquanto, sim?

Elas se entreolham surpresas. Nino explica:

— Eu estou com umas idéias para ajudar o padrinho, e paraisso preciso de vocês duas... Podem ajudar?

— Claro que podemos! — responde Mariinha.

Nino lhes fala então da sua idéia de telefonar para Afonso,contar o que houve e pedir sua ajuda. Mariinha pega o rapaz pelamão e, puxando-o delicadamente na direção do escritório, diz:

— Telefonar? Só se for pra já!

6. Ligação a cobrar 

Nino aguarda alguns instantes até que a ligação a cobrar secomplete. Então se identifica:

— Aqui é Nino, de Ocaporã.

 Afonso sempre disse a Nino que quando precisassem dele,telefonassem a cobrar para o escritório em Brasília. Assim, a ligaçãointerurbana, normalmente cara, não cai na conta de dona Dalva.

— Nino? Como vai? Tudo bem? — responde uma voz femininae agradável do outro lado.

— Nem tão bem assim, dona Clara.

— Você quer falar com o doutor Afonso, não é?

— É. Ele está?

— Está sim. Espere um minutinho que vou chamá-lo, tá?

— Alô! Nino? O que é que há rapaz? A Clara me disse que você

está com uma voz preocupada...

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— Pois é, Afonso. Tem umas coisas meio esquisitasacontecendo aqui em Ocaporã...

— Esquisitas? Esquisitas como?

Nino relata a Afonso o ocorrido. Surpreende-se com agargalhada do amigo advogado:

— Isso só pode ser brincadeira, Nino! De mau gosto, concordo,mas só pode ser brincadeira... Afinal, eu cuidei pessoalmente daregularização do Otto no Brasil e tenho toda a documentação queprova que ele está legalíssimo, tanto aqui como na Alemanha.

— Disso eu já sabia, Afonso — esclarece Nino —, mas e o resto?E as tais denúncias de envenenamento? Não vejo a menor graçanisso, se for mesmo uma brincadeira... Além do mais, o prefeito e o

doutor Plínio não tinham cara de quem está querendo se divertir,muito pelo contrário...

— Seja como for, a gente tem que começar a tomar algumasprovidências.

— Também acho — concorda Nino.

— O que estou estranhando nisso tudo é a rapidez.

— Rapidez de quê?

— Ora, Nino, de tudo. Neste país os processos resultantes dedenúncias demoram anos inteiros, às vezes décadas e décadas parase resolverem, e isso quando são resolvidos... Eu bem queriaentender a pressa desses burocratas nessa história... Além disso,para que destacar gente de nível federal para se ocupar desse caso? A Secretaria Estadual de Saúde podia perfeitamente cuidar de tudo. Ese o problema fosse mesmo de extradição, bastava chamar a PolíciaFederal, que existe em todos os Estados...

Nino explica, então, com detalhes, a proposta de"aposentadoria" feita pelo prefeito e pelo secretário de Saúde.

— Mas isso não é proposta! É chantagem! — grita Afonso.Depois, recuperando a calma: — Muito estranho... Bem, vamos ver.Como é mesmo o nome da dupla de Brasília?

— Carlos Henrique Lobato, do Ministério da Saúde. EduardoPereira Lima, do Itamaraty. Pelo menos foi assim que seidentificaram na ficha do albergue da dona Dalva.

— Já anotei. Eu vou dar uma checada aqui em Brasília e vejo oque consigo descobrir desse caso. Depois entro em contato com

 você. Se aparecer alguma novidade, ligue para mim, a qualquer hora

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do dia ou da noite, aqui no escritório ou lá em casa. Tem certeza deque me contou tudo o que interessa?

Somente então é que Nino se lembra de sua principal suspeita:

— Não, Afonso, quase que me esqueço. Eles estão aqui emOcaporã num carro importado, um BMW, com placa de São Paulo.

— É mesmo, Nino?

— É. Não parece estranho?

— Bastante.

Nino fica orgulhoso de ter dado uma pista importante. Mas Afonso logo esfria seus ânimos de detetive:

— Mas não é muita coisa em que a gente possa se basear... De

todo jeito, você anotou a placa?— Anotei. Por coincidência é justamente BMW 3333, São

Paulo.

— Coincidência nada, Nino. Esse povo que compra carroimportado adora se exibir. Virou moda agora essa história de placacom iniciais do dono, com letras e números cabalísticos, com data deaniversário do cachorro e não sei que mais. Aqui em Brasília, então,que é o paraíso dos novos-ricos, a coisa tem chegado ao ridículo.Outro dia eu vi um carro... nem sei qual era a marca... mas a placaera assim: MEU 0001. Não é de dar pena?

7. Rádio Ocaporã informa

 A visita dos dois homens ao Sítio Liberdade se deu numasegunda-feira. Na terça, Nino telefonou para Afonso. Hoje, quarta demanhã, quem ligou o rádio e sintonizou a Ocaporã FM pôde ouvir oseguinte programa:

— Bom dia, queridos ouvintes da Rádio Ocaporã FM, aemissora da casa bonita. Entra no ar mais uma edição do seu JornalMatinal, sob o comando de Sílvio Gallo. E vamos logo começar comuma notícia que vai chamar a atenção de todos os nossos ouvintes.Ontem, às duas e quarenta da tarde, duas pessoas foram atendidasno Pronto-Socorro de Ocaporã, vítimas de uma grave intoxicação.Dona Eglantine da Mata, dona-de-casa, 51 anos, e seu filho, Hérculesda Mata, 19, chegaram ao Posto de Saúde da Praça da Matriz, nocentro da cidade, queixando-se de terríveis dores de cabeça e deestômago. Foram atendidos pelo médico de plantão, doutor João das

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Neves. Depois de tratar dos dois pacientes, o doutor Nevesconseguiu identificar a causa da intoxicação. Dona Eglantine e seufilho tinham tomado algumas doses do medicamento Canto do Bem-te-vi, produzido no Sítio Liberdade, pelo célebre doutor Otto

Freimann, que todos nós conhecemos por Otto Boticário. Omedicamento, receitado pelo doutor Joaquim Cordeiro, tem fama decurar azia estomacal, que era o que estavam sentindo as duas

 vítimas. Para esclarecer o assunto, trouxemos aos nossos estúdios odoutor Plínio Gomes, médico e secretário de Saúde do município,que vai falar agora para os nossos queridos ouvintes. Bom dia,doutor Plínio!

— Bom dia, Sílvio.

— Então é verdade que o remédio do seu Otto Boticário foi o

que causou o mal-estar daquelas duas pessoas?— Exatamente, Sílvio. Nem foi preciso fazer exames mais

profundos de laboratório. Bastaram algumas análises do resto domedicamento que ainda havia no frasco para constatar que ele nãoestava bom...

— Que coisa, doutor Plínio! E que sorte daquela senhora e dofilho terem encontrado o médico no Posto de Saúde... É a primeira

 vez que ouvimos falar mal de um produto do seu Otto Boticário...

— Sinto muito contradizer você, Sílvio, mas a coisa não é bemassim. Pode ter sido a primeira vez aqui em Ocaporã...

— Por quê, doutor? O senhor sabe de outros casos parecidos?

— Muitos e muitos outros casos, Sílvio. Dezenas de pessoas emmuitas outras cidades de Minas. E casos não só parecidos, mas atémuito mais graves do que este. Aliás, é exatamente por causa dessesacontecimentos que eu estou enviando ao Ministério da Saúde umoficio para que sejam tomadas as providências cabíveis em situaçõesdesse tipo.

— E que providências são essas, doutor Plínio?

— Para começar, Sílvio, por causa do grande número depessoas vitimadas, fomos obrigados a pedir a cassação da licença daSecretaria Estadual de Saúde que permitia o funcionamento dolaboratório do doutor Otto Freimann. Agora estamos divulgandomaterial informativo para que as pessoas evitem consumir o resto doestoque que ainda está em circulação...

— Que coisa surpreendente, caros ouvintes! Doutor Plínio,

pode-se dizer que seu Otto é um criminoso?

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— É uma palavra muito forte, Sílvio.

— Mas e o caso dos remédios com problema? Não é crime?

— Ainda não temos todas as informações necessárias paraafirmar isso. Mas tudo leva a crer que existe alguma coisa suspeitapor trás dessa história...

— Muito obrigado, doutor Plínio, pela sua presença aqui nosnossos estúdios.

— Eu é que agradeço, Sílvio, a oportunidade de alertar apopulação de Ocaporã e de todo o Estado contra os males quepodem ser causados pelos remédios do doutor Otto Freimann.

— Aí está, queridos ouvintes, a grande revelação do dia. SeuOtto Boticário, que muitos consideravam até uma espécie de santomilagreiro, está agora sob suspeita do Ministério da Saúde. Nãopercam, a qualquer hora do dia ou da noite, o desenrolar deste caso.

 A Rádio Ocaporã FM estará de plantão para dar aos seus fiéisouvintes todos os esclarecimentos deste caso. Ouçam agora amensagem do nosso patrocinador, a Drogaria Saúde & Paz...

8. A mudança de Otto

 A notícia do rádio teve dois efeitos, ambos perversos.

Primeiro, dividiu a opinião pública de Ocaporã em doispartidos. Estava aberta a polêmica e em todo canto da cidade só sefalava nisso.

— Meu Deus, e pensar que eu ainda tenho tanto remédio delelá em casa! Vou jogar tudo no lixo!

— Não se precipite, dona Ritinha! A gente não pode acreditartão depressa em tudo o que ouve no rádio!

— Pois eu acredito, seu Júlio, se até a Prefeitura está avisandoa gente para não consumir mais os remédios do alemão... O que osenhor acha, padre Maurício?

— Acho que temos de dar tempo ao tempo e esperar para sabero que está realmente acontecendo. Na verdade, duvido muito que aculpa seja do Otto, que sempre foi homem tão bom...

— Sim, mas o senhor já ouviu falar da história do lobo em pele

de cordeiro?

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— Claro que sim, minha filha, está na Bíblia, e ninguém lê maisa Bíblia do que eu nesta cidade...

— Antes de começar a aula de hoje, eu queria dar um aviso a vocês. Parece que está havendo problemas com os remédios do seu

Otto Boticário. Por isso, a gente deve evitar consumi-los.— Mas, dona Glória, foi a senhora mesmo que falou outro dia

sobre a importância da medicina natural e alternativa contra o poderdos laboratórios internacionais...

— Sim, Ana Maria, mas agora o caso é diferente. Há denúnciasde gente muito doente em outras cidades.

— Ai que medo, meu Deus! Eu tenho asma e minha mãe metrata há anos com os remédios do velho, será que eu vou morrer?

— Deixa de ser coió, Jesuína, não vê que isso tudo é intriga daoposição?

— Que oposição, Tadeu?

— Uai, sei lá, professora, mas não é assim que se costumadizer?

...

— Seu Duílio, é verdade que a farmácia está aceitando de voltaos remédios do seu Otto e trocando por outros?

— É sim, dona Lourdes. Não queremos que nada de malaconteça aos nossos fregueses.

— Ainda bem... E muita gente está vindo aqui trocar?

— Muita gente.

— E quem são aqueles ali na praça, segurando cartazes efazendo tanto barulho?

— São uns irresponsáveis, seu Miranda. Acham que o SílvioGallo está sendo sensacionalista e resolveram fazer um protesto emfrente ao prédio da rádio!

— Que horror, não? Daqui a pouco Ocaporã vai estar que nemas cidades grandes, cheia de arruaceiros e desocupados reclamandode tudo...

— Em vez de arrumar o que fazer...

— Ei, dona Lina, venha ver quem está lá no meio do protesto!

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— Gente, é a Cidinha! Eu vou lá agora mesmo dar um bompuxão de orelha naquela menina espevitada...

O segundo efeito perverso daquela transmissão radiofônica foique começaram a aparecer em Ocaporã jornalistas e repórteres de

rádio à cata de notícias sobre o que estava acontecendo.Logo que o primeiro deles entrou no albergue pedindo

hospedagem — um radialista conhecido, vindo de uma cidade maiora poucos quilômetros de Ocaporã —, dona Dalva previu que a vidade Otto, já tão abalado por tudo, corria o risco de se transformarnum verdadeiro inferno.

Por isso, tramou com Nino, dona Luzia e Mariinha um planopara "esconder o velho", como ela disse. Ninguém mais, senão eles,poderia saber daquela tática. Mas escondê-lo onde?

— Muito fácil — respondeu dona Dalva —, vamos levar o seuOtto para a nossa casa do sítio. Está fechada faz tempo, desde que oHumberto e a Valéria foram estudar em Belo Horizonte. Se a donaLuzia for também, tenho certeza que ela dá conta de cuidar da casa edo seu Otto.

 Aprovou-se a idéia. Assim, na noite da quinta-feira, sem queninguém os visse, dona Dalva, dirigindo seu velho carrinho preto, foiaté o Sítio Liberdade, pegou Otto e algumas coisas dele, e o deixou

com dona Luzia, na casa do Sítio Estrela Dalva, mais afastado dacidade que o do velho farmacêutico.

 A vantagem é que ali havia telefone, que a mãe de Ninopoderia usar a qualquer momento para dar notícias de Otto ou pedirajuda, caso fosse necessária.

Nino, para poder estar atento a tudo o que ocorresse na cidade,alojou-se, também por sugestão de dona Dalva, num pequeno quarto

 vago que há no térreo do albergue, no final do corredor, bem longeda entrada.

Nino gostou de poder ficar mais perto dos dois forasteiros,para vigiá-los melhor. Gostou mais ainda de estar também próximode Mariinha, vê-la a qualquer momento, conversar com ela.

9. O beijo gostoso

E é justamente conversando que os dois estão agora. É sexta-

feira, são onze da manhã, e o casal está no escritório do albergue.— Quer dizer que os dois caras saíram? — pergunta Nino.

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— Saíram — confirma Mariinha —, faz uns cinco minutos. Decarro. Receberam de manhã cedo um telefonema. Quando saíram,disseram que não iam almoçar aqui hoje. Ainda bem... Pelo menosassim, não corro a tentação de pôr veneno na comida deles...

Mariinha diz isso em tom furioso. Nino sorri.— Eu adoro você assim, esquentada, quase pegando fogo.

Ela sorri:

— É o mal das ruivas, nunca ouviu dizer? Ou você acha que agente tem o cabelo vermelho assim à toa?

— A sua mãe tem o cabelo preto... Por que é que você saiuassim, ruiva?

— Por causa do meu pai. Lembra que ele também tem o cabelo vermelho?

— Não. Eu não me lembro muito bem dele — justifica-se Nino.

— Também, faz tanto tempo que ele não aparece — queixa-seMariinha. — Depois que eles se separaram, quando eu tinha cincoanos, acho que ele só veio aqui umas duas ou três vezes. E agora queo Humberto e a Valéria se mudaram para Belo Horizonte para morarcom ele e estudar, aí é que ele não tem mais por que vir aqui.

— Mas você vive indo lá em Belo Horizonte.

— É. Passo quase todas as férias por lá. Mas este ano não fui.Preferi ficar aqui mesmo em Ocaporã.

De repente, o rapaz tem uma idéia:

— E se eu revistasse o quarto deles?

— O quê? — diz Mariinha, tomada de surpresa.

— Revistar o quarto deles!

— Deles quem?

— Dos dois sujeitos do Ministério, uai. Entro lá, dou umaolhada em tudo, vejo se acho alguma coisa que possa ajudar o

 Afonso nas investigações dele lá em Brasília! Que é que você acha?

— Acho uma loucura, sô! Um absurdo!

— Não é loucura maior, nem mais absurdo do que pôr venenona comida deles!

Mariinha sorri.

— Se minha mãe souber, ela mata a gente...— Mata nada...

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— Mata sim, eu conheço bem a fera.

Nino aproxima seu rosto moreno do de Mariinha.

— Mas é por uma boa causa, uai.

Mariinha sente a respiração de Nino queimar-lhe as faces. Elafica desconcertada.

— E se eu te der um beijo, você deixa? — pergunta ele com vozsedutora.

Ela respira com dificuldade, mas consegue dizer:

— Eu já ia deixar de todo jeito, seu bobo, mas se for com beijo émais gostoso.

E os dois se beijam longa e deliciosamente.

Mariinha quase tem que se pendurar no pescoço de Nino, queé bem mais alto que ela. Gosta de sentir o corpo forte do rapaz.

10. Vasculhando o quarto

De posse da cópia da chave do quarto de Lima e Lobato, noterceiro e último andar do velho casarão colonial adaptado paraservir de albergue, Nino entra e começa sua investigação.

O beijo que deu em Mariinha multiplicou-se em outros tantos,e os dois perderam bem uma hora naquela coisa boa. Por isso, temque se apressar, pois a qualquer momento, terminado o horárionormal de almoço, o risco é grande de voltarem os hóspedes.

Entra. Vê que não há mesmo ninguém. O cômodo está muito bem arrumado. Nino tenta abrir as portas do grande armário demadeira escura. Todas trancadas, e as chaves não estão no quarto."Muito espertos, hem?", pensa Nino.

Não há nada por ali que possa servir de pista. As gavetas dacômoda estão vazias. "Puxa, que azar!", lamenta ele.

 Até que sobre a pequena mesa redonda, colocada perto da janela, Nino vê três livros de capa alaranjada de papelão. Pega umdeles.

"Que coisa, está tudo em alemão e inglês", descobre ele,folheando as brochuras, cheias de mapas, gráficos e tabelas. "Nossa,cada palavrão complicado! O que será Naturheilverfahren?"

Na capa de cada um dos livros, um nome aparece bem grande,impresso em letras pretas e gordas: SCHLANGE.

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Pelo que Nino consegue entender, é o nome de uma indústriafarmacêutica alemã, e aqueles livros são relatórios das atividadesdela em vários países do mundo.

Ele se distrai um pouco tentando ler algumas páginas do

capítulo dedicado ao Brasil quando o telefone toca. Nino se assusta.Foi o sinal combinado com Mariinha. Quando as víboras chegassem(é Mariinha que os batizou assim), ela faria soar o telefone do quartopara avisar o amigo.

Nino ajeita os livros sobre a mesa e corre para fora do quarto.Tranca-o com a chave. Desce pela escada e oculta-se, no segundoandar, por trás de um grande móvel que existe no corredor. Dali vêos dois homens subindo a velha escada de madeira rumo ao terceiroandar. "Ufa, na hora". Desce em seguida.

11. Todos da mesma família

 Ao ver o agora mais que simples amigo, Mariinha suspira,aliviada.

— Cruzes, que susto! Quando vi o carro parando aqui na porta,tratei logo de telefonar para o quarto, rezando para que você nãotivesse feito bagunça demais lá em cima e tivesse tempo de arrumartudo. Ainda tentei puxar conversa, para ver se ganhava uns minutospra você, mas eles não são de muito papo não. Uma gente bestademais da conta, viu?

— Não achei nada que prestasse... só uns livros em alemãofalando de farmácia, remédio e coisas assim.

— Sabe o que fiz enquanto você estava lá em cima? — perguntaMariinha.

— Sei. Ficou sonhando com mais um beijo meu...

— Não, seu bobo... Fiquei ouvindo o rádio, para diminuir meunervosismo.

— E adiantou de alguma coisa?

— Não. Só fez piorar tudo...

— Piorar? — surpreende-se Nino — Por quê?

— Porque ouvi a notícia de mais duas pessoas que tomaram osremédios do seu Otto e ficaram doentes. Quer saber quem?

— Quem?

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— O seu Climério da padaria e a dona Suzete do salão de beleza. Os dois foram atendidos pelo seu Duílio da farmácia.

 Aqueles nomes, de repente, criam alguma relação entre si nopensamento de Mariinha. E ela comenta:

— Nino, espera aí...

— Que foi? — interessa-se ele.

— Quem foram as outras pessoas? As outras que o doutorNeves atendeu lá no Posto de Saúde?

— A dona Eglantine doceira e o filho dela, o Lelé.

— Percebeu agora?

— Perceber o quê, Mariinha? Desembucha logo, uai.

— Nino, todas essas quatro pessoas são da mesma família!— Da mesma família?!

— Da mesmíssima. Da família Raposo. Veja só: a donaEglantine é irmã da mulher do prefeito novo. E a mulher do prefeitoé sobrinha em não sei que grau do falecido seu Gabriel Raposo. Onome de solteira dela era Margarete da Mata Raposo, mas agora elatem o nome Borges, que é do marido dela.

— É mesmo, Mariinha. E o seu Climério e a dona Suzete

também são parentes do velho Gabriel. Aí tem coisa!E é então que Nino se dá conta de algo mais:

— Ei, o Geraldo!

— Que é que tem o Geraldo?

— Ele também é da família Raposo! É isso aí! Ele trabalha lácom a gente!

Nino e Mariinha parecem ler o pensamento um do outro. Mas

é ela quem arrisca:— Gente, será que é ele que está envenenando os remédios?

 Aquela pergunta deixa os dois mudos e pensativos. Mariinhanovamente rompe o silêncio:

— Eles têm saído sempre à noite.

— Eles quem?

— As víboras, uai. Desde que chegaram, saem à noite, de carro,e só voltam depois que eu e minha mãe já nos deitamos.

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Dona Dalva e Mariinha moram no primeiro andar do casarão,ocupando cada uma delas um quarto.

— Aonde será que vão? — pensa Nino em voz alta.

Mariinha desvia o rumo da conversa:

— Mas o Geraldo é tão bonzinho. Você mesmo diz que ele é deinteira confiança.

— Dizia — corrige Nino —, dizia. Porque depois do que estáacontecendo, eu não ponho mais a minha mão no fogo por ninguémda família Raposo.

Mariinha sorri para ele:

— Eu não sou da família Raposo. Você põe a mão no fogo por

mim?— Por você eu não ponho a mão no fogo. Não ponho porquenão precisa. Você já é toda feita de fogo, dos pés à cabeça. Quem tetoca sai todo queimado.

— Ah, é? Que tal umas chamuscadinhas agora, hem? —pergunta ela, envolvendo Nino num abraço carinhoso e quente.

12. A linguagem das flores

Depois de descobrir a relação que existe entre as "vítimas" dosremédios, Nino e Mariinha decidem fazer uma visita ao velho Otto.Querem contar a ele o que já descobriram até agora. Vão a bordo da"poderosa" mobilete cor-de-rosa de Mariinha, presente do irmãoHumberto da última vez que apareceu em Ocaporã.

No Sítio Estrela Dalva, o velho Otto, já mais recuperado dochoque, tenta distrair-se trabalhando. Quando Nino e Mariinhaentram, ele está na sala, sentado à mesa diante de um livro verde-escuro muito grande e grosso, de capa dura e letras douradas,páginas muito amareladas.

Mariinha se aproxima dele e lhe dá um beijo na testa. Ottointerrompe a leitura, levanta a cabeça e parece que só agora percebeque tem visitas. Alegra-se:

— Nino, Mariinha...

— Oi, padrinho, a gente veio saber como é que o senhor está.

— Estou bem, tentando trabaiar um pouquinho para esquecera preocupaçon.

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Otto fala muito bem o português, principalmente para alguémque só aprendeu a língua depois dos quarenta anos. Mas nem porisso consegue evitar algumas pronúncias que logo deixam ver que éestrangeiro.

Mariinha interessa-se pelo velho livro. Vê que está abertonuma página cheia de desenhos de flores coloridas.

— Que bonito, seu Otto! Que livro é esse?

— Esta é uma enciclopédia francesa muito antiga, Mariinha.Ela está me ajudando num livrinho que estou escrevendo.

— Ah, é, padrinho? Que livro?

Otto sorri.

— Um livro sobre a lingvagem das flores...— Linguagem das flores? — pergunta Mariinha, sentando-se àmesa ao lado de Otto. — E desde quando as flores sabem falar, seuOtto?

Otto ri gostosamente.

—  Non é nada disso, menina. É claro que as flores non falam. A gente antiga chamava de lingvagem das flores a simbologia que cadaflor representava.

Nino também se senta e logo pergunta:— Simbologia? Que é isso, padrinho?

— Antigamente, as pessoas enviavam flores para transmitirmensagens.  Non era como hoje, que a gente manda flor só paraagradar alguém.

— E como eram essas mensagens? — quer saber Mariinha.

— Era uma coisa muito sofisticada. Para começar, cada cor,por si só, já tinha um significado geral bem definido. O branco, por

eksemplo, simbolizava a pureza, a castidade, a inocência. O vermeioera a cor do amor ardente, da  paixon. O roxo simbolizava a dor... oazul, a ternura... o verde, a esperança... o amarelo, a alegria... e omarrom, a desconfiança.

— Que coisa mais linda! — exclama Mariinha.

— Mas a coisa non parava por aí, non — prossegue Otto. — Ostons de cada cor representavam variaçons do sentimento que elassimbolizavam. O vermeio claro, por eksemplo, representa a  paixonmoderada; o vermeio  vivo é o ardor eksaltado,  violento; o vermeioescuro é a paixon ciumenta, misturada com tristeza...

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— E o que é que as flores têm a ver com isso? — pergunta Nino.

— Têm tudo a ver — responde Otto. — As flores, de acordo comas cores delas, transmitiam mensagens às pessoas que as recebiam.Qvando alguém recebia um buquê, sabia interpretar os sentimentos

das pessoas que tinham enviado ele.— Puxa vida, que coisa mais romântica! Devia ser lindo viver

na época em que as pessoas conheciam esses códigos... — suspiraMariinha, enviando olhares apaixonados a Nino.

Otto não percebe as indiretas de Mariinha e prossegue,entusiasmado, suas explicações:

— Cada flor pode ser traduzida por uma frase. Por eksemplo, aacácia quer dizer "eu gostaria de ser amado"...

— Ah, eu me lembro de uma coisa assim! — exclama Nino. —Foi num livro do Monteiro Lobato... O Saci-Pererê vai embora promato, mas deixa na cama da dona Benta um miosótis... E a donaBenta diz que o miosótis quer dizer "não se esqueça de mim"...

Mariinha surpreende-se com aquela lembrança de Nino. "Que bom", pensa ela, "saber que ele tem lugar na memória para coisasassim, delicadas, aprendidas em livro".

— É isso mesmo — confirma Otto. — O miosótis quer dizer

"non se esqueça de mim"... A azálea, que as pessoas costumamchamar de azaléia, significa "sou feliz por ser amado"... A camélia vermelha dizia "para mim tu és a mais bela"...

Mariinha suspira. Otto prossegue:

— A frase da dália é "vosso amor faz minha felicidade"... A hortênsia diz "vossos caprichos me causam dor"... E o jasmim repete"quero ser tudo para vós"...

Nino pergunta:

— Mas as flores só significam essas coisas assim, melosas eapaixonadas?

Otto responde:

—   Non, às vezes davam mensagens bem divertidas... Poreksemplo, uma petúnia era um aviso de que uma carta de amor tinhaido parar em mons erradas...

— Gente, que coisa... — admira-se Mariinha.

— O acônito é uma flor que manda você desconfiar de uma

amiga, non é egraçado? O gladíolo servia para marcar um encontro: você mandava um buquê de outras flores com um gladíolo no meio.

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O número de flores indicava as horas do encontro... E se no meiotinha uma papoula branca, o encontro era às tais horas da manhã; sea papoula era de cor, indicava a tarde...

— Ai, que chique, muito melhor que telefonar... — diz

Mariinha.— Eu acho muito complicado — comenta Nino. — Decorar

todas essas coisas...

— Complicado nada! — replica Mariinha. — É muito lindo...Hoje em dia a gente tem que aprender e decorar na escola coisasmuito mais chatas e complicadas do que isso...

Otto se diverte com a pequena disputa dos dois. De repente,tem uma idéia. Rasga uma folha do seu caderninho de notas e

começa a copiar alguma coisa. Mariinha percebe e se interessa:— O que é isso que o senhor está copiando, seu Otto?

— Vou escrever para você o significado da rosa, que é a rainhadas flores, você quer?

— Claro que quero — responde ela, comovida.

Otto rabisca algumas linhas no papel, dobra-o com cuidado e oentrega a Mariinha. Ela o recebe, abre e lê: "Rosa branca, amor quesuspira; rosa cor-de-rosa, jura de amor; rosa-chá, galanteria; rosa

 vermelha, amor ardente, sinal de beleza; grande rosa cor-de-rosa,rainha do coração".

Mariinha sente que vai chorar. Levanta-se, de repente, e diz,com voz trêmula:

— Com licença...

 Vai ao banheiro. Chora um pouco, baixinho. E pensa: "MeuDeus, como pode ter gente querendo fazer mal a uma criatura tãodelicada como o seu Otto? Um homem que se preocupa em escrever

um livro sobre a linguagem das flores?".Lava o rosto. Sai.

13. Planos para a noite

Mariinha volta à sala e encontra Nino e Otto conversandosobre a família Raposo.

— Será mesmo possível, Nino? A família do meu maior amigoestá inventando alguma coisa para me prejudicar?

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Otto não consegue acreditar.

— Parece que sim, padrinho. Quem percebeu que todas assupostas vítimas de envenenamento eram da família Raposo foi aMariinha.

— É verdade, seu Otto — confirma ela.

— E essas pessoas do albergue, o que têm a ver com o caso? —pergunta Otto.

— Ainda não sabemos, padrinho.

Otto pára de falar. Pensa um pouco. Depois diz:

— Nino, que tal você bancar o detetive, hem?

— Como assim, padrinho?

— Você podia seguir os dois para ver aonde von, o que fazem —e virando-se para Mariinha: — É verdade que saem toda noite doalbergue, Mariinha?

— É, seu Otto. Têm saído direto, toda noite, no carro.

—  Enton, Nino, você segue os dois. Mas de longe, viu?

— Pode deixar comigo, padrinho. Hoje mesmo começo. Eassim que eu souber de alguma coisa, conto para o senhor.

Nino tem uma curiosidade. Quer saber o que o prefeito quisdizer com a pergunta: "O senhor ainda se lembra dos motivos que ofizeram vir para o Brasil?". Mas tem receio de fazer o velho sofrer epor isso prefere não dizer nada por enquanto.

Mariinha diz a Nino que precisa voltar para a cidade.

— Não posso deixar minha mãe lá sozinha.

Nino e Mariinha despedem-se de Otto e voltam para oalbergue.

14. Descobertas de Nino

O plano foi traçado. Naquela noite de sexta-feira, quando asvíboras saírem do seu ninho, Antonino, a bordo da mobilete deMariinha, seguirá o carrão para ver aonde vai.

 A pista aberta pelo fato de todas as "vítimas" serem da mesmafamília deixou a cabeça de Nino cheia de caraminholas. "Tudo isso

só pode ser encenação, puro teatro! Por isso, dona Eglantine e o filhoapareceram no Posto de Saúde, 'intoxicados'. E pela mesma razão

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seu Climério e dona Suzete foram atendidos por seu Duílio Raposo,dono da farmácia, e também da família!", conclui o rapaz.

Qual seria o papel de Geraldo nessa trama toda? É o que Ninoquer descobrir.

 Às nove e meia da noite, percebendo que os hóspedes estãosaindo no grande carro azul, Nino, já montado na mobilete e àespera deles na esquina, põe-se a segui-los. Trata sempre de manteruma boa distância, como viu em alguns filmes, para não despertarsuspeitas.

Enquanto isso, Mariinha, para se distrair um pouco, fica vendotelevisão com a mãe.

O carro não anda muito. Afinal, a cidade é pequena. Nino vê

confirmadas a dedução de Mariinha e suas próprias suspeitas. OBMW azul-escuro detém-se diante da grande casa de Duílio Raposo,filho do falecido seu Gabriel, dono da farmácia.

E é o próprio Duílio que Nino vê agora sair de casa e entrar nocarro, que se põe de novo em movimento.

"Traidor!", pensa, indignado. "Seu Gabriel foi sempre tãoamigo do padrinho a vida inteira... E agora, depois de morto, édesrespeitado assim pelo próprio filho, que se juntou com esseprefeito vigarista e com essas víboras do governo!"

Continua a seguir o BMW de longe. E já não se espanta quandoele estaciona em frente à casa do doutor Plínio, que também entrano carro. Carro que continua a rodar até finalmente parar na rua quepassa por trás da Drogaria Saúde & Paz, fechada àquela hora danoite.

"Então é isso mesmo", confirma Nino. "O tal doutor Plínio, oseu Duílio, a dona Eglantine e todas as vítimas denunciadas peloSílvio Gallo no rádio estão nessa história, junto com o prefeito e os

sujeitos de Brasília. Está na cara que o Geraldo também está metidonisso!

15. Nino fora, Geraldo dentro

O que Nino não sabe é que Geraldo está naquele exatomomento dentro do depósito da farmácia, sozinho e preocupado.Quando soube das acusações contra Otto, ficou muito triste, mas não

conseguiu acreditar nelas.

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Geraldo, embora filho de Duílio, foi praticamente criado peloavô, o velho Gabriel. Com ele aprendeu muito do ofício defarmacêutico. Por isso sabia que os remédios de Otto nada tinhamde venenoso.

 Agora está ali, na farmácia, escondido do próprio pai. Sempreteve uma cópia de todas as chaves, presente do avô, que confiavanele.

E por que veio? Porque está desconfiado. Desconfiado doenvolvimento do pai e de outros membros da família em algumacoisa que não lhe cheira muito bem.

Começa a mexer em algumas caixas nas prateleiras dodepósito, quando ouve o barulho de passos que se aproximam.

 Apaga a lanterna que traz na mão e se tranca dentro de um banheirinho inutilizado, que agora só serve de quarto de despejopara material de limpeza.

Ouve a porta se abrir. Alguém acende a luz. Reconhece a vozdo pai, que diz:

— Este aqui é o último lote, eu acho. Vai ser despachadoamanhã cedo para Pedras de Maria da Cruz.

— Onde é que fica isso? — pergunta um homem, cuja vozGeraldo não reconhece.

— Muito longe, lá para as bandas do rio São Francisco —responde Duílio.

— E já está tudo batizado? — pergunta o doutor Plínio.

— Ainda não, Plínio, é justamente o que vim fazer — respondeDuílio.

— Me expliquem uma coisa: vocês não disseram que aquelesrelatórios de gente intoxicada fora daqui eram todos falsos? Por que

 vamos batizar agora os remédios dessas caixas? — continua aindagar o doutor Plínio.

— Para criar fatos que comprovem o envenenamento, doutor— explica outra voz que Geraldo não identifica. — Se alguém poracaso desconfiar do envolvimento da família de vocês na história,será possível argumentar com outros casos reais em lugares bemlonge daqui.

Geraldo não entende aquela conversa. Que história de batismoé essa? Em que a família dele está envolvida? Só então percebe que

na porta do banheirinho onde está há uma fresta estreita, por onde

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entra um pouco da luz que ilumina o depósito. Ele arrisca olhar porali e o que vê deixa-o horrorizado.

Seu pai, Duílio, recebe das mãos de um dos homensdesconhecidos um pequeno vidro marrom. Com um conta-gotas

comprido, retira um pouco do conteúdo do vidro e o vai pingandoem cada um dos frascos abertos. São os remédios de Otto! Remédiosque ele mesmo, Geraldo, ajudou com tanto cuidado a preparar! E éseu próprio pai quem está provocando todos aqueles problemas!

 Aquilo só pode ser veneno!

— É pena que o seu filho não possa colaborar, seu Duílio —lamenta um dos homens.

— Teria sido muito mais fácil, não é? — confirma o outrodesconhecido. — Afinal, trabalhando dentro do laboratório do

 velho...

— Pois eu achei que a tua idéia de colocar o Geraldo nolaboratório do Otto fosse pra ajudar a gente... — comenta Plínio.

— Nem pensar! — diz Duílio, categórico. — O Geraldo é muitoligado ao Otto. Pus ele lá justamente para mostrar as boas relaçõesentre nós e o velho. Além disso, conheço o menino muito bem e seique ele não ia topar...

— Difícil de acreditar — comenta o doutor Plínio. — Nessa

idade a gente quer ter tanta coisa que não pode... Carro, moto,aparelho de som, viagens, sei lá... Se você falasse do dinheiro quepodia rolar para ele...

Terminada a operação, os quatro homens apagam a luz e saemdo lugar. Geraldo fica ainda muito tempo onde está, dentro do

 banheirinho, sem coragem de dar um passo. Está tão triste quepoderia chorar o resto da noite. Triste por ter visto o próprio paiajudando a adulterar os remédios que ele mesmo vende na farmáciaa fregueses que compram ali há décadas! Triste por saber que sua

família está envolvida na tentativa de destruição do trabalho queOtto Freimann vem fazendo sozinho, com a única intenção de ajudaras pessoas...

E agora? Deve contar a Nino tudo o que sabe? Ou devepreocupar-se em proteger a família? Mas como proteger gentedesonesta? E com que cara vai voltar para casa e olhar para o pai?Terá de fingir que não sabe de nada?

Geraldo é um rapaz frágil. Acha que nunca terá coragem de

enfrentar o pai. Além disso, conhecendo o temperamento autoritáriode Duílio, tem motivos para temer alguma reação violenta.

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E agora? O que fazer?

Uma idéia então lhe ocorre. Se vai contar ou não, é coisa paradecidir mais tarde. Agora, porém, tem que impedir que aquelesremédios perigosos cheguem ao destino.

Sai então do seu esconderijo. Cuidadosamente, derrama noralo do depósito o conteúdo de todos os frascos de remédiosadulterados. Depois, recoloca-os em suas caixas e volta a lacrá-las."É melhor o cliente ficar com raiva por receber caixa com vidro vaziodo que por ver gente envenenada pelos remédios que encomendou",avalia.

16. Impaciência de Nino

"Quanto tempo será que eles ainda vão ficar lá dentro?". Ninoestá impaciente. "O que será que estão fazendo?". Do lado de fora,escondido sob a sombra farta de uma grande árvore, espera que ocarro azul se ponha de novo em movimento.

 A noite é fresca, clara: lua cheia. A praça onde fica a farmácia éo ponto mais alto da cidade. Tem forma circular e para se chegar a

ela é preciso subir várias ladeiras.Do ponto onde está, Nino consegue ver a Ponte Velha, que

corre sobre o rio. É antiga, feita de metal vermelho, e tem umainscrição em latim que pergunta:  Pacificusne est ingressus tuus? "Éem paz que entras aqui?" Quem dera os hóspedes de dona Dalva,que agora estão dentro da farmácia, tivessem lido e entendidoaquela pergunta, que todas as crianças de Ocaporã são obrigadas adecorar na escola.

Nino conta as cento e cinqüenta e sete janelas acesas daenorme fábrica de tecidos. Vê a estação de trem, bonita e velha,praticamente inútil há tantos anos. Ainda na praça, o grupo escolarMarília de Dirceu, onde fez o primário, está todo pintadinho de

 branco para receber os alunos quando terminarem essas férias demeio de ano. Mais à frente é o restaurante Flor da Serra, onde elecomeu o frango com quiabo e angu mais gostoso de sua vida:aniversário de quinze anos.

Seu olhar se detém diante da matriz de Santa Inês, padroeirada cidade. Igreja bonita, do outro lado da praça. Lembra-se deMariinha ter-lhe dito uma vez, quando ainda eram crianças:

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— Será que algum dia eu vou entrar nessa igreja, toda vestidade branco, linda e maravilhosa, para me casar com alguém, aindamais lindo e maravilhoso?

Nino agora sorri. Quem sabe? E de repente vê, do lado da

farmácia, passar o BMW azul. Vai segui-lo de novo, e só para vertodos os seus quatro ocupantes descerem do carro e entrarem nacasa de Duílio Raposo.

Nino se aproxima. Deixa a mobilete escondida sob uma grandeárvore na esquina da rua escura. A casa não tem jardim e as janelasdão diretamente para a calçada. Nino, do outro lado da rua, lamentanão ter trazido um binóculo.

De qualquer maneira, dá para perceber que estão todos bebendo e conversando, alegres e despreocupados.

Na cabeça do rapaz, várias perguntas se amontoam: "Quemserão esses visitantes misteriosos? Qual o interesse da famíliaRaposo em eliminar o laboratório de Otto? Qual o papel de Geraldoem tudo isso? O que foram fazer todos aqueles homens na farmáciafechada?"

E assim pensando, monta de novo na mobilete e volta para oalbergue. Quer contar tudo o que viu a Mariinha.

17. Mariinha se arrisca

Enquanto isso, na companhia da mãe, Mariinha — para nãoficar pensando nos riscos que Nino pode estar correndo — assiste,atenta, ao noticiário da televisão.

 Vê um ministro, acusado de aceitar suborno, ficar pálido aosaber que existe uma fita gravada com toda a conversa em que lheofereceram milhares de dólares para fazer alguma coisa não muitocerta.

— Veja só, minha filha — comenta dona Dalva —, o estrago queum simples gravadorzinho de bolso pode fazer. Uma fitinha cassetedo tamanho de uma caixa de fósforo pode derrubar até um ministrodo governo.

Mariinha apenas balança a cabeça. Um simples gravadorzinho.De repente, tem alguma idéia estranha.

— Espere aí, eu também tenho um! — grita ela.

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— Tem o quê, menina? — pergunta a mãe, assustada com ogrito.

Mariinha tenta disfarçar.

— Hem? O quê?

— Eu é que pergunto, menina. Que grito foi esse? Viuassombração?

— Não, mãe, foi só um pensamento maluco que passou pelaminha cabeça...

— Eu, hem... — diz dona Dalva, com um muxoxo. Mariinha selevanta do sofá onde estava sentada.

— Aonde vai, menina? — quer saber dona Dalva. — Daqui a

pouco começa a novela.— Não estou a fim de ver bobajada de novela hoje não, mãe. Acho que vou cuidar de algumas coisas lá no escritório, tá?

Sai. "Será que eu estou enlouquecendo com essa históriatoda?", pensa. "Ou será que é o amor que deixa a gente assim, meioabobalhada?"

 A idéia é simples. Ela tem um gravador pequeno, mas não tãominúsculo como o que apareceu no noticiário. Comprou em BeloHorizonte, quando foi passear num shopping com a irmã Valéria.Funciona a pilha, tem um microfone embutido supersensível. E seela o colocasse no quarto das víboras? Quem sabe não gravavaalguma coisa importante?

"Acho que estou realmente ficando louca", pensa Mariinhaenquanto, no seu próprio quarto, pega o gravador e põe nele pilhasnovas e uma fita virgem. "Será que vou mesmo?", hesita um pouco.Depois, pensa em Nino, lembra dos beijos gostosos dele. "Será?" Vêentão, sobre a sua mesinha de cabeceira, um papelzinho dobrado. Éo que Otto escreveu para ela. "A linguagem das rosas". Decide-seentão: "Tenho que ir, preciso ajudar o seu Otto".

Com pisadas de gato, evitando qualquer ruído para nãochamar a atenção da mãe ou de algum outro hóspede, ela sobe até oandar do quarto das víboras.

 Acende a luz do pequeno abajur da cabeceira de uma dascamas. Vê sobre a mesinha os livros de capa alaranjada que Nino dizter folheado. Mas agora, sobre a cômoda, encontra também umarevista.

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"Também em alemão, eu acho", pensa Mariinha enquantoaproxima o rosto da capa da revista, que trouxe para perto da luz doabajur.

 Der Spiegel, lê. "Ah, eu acho que já vi umas revistas dessas na

casa do Nino". Esta edição, porém, é de 21 August 1961. "Cruzes,para que é que alguém quer guardar uma revista tão velha?",espanta-se ela. "Isso aqui é de muito antes de eu nascer."

 A capa está dividida ao meio por uma linha diagonal branca ecada um dos campos está ocupado por uma foto. Uma é a de umhomem que Mariinha acha bastante parecido com Otto Freimann."Será que alemão é tudo a mesma cara? Esse aqui parece um filho doseu Otto!"

 A outra foto mostra uma prateleira de farmácia repleta decaixas de medicamentos, todas com a marca Schlange estampadaembaixo do nome dos remédios.

 A capa também tem uma frase, indecifrável para Mariinha: Zuckermann gegen Schlange. Die Ozoptyxs Krieg! "Só mesmo oNino para achar bonita esse raio de língua. Vê só cada palavrafeia...", pensa ela enquanto põe a revista de volta onde a encontrou.

18. No túnel do tempo (I)

Se Mariinha soubesse alemão e pudesse ler aquela revista,ficaria sabendo de um escândalo muito importante que ocorreu na

 Alemanha em 1961. Tão polêmico que a revista Der Spiegel chamou-o de "guerra". A luta do cientista Karl Zuckermann contra a indústriafarmacêutica Schlange, a maior do país.

Frankfurt, Alemanha, 12 de  junho de 1961. Três horas da tarde. 

Numa  enorme  sala  de  reuniões,  o  presidente  da  companhia, Friedrich  Schlange,  está  de  pé  à  cabeceira  de  uma  mesa  oval  e  muito 

comprida.  Em  torno  dela  estão  sentadas  pelo  menos  umas  dez  outras 

pessoas. 

— Senhores e senhoras — diz ele em tom grave —, esta reunião foi convocada com um único objetivo: definir a estratégia de comercialização 

do Ozoptyx. Temos encomendas do mundo  inteiro. Este é o maior passo 

dado pela Schlange em toda a sua história. 

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O  Ozoptyx  é  um  remédio  desenvolvido  pelo  próprio  Friedrich 

Schlange.  Depois  de  anos  de  pesquisa,  descobriu  uma  fórmula  capaz  de 

evitar o câncer de mama, que é a principal causa de morte de mulheres 

em todo o mundo. 

Schlange sabe

 que

 seu

 nome

 está

 entre

 os

 indicados

 para

 o próximo

 

Prêmio Nobel de Medicina e não esconde seu orgulho. Além disso, com a 

venda do  remédio em muitos países, ele e sua  indústria ganharão  talvez 

mais dinheiro do que a Volkswagen, a Basf, a Siemens ou qualquer outra 

empresa alemã. 

Antes  que  possa  prosseguir  a  reunião,  porém,  Schlange  é 

interrompido pela secretária, que lhe diz pelo interfone: 

— Doutor Schlange, o representante do Ministério da Saúde, doutor 

Karl Zuckermann,

  já

 chegou.

 

— Pois não, dona Ingrid. Diga a ele que pode entrar. 

Logo  em  seguida,  a  porta  principal  se  abre  e  surge  a  secretária, trazendo consigo um homem de terno azul‐marinho, a quem ela oferece 

um lugar na mesa de reuniões. Ele agradece e se senta. 

Schlange explica aos demais presentes: 

—  Senhores  e  senhoras,  quero  que  conheçam  o  doutor  Karl 

Zuckermann, 

chefe 

do 

Departamento 

de 

Fármacos 

do 

Ministério 

da 

Saúde.  Como  todos  sabem,  nenhum  medicamento  pode  ser comercializado  na  Alemanha  sem  a  autorização  do  governo  federal.  O 

doutor Zuckermann foi quem me solicitou que marcasse esta reunião. Ele 

vai  nos  dar  notícias  do  Ozoptyx.  Notícias  boas,  não  é  mesmo,  doutor Zuckermann? 

Zuckermann pigarreia um pouco antes de dizer: 

— Infelizmente não, doutor Schlange. As notícias que trago não são 

nada boas...

 

Friedrich  Schlange  senta‐se  para  não  dar  a  perceber  seu  choque. Tenta manter a calma. Zuckermann levanta‐se: 

—  Se  o  senhor  me  permitir,  gostaria  de  mostrar  a  todos  os 

presentes os relatórios das nossas investigações... 

— Prossiga — ordena Schlange, em tom seco. Zuckermann distribui várias pastas alaranjadas. 

— 

Como 

os 

senhores 

senhoras 

verão, 

Ozoptyx 

simplesmente não pode ser comercializado. 

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—  Como  não  pode?!  —  exclama  Schlange,  perdendo  um  pouco  a 

frieza. 

— Não pode. O Ozoptyx tem efeitos colaterais assustadores para a 

saúde da mulher. 

Schlange não consegue, não pode, não quer  acreditar no que ouve. 

— O senhor tem certeza do que está dizendo, doutor Zuckermann? 

— perguntou uma das diretoras da área comercial da empresa. 

— Tenho sim, senhora Scheinhaus. Se todos tiverem a bondade de 

abrir  os  relatórios  que  distribuí,  poderão  conhecer  os  resultados  dos 

nossos testes. 

Schlange,  com  visível  irritação,  abre,  num  gesto  duro,  a  brochura 

que está

 à sua

 frente

 sobre

 a mesa.

 

—  Como  se  pode  ver  —  prosseguiu  Zuckermann  —,  o  Ozoptyx 

realmente tem tudo o que é necessário para evitar o câncer de mama. No 

entanto, nossos testes com ratos e chimpanzés mostram que, ao cabo de 

dez  ou  doze  anos,  a  mulher  que  tiver  usado  o  Ozoptyx  nas  quantidades necessárias perderá gradualmente a visão até ficar totalmente cega, além 

de perder também a mobilidade dos músculos da face. 

Schlange pensa estar no meio de um pesadelo. Não é possível! 

— 

Qual 

porcentagem 

das 

cobaias 

que 

apresentaram 

estes 

problemas, doutor? — pergunta alguém. 

—  Mais  de  oitenta  por  cento,  senhor  Fensterflügel.  Friedrich 

Schlange devora com os olhos aqueles gráficos e tabelas. Vê as fotografias de macacos cegos. Sim, é verdade. Mas não, ele não vai deixar seu sonho 

ruir assim! 

— Os resultados após as primeiras aplicações são realmente muito 

bons — prossegue Zuckermann —, mas com o tempo a situação se torna 

dramática. O

 Ministério

 da

 Saúde

 não

 pode

 dar

 o certificado

 que

 libera

 o

 

Ozoptyx para a comercialização. Só me surpreende que os laboratórios da 

própria  empresa  Schlange  não  tenham  chegado  a  estas  mesmas 

conclusões. 

Schlange sabe que chegaram. Mas nunca pensou que os técnicos do 

Ministério  da  Saúde  fossem  tão  competentes  para  descobrir  efeitos  tão 

distanciados no  tempo. Não sabia que Karl Zuckermann era um cientista 

tão notável. A idéia de Schlange era comercializar o Ozoptyx e, mais tarde, 

quando surgissem

 os

 problemas,

 estudar

 uma

 estratégia

 para

 enfrentá

los. Até lá, ele e sua empresa  já estariam suficientemente bilionários para 

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pagar  eventuais  indenizações.  E  agora  vinha  aquele  reles  burocrata 

atrapalhar tudo. 

Arrisca uma ameaça: 

— 

Podemos 

tentar 

conseguir 

um 

certificado 

da 

Associação 

Européia 

de  Farmacologia.  Com  ele,  o  remédio  terá  livre  circulação  nos  países‐

membros. 

— Não o aconselho, doutor Schlange. O senhor sabe muito bem que 

a primeira coisa que a Associação Européia de Farmacologia faz antes de 

permitir a comercialização de um remédio novo é solicitar um parecer do 

governo do país produtor. O mesmo acontece com a Sociedade Americana 

de Farmácia. 

Schlange 

recupera 

calma. 

Levanta‐

se 

abruptamente 

diz: 

—  Já  que  é  assim,  a  reunião  está  encerrada.  Se  precisar  dos 

senhores e senhoras volto a convocá‐los. 

O  tom  da  voz  é  de  tamanha  autoridade  que  ninguém  ousa 

perguntar nada. Todos se  levantam, calados, e começam a deixar a sala. Quando se aproxima da porta, Zuckermann ouve o presidente chamá‐lo: 

— Doutor Zuckermann, o senhor fica, por favor. 

19. Mariinha em apuros

Mariinha, agora, tem de achar um lugar para deixar aquelegravador. Só então é que começa a perceber os furos do seu plano.

"Gente, como eu sou boboca!", pensa, desanimada. "Como éque eu vou ligar e desligar esse gravador? Por acaso vou ficartrancada no armário o tempo todo que as víboras estiverem aqui? Seeu contar pro Nino ele vai me chamar de coió vinte e cinco vezes!"

Sentindo-se ridícula, apaga a luz do abajur e prepara-se parasair do quarto quando ouve vozes do lado de fora, no corredor. Sãoeles? Sim, as víboras, mas falando alto, cantando alguma coisa...

O que fazer? Mariinha fica tão atordoada que corre a esconder-se, gravador em punho, debaixo de uma das camas. E, apesar deassustada, ainda consegue pensar: "Tá vendo como é bom a gente sepreocupar em não engordar? Se eu estivesse mais gorda era bemcapaz de não caber debaixo dessa cama!"

No mesmo instante em que se ajeita embaixo da cama, a portase abre e a claridade do corredor invade o quarto. Logo em seguida,

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a porta se fecha e ao mesmo tempo a luz do próprio quarto seacende.

Os dois homens estão muito alegres. Um deles, Lobato, queMariinha reconhece pela voz, dá gargalhadas enquanto diz:

— Esse tal de Duílio Raposo é mesmo genial! Quem diria queele pudesse conseguir deixar a gente bêbados desse jeito?

— Também, com aquela quantidade de pinga da fazenda deleque a gente teve de provar... — comentou Lima, com voz poucofirme.

— Pois eu nem vou tirar a roupa, sabia? — informa Lobato. — Vou cair nessa cama e dormir até amanhã de noite... Quá-quá-quá-quá...

E cumpre a ameaça. Mariinha sente a cama ceder um poucosob o peso do homem que se deita nela. E agora? Eles não parecemestar com muita vontade de sair de novo. Será que ela vai ter depassar a noite toda ali, naquela posição terrível? E se por algumarazão demoníaca um deles resolve espiar debaixo da cama? Équando lhe vem a idéia de ligar o gravador e tirar proveito daquelasituação maluca.

— Você viu como a mulher do Raposo é gostosa? — perguntouLobato. — Aquela é uma com quem eu fugia pra Miami!

— Eu também, meu caro, eu também — responde Lima. — Ficosó imaginando como deve ser a tal filha mais velha que faz medicinaem Belô...

— Deve ser um tremendo avião — comenta Lobato.

"Nojento!", pensa Mariinha, chocada com aquela falta derespeito.

— Essa família Raposo está saindo melhor do que aencomenda, não é? — comenta Lima.

— Se está! — confirma Lobato. — São tão colaboradores, fazemtudo o que a gente pede... Menos o molecote lá, o tal Geraldo...

— O pai deve saber o que faz. Se achasse que podia confiarnele, na certa tinha colocado o menino na jogada. Mas já está tudoresolvido, não é? Quem está por dentro já está fazendo muito bem oseu papel...

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— Também, não é à toa — diz Lima —, com a grana preta queeles vão ganhar agora com a venda dos remédios da Schlange, foraas gratificaçõezinhas que vamos dar...

Mariinha presta bastante atenção no que está ouvindo. "Quegente mais podre!", pensa.

— O bobo do prefeito e o secretário dele lá, o tal Plínio,também estão dando conta do recado... E o melhor é que a gentenem precisa aparecer muito — continua Lima. — Nem foi precisousar a revista alemã velha que o pessoal da Schlange sugeriu...

— De qualquer maneira, a revista está sempre aí e a gente podedar ela de presente ao velho para ele refrescar a memória caduca

dele... — diz Lobato."Eu, hem, que papo mais doido, sô! Não consigo entender

patavina!", pensa Mariinha.

— Por falar em dinheiro, você já sabe o que vai fazer com adinheirama incalculável que vai ganhar depois que a gente semandar dessa cidadezinha besta? — pergunta Lobato.

— Claro que sei. Vou direto para o Havaí e de lá não saio nuncamais. Daqui mesmo sigo para o primeiro aeroporto internacional e

bye bye... Não vou nem a Brasília pedir demissão do Ministério... Játrouxe até o passaporte comigo... Adeus, Schlange, adeus, vovôZuckermann... E você? Vai fazer o quê? Já se decidiu?

Lobato não responde, pois já está roncando. Deve ter bebidomuito para desabar assim. Lima ainda se despe, abre o armário, tirao pijama, veste-o. Somente então é que se deita, após apagar a luz.

E agora? Um já está dormindo, pois ronca a todo vapor. E ooutro? Como saber? Mariinha só pode fazer uma coisa: esperar.

E espera por mais de hora e meia. De repente, começa a ouvir a voz de Lima a dizer coisas enroladas e incongruentes. É a sorte dela: veio parar num quarto onde um dos hóspedes ronca e o outro falaenquanto dorme.

Silenciosamente, esgueira-se para sair de onde está. Sempreagachada, abraçada ao gravador, dirige-se à porta. Abre-a,levantando bem o braço e girando a maçaneta com toda a delicadezapossível. A porta range ao se abrir. Uma réstia mínima da luz docorredor penetra no quarto.

É agora ou nunca!

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De repente, um grito faz gelar seu coração. Pára, espera. Nãofoi nada. Só o tal Lima a falar de novo enquanto dorme.

Mariinha, trêmula, sai do quarto. Levanta-se finalmente.Fecha a porta. Quando está de pé no corredor, descobre, junto da

escada, um desesperado Nino.Não conseguindo encontrar Mariinha na recepção, teve um

pressentimento de onde ela poderia estar.

 Ao vê-lo, ela se assusta e leva a mão à boca, para impedir umgrito. Depois, corre ao encontro dele. Nino abraça-a com força, masnão quer ficar ali nem mais um segundo. Puxa-a para que desçam jáas escadas de volta a lugar mais seguro.

20. Conversa de madrugada

Trancados no escritório do albergue, só com um pequenoabajur aceso e as portas trancadas, Nino pede a Mariinha queexplique o que aconteceu.

— Foi assim. Você saiu para espionar as víboras. Eu fiquei emcasa vendo televisão com a minha mãe. Vai que aparece no noticiárioum ministro que está sendo acusado de ter aceito suborno. Alguém

que ele quis meter na jogada gravou a conversa e essa fita está sendousada no processo.

— Sei, e daí? — impacienta-se o rapaz.

— Daí que eu me lembrei que também tinha um gravadorpequeno, que comprei em Belo Horizonte nas últimas férias quepassei lá.

— Sei, e daí?

— Daí que me veio a idéia de deixar o gravador no quarto deles

para tentar gravar alguma conversa que pudesse comprometer osdois.

— Sei, e daí?

— Ai, Nino, você só sabe dizer "sei, e daí", é? Não consegueadivinhar o que foi que aconteceu?

— Claro que não consigo adivinhar. Se conseguisse, não tepedia para me contar.

Mariinha fica emburrada. Nino reconhece que foi impaciente.

Pede desculpas. Passa a mão pelos cabelos vermelhos dela.

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— Bom, assim está melhor — diz ela. — Agora... peguei ogravador, subi até o quarto, comecei a procurar um lugar para deixaro gravador e aí eles chegaram...

— Pegaram você? — assusta-se Nino.

— Não... Eu corri e me escondi debaixo de uma das camas...

— Que loucura, Mariinha!

— Não é mesmo? Mas foi bom, porque eles estavam meio bêbados e começaram a falar...

— E o que foi que disseram?

— Isso — responde Mariinha, apertando uma tecla dogravador. A fita começa a rodar e Nino ouve todo o estranho diálogo.

— Que barulho horrível é esse aí, agora?— Ah, é o ronco de um deles... — explica Mariinha, desligando

o aparelho.

Nino fica pensativo.

— Esta fita é muito importante para a gente, Mariinha.

— Eu sei — diz ela, com orgulho.

— A gente tem que guardar muito bem guardada, e se possívelaté fazer uma cópia.

— Eu sei — diz Mariinha. — Já pensei nisso também. Amanhãmesmo vou copiar. Minha mãe tem um aparelho de som no quartodela que tem duplo deck...

— Tem o quê? — pergunta Nino, que entende pouco dessascoisas.

— Ih, Nino, duplo deck! Um gravador que pode gravar de fitapara fita! Você até parece um capiau... — diz ela, que se orgulhamuito de conhecer coisas de cidade grande.

Nino, sem ligar para o comentário, pergunta para si mesmo:

— Quer dizer que o Geraldo não está metido nisso tudo?

— Não — responde Mariinha —, isso ficou bem claro no papo ládas víboras bêbadas...

— Ainda bem, o Geraldo é tão legal... — conforta-se ele. E emseguida: — Eles falam aí da Schlange, e a Schlange eu sei o que é.Mas quem será o tal "vovô Zuckermann"?

Só então Mariinha se lembra:— Ei, eu acho que li esse nome na revista.

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— Que revista? — interessa-se Nino.

— Uma revista alemã, igual àquelas que você tem em casa.

— Der Spiegel?

— Isso mesmo — confirma ela. — Tinha uma revista dessas láno quarto das víboras. Eu vi em cima da cômoda. Na capa apareciaesse nome aí, Zuquermã, e também o nome da tal fábrica deremédios que você falou.

— Será que é dessa revista que eles estavam falando? Umarevista que eles podiam usar?

— Vai ver é... — arrisca Mariinha.

Breve silêncio.

— Tem outra coisa que também ficou bem clara — diz Nino.— O quê?

— Esses dois que estão hospedados aqui devem estar com orabo bem preso.

— Não estou entendendo... — diz Mariinha.

— Ora, se vão receber muito dinheiro pelo que estão fazendo éporque não é nenhum serviço para o governo, concorda?Funcionário público faz o que tem que fazer sem precisar de

"prêmios", não é?— Eles estão sendo subornados também, feito o tal ministro da

televisão?

— Só estão. Isso aí é corrupção das boas. E se para usar odinheiro que vão ganhar eles precisam até sair do Brasil, é porque oque eles estão fazendo não é lá muito legal, não é?

— Puxa vida, quanta coisa numa noite só! — espanta-seMariinha.

— E isso porque eu ainda nem te contei o que foi que descobrino meu "passeio" de mobilete... — diz Nino.

E ele vai relatando tudo o que viu para Mariinha, que sesurpreende com cada novo detalhe. E a conversa vara a madrugada,até que, exaustos, vai cada um para seu quarto e tenta descansar umpouco.

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21. Telefonema de Afonso

Sábado de manhã. Pouco depois das oito horas, o telefone doalbergue toca. Mariinha atende. É Afonso, que quer falar com Nino.

Ela vai até a cozinha chamá-lo. O rapaz, que está em pleno café damanhã, precipita-se até o escritório e agarra o aparelho. Começa adizer umas coisas sem muito nexo, gagueja muito, a ponto de, dooutro lado, Afonso perguntar:

— Nino, você está bem? Não estou entendendo nada do que você está dizendo...

Nino se acalma. Respira fundo. Recupera o fôlego normal. Diz:

— Desculpa, Afonso, mas é que eu tenho um monte de coisas

para te contar e não sei nem por onde começar.— Que tal do começo? — sugere Afonso, rindo.

— Vou tentar. Primeiro: os caras que estão hospedados aqui noalbergue estão pagando o prefeito e o doutor Plínio paradesmontarem o laboratório do padrinho...

— Eu já desconfiava — diz Afonso. — Como foi que vocêdescobriu isso?

— A Mariinha gravou uma fita dentro do quarto deles. Nessa

fita, eles deixam bem claro que estão levando muita grana para fazero que estão fazendo.

— Uma fita? — espanta-se Afonso. — Mas isso é muito bom,quer dizer, se a gravação estiver boa, se a fita estiver bem audível.

— Super bem audível — assegura Nino. — Além disso, eu seguios dois ontem à noite e vi quando eles pegaram o seu Duílio e odoutor Plínio em casa e foram com eles até a farmácia do velhoGabriel.

— Na farmácia, fazer o quê? — pergunta Afonso.— Isso eu não descobri, Afonso, mas a gente pode desconfiar,

não é? Devem ter ido lá para envenenar os remédios...

— Claro, claro... — comenta Afonso.

— E você aí em Brasília? Descobriu alguma coisa?

— Muita coisa, Nino.

— Ah, é? — interessa-se o rapaz. — O quê?

— Não posso dizer agora, Nino, porque meu avião sai daqui apouco.

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— Avião? Avião para onde?

— Para Belo Horizonte. Preste atenção: daqui a mais ou menosuma hora vou chegar lá e alugar um carro até Ocaporã. Hoje mesmoantes de anoitecer devo estar por aí.

— Oba, vai ser ótimo! — comemora Nino.

— Quero que você peça à dona Dalva que reserve um quartopara duas pessoas que devem chegar aí hoje, na mesma hora que eu.

 Agora vou desligar. Tchau, Nino, até daqui a pouco! — e Afonsodesliga.

22. Perseguição ao falso inimigo

Para se distrair enquanto Afonso não chega, Nino pediunovamente a mobilete de Mariinha emprestada. Decidiu dar umpulo no Sítio Estrela Dalva, para contar a Otto tudo o que aconteceuna noite de ontem.

Toma todas as precauções para não ser seguido,principalmente pelos repórteres e jornalistas que andam

 bisbilhotando por ali.

Chega ao sítio e, sempre na mobilete, vai acompanhando a

cerca que delimita a propriedade.De repente, vê alguém de pé, parado ao lado de uma bicicleta

azul, perto do portão que dá acesso ao sítio. Nino reconhece no ato: éGeraldo! "Mas o que é que ele veio fazer aqui?", inquieta-se o rapaz.

Geraldo também já o viu. Apavorado, monta na bicicleta e fogeem disparada, pedalando desesperadamente. Ele está mais perto daestradinha que leva à cidade, mas Nino tem um veículo mais rápidoe não demora a se aproximar dele.

Geraldo pedala com todas as forças que seu corpo franzinopermite, mas, ao virar-se para olhar para trás, a roda dianteira da

 bicicleta bate contra a raiz exposta de uma árvore grande. Geraldo éatirado ao chão. Sua bicicleta fica de rodas para o ar, ainda girando.

Nino chega, desce da mobilete, corre para acudir o amigo.

— Ei, Geraldo, você se machucou?

Geraldo, ainda tonto, senta-se no chão empoeirado da estrada.Tem um pequeno corte no alto da testa, que está sangrando. Ao ver

Nino, começa a dizer, gago e amedrontado:— Não fui eu, Nino, juro que não fui eu!

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Começa então a soluçar e a chorar, meio descontrolado. Ninotem dó dele. Agacha-se junto do rapaz:

— Que é isso, Geraldo? Que história é essa de "não fui eu, nãofui eu?" Do que é que você está falando?

— Dos remédios... Dos remédios... Dos remédiosenvenenados...

"O que será que ele sabe disso?", pergunta-se Nino.

— Olha aqui, Geraldo, eu sei que você não tem nada a ver comisso, tá? Eu sempre confiei em você e ainda confio. Eu tenho provasda tua inocência, tá certo? Só não estou entendendo o que você veiofazer aqui hoje, sozinho e meio escondido.

Geraldo já se acalmou. Limpa com a mão um pouco do sangueque lhe corre pela testa. Nino diz:

— Olha, vamos lá para dentro? Você pode se lavar, cuidardesse ferimento e a gente conversa com meu padrinho, tá bom?

23. No túnel do tempo (II)

Zuckermann, atendendo

 à quase

 ordem

 de

 Friedrich

 Schlange,

 que

 

lhe disse para ficar, senta‐se de novo em seu lugar à mesa de reuniões. O 

presidente  Schlange  senta‐se  perto  dele,  mas  sobre  a  mesa,  com  uma 

perna apoiada numa cadeira e a outra balançando nervosa no ar. 

—  Meu  caro  doutor  Zuckermann,  há  quanto  tempo  o  senhor trabalha no Ministério da Saúde? 

— Há uns vinte anos. Assim que terminei o curso na universidade, fiz concurso e ingressei no ministério. 

— Vinte

 anos?

 —

 comenta

 Schlange,

 com

 tom

 um

 pouco

 afetado.

 

— É muito tempo, não é? 

Zuckermann não entende aonde o rico empresário quer chegar. 

— E você gosta de trabalhar nisso? Aposto que, se pudesse, gostaria 

de se dedicar a alguma coisa muito mais excitante, não é? 

Zuckermann, homem de coração puro e desprovido de malícia, não 

percebe aonde Schlange o quer levar, e responde, inocente: 

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—  Se  eu  tivesse  tempo  e  dinheiro,  montaria  uma  expedição 

científica  à  América  do  Sul,  para  investigar  o  potencial  farmacológico  da 

flora equatorial. 

Schlange, surpreso com a sinceridade da resposta, entusiasma‐se e 

pensa: "Este

 vai

 ser

 fácil

 dobrar".

 E diz,

 em

 tom

 de

 intimidade:

 

—  Pois  então,  Karl!  Se  é  esse  o  seu  sonho,  vamos  montar  essa 

expedição! 

Zuckermann  se  surpreende.  Há  tantos  anos  que  vem  tentando 

conquistar  a  simpatia  do  ministério  para  aquele  projeto  meio  maluco,  e 

agora, de repente... aquilo. Schlange não lhe dá muito tempo para refletir e ataca de novo: 

— 

gente 

pode 

fazer 

essa 

troca 

de 

gentilezas, 

Karl. 

Você 

ganha 

sua expedição científica totalmente financiada por nós, e em troca... 

De  repente,  uma  centelha  ilumina  o  pensamento  de  Karl Zuckermann,  que  compreende  de  imediato  as  intenções  de  Schlange. Indigna‐se,  revolta‐se,  horroriza‐se,  sente‐se  aviltado.  Levanta‐se  e  diz, com voz trêmula: 

— Como ousa me  fazer uma proposta dessas? O senhor saiba que 

eu  jamais  permitirei  um  crime  dessa  natureza!  Porque  o  que  está  me 

pedindo 

é 

um 

crime, 

sim! 

senhor 

não 

me 

conhece, 

doutor 

Schlange, 

sou 

um funcionário público honrado, trabalho para o governo há anos... 

Friedrich Schlange também se levanta. Caminha sem pressa até sua 

cadeira de presidente e diz em tom calmo: 

— Trabalhava. 

24. O dilema de Geraldo

Nino ajudou Geraldo a tratar do corte, que na verdade foi sóum arranhão um pouco mais fundo. Otto preparou para ele um chácalmante, que Geraldo tomou de um gole só. Depois, na sala da casa,Nino diz:

— Muito bem, Geraldo. Chegou a hora. Pode começar a falar.

Geraldo suspira fundo. Hesita no começo, mas finalmentedesembucha:

— Eu tinha vindo até aqui contar uma coisa para o seu Otto.Mas depois me arrependi e decidi voltar para casa. Aí você chegou,

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Nino, eu me apavorei, achei que você ia desconfiar de mim e saícorrendo daquele jeito.

Otto pergunta:

— O que é que você veio me contar?

Geraldo hesita. Pensa. Por que será que tudo na vida dele temde ser sempre assim, cheio de indecisões e dúvidas? Olha para Otto,que o fita com seus olhinhos azuis. Pensa no avô morto. Decide-se:

— Descobri que os remédios feitos no laboratório estão sendoenvenenados no depósito da nossa farmácia.

 Vê a surpresa que suas palavras provocam na expressão dorosto de Otto.

— Eu estava lá ontem à noite — prossegue o rapaz, ainda meionervoso —, escondido atrás de umas caixas e ouvi tudo... Não pude ver quem era porque estava muito escuro...

Nino não consegue acreditar que Geraldo não saiba quemeram as pessoas. "Está mentindo", conclui. Força-o um pouco:

— Geraldo, como é que você sabe que eles envenenaram osremédios se acabou de dizer que estava escuro e não pôde ver quemera?

Geraldo, assim flagrado, tenta inventar ainda:

— É... porque eu ouvi o que eles estavam falando...

Nino não titubeia em afirmar:

— Geraldo, você está tentando esconder o nome das pessoas,não está? Quem é que podia entrar na farmácia àquela hora danoite? Só podia ser alguém da tua família, não é?

Geraldo gagueja de novo. Mas não responde. Nino retoma:

— Não adianta você esconder nada de mim porque eu também

 vi...Otto não entende. Geraldo se assusta:

— Viu o quê?

Nino, com voz tranqüila, explica:

— Eu segui o carro dos tais caras de Brasília, com eles doisdentro, e vi quando eles pararam na frente da tua casa. Vi seu Duílio,teu pai, entrar no carro. Vi também o doutor Plínio,  parente devocês, entrar no mesmíssimo carro. Vi quando os quatro desceram

na rua por trás da farmácia e entraram pela porta dos fundos.

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Geraldo está pálido.

— É isso aí, Geraldo — diz Nino —, enquanto você estava ládentro, eu estava lá fora...

Nino então percebe que os olhos de Geraldo estão úmidos. Orapaz, profundamente triste, se encolhe no sofá, esconde o rosto poralguns segundos, envergonhado. Depois, enxuga os olhos com ascostas das mãos. Até que, com voz embargada, diz:

— Nino, eu quero ajudar vocês. Quero ajudar muito o seu Otto,que foi o maior amigo do meu avô Gabriel. Só que é muito difícil,entende, muito difícil alguém ter de acusar o próprio pai de...tentativa de assassinato...

Otto comove-se com a situação do rapaz. Sabe que Geraldo

gosta dele, mas não sabia que podia contar com tanta lealdade!Levanta-se de onde está, aproxima-se dele e diz então:

— Tudo bem, Geraldo, eu entendo. Agradeço muito a sualealdade. Seu avô ficaria muito orguioso de você. Você está sendo fielao seu avô, que foi o maior amigo que tive a vida toda. Por isso querote fazer uma promessa: prometo, em memória à honestidade de seuavô Gabriel, que nunca vou contar para ninguém que foi você quemfez essa revelaçon importante. Que é que você acha?

Geraldo esboça um sorriso:

— O senhor promete mesmo? Não conta para ninguém?

— Prometo! Para ninguém — diz Otto, estendendo a mão aorapaz.

Geraldo aperta a mão de Otto. E sente como se lhe tivessemtirado dos ombros um peso maior que o do mundo. Nino se alegracom o que vê. Otto então pergunta a Geraldo:

— Agora, Geraldo, para que você non precise testemunhar,temos que encontrar alguma prova do envenenamento.

— Prova, padrinho? Como assim? — quer saber Nino.

— Muito simples, Nino — responde Otto. — Para adulterar osnossos remédios, eles devem ter usado algum instrumento defarmácia, uma pipeta, um frasco com o veneno... alguma coisaassim...

Geraldo então se lembra de algo que viu.

— Acho que vai ser fácil... Eu vou lá buscar e volto logo.

Otto ainda adverte:

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—  Non deixe ninguém perceber o que você está procurando. Ese encontrar alguma coisa, use luvas para non misturar as suasimpressons digitais com as dos... com as deles...

Otto quase dizia "dos criminosos", mas evitou ferir Geraldo

com aquela palavra dura.— Pode deixar comigo — diz Geraldo, que monta na bicicleta e

pedala até a cidade.

Enquanto isso, Nino conta ao padrinho as aventuras suas e deMariinha à noite. Avisa que Afonso está para chegar. Resume aconversa gravada na fita. Otto se abala um pouco ao ouvir os nomesSchlange e Zuckermann, mas diz que não sabe do que se trata.

25. Coletando provas

Geraldo deixa a bicicleta na rua para onde dá a porta dosfundos da farmácia. Tem a chave do depósito. Ser visto ali nãocausaria surpresa a ninguém. Geraldo desde menino freqüenta adrogaria. Mesmo assim, ele prefere não ser notado.

Entra no depósito. Procura que procura. Lembra-se de ter vistoseu pai jogar, displicentemente, o conta-gotas e o vidro de veneno

numa lata de lixo. Erro fatal! Lá estão os objetos comprometedores.Lembrando-se da recomendação de Otto, Geraldo pega o vidro

e o conta-gotas com uma pinça e os guarda num saco plástico, queele fecha com um laço bem dado.

 Volta a pedalar na direção do Sítio Estrela Dalva. Chega láofegante. Vai entrando e mostrando o saco:

— Aqui dentro tem um vidro e um conta-gotas. Eles devem teras impressões digitais do meu pai e dos outros...

Ele ia dizer "bandidos", mas não conseguiu.— E o que é que a gente faz com os remédios envenenados? —

preocupa-se Otto. — Non podem ser vendidos...

Geraldo conta-lhes então a substituição que fez. Otto oparabeniza:

— Muito bem, Geraldo. Foi uma ótima soluçon.

Geraldo agradece toda a força que lhe deram. Vai conseguir voltar para casa e enfrentar melhor a situação.

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26. Afonso chega

Depois do episódio com Geraldo, Nino voltou para a cidade.Está tão impaciente para se encontrar com Afonso que se plantou

diante da casa do advogado e amigo. Assim que ele chegar, vai ficarsabendo das atividades criminosas da família Raposo emcolaboração com as víboras de Brasília.

Mariinha está cheia de trabalho no albergue. Ela e dona Dalvaestão tendo que despistar a todo momento as pessoas que queremsaber do paradeiro de Otto. Mariinha inventou uma resposta paratodas as perguntas: "Me disseram que ele viajou para a Alemanhapara visitar a família". Alguns acreditavam, outros não.

Passa das seis da tarde quando um grande carro cor de vinhoestaciona diante da casa dos pais de Afonso. Nino, que estavasentado no meio-fio, levanta-se para receber o amigo. Nota entãoque ele não está só. Do carro descem uma senhora de idade e umrapaz de mais ou menos vinte anos. Serão os dois amigos para quem

 Afonso pediu hospedagem no Albergue Casa Bonita?

— Afonso! — vai logo exclamando Nino. —Você não imagina oque está acontecendo aqui!

— Imagino sim, Nino! — diz Afonso, sorrindo. — Você é que

não imagina o que foi que eu descobri!— O que foi?

— Calma, rapaz, calma. Deixe-me chegar em casa primeiro. Eupreciso acomodar estas pessoas.

— Mas você disse que elas iam ficar no albergue da donaDalva...

— Estas não — explica Afonso. — As que iam ficar no albergueainda vão chegar lá. Vamos entrar?

27. No túnel do tempo (III)

Na  televisão  alemã,  um programa  de entrevistas  de  julho de 1961 

teve  como  convidado  o  doutor  Karl  Zuckermann.  A  famosa   jornalista 

Ingedore Vogel anunciou assim seu entrevistado: 

— Karl Zuckermann. Talvez o nome mais pronunciado e escrito na 

Alemanha 

nestas 

últimas 

semanas. 

Um 

pacato 

funcionário 

público, 

chefe 

do Departamento de Fármacos do Ministério da Saúde, pesquisador com 

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vários  trabalhos  publicados  no  campo  da  farmacologia,  torna‐se  de 

repente o centro de um grande debate. Demitido de seu cargo público por razões  pouco  esclarecidas,  viu‐se  obrigado  a  recorrer  à  Justiça,  não  só 

para  recuperar  seu  emprego,  mas  também  para  denunciar  um  crime  de 

proporções inacreditáveis.

 Boa

 noite,

 doutor

 Zuckermann.

 

— Boa noite, Ingedore. 

— Doutor Zuckermann, eu duvido que  haja  algum espectador  que 

não conheça o caso  judicial em que o senhor está envolvido. De todo  jeito, poderia resumir para nós a sua história? 

—  Pois  não,  Ingedore.  Eu  era  responsável  pela  liberação  dos 

certificados  de  comercialização  de  novas  drogas.  Sem  este  certificado, nenhum novo remédio pode ser vendido em território alemão. A indústria 

farmacêutica 

Schlange 

desenvolveu 

uma 

nova 

poderosa 

droga, 

Ozoptyx,  que  podia  ajudar  a  prevenir  o  câncer  de  mama.  Nossas investigações provaram que o Ozoptyx, após dez anos de uso constante, podia levar as mulheres à cegueira total e à paralisação de uma boa parte 

de seus músculos. 

— Efeitos muito graves, então. 

—  Gravíssimos,  Ingedore.  O  doutor  Friedrich  Schlange,  presidente 

da Schlange e responsável pela descoberta da droga, não aceitou a nossa 

recusa 

em 

conceder‐lhe

 um

 certificado

 de

 comercialização.

 Tentou

 

subornar‐me, oferecendo‐me dinheiro para eu ocultar os laudos feitos por mim e minha equipe. Como não aceitei ser corrompido, passou a atacar‐me de maneira mais direta. 

— Como foi esse ataque, doutor Zuckermann? 

—  O  senhor  Schlange,  como  todo  homem  muito  rico,  tem  grande 

influência  nos  nossos  meios  políticos.  Acredito  que  usou  a  influência  do 

seu  poderio  econômico  para  provocar  a  minha  demissão  e  a  de  cinco 

membros de

 minha

 equipe

 do

 Ministério

 da

 Saúde.

 

— Mas uma demissão assim, sem nenhuma  justificativa, como pode 

ser? 

— Tudo por causa de uma entrevista que dei a um  jornalista francês 

logo  depois  de  ter  comunicado  a  Schlange  a  impossibilidade  de  pôr  o 

Ozoptyx no mercado. O Ministro da Saúde me acusou de estar tornando 

público  um  assunto  estritamente  confidencial,  alegando  que  isso  era 

proibido por lei. 

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—  Algo  assim  como  revelar  um  segredo  de  Estado?  —  arrisca 

Ingedore. 

— Mais ou menos. 

— 

há 

realmente 

alguma 

lei 

contra 

isso? 

—  Certamente  que  não,  Ingedore.  Não  pode  haver  nenhuma  lei neste  país  que  proíba  um  funcionário  público  de  alertar  a  população 

contra  um  medicamento  perigoso.  Muito  pelo  contrário,  é  obrigação  do 

governo fazer isso... 

— Claro que sim, doutor. 

—  Mas  a  minha  demissão  é  o  menor  dos  problemas  —  continua 

Zuckermann.  —  O  mais  sério  é  que,  no  meu  lugar,  foi  nomeado  um 

arrivista, 

doutor 

Goldschmidt, 

que 

simplesmente 

declarou 

nulos 

os 

nossos testes e concedeu o certificado de comercialização ao Ozoptyx. 

— Por isso o senhor resolveu recorrer à Justiça? 

— Exatamente. É inadmissível que uma droga com efeitos tão cruéis 

possa  ser  vendida  impunemente,  não  só  na  Alemanha  como  em  todo  o 

mundo. A Schlange tem filiais em mais de quarenta países... 

— E em que pé está o caso, doutor Zuckermann? 

— 

São 

dois 

processos 

diferentes, 

Ingedore, 

apesar 

de 

estarem 

estreitamente  relacionados  entre  si.  No  primeiro,  eu  e  meus 

companheiros de trabalho estamos acionando o Ministério da Saúde para 

recuperarmos  nossos  cargos.  No  segundo,  estamos  processando  as 

indústrias farmacêuticas Schlange, por calúnia e difamação. 

— Calúnia e difamação? Por quê? 

— Porque Schlange, aproveitando a nossa demissão e acreditando 

que eu estava vulnerável, deu declarações à imprensa em que nos acusava 

de 

incompetência, 

falta 

de 

decoro 

profissional 

ataques 

à 

ética 

médica... 

— Qual tem sido a reação da opinião pública a toda essa polêmica? 

—  Já  recebemos  milhares  de  telegramas  de  solidariedade  de 

cidadãos  comuns  e  de  entidades científicas  nacionais  e  internacionais.  A 

maioria dos membros do Parlamento está a nosso favor... Afinal, as nossas provas são irrefutáveis. Tenho comigo todos os resultados dos testes que 

fizemos com o Ozoptyx, inclusive em cobaias de laboratório. Acho que até 

o final do próximo mês o caso estará encerrado, com a vitória da decência 

derrota 

da 

corrupção. 

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—  Não  deve  ser  fácil  enfrentar  de  uma  só  vez  um  gigantesco 

império  econômico  e  um  ministério  poderoso  como  o  da  Saúde  — 

comenta  a  apresentadora.  —  Muito  obrigado,  doutor  Zuckermann,  pela 

sua participação no nosso programa. 

— Eu

 é que

 agradeço,

 Ingedore.

 

—  Na  próxima  sexta‐feira,  entrevistaremos  o  Ministro  da  Saúde, Uwe  Hohlkopf,  para  ouvirmos  sua  opinião  sobre  o  polêmico  caso 

Zuckermann contra Schlange, a guerra do Ozoptyx. 

O   julgamento  aconteceu.  Arrastou‐se  por  longos  meses,  mas 

finalmente  Karl  Zuckermann  saiu  vencedor.  Ele  e  seus  colegas 

conseguiram de volta seus empregos, e a Schlange  foi obrigada a pagar‐lhes uma indenização de milhares de dólares por danos morais. 

Na saída do tribunal, no dia da grande vitória, Zuckermann, rodeado 

de  jornalistas  e  de  pessoas  que  queriam  cumprimentá‐lo,  viu  Friedrich 

Schlange  dirigir‐se  rapidamente  a  seu  carro.  Antes  de  entrar,  fixou  os 

olhos nos de Zuckermann, que sentiu naquele olhar um ódio sem medida, uma ameaça explícita de vingança. A partir daí, começou a temer por sua 

sorte. 

E tinha razão. 

Depois 

de 

receber 

dinheiro 

da 

indenização, 

depositado 

numa 

conta  numerada  na  Suíça,  por  motivos  de  segurança,  Karl  Zuckermann, para  se  afastar  de  toda  a  publicidade  que  o  cercava,  decidiu  viajar  por algum  tempo.  Agora,  com  o  Ozoptyx  definitivamente  banido  das 

prateleiras  das  farmácias,  ele  estava  mais  tranqüilo  e   já  pensava  em 

realizar alguns dos seus velhos sonhos de pesquisador. 

Mas  um  acontecimento  trágico  veio  modificar  toda  a  sua  vida 

futura.  E  o  que  seria  uma  simples  viagem  de  férias  transformou‐se  em 

apressada fuga pela vida... 

28. Impostores em Ocaporã

Nino e Afonso estão agora, pouco depois da chegada doadvogado, dentro do carro que se dirige ao Sítio Estrela Dalva. Vão

 visitar Otto e conversar com ele. Afonso quer esclarecer algumasdúvidas com o velho amigo alemão.

Durante o trajeto, Afonso vai explicando a Nino:

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— O doutor Carlos Henrique Lobato e o diplomata EduardoPereira Lima realmente existem. Tenho amigos que trabalham noserviço de pessoal dos dois ministérios e que checaram asinformações para mim. Só que o Carlos Lobato pediu licença do

trabalho para poder fazer seu doutorado no Canadá. Há três anosque não vem ao Brasil... O verdadeiro Eduardo Lima é funcionárioda Embaixada do Brasil na China. Também está fora do país há

 vários anos...

Nino está surpreso:

— Então quem são esses sujeitos que estão aqui em Ocaporã?

— São impostores que precisamos desmascarar — responde Afonso. — Um se chama Luís Barata e trabalha no Ministério daSaúde. O outro, André Falcão, é funcionário do Itamaraty. O Baratatrabalha no mesmo departamento do verdadeiro doutor Lobato, aquem é subordinado, e o Falcão era auxiliar do diplomata Limaquando ele estava no Brasil. Os dois se aproveitaram da ausência doschefes para darem o golpe. Certamente foram sondados por testas-de-ferro da Schlange no Brasil, que, sentindo neles colaboradorespotenciais, trataram logo de suborná-los.

O novelo na cabeça de Nino fica ainda mais emaranhado. Afonso prossegue:

— O carro importado que estão usando aqui em Ocaporãpertence à Schlange do Brasil, que tem matriz em São Paulo. Pedi ainformação a um ex-colega de faculdade que trabalha nodepartamento de trânsito de São Paulo.

Nino então confirma:

— No quarto deles eu vi uns relatórios da Schlange. E aMariinha viu uma revista alemã de 1961 com o nome Schlange nacapa.

— É por isso que precisamos falar com o Otto. Ele deve saberpor que a Schlange tem interesse em atrapalhar a fabricação dosremédios dele aqui em Ocaporã. Eu não consigo entender por queuma das maiores indústrias farmacêuticas do mundo possa sepreocupar com um pequeno laboratório alternativo no interior deMinas Gerais...

— E qual é o interesse da família Raposo nisso tudo? —pergunta Nino, que já contou a Afonso as suas aventuras e as deMariinha. Também falou do conta-gotas e das outras provas

fornecidas por Geraldo, mas ainda não disse a Afonso como asobtivera.

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— Deve ser um interesse muito grande, a ponto de envolver atéo prefeito e o secretário de Saúde — responde Afonso.

— Pela conversa que a Mariinha gravou quando estava debaixoda cama no quarto das víboras, tem muito dinheiro correndo nesse

caso. Dinheiro para os dois impostores e dinheiro para o pessoal dafamília Raposo.

— Quem diria, não é, Nino? — comenta Afonso, estacionando ocarro. — O velho Gabriel foi o primeiro amigo do Otto quando elechegou a Ocaporã. Os dois tiveram uma amizade que durou mais detrinta anos. Agora, depois que o seu Gabriel morre, vem essetratante do filho dele e se deixa comprar por um laboratórioalemão...

29. No túnel do tempo (IV)

Alemanha,  13  de  outubro  de  1961.  Quase  não  se  fala  mais  do 

polêmico  caso  judicial  que  há  poucas  semanas  ainda  sacudia  a  opinião 

pública  européia.  O  que  ainda  se  lê  nos  jornais  é  uma  ou  outra  nota  a 

respeito da demissão do Ministro da Saúde, das medidas tomadas por seu 

sucessor  e  das  graves  conseqüências  econômicas  que  o  caso  trouxe  ao 

império  químico  de  Friedrich  Schlange.  Serão  necessários  muitos  anos 

para  a  empresa  restabelecer  sua  imagem  e  se  recuperar  dos  prejuízos 

sofridos com os  inúmeros cancelamentos de encomendas feitos em sinal de  protesto  contra  o  comportamento  criminoso  de  seu  presidente  e  de 

solidariedade à conduta exemplar de Zuckermann. 

Embora  tenha  conseguido  recuperar   judicialmente  seu  emprego 

público, Zuckermann não quer voltar a trabalhar no Ministério da Saúde. Pediu  demissão,  para  surpresa  de  muita  gente.  "Era  uma  questão  de 

princípios", explicava ele. "Eles não podiam simplesmente me expulsar do 

Ministério 

da 

maneira 

como 

fizeram. 

Tive 

que 

recuperar 

minha 

liberdade de deixar o emprego quando bem me conviesse." 

Com  o  dinheiro  recebido  como  indenização,  Zuckermann  quer viajar.  Mas  só  planeja  partir  no  início  do  próximo  ano.  Quando  o  duro 

inverno alemão estiver nos seus dias mais gélidos, ele pretende estar bem 

longe de Frankfurt, em algum país tropical onde o sol brilha o ano inteiro. 

Hoje,  porém,  sexta‐feira  à  tarde,  Zuckermann  está  apenas passeando  de  carro.  Mas  não  é  ele  quem  está  guiando,  embora  seja  o 

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dono  do  veículo.  Ao  volante  está  um  primo  seu,  que  gosta  de  dirigir. Passaram o dia todo viajando sem rumo certo. 

A  estrada  atravessa  uma  região  montanhosa  coberta  de  bosques. Zuckermann  vai  admirando  a  paisagem.  Em  pleno  outono,  as  árvores 

apresentam uma

 variedade

 quase

 infinita

 de

 tons

 que

 vão

 do

 vermelho

 ao

 

ocre,  passando  pelo  dourado,  pelo  cor‐de‐rosa,  pelos  matizes  mais 

diversos do castanho. 

Lentamente  começa  a  escurecer.  O  vento  é  fresco,  e  poucos pássaros ainda não se recolheram nas copas das árvores para dormir. 

A estrada, que vinha reta e plana, agora ganha um pequeno declive 

e  fica  pontuada  de  curvas.  O  primo  ao  volante  se  entusiasma  com  as 

dificuldades do caminho e até acelera um pouco. 

A  estrada  vai  ficando  cada  vez  mais  íngreme  e  tortuosa.  O  primo, receando arriscar‐se demais, pisa no freio para diminuir a velocidade. Para 

enorme susto seu, o freio simplesmente não existe mais! 

— Karl! — grita ele, em pânico. — Estamos sem freio! 

Zuckermann,  até  então  distraído  com  a  paisagem  e  pensamentos distantes, leva alguns segundos para entender o que o primo lhe gritou. E 

é nesse brevíssimo  lapso de tempo que o carro, em altíssima velocidade, 

escapa 

à 

tentativa 

desesperada 

do 

primo 

de 

controlar 

as 

curvas. 

Derrapa,  bate  na  murada  de  proteção  da  estrada  e  despenca, rolando  diversas  vezes  sobre  si  mesmo,  precipício  abaixo.  Detém‐se  ao 

chocar‐se contra um enorme bloco de pedra nua. 

Tudo  acontece  numa  rapidez  insuportável  para  os  sentidos 

humanos.  Quando  o  mundo  pára  de  rodar  à  sua  volta  e  dentro  de  si, Zuckermann, totalmente atordoado, vê que agarrado ao volante retorcido 

e sob uma nuvem de cacos de vidro está o primo deitado, inerte, mais que 

inerte: 

morto. 

Mal recupera os sentidos, porém, uma terrível explosão se faz ouvir e o carro se  incendeia. Zuckermann tenta fugir, mas seus músculos estão 

duros, tesos, rijos. O calor que sobe de todos os lados é tamanho que o faz 

desmaiar. 

Só recuperará os sentidos muito tempo depois. 

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30. A melancolia de Otto

No Sítio Estrela Dalva, Afonso e Nino dirigem-se ao quartoonde Otto está instalado. Dona Luzia, ao ver o filho e o amigo, ficamuito contente.

— Que bom que vocês vieram! — exclama ela. — O seu Ottoanda tão tristinho, chorando pelos cantos, é de cortar o coração.

 Acho que ele vai se alegrar de ver o doutor Afonso.

Otto não se alegra tanto assim. Está muito abatido. Nino

surpreende-se com a depressão do padrinho, e comenta no ouvidodo advogado amigo:

— Ontem mesmo ele estava tão animado... Afonsocumprimenta-o com um forte aperto de mão:

— Oi, Otto, como vai? Sei que as coisas não estão muito boaspara você, mas eu e o Nino estamos cuidando de tudo, viu?

— É mesmo, padrinho — confirma Nino, tentando encorajar o velhinho —, a gente já andou descobrindo um monte de furos nessahistória. Já sabemos, por exemplo, que o prefeito e o doutor Plínioestão envolvidos com os dois homens que estão hospedados na donaDalva.

— Exatamente — continua Afonso —, e esses dois forasteirosestão usando nomes falsos para poderem agir aqui em Ocaporã.

Otto, até então deitado, senta-se na cama.

— É verdade? — quer saber.

— É, são impostores — responde Nino.

— Quer dizer que non trabaiam para o governo brasileiro? —pergunta o velhinho, confuso.

— Trabalham — responde Afonso —, mas não estão aqui aserviço do governo. Na verdade, estão de férias. Parece que foramsubornados por uma grande empresa alemã... Otto, o nome Schlangesignifica alguma coisa para você?

Otto se assusta. Nino pergunta:

— E o nome Zuckermann?

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31. A confissão de Otto

Otto respira com dificuldade por algum tempo. Depois,fazendo certo esforço, consegue sentar-se em outra posição na cama,

de modo que seus pés toquem o chão. Então começa a falar:— Nino, eu tenho uma confisson muito séria a fazer. Espero

que você non me julgue mal depois do que vai ouvir. Nem você, Afonso, que tem confiado em mim há tanto tempo.

Nino não entende o tom enigmático daquelas palavras. Afonsopede:

— Continue, Otto, por favor.

— Para começar, eu non me chamo Otto Freimann. Meu

 verdadeiro nome é Karl Zuckermann. Otto Freimann é o nome deum primo meu, muito parecido comigo, da mesma idade que eu, eque morreu na Alemanha em 1961. Morreu num acidente de carro. Ocarro era meu. Ele estava dirigindo. Eu escapei por milagre... Nóséramos grandes amigos...

Otto pára de falar. Examina o efeito das suas palavras sobre osque o estão ouvindo. Nino e Afonso parecem um tanto confusos.

 Afonso pergunta:

— Por que foi que você adotou o nome dele? E como é queconseguiu todos os documentos com o nome falso?

— Como disse, quando Otto morreu, eu estava com ele nocarro. Eu sobrevivi, mas estava planejando sair da Alemanhanaquela época. Por isso, apesar da enorme dor que senti naquelemomento, troquei meus documentos pelos de Otto. De maneira queele foi enterrado com o meu nome e eu assumi a vida dele. Nósdividíamos um apartamento. Morávamos juntos desde os tempos dafaculdade. Por isso pude me apoderar de tudo o que precisei para

passar efetivamente por Otto Freimann.— E ninguém desconfiou de nada? — é pergunta de Afonso.

—  Non. Por causa de queimaduras sofridas no acidente, tiveque fazer uma operaçon plástica que me obrigou a andar comgrandes curativos no rosto. Além disso, como já ekspliquei, eu e meuprimo éramos muito parecidos, como se fôssemos irmons.

— Quer dizer que o senhor na verdade é Karl Zuckermann? — a vez de Nino.

— Sim, Nino, este é o meu nome. Precisei me esconder porquedesconfiava que estavam querendo me matar.

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— Padrinho, quem estava querendo matar o senhor?

—  Non sei, Antonino, até hoje non tenho certeza. Mas non édifícil imaginar quem podia estar por trás disso... Um policial medisse que, depois que eksaminaram o carro, ficou a suspeita de uma

sabotagem nos freios. O que sei é que, se queriam me matar,acabaram atingindo uma pessoa inocente, meu primo Otto, que nadatinha a ver com a história.

Karl Zuckermann interrompe um pouco a fala. Suspira fundo.Nino, porém, está ávido por saber mais:

— E daí, padrinho? O que foi que o senhor fez?

Karl responde:

— Fiquei assustado. Decidi trocar de identidade e fugir da

 Alemanha. Aproveitei a confuson causada pela notícia de que KarlZuckermann tinha morrido. Ainda convalescente e com algumasataduras, fui de trem até a Suíça, onde fiquei alguns meses numacidadezinha das montanhas, tentando me recuperar de tudo aquilo.Depois, tomei um avion para o Brasil, e o resto vocês já conhecem...

— E por que você precisou fazer tudo isso? Por que teve defugir da Alemanha? — quer saber Afonso.

Karl senta-se melhor na cama, ajeitando um travesseiro nas

costas. E começa a falar, a trazer à luz todos aqueles segredos quetrazia escondidos há tanta tempo. Fala do Ozoptyx, de seus efeitosmaléficos, dos desejos megalomaníacos de Friedrich Schlange, desua trama para vender o produto e só pagar indenizações mais tarde.Sua voz é calma, mas não disfarça uma grande emoção.

— Não consigo acreditar! — desabafa Nino, de repente.

— Mas pode acreditar, Nino — diz Afonso —, é assim quemuitas grandes multinacionais agem todos os dias pelo mundointeiro. Primeiro se enchem de dinheiro com alguma coisa que

 jogam no mercado para milhões de pessoas, e só depois começam areparar os danos provocados. Os casos são muitos e já têm sidodenunciados em vários livros e processos internacionais.

Karl vai confirmando com a cabeça. Nino está curioso:

— E aí, padrinho? O que foi que aconteceu?

— Schlange tentou me subornar para que eu adulterasse osresultados dos testes. Me ofereceu muito dinheiro.

— Que o senhor recusou, naturalmente — antecipa Nino.

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— Naturalmente — repete Karl. — Por causa da minha recusa,Schlange usou sua influência e conseguiu que o Ministério da Saúdeme demitisse. Colocou no meu lugar alguém da confiança dele e pôso remédio à venda.

— Que crápula! — exclama Afonso.— Eu achava que essas coisas só aconteciam aqui no Brasil e

em outros países subdesenvolvidos — surpreende-se Nino.

— Pois é hora de você tirar essa idéia da cabeça, Nino —adverte Afonso. — Eu vou lhe emprestar um livro sobre osescândalos no governo do Japão para você ver o que é corrupção de

 verdade...

Otto fala do processo, do julgamento, do escândalo nacional e

internacional provocado por toda aquela história. Nino se lembraentão da revista que Mariinha diz ter visto no quarto das víboras.

— Eu ganhei a causa nos tribunais. A empresa foi obrigada asuspender a comercializaçon do remédio e a me pagar umaindenizaçon bem alta por tudo o que tinha feito contra mim. No fimdo julgamento, quando eu saía do tribunal, Friedrich Schlangepassou por mim, entrou num carro e de dentro dele gritou: "Nonpense que eu vou desistir ton fácil, Zuckermann. Você pode ter

 vencido essa bataia, mas para mim a guerra ainda non acabou".

— Ele pensava em vingança, certamente... — conclui Afonso.— Com o dinheiro que eu recebi, pensava em me mudar para o

Brasil, para poder estudar a flora medicinal daqui. Eu já tinha essaidéia há muito tempo. Ainda trabaiava no Ministério qvandocomecei a sentir uma grave dor de consciência. Nós, do chamadoprimeiro mundo, ekstraímos das matas tropicais as matérias-primasdos nossos laboratórios. Depois, com elas, fabricamos remédios queson  vendidos a preços muito altos para as  populaçons daquelesmesmos países pobres de onde vêm as essências principais.

— É assim até hoje — diz Afonso.

— Isso mesmo — confirma Karl. — Estudando a fundo,descobri que muitas daquelas plantas eram usadas de maneira qvasenatural pelos próprios moradores das matas, de modo que nonprecisariam comprar remédios que, além de caros, son fabricadoscom uso de produtos químicos muito fortes, com efeitos colateraissérios e perigosos. Eu me revoltava com aquela situaçon de injustiçae tinha planos de em pouco tempo abandonar a Alemanha e vir para

o Brasil, na tentativa de aprender com as pessoas daqui a reconheceras riquezas medicinais da natureza. Com este conhecimento

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tradicional e com a minha eksperiência científica, achei quepoderíamos nos livrar dos interesses das grandes potênciasfarmacêuticas...

Nino, ainda um pouco aturdido com a história toda,

compreende a boa intenção do padrinho e comove-se com seu gesto.— Isso foi pouco antes do episódio do Ozoptyx. Depois do

 julgamento, achei que era a hora de pôr meu projeto em marcha.Recebi o dinheiro da causa. Foi aí que aconteceu o tal acidente decarro.

 Afonso está pensativo. Diz:

— Pelo que o Nino me disse, na conversa que a Mariinhagravou, os caras mencionam o nome Zuckermann. Isso quer dizer

que de alguma maneira Schlange descobriu que você não está mortode verdade.

— Descobriu. Por isso está tentando me arruinar. É a vingançade Schlange. Ele prometeu e está cumprindo a ameaça... Só queagora, em vez de me matar de uma vez, quer que eu sofra com asconseqvências do envenenamento dos meus remédios naturais.Quer impedir o meu trabaio aqui e me mandar de volta para a

 Alemanha, onde poderei ser acusado de usar nome falso.

Nino tem uma dúvida:

— Padrinho... e a família do verdadeiro Otto? O Zuckermannestava "morto", tudo bem... Mas e o Otto Freimann?

— Otto Freimann e eu non tínhamos irmons. Meus pais e osdele já tinham morrido qvando tudo aconteceu. O resto da família...

 bom, na Alemanha as pessoas non son ligadas nos parentes, comoaqui no Brasil...

Nino, já pensando em outra coisa, exclama, indignado:

— Como é que pode? Uma empresa que fabrica remédios, quedeviam ser coisas boas, que servem para curar as doenças daspessoas...

Instala-se um longo silêncio. Nino tenta organizar as coisas nacabeça. Afonso, então, resume tudo:

— Vamos ver. Schlange descobriu de alguma maneira que KarlZuckermann não morreu. Conseguiu a colaboração de doisfuncionários do governo brasileiro para destruir o laboratório deOcaporã. Estes dois, por sua vez, compraram a família Raposo e o

prefeito Borges, que ajudaram a sabotar os remédios. Duílio Raposo,como recompensa, provavelmente vai receber de graça toneladas de

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remédios da Schlange para vender na farmácia dele, além de algumdinheiro por fora.

 Aquele resumo deixa Nino assustado. Afonso percebe e tratalogo de acalmá-lo:

— Mas vocês podem ficar tranqüilos. Porque o plano deles não vai dar certo — diz o advogado, confiante. — O nosso plano é que vai.Talvez sejamos fracos para combater o poder de Schlange, maspoderemos pelo menos desmascarar os dois pilantras e junto comeles a família Raposo e esse prefeito corrupto.

E juntos os três elaboram sua estratégia.

32. A rendição de Otto

No domingo cedo pela manhã, Nino, que dormiu no SítioEstrela Dalva na noite anterior, telefona para a casa do prefeito:

— Alô, doutor Crisófilo? Aqui é Antonino, afilhado do doutorOtto Freimann. Meu padrinho pediu que eu lhe comunicasse adecisão dele de fechar o laboratório e se aposentar...

— Sábia decisão — responde a voz do outro lado,entusiasmada.

— Mandou-me perguntar se o senhor e o doutor Plínio podem vir ao nosso laboratório agora de manhã para que tudo seja feito omais depressa possível.

— Claro que sim, rapaz, claro que sim. Diga a seu padrinho queàs dez horas em ponto estaremos lá.

— Muito obrigado.

Nino desliga o telefone. Disca outro número:

— Afonso, tudo combinado... Às dez horas em ponto... Quem?Bastos e Pontes?... Está bem... Até lá...

Desta vez é para Mariinha que ele telefona:

— Mariinha, é o Nino. O Afonso quer que eu fale com os doishomens que se hospedaram aí ontem, Bastos e Pontes. Você me ligacom eles?

— Pois não, senhor Antonino Mandachuva — respondeMariinha, irônica, mas no fundo um pouco enciumada por Nino ter

desaparecido depois que Afonso chegou.Nino espera que a ligação se complete:

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— Alô, seu Bastos? O Afonso me pediu para avisar que às novee meia ele passa aí para pegar o senhor e o seu Pontes. Está certo?Por nada. Até mais tarde.

33. Gran finale

Falta pouco para as dez da manhã. No laboratório do SítioLiberdade, o velho Otto Freimann, aliás, Karl Zuckermann, e seuafilhado Nino esperam a chegada de seus convidados.

Não tardam a chegar o prefeito Borges, o secretário Plínio,acompanhados de dois outros homens, que Nino sabe muito bemquem são.

O prefeito vai logo apresentando:

— Estes senhores são de Brasília. Foram mandados para cápelo Ministério da Saúde e pelo Itamaraty para acompanharem ocaso.

— Meu nome é Carlos Lobato — diz um deles, tentando sersimpático. — E este aqui é meu colega, o doutor Eduardo Lima.

Feitas as apresentações, o velho e o afilhado começam adesmontar alguns dos aparelhos que usam no laboratório. Vão

fazendo tudo bem devagar, para dar tempo a Afonso de aparecer.É então que a porta se abre e Afonso entra, acompanhado da

senhora de idade e do rapaz de vinte anos que Nino viu chegar comele.

— Bom dia, senhores. Como vão? — diz o advogado, sorrindo.Lobato, Lima, Borges e Plínio, surpresos com aquela apariçãoabsolutamente inoportuna, ficam irritados. Lima diz:

— Quem é o senhor?

— Sou um amigo da família. Meu nome é Afonso Monteiro,advogado, muito prazer. E posso saber a graça de Vossas Senhorias?— o tom é muito sarcástico.

— Meu nome é Carlos Lobato, funcionário do Ministério daSaúde. Este é o embaixador Eduardo Lima, do Ministério dasRelações Exteriores. Estamos numa missão confidencial. Por favor,queira retirar-se!

 Afonso sorri.

— Que coincidência mais agradável! Pois esta senhora que aquiestá é justamente dona Albertina Lobato, mãe do doutor Lobato...

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 Acho estranho o senhor não ter reconhecido sua própria mãe... Assim como acho ainda mais bizarro o doutor Lima não reconhecerseu filho mais velho, Eduardo Júnior, que está no Brasil de férias...

Lobato e Lima ficam pálidos. Acabam de ser desmascarados. O

prefeito, porém, não se dá por vencido:— É melhor vocês todos se retirarem. Se insistirem em ficar,

serei obrigado a chamar a polícia...

 Afonso ri gostosamente:

— Não será necessário, meu caro prefeito. Eu mesmo já fizisso.

E chamando em voz alta:

— Delegado Bastos! Detetive Pontes! Os senhores podem vir...Entram então dois homens altos e fortes. Ambos trazem umdistintivo dourado no paletó. Afonso diz:

— Apresento-lhes meus amigos da Polícia Federal, o delegadoBastos e o investigador Pontes...

Bastos então se adianta até onde estão os falsos Lobato e Limae lhes diz:

— Os senhores estão presos por falsidade ideológica e tentativa

de assassinato. Temos provas concretas e testemunhosincontestáveis. Queiram por favor nos acompanhar. Seguiremosimediatamente para Brasília.

34. Festa em Ocaporã

Na hora do almoço estão todos na casa dos pais de Afonso.Nino convidou Mariinha e dona Dalva para a comemoração.

Chamou também Geraldo, que preferiu não vir, por causa da vergonha que sente do que seus parentes andaram fazendo.

— Nada disso, padrinho — diz Nino —, nós vamos promoveruma enorme campanha pública esclarecendo tudo. Vamos chamar atelevisão, o rádio, os jornais.

— Ai, Nino, que exagero! — diz Mariinha. — Para que montartodo esse carnaval? Você bem sabe que o seu Otto não gosta depublicidade.

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Seu Otto? Pois é, Nino e Afonso acharam melhor deixar a verdadeira identidade do velhinho escondida, pelo menos porenquanto.

— Exagero nada, é o que vamos fazer — insiste Nino. — E

temos que começar aqui mesmo em Ocaporã. Vamos pegar aqueleridículo do Sílvio Gallo, que fez campanha para a eleição do prefeito,e exigir que ele faça um programa de duas horas inteiras só sobre ocaso. Quero ver ele pedindo desculpas em público e em freqüênciamodulada...

35. Viagem à Alemanha

Depois do almoço, Afonso reúne-se com Nino e o padrinho.Quer ter uma conversa particular com eles. E começa dizendo:

— Conseguimos vencer, mas não tenho certeza se Schlange vaidesistir. É bem capaz de voltar a atacar mais tarde.

O velho cientista sorri:

— Até lá, já estarei morto...

Nino não gosta da piada:

— Não fale assim, padrinho, não tem graça. Afonso retoma:

— De qualquer maneira, temos um probleminha a resolver. Onosso amigo aqui não pode continuar usando nome falso. É ilegal,mesmo que seja um problema da justiça alemã e não da brasileira. Eprincipalmente, é perigoso porque pode ser usado pela Schlangepara fazer algum novo tipo de ameaça ou chantagem.

Karl Zuckermann concorda:

— Eu já tinha pensado nisso. Por isso, estou disposto a pôrtudo em pratos limpos. Tenho comigo ainda a minha certidon denascimento verdadeira. Com ela vou poder mandar fazer novosdocumentos lá na Alemanha.

Nino se surpreende:

— Então o senhor vai à Alemanha? Não tem medo do Schlangetentar fazer alguma coisa contra o senhor?

Karl sorri:

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—  Non, non tenho medo. Já escapei de dois ataques dele, possoescapar de outros. Só que estou muito veio para viajar sozinho. E

 você precisa praticar seu alemon, nicht wahr? Quer ir?

Nino abraça o padrinho:

— Só se for agora!

36. Despedida

Mariinha fica contente ao saber que Nino vai viajar pelaprimeira vez à terra do padrinho. Mas também se entristece por ter

de se separar por algum tempo do seu namorado, de quem tantogosta.

— Besteira, sua bobinha, eu te mando um cartão-postal pordia, prometo.

— Quero muitos presentes, viu? Quero bombons, roupas,discos, livros, tudo o que você puder trazer!

— Cruzes! Que pidona! — brinca Nino. — Nunca imaginei que você fosse tão interesseira!

— Claro que sou! — replica Mariinha sorrindo. — Você não vaiter frio lá, hem, Nino? Estamos no inverno!

— Inverno aqui, sua boboca, lá é pleno verão. Faz tanto calorquanto no Brasil, e às vezes até mais...

Mariinha e Nino se abraçam. Ela diz:

— Ainda bem que estamos livres daquelas víboras...

Nino começa a rir. Mariinha não entende.

— Por que esse ataque de riso agora? Eu disse alguma bobagem?

Nino se controla.

— Não, não disse não. É que, de repente, eu me lembrei deuma coisa engraçada...

— E eu posso saber o que é?

— Claro. Sabe por que foi que o Schlange mandou duas víboraspara Ocaporã?

— Não, por quê?

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8/22/2019 A vingança da cobra - Marcos Bagno (VAGA-LUME) (1)

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— Porque o nome Schlange em alemão quer dizer justamentecobra... Não é engraçado?

Mariinha sorri.

— Nem tanto. Muito mais graça eu vou achar se o senhor meder um beijo bem venenoso agora...

E Nino, sem esperar segunda ordem, faz o que Mariinha lhepede.

FIM