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Calvin e Haroldo A Visão Anticapitalista de Bill Watterson Pedro Sciarotta

A Visão Anticapitalista de Calvin e Haroldo

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"Calvin e Haroldo - A Visão Anticapitalista de Bill Watterson" é um livro escrito por Pedro Sciarotta como Trabalho de Conclusão de Curso da PUC-SP.

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Calvin e HaroldoA Visão Anticapitalista de Bill Watterson

Pedro Sciarotta

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Calvin e HaroldoA Visão Anticapitalista de Bill Watterson

Pedro Sciarotta

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Calvin e HaroldoA Visão Anticapitalista de Bill Watterson

Pedro Sciarotta

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Pontifícia Universidade Católica – São Paulo

Faculdade de Filosofia, Comunicação, Letras e Artes

Departamento de Jornalismo Calvin e Haroldo – A Visão Anticapitalista de Bill Watterson

Autor: Pedro Sciarotta Orientador: Marcos Cripa Capa e diagramação: Ludmila Viani

São Paulo, novembro de 2012.

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Sumário#Introdução ................................................................................ 7

Capítulo1História da História em QuadrinhosCaricaturas, charges, cartums... e HQs ......................... 12The Yellow Kid ........................................................................ 17Os Precursores ....................................................................... 21As primeiras HQs .................................................................. 25Syndicates ............................................................................... 34Aventuras ................................................................................. 36Super-heróis ........................................................................... 40Pensativas ................................................................................ 45Underground ......................................................................... 51Graphic Novels ...................................................................... 53

Capítulo 2 O Mundo Mágico de Calvin e HaroldoBill Watterson, o autor ........................................................ 58

Os personagens .................................................................... 66Calvin e Haroldo .................................................................... 81Depois do fim ......................................................................... 93Licenciamento da tira ......................................................... 94

Capítulo 3 A Visão Anticapitalista de Bill WattersonAnálise das tiras ...................................................................104

Considerações finais.......................................................128Bibliografia ..........................................................................131

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Introdução#Sejamos sinceros, quem lê introduções? Com a corre-

ria rotineira que é comum à maioria das pessoas, quase sempre preferimos passar essa etapa. Queremos ir direto para o assunto principal, chegar aos “finalmente”. Com essa premissa, as histórias em quadrinhos possuem uma vantagem em relação aos outros tipos de leitura. Ela é cur-ta e rápida. Em poucos quadros, as HQs conseguem diver-tir. Algumas conseguem ir além e podem até nos emocio-nar. É o caso de Calvin e Haroldo, que constrói um mundo mágico que “suga” o leitor para dentro da lógica da histó-ria. Os personagens passam a ser nossos amigos. Rimos e nos preocupamos com eles, conhecendo exatamente a personalidade de cada um.

Entre os diversos temas recorrentes abordados por Bill Watterson, o autor de Calvin e Haroldo, um deles é a relação dos personagens com o dinheiro - ou, de forma generalizada, com o capitalismo. As críticas são evidentes quando vemos Calvin ser influenciado por propagandas de televisão ou querer um cereal só por causa do brin-quedo. A posição do autor em sua obra é reforçada por suas atitudes na “vida real”. Watterson nunca autorizou o licenciamento de Calvin e Haroldo. Não existem brinque-dos, camisetas, lancheiras, mochilas, bichos de pelúcia (ou qualquer produto “oficial”) com os seus personagens – di-

ferentemente de outras tiras de sucesso semelhante como Peanuts e Garfield.

O livro que vocês está prestes a ler busca analisar essa visão anticapitalista de Bill Watterson por meio de tiras se-lecionadas ao longo dos dez anos da publicação. A ideia é expor o contexto e o que está por trás de cada uma das histórias em quadrinhos escolhidas, mostrando também o quanto as HQs podem nos fazer refletir em vez de ser uma leitura “descartável”.

Mas antes de chegar nessa análise temos dois capítu-los. O primeiro reserva uma viagem pelo tempo, sobretudo durante o século 20, para saber como as histórias em qua-drinhos surgiram e quais foram os principais movimentos de sua história. O capítulo apresenta as HQs desde os seus precursores até as graphic novels, passando por temáticas de aventura, super-heróis e quadrinhos underground. Já no segundo capítulo, você conhecerá mais sobre Calvin e Ha-roldo, a vida de Bill Watterson, e os motivos que o levaram a nunca licenciar sua criação. Esse capítulo utiliza como fonte principal o próprio Watterson, por meio de textos, discursos e entrevistas. Afinal, quem pode conhecer melhor seus per-sonagens do que o próprio criador?

Será que você leu essa introdução? Talvez eu devesse tê-la feito em formato de quadrinhos...

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Agradecimentos#Gostaria de agradecer a todos que me ajudaram a realizar

esse Trabalho de Conclusão de Curso na forma desse livro sobre Calvin e Haroldo.

Primeiramente, agradeço à minha família. Aos meus pais, Francisco Sciarotta e Denise Pires, e minha irmã, Fabiana Sciarotta, pelo apoio e pela ajuda com revisões de texto desse livro.

Agradeço ao meu orientador, o professor Marcos Cripa, pelas análises e dicas que me ajudaram a encontrar o caminho certo para esse trabalho.

À minha namorada, Giulia Longhi, que me aguentou falando mais do que eu deveria sobre um menino de seis anos e seu tigre, e que sempre me ajudou na realização do livro.

Por fim, agradeço ao Bill Watterson, criador do incrível universo de Calvin e Haroldo e sem o qual esse livro não existiria.

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# Capítulo 1

História dada História

em Quadrinhos

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# Capítulo 1

História da História em Quadrinhos

A maioria das pessoas sabe o que são histórias em quadri-nhos (HQs). Logo nos lembramos dos personagens, os qua-dros, os balões, as palavras que expressam sons... Mas definir as HQs de forma objetiva não é tão simples, até porque muitas de suas características marcantes são opcionais e não obrigatórias na construção artística.

A primeira coisa a fazer é diferenciá-la de outros gêneros semelhantes que surgiram antes e influenciaram as HQs, como a caricatura, a charge e o cartum. Apesar de não ser fácil dis-tingui-las, o cartunista Fernando Moretti estabeleceu algumas diferenças. Para ele, a caricatura, pioneira entre os gêneros ci-tados, é marcada pelo exagero de certas características de uma pessoa, animal ou objeto, criando uma rápida identificação vi-sual. Há registros de sua existência desde o século 17, com o artista Pier Leone Ghezzi. Até alguns desenhos de Leonardo da Vinci, no final do século 15, são considerados como caricatu-ras: ele desenhava modelos reais de pessoas com deformações.

Caricaturas, charges, cartums... e HQs

Caricatura de Bill Watterson, autor de Calvin e Haroldo, feita pelo cartunista Tiago Silva.▲

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A charge, diferentemente da caricatura, usa o texto de forma opcional com a imagem e satiriza uma situ-ação (ou personalidade) de conhecimento público. A palavra vem do francês e significa “carga”, se referindo a essa premissa crítica da obra. De acordo com Nobu Chinen, autor de “Linguagem HQ”, a charge utiliza assuntos recentes, o que exige conhecimento do leitor para entendê-la. Por esse motivo, é comum encontrá-la ilustrando matérias ou o editorial de jornal. Os temas escolhidos geralmente são localizados, se referindo, por exemplo, a um evento específico de uma cidade. Ao con-trário do cartum, a charge “envelhece”.

O cartoon (ou “cartum” na forma aportuguesada), assim como a charge, é comumente feito em apenas um painel, mas também é possível encontrar obras “em dois tempos”, com duas imagens sequenciais. Como observa Nobu Chien, esse tipo de arte possui um caráter mais universal, atemporal e não datado. O cartum expressa opinião e pode trazer textos ligados à imagem.

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Charge de Junião sobre a volta das sacolas plásticas para os supermercados. Charges

tratam de temas locais e envelhecem.

Cartum feito por Moa sobre a briga entre vida e morte. Cartuns são atemporais e não ficam datados.

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Já as histórias em quadrinhos são mais com-plexas. De forma simples, podemos dizer que elas são uma narrativa contada por meio de quadros, o que já define o principal elemento desse gênero. Elas são definidas como “arte sequencial”, o que presume a “movimentação” da história, que se dá por meio dos quadrinhos, cuja função é separar uma cena de outra. Essa narrativa naturalmente exige a presença de personagens fixos, algo que diferencia as HQs dos outros gêneros citados.

Apesar de não ser comum, é possível encon-trar tiras feitas com apenas um quadro, se apro-ximando do cartum. Segundo Márcia Mendonça, as tiras, especificamente, são um subtipo de histó-rias em quadrinhos. Elas geralmente possuem até quatro quadros e podem ser “fechadas”, no sentido que acabam em si mesmas, ou “sequenciais”, sen-do uma parte de uma história maior. São as tiras que marcam presença na maioria dos jornais no lugar dedicado às histórias em quadrinhos.

Calvin e Haroldo em uma tira de história

em quadrinhos: arte sequencial e balões de fala.

# Capítulo 1

História da História em Quadrinhos# Capítulo 1

História da História em Quadrinhos

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A principal premissa das HQs é juntar a linguagem gráfica com a verbal, ou seja, a escrita com a imagem. Nesse sentido, o uso do balão (círculo onde entram as falas de um personagem) foi essencial para o gênero. Antes desse elemento se populari-zar, era comum o texto aparecer no rodapé da página. O balão possibilitou que a leitura da HQ não precisasse sair do quadro, facilitando a visualização do desenho com o texto. Com o tem-po, os balões ganharam variações que também ajudam o leitor a ter um rápido entendimento sem precisar de maiores explica-ções. Alguns exemplos podem ser vistos no livro “Histórias em Quadrinhos – Leitura Crítica”, organizado por Sonia Luyten, como o balão-nuvem, usado quando um personagem está pensando, ou um balão com traços ríspidos para representar grito ou exclamação - se for composto por símbolos, indica xingamento e descontentamento.

Nabu Chinen aborda em seu livro outro elemento usa-do para adicionar texto às HQs: o “recordatório”. Ele é usado entre quadros ou em um dos cantos de um quadro e geral-mente funciona como um “narrador”, situando o tempo e es-paço da ação ou contando os pensamentos do personagem. O recordatório é mais comum em livros de HQs (comic books) por possuírem uma narrativa longa e mais complexa. É usado raramente nas tiras porque elas trazem a ação de forma sintética. 15 #

Recordatório, comum nos comic books, foi usado por diversas vezes nos

primeiros quadros de Super-Homem.

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# Capítulo 1

História da História em Quadrinhos

Um elemento bem ligado às histórias em quadrinhos são as onomatopeias, ou seja, as palavras que buscam reproduzir um determinado som. As onomatopeias já eram usadas desde o começo das HQs, nos Estados Unidos, e por isso possuem uma grande relação com a língua inglesa. Muitas das palavras usadas para imitar o som, como “splash” ou “boom”, são deri-vadas diretamente do significado delas em inglês, como escreve Sonia Luyten em seu livro “O Que É História em Quadrinhos”. O verbo “splash”, usado como onomatopeia para quando algo

cai na água, possui o significado de “respingar”, de derrubar ou cair em algo fluido. Já “boom”, usado para explosões, sig-nifica “barulho, estrondo”. Em vários casos, as onomatopeias podem ser usadas em outras línguas que, apesar de não ter o significado linguístico, não perdem o valor “sonoro”. Segundo Nobu Chinen, também é possível “traduzi-las” em alguns casos e criar palavras para uma língua específica. É o caso de adaptar “boom” para “bum”, deixando mais próxima do português, ou alterar “riiing” (usado como toque de telefone) para “triiim”.

“Ring ring” e “click”, dois exemplos de palavras para representar o som.▲

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Justamente por reunir as principais características e elementos das HQs, The Yellow Kid (O Garoto Amarelo), desenhada pelo esta-dunidense Richard Fenton Outcault, é considerada pela maioria dos autores e pesquisadores como a primeira história em quadrinhos.

A obra começou com o nome de Hogan’s Alley e teve alguns painéis publicados na revista norte-americana Truth em 1894 e

1895 antes de aparecer (ainda em 1895) pela primeira vez no jornal nova-iorquino New York World, de Joseph Pulitzer. Hogan’s Alley era publicada aos domingos em um suplemento do jornal e ocupava uma página inteira de tamanho tabloide.

Justamente por reunir as principais características e elementos das HQs, The Yellow Kid (O Garoto Amarelo), desenhada pelo esta-

The Yellow Kid

Exemplo de uma tira de painel único de Yellow Kid, publicada no dia 15 de dezembro de 1895 no New York World.

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# Capítulo 1

História da História em Quadrinhos

dunidense Richard Fenton Outcault, é considerada pela maioria dos autores e pesquisadores como a primeira história em quadrinhos.

A obra começou com o nome de Hogan’s Alley e teve alguns painéis publicados na revista norte-americana Truth em 1894 e 1895 antes de aparecer (ainda em 1895) pela primeira vez no jornal nova-iorquino New York World, de Joseph Pulitzer. Hogan’s Alley era publicada aos domingos em um suplemento do jornal e ocu-pava uma página inteira de tamanho tabloide.

Naquela época, a criação de Outcault ainda não possuía mais de um quadro. Como observa Leila e Robeto Iannone em “O Mun-do das Histórias em Quadrinhos”, os desenhos eram formados apenas por uma grande cena que trazia o texto em placas, faixas e na roupa de um dos personagens: uma criança careca, orelhuda e com dentes separados. Logo esse personagem passou a ganhar mais destaque e em 1896, quando o New York World introduziu a cor amarela no jornal, o roupão dele passou de azul (quando a HQ era publicada em cores) para um amarelo forte. Os leitores passaram a chamá-lo de “The Yellow Kid”, nome que acabou iden-tificando a própria publicação.

The Yellow Kid transformou-se em um grande sucesso, au-mentando a circulação do periódico e, mais do que isso, virando a principal atração do veículo. Tal fato acabou chamando a aten-ção de William Randolph Hearst, dono do jornal concorrente New York Journal, que acabou contratando Outcault (e outros mem-

bros da redação do World) ainda em 1896, como escreve Álvaro de Moya em seu livro “História da História em Quadrinhos”.

Vale destacar que ambos os jornais eram sensacionalistas, ou seja, não mediam escrúpulos para tentar vender mais. Frank Luther Mott, jornalista e historiador norte-americano, destaca em seu livro “American Journalism” as principais características desse tipo de veículo, que incluíam manchetes chamativas transbordan-do excitação sobre notícias relativamente de pouca importância e até entrevistas falsas ou conseguidas de modo ilegal. O uso da imagem também era muito forte por causar mais impacto do que a escrita, e era nesse contexto que The Yellow Kid ganhava importân-cia na vendagem – inclusive aparecendo nos editoriais do jornal. Somado a isso estava o fato de que durante a década de 1890, cerca de 40% da população de Nova York era estrangeira, e um periódico mais ilustrativo era uma forma de “entreter” sem a necessidade do domínio da língua inglesa. Foi o personagem de Outcault, inclu-sive, que “batizou” o termo yellow-kid journalism, posteriormente abreviado para yellow jornalism. Ervin Wardman, editor do jornal New York Press, buscava um termo que representasse o tipo de jor-nalismo sensacionalista feito pelo World e pelo Journal e encontrou no garoto amarelo a sua inspiração.

Foi sob o comando de Hearst, no New York Journal, que Out-cault deu a forma necessária para sua criação ser considerada a pri-meira história em quadrinhos. Enquanto Pulitzer contratou outro 18#

Yellow Kid com imagens sequenciais e balões, os principais

elementos de uma HQ.▲

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# Capítulo 1

História da História em Quadrinhos

artista, Georges Luks, para continuar desenhando Hogan’s Alley, Hearst enfim nomeou a obra como The Yellow Kid e incentivou Outcault a criar sequências narrativas e usar os balões de fala, a forma que se tornaria padrão para as HQs.

No começo de Hogan’s Alley o tema principal abordado era a diferença de classes sociais: o garoto amarelo era apenas uma das crianças pobres do beco. Havia um tom crítico sobre o mundo cada vez mais comercial, mostrando as crianças fazendo um cir-co próprio já que não tinham dinheiro ou conversando sobre um amigo que morreu de fome às vésperas do Dia de Ação de Graças. Mas, segundo Mary Wood, autora de um site sobre The Yellow Kid para a Universidade de Virgínia, nos Estados Unidos, o tom satíri-co se perdeu com o avanço da criação de Outcault e se tornou uma comédia mais pastelão, provavelmente porque ele buscava atingir um público maior.

É importante notar que com o sucesso que Yellow Kid alcan-çou, já havia naquela época produtos criados com a imagem do garoto, como caixa para charutos ou broches. Apesar das críticas ao mundo comercial no começo da obra, o próprio Garoto Ama-relo se tornou um produto, contradizendo a mensagem passada por Outcault.

Apesar de ser considerada a primeira história em quadrinhos, é claro que todos os elementos usados em Yellow Kid não surgiram da noite para o dia. O conceito de balões já podia ser encontrado

em charges do século 17 e 18, e a história também não foi a primei-ra a ter um personagem fixo.

O mérito de Outcault, porém, foi ter reunido todos esses ele-mentos anteriores em uma só criação de narrativa sequencial e ter conseguido publicações em um jornal de grande circulação. Na-quela época, com o avanço da Revolução Industrial, os avanços tecnológicos da prensa mecânica possibilitaram que os periódicos fossem impressos em número cada vez maior e se tornassem um veículo de comunicação de massa. Esse fator foi primordial para expandir o espaço das histórias em quadrinhos e fazer com que The Yellow Kid se tornasse um sucesso.

Uma caixa de charutos de Yellow Kid, datada de 1896.

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Muito antes do Garoto Amarelo de Outcault, já existiam criações em diversas partes do mundo que se aproximavam do padrão conhecido das histórias em quadrinhos de hoje em dia. Se o autor norte-america-no conhecia ou se influenciou por esses desenhistas é difícil saber, mas a arte sequencial já havia sido criada.

Um dos precursores em juntar a sequência de imagens com a escrita foi o suíço Rodolphe Töpffer. Segundo Álvaro de Moya, ele teve contato com a arte desde pequeno, já que seu pai era pintor, mas acabou se tornando professor por conta de um problema de visão que o impediu de seguir a carreira do pai. No tempo livre, porém, Töpffer começou a criar histórias sequenciais que traziam o texto no rodapé. A primei-ra delas foi Histoire de M. Vieux Bois (algo como “A história do Sr. Madeira Velha”), feita em 1827. Grande parte do trabalho de Töpffer foi inspirado em William Hogarth, de quem o suíço conhecia as gravuras feitas quase um século antes.

Hogarth era um pintor e chargista inglês. Sua grande sacada, que lhe valeu a entrada na história dos

Os Precursores

A imagem inicial de A Rake’s Progres, feita por William Hogarth.

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quadrinhos, foi criar séries de pinturas satíricas que constitu-íam uma narrativa. Apesar das obras não trazerem nenhum texto e a lógica da sequência de imagens não ser clara a prin-cípio, exigindo que o leitor “preenchesse os vazios” entre uma pintura e outra, estava ali a semente do conceito de contar uma história por meio das imagens.

Três dos trabalhos de Hogarth desse tipo são A Harlot’s Progress , A Rake’s Progress e Marriage à-la-mode. A primei-ra obra é de 1731 e conta, em seis pinturas, a história de uma garota que deixa o campo para morar em Londres e acaba se tornando uma prostituta. A Harlot’s Progress se tornou popu-lar e Hogarth produziu diversas gravuras (cópias das pinturas) para vender. Seguindo o sucesso dessa obra, o inglês produziu A Rake’s Progress entre 1732-33, com oito imagens narrando a vida de um homem, filho de um rico mercante, que se perde vi-vendo na luxúria e gasta todo o seu dinheiro com prostituição e jogos de azar. Dez anos depois, entre 1743-45, Hogarth criou Marriage à-la-mode, mostrando em seis partes a decadência de um casamento arranjado por dinheiro.

Além da ideia da narrativa por meio de imagens, o siste-ma de reprodução das pinturas para estampas feito pelo artista inglês foi muito importante para expandir a popularidade das obras. Foi por meio dessas gravuras que Töpffer conheceu o trabalho de Hogarth. Claro que as histórias de suíço estão bem

mais próximas do padrão das histórias em quadrinhos do que as do inglês. Se Töpffer pode ser considerado o pai dos quadri-nhos modernos, Hogarth seria o avô. O mérito de Töpffer foi ter “amarrado” o verbal ao visual. O texto é primordial para o en-tendimento das tiras; as imagens não dizem muito sem a parte escrita e vice-versa.

Apesar de a Histoire de M. Vieux Bois ter sido criada em 1827, só viria a ser publicada dez anos depois, já que Töpffer não desenhava com a intenção de publicar, mas apenas por diversão. Em 1842, a obra ganhou tradução para o inglês e foi publicada com o nome de The Adventures of Obadiah Oldbuck, se tornan-do o primeiro livro de quadrinhos (comic books) que se tem co-

# Capítulo 1

História da História em Quadrinhos

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“[...] Um é Chico; o outro é o Juca:/ Põem toda a gente maluca,/ Não querem ouvir conselhos/ Estes travessos fedelhos!” .

Max e Moritz viraram Juca e Chico na tradução de Olavo Bilac. ▲

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Com M. Vieux Bois, Töpffer foi um dos primeiros a reunir imagem e texto, que vinha no rodapé das ilustrações.

nhecimento. Töpffer ainda criou outras séries de personagens como Dr. Festus, M. Cryptogame e M. Jabot.

O alemão Wilhelm Busch foi um dos artistas influenciados por Töpffer, cujos álbuns foram publicados na Alemanha. Busch já se interessava pela arte por meio das pinturas. Segundo Álva-ro de Moya, ele estudou em diversas partes da Europa até voltar para a Alemanha, se tornar membro de um clube de artistas e ter suas primeiras caricaturas publicadas.

Já a sua primeira história sequencial foi feita em 1860 sob o nome de Die Maus oder Die Gestörte Nachtruhe (algo como O Ca-mundongo ou Sono Perturbado). Os desenhos não traziam texto

e mostravam a saga de um casal para capturar um rato pela casa.Sua história de maior sucesso seria criada cinco anos de-

pois, em 1865. Eram os meninos Max und Moritz que apron-tavam pela vizinhança. Apesar de só aparecem em uma série de sete “travessuras”, Max und Moritz ganharam notoriedade e foram, inclusive, influência para Rudolph Dirks desenhar The Katzenjammer Kids (Os Sobrinhos do Capitão), uma HQ de su-cesso da época de Yellow Kid. No Brasil, Max e Moritz mudaram de nome para Juca e Chico e tiveram suas peripécias traduzidas por Olavo Bilac. Dessa vez o texto estava presente e vinha entre os quadros, narrando as histórias e as falas dos personagens.

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# Capítulo 1

História da História em Quadrinhos

Também na década de 1860, Angelo Agostini criava as pri-meiras histórias em quadrinhos brasileiras. Agostini nasceu na Itália, mas veio para o Brasil com a mãe em 1859, com apenas dezesseis anos. Poucos anos depois, começou a trabalhar como desenhista e ilustrador e em 1867 criou As Cobranças, uma de suas primeiras histórias sequenciais.

Sua obra mais conhecida hoje em dia, As Aventuras de Nhô Quim (ou Impressões de uma Viagem à Corte), só seria criada dois anos depois, no dia 30 de janeiro de 1869. A partir de 1984 a data virou o Dia do Quadrinho Nacional. A temática principal da obra era o choque de culturas, já que Nhô Quim era um caipira que ia pela primeira vez ao Rio de Janeiro. A história era sequen-cial pelos quadros, mas o texto vinha no rodapé. Anos depois,

Agostini criou outra série nos mesmos moldes e com persona-gem fixo: As Aventuras de Zé Caipora. A história foi publicada até o capítulo 35 na Revista Ilustrada, criada por Agostini.

Claro que esses artistas não foram os únicos a criar arte que foi precursora para as histórias em quadrinhos. Outros nomes poderiam ser citados como Cham, francês que viveu na época de Töpffer e teve grande parte do seu trabalho influenciado pelo mesmo. Ou o também francês Christophe Colomb, que criou Famille Fenouillard em 1889, uma história em quadrinhos que já se enquadrava nos padrões modernos, exceto por também trazer os textos no rodapé em vez do uso de balões. Hogarth, Töpffer, Busch e Agostini, porém, definem bem o período ante-rior às HQs “modernas”.

Nhô Quim, de Angelo Agostini, foi uma das primeiras histórias em quadrinhos brasileiras.

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Após Yellow Kid ter se aventurado nas histórias sequenciais e com o uso de balões de fala, o padrão para as histórias em quadri-nhos modernas estava criado. E Katzenjammer Kids, de Rudolph Dirks, colega de Outcault no New York Journal, foi a primeira a seguir exclusivamente esse modelo que é usado até hoje.

Dirks, imigrante alemão, colocou uma grande influência de seu país de origem em sua obra. Começando pelo nome “Katzenjammer”, que pode ser traduzido para “ressaca”, em uma referência ao efeito que as peripécias das crianças causa-vam aos outros.

Ele começou a desenhar a HQ em 1897 com Hans e Fritz, dois irmãos que aprontavam travessuras, como personagens principais; um tema que de certa maneira se tornaria comum no universo das HQs. Mesmo Katzenjammer Kids já era ins-pirado em Max und Moritz, do compatriota Wilhelm Busch. Segundo Iannone, os personagens também “falavam” com sota-que alemão, o que ajudava no humor. Os garotos eram rebeldes e avessos à autoridade, representados pela mãe, pelo Capitão,

um marinheiro que funcionava como pai adotivo das crianças, e pelo inspetor escolar.

Em 1912, Dirks queria um período de férias, mas Hearst, dono do New York Journal, não estava disposto a suspender a história em quadrinhos e colocou outro artista, Harold Knerr, para continuar a obra. Isso deu início a uma briga judicial entre Dirks e Hearst, onde ficou definido que Hearst poderia conti-nuar usando outro artista para fazer Katzenjammer Kids, mas Dirks poderia usar os mesmos personagens em uma HQ sob outro nome (algo semelhante ao que aconteceu com Yellow Kid anos antes).

Assim surgiu Hans und Fritz, mais tarde renomeada para The Captain and the Kids (Os sobrinhos do Capitão), feita por Dirks para o New York World, de Pulitzer. Tanto Katzenjammer Kids quanto The Captain and the Kids continuaram a circular por décadas, adicionando novos personagens e linhas de his-tórias. Dirks passou a história em quadrinho para o filho, que a manteve até 1979. Katzenjammer Kids mudou de artistas al-

As primeiras HQs

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# Capítulo 1

História da História em Quadrinhos

No New York World, os garotos de Rudolph Dirks viraram

“The Captain and the Kids”. ▲

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Quadro final de uma história de Buster Brown. Após aprontar alguma peripécia, ele era punido escrevendo em um quadro que aprendeu a lição. ▲

gumas vezes e, incrivelmente, é distribuí-da até hoje para alguns jornais, 115 anos após a sua criação.

Outra história em quadrinhos de sucesso surgiu em 1902 e era desenhada por Richard Outcault, o autor de Yellow Kid, para o New York Herald, outro jornal de Nova York. O personagem principal, que dava nome à obra, era Buster Brown, um garoto rico da cidade que aprontava diversas travessuras (portanto, temática parecida com The Captain and the Kids) e que sempre acabava sendo punido por suas ações e escrevendo em um quadro que isso não se repetiria.

Brown possuía um cachorro que fa-lava chamado Tige. Ele foi o primeiro “animal falante” a se ter registro em uma história em quadrinhos. Assim como aconteceria com Haroldo, em Calvin e Haroldo, os adultos não “ouviam” as falas do cão (Bill Watterson, autor de Calvin, porém, nunca citou Buster Brown como uma de suas influências).

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Em 1906, Outcault deixou novamente o jornal em que esta-va e se transferiu para o New York Journal, de Hearst. O proble-ma com a Justiça veio novamente, com os mesmos resultados. Buster Brown continuou a ser desenhado no Herald e Outcault começou a desenhar Brown no Journal sem usar o nome origi-nal da obra.

Buster Brown ganhou popularidade e Outcault licen- ciou o personagem para aparecer em diversos produtos. O con-trato mais duradouro foi com a Brown Shoe Company, uma empresa de sapatos que se aproveitou da coincidência de nomes

e fez do personagem (junto com o cachorro Tige) os “mascotes” da companhia.

Em 1907, Outcault fez uma experiência interessante. Colo-cou o Garoto Amarelo em algumas histórias de Buster Brown. Em uma delas, Brown acorda ao final do encontro, mostrando que tudo não passava de um sonho. Outcault provavelmente se inspirou em outra história da época: Little Nemo.

Little Nemo In Slumberland, o nome completo nas primei-ras edições, começou a ser desenhada em 1905 pelo estaduni-dense Winsor McCay para o New York Herald e trazia um ga-roto – Nemo – sonhando com diversas aventuras para chegar a “Slumberland”, o reino do rei Morpheus, um dos personagens de sua imaginação.

As histórias seguiam um mesmo padrão. “Todas as noites, em sonhos, Nemo viajava pelo mundo da fantasia”, escreve Ia-nonne. “E todas as manhãs, ao acordar (caindo da cama), des-pertava para a realidade, geralmente escapando de algum perigo de suas viagens noturnas”. A aventura só continuaria na edição seguinte quando ele estivesse sonhando novamente. A tira ino-vou por trazer um mundo de fantasia, criando as “mais belas páginas de surrealismo do mundo onírico”, segundo Moya. As cores e os traços mais realistas do que os traços simples das HQs anteriores deixavam tudo graficamente mais belo. Outro destaque era a distribuição dos quadros, que eram usados em

Com a popularidade de Buster Brown, o personagem foi licenciado para diversos lugares, como a empresa de sapatos Brown Shoe Company.

# Capítulo 1

História da História em Quadrinhos

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diferentes tamanhos e priorizando a verticalidade ou a horizontalidade dependendo da situação.

Apesar de Little Nemo não se tornar tão popular quanto outras histórias, ela se destacava pela beleza e diferença de estilo. Segundo Moya, “com uma luz com-parável aos primeiros quadros da Renascença”. Logo a HQ foi capaz de transcender o papel do jornal. Além da comercialização para produtos, como cartões-postais, por exemplo, Nemo acabou indo parar na Broadway, em 1908, com um musical baseado na história em quadri-nhos. McCay também criou um desenhado animado de sua obra, e passou a fazer outras animações. Em 1911, McCay acabou levando Little Nemo para o jornal de He-arst, e continuou a publicar o seu personagem até 1914 sob o título de In the Land of Wonderful Dreams.

Em 1907, outro marco importante para a história das HQs aconteceu. Era a criação das tiras de histórias em quadrinhos. Antes, as HQs eram publicadas exclusivamente em suplementos dominicais, mas a par-tir de então passaram a ser publicadas diariamente nos jornais, com menos quadros e em sequência horizontal na maioria dos casos. “Com isso, os quadrinhos dei-xaram de ser um bloco isolado do conteúdo do jornal para ingressar nas páginas internas e aparecer nos outros 29 #

Exemplo de Little Nemo In Slumberland fazendo uso variado de

quadros verticais e horizontais.

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dias da semana, tornando-se uma presença cotidiana na vida dos leitores”, escreve Sonia Luyten. A primeira a fazer sucesso nesse formato foi Mutt and Jeff, desenhada por Bud Fischer.

A tira era conhecida a princípio como A. Mutt. O persona-gem era um compulsivo apostador de corridas de cavalo, fato que o fazia ser publicado na página de esportes do San Francisco Chro-nicle. No começo do ano seguinte, Mutt “conheceu” Jeff. A HQ ga-nhou novo nome e a temática específica de corridas de cavalo deu lugar a temas mais gerais, como as tentativas de Mutt de ficar rico.

Ainda em 1908, William Hearst apareceu mais uma vez no jogo e contratou Fischer para o jornal San Francisco Examiner. Mais do que isso, começou a distribuir a tira por meio do King Features Syndicate, a sua agência de distribuição, levando a cria-ção para outros jornais do país. Como havia acontecido antes, o Chronicle tentou continuar a história em quadrinhos com ou-tro artista, mas Fischer havia se precavido e possuía todos os direitos autorais da obra, acabando com a pretensão de seu an-tigo jornal.30#

Mutt and Jeff, de Bud Fischer, foi a primeira tira diária a fazer sucesso.▲

# Capítulo 1

História da História em Quadrinhos

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Em 1913, Fischer deixou o King Features e foi para o Wheeler Syn-dicate, onde passou a ganhar uma boa quantia de dinheiro pelo seu tra-balho. Com o tempo, passou a perder interesse na própria criação, que era feita por diversos assistentes. Entre eles, destaca-se Al Smith, que desenhou a tira por quase 50 anos, mesmo após a morte de Bud Fischer.

Erra-se, no entanto, em afirmar que Mutt and Jeff foi a primeira tentativa de se fazer uma publicação diária de história em quadrinhos. Clare Briggs, em 1903, já havia feito essa experiência com o personagem A. Piker Clerk. Assim como Mutt, Clerk também era um apostador de corridas de cavalo. Mas a tira durou poucos meses porque Hearst, dono do Chicago American, onde a HQ era publicada, não simpatizou com a obra. Alguns dizem que ele a considerou “vulgar” por conta do hábito do personagem em apostar dinheiro, como escreve Ianonne.

Mutt and Jeff não era original em essência, mas foi a primeira tira diária a fazer sucesso. Mais do que isso, foi a primeira a ser distribuída por uma agência (e não produzida especificamente para um jornal), fato primordial na divulgação das HQs estadunidenses para o mundo.

Uma das histórias em quadrinhos que poucos anos depois come-çou a ser publicada diariamente foi Krazy Kat, que veio a se tornar uma das três grandes influências de Calvin e Haroldo.

A. Piker Clerk foi uma das primeiras tentativas de tira diária, mas William Hearst a cancelou.

31 #

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# Capítulo 1

História da História em Quadrinhos

Krazy Kat, criada por George Herriman, surgiu por volta de 1910 de uma maneira um pouco diferente. Herriman dese-nhava outra história em quadrinhos chamada The Dingbat Fa-mily (que mais tarde mudou de nome para The Family Upstairs) e começou a desenhar histórias paralelas com animais nos es-paços em brancos que não eram aproveitados da tira principal.

Em 1913, a HQ secundária acabou ganhando seu próprio espaço. Produzida para o King Features Syndicate, sua publica-ção era diária, em preto e branco, com quadros em sequência

vertical. A edição de domingo ganhava uma página inteira e também era publicada sem cores, fato que só foi mudado vários anos depois, em 1935.

Krazy Kat contava a história de uma inocente gata (ou gato – já que seu gênero não era definido e poderia mudar de acor-do com a situação de cada tira) apaixonada pelo rato Ignatz, que mostra seu desdém pelo felino atirando tijolos na cabeça do personagem. Krazy, inocente e desiludida, interpreta o ar-remesso do tijolo (que acontece ao final da maioria das tiras)

Krazy Kat começou como uma pequena história para preencher os espaços

vazios de outra HQ de George Herriman. ▲

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como um sinal de afeição. O terceiro personagem principal, que fecha o “tri-ângulo amoroso”, é o Offissa Pupp, um cachorro policial que tenta prender Ig-natz para cumprir seu dever (por jogar tijolos em Krazy) e para agradar a gata ao mesmo tempo. Bill Watterson, autor de Calvin e Haroldo, escreveu na intro-dução do livro The Komplete Kolor Kra-zy Kat que “a ação pode ser lida como uma metáfora para o amor e a política, ou apenas aproveitado por sua lógica lunática e comédia corporal”.

Na contramão da comunicação de massa, Krazy Kat não era uma tira mui-to popular (era publicada em menos de 50 jornais), mas foi uma das primeiras HQs a receber o reconhecimento de “arte”. Em 1924, a obra de Herriman foi abordada (e aclamada) no livro The Se-ven Lively Arts do crítico de arte Gilbert Seldes. Nos jornais de Hearst, a história em quadrinhos deixou a área reservada para elas e aparecia na seção de artes.

Uma das características de Krazy Kat é a paisagem de “Kokonino Koun-ty”, uma versão do condado de Co-conino, no Arizona, Estados Unidos, mostrando o cenário de deserto, com suas montanhas e planícies característi-cas. Watterson destaca que “quase todo painel apresenta uma paisagem dife-rente, mesmo se os personagens não se movem. A paisagem é mais do que um pano de fundo, é um personagem na história. A tira é sobre a paisagem tanto quanto é sobre os animais que a povoam”.

Outra característica abordada por Watterson são os desenhos “arranha-dos” de Herriman. “Eles possuem a honestidade e objetividade dos rascu-nhos. Muitas das tiras de hoje em dia são lisas e polidas, o resultado inevitá-vel de assistentes tentando criar um es-tilo mecânico que possa ser continuado indefinitivamente”, escreve Watterson. “Os desenhos de Krazy Kat são capri-

Uma das primeiras tiras de Krazy Kat, com os quadros na vertical e os

personagens Krazy e Ignatz. ▲

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# Capítulo 1

História da História em Quadrinhos

chosos, particularizados, e cheios de personalidade”, completa o cartunista. Esse fator foi de grande importância para a não con-tinuação da HQ quando George Herriman morreu em 1944. O processo padrão das agências de distribuição era colocar outro artista para continuar a história em quadrinhos. Mas quando o dono do King Features Syndicate viu que o resultado ficou bem abaixo do que era padrão, decidiu cancelar a publicação.

“Assim como os desenhos eram poéticos, a escrita tam-bém era”, nota Watterson. “Com a possível exceção [da história em quadrinhos] Pogo, nenhuma outra tira deriva tanto de seu

charme da verbosidade. A ‘estrutura’ única de Krazy Kat vem em grande parte por conta da conglomeração de pronúncias e pontuações peculiares, dialetos, mesclas de espanhol, tradu-ções fonéticas, e aliterações [repetição de sons]”, escreve o autor de Calvin e Haroldo. “O condado de Coconino de Krazy Kat não possuía apenas um visual; havia um som também. Era um mundo cheio e extraordinário”. Em sua introdução para o livro com a obra de Herriman, Bill Watterson conclui dizendo que “Krazy Kat não fez muito sucesso como uma aventura comer-cial, mas foi algo melhor. Era arte”.

No subcapítulo anterior, foi citado que os syndicates (ou agências distribuidoras) começaram a aparecer e, de certa forma, mudar a história das histórias em quadrinhos.

Conforme dito, os syndicates são agências de distribuição

de conteúdo responsáveis por vender HQs, palavras cruzadas e artigos em geral para jornais e revistas de vários países por meio de contrato assinado. No caso das histórias em quadrinhos, os desenhistas são contratados para produzir uma série de tiras com

Syndicates

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a temática previamente aprovada pelo syndicate. Bill Watterson aborda o tema no livro Os Dez Anos de Calvin e Haroldo. “No começo, os cartunistas eram contratados por jornais individuais para produzir quadrinhos exclusivamente para aquele jornal. Hoje, os cartunistas trabalham para syndicates que vendem suas tiras para jornais em todo o mundo”, escreve Watterson.

Foi principalmente em 1907, com o sucesso das tiras diá-rias de Mutt and Jeff, que o processo de syndication possibilitou que as HQs americanas aumentassem seu campo de influên-cia. Até então, as histórias em quadrinhos eram publicadas na maioria das vezes aos domingos em um suplemento do jornal. Segundo Cleide Furlan, no livro “Histórias em Quadrinhos – Leitura Crítica”, a frequência diária abriu as portas para que as obras americanas se espalhassem pelo mundo e até inibissem a divulgação da produção nacional de outros países.

O sistema de distribuição permite que jornais de qual-quer lugar comprem as HQs por um preço barato, sem pre-cisar gastar mais para contratar um cartunista nacional (além disso, o risco é bem menor ao publicar séries já consagradas do que tentar algo novo). Isso favorece o jornal, pois consegue HQs famosas por um preço baixo e só possui o trabalho de traduzi-las. Para o syndicate também é vantajoso, já que seu lucro se dá pela grande quantidade vendida, por poder ven-der uma mesma série de tiras para diversos jornais de todo o

mundo. Para o desenhista, é favorável na medida em que ele não está “preso” a um jornal específico e sua obra poderá ter uma divulgação muito maior. Os contratos, porém, tendem a ser unilaterais para o lado da agência, que fica com todos os direitos autorais sobre o trabalho dos artistas, o que, além de incluir a distribuição das HQs, possibilita o licenciamento de produtos (camisetas, bonecos, mochilas) com os personagens e a “transferência” para outros meios, como desenhos anima-dos ou filmes.

A distribuição em massa dos quadrinhos resulta em outro fator: a tentativa de agradar a todos. “Uma tira hoje precisa de um apelo muito amplo”, escreve Watterson. “Enquanto os primeiros cartunistas experimentavam [coisas novas], o pro-cesso de syndication encorajou a produção calculada das tiras para capitalizar interesses específicos de grupos demográficos desejáveis”. O autor de Calvin e Haroldo vai além e toca no que é chamado na comunicação de massa de “mínimo denomi-nador comum”; Sonia Luyten também aborda o assunto em “O Que É Histórias em Quadrinhos”. Como as agências que-rem vender para o maior número de veículos possível, os syndicates possuem uma censura interna que, de certa forma, ajuda a nivelar o conteúdo das histórias, de modo que elas atinjam todas as camadas sociais de qualquer país e, conse-quentemente, façam com que mais pessoas se identifiquem

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# Capítulo 1

História da História em Quadrinhos

com os personagens. O objetivo é que ninguém as “rejeite”. Seguindo essa lógica, as agências colocam restrições para

que as histórias em quadrinhos (em geral) sejam “politicamen-te corretas” e não criem polêmica, evitando temas ou situações que possam ofender algum leitor. Watterson diz que “comer-

cializar tiras em grande escala encoraja os quadrinhos a serem conservadores, facilmente categorizáveis, e imitadores de su-cessos anteriores. Os quadrinhos ganharam um público imenso e se tornaram muito lucrativos dessa maneira, mas em detri-mento da exuberância primitiva deles”.

AventurasDepois das primeiras histórias em quadrinhos, cujos temas

giravam em torno da comédia (daí a expressão comics) – com crianças travessas, animais falantes e situações de famílias – o gênero de aventura começou a ganhar espaço durante a década de 1930 (o que não significou a erradicação de outros assuntos). Segundo Sonia Luyten, um dos motivos que explicam a popu-laridade desse estilo é a quebra da Bolsa de Valores de Nova York em 1929, já que as pessoas buscavam nas aventuras uma forma de escapismo, evasão da realidade. A criação dos mitos

nos quadrinhos de certa forma compensava a insegurança da crise pela qual passava os Estados Unidos – e consequentemen-te, grande parte do mundo. Três das tiras mais conhecidas desse período surgiram no ano de 1929.

Uma das histórias é a do famoso Tarzan, que começou a ser publicada com desenhos de Hal Foster. O “Rei da Selva”, po-rém, não se originou nos quadrinhos. Foi criação de Edgar Rice Burroughs no livro Tarzan of the Apes, de 1912, e já tinha até recebido uma versão para o cinema em 1918.

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Tarzan não foi personagem de um homem só. Diversos artistas se responsabilizaram pela obra ao longo dos anos. Segundo Álvaro de Moya, quem mais se destacou foi Berne Hogarth, que desenhou a HQ de 1937 até 1945 e de 1947 até 1950, com traços que impressionavam pelo realismo e bele-za. Em 1972 ele ainda ilustraria o romance original de Burroughs.

Outro personagem famoso do mesmo período é Popeye. Criado originalmente nos quadrinhos, o marinheiro apareceu pela primeira vez em 1929 na tira Thimble Theatre, que já era publicada há dez anos, e logo ganhou sua própria história. Ambas eram desenhadas por Elzie Crisler Segar.

De certa forma, Popeye pode ser considerado um dos precursores dos super-heróis. Apesar de não ter superpoderes, comia espinafre para ganhar uma força descomunal e levar vantagem sobre seu rival Brutus para impressionar Olívia Palito.

Tarzan com ilustrações de Hogarth. A história de Burroughs

ganhou beleza e realismo.

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# Capítulo 1

História da História em Quadrinhos

Comercializada pelo King Features Syndicate, Popeye fez bastante sucesso. Até a morte de Segar em 1938, antes da tira ser continuada por outros artistas, a obra era publicada em mais de 600 jornais em vinte e cinco países. Mas foram os direitos para desenhos animados, filmes e todo o tipo de merchandising que fizeram a criação arrecadar milhões de dólares para a agência de distribuição.

Fora dos Estados Unidos, também em 1929, um dos quadri-nhos de aventura de enorme sucesso internacional surgiu na Bél-gica desenhado por Georges Remi, mais conhecido como Hergé. Era o repórter aventureiro Tintin (na versão nacional, o nome do personagem foi adaptado com a troca do “n” por “m” no final).

As HQs eram publicadas semanalmente em um suplemento do jornal belga Le XXe Siècle. Devido à popularidade, aumenta-ram consideravelmente as vendas do veículo no dia da publicação. Na primeira das Aventuras de Tintim, o protagonista é mandado para a “terra dos soviéticos” e investiga supostos crimes come-tidos pelos comunistas. Em cada aventura, que demorava cerca de um ano para ter o seu desfecho no jornal, Tintin viajava para países diferentes, como Egito, Estados Unidos e Índia; algumas vezes existiam lugares ficcionais, como a “república de bananas” de San Theodoros.

Depois de publicadas, as histórias eram reunidas em álbuns que fizeram (e ainda fazem) sucesso no mundo todo, com mais de O marinheiro Popeye desenhado por seu criador Elzie Segar.▲

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200 milhões de cópias vendidas em dezenas de línguas diferen-tes, sendo revisadas e ganhando novas edições por diversas vezes, principalmente depois de 1950 quando o autor criou o Studios Hergé para cuidar das obras e produtos das Aventuras de Tintim.

Sempre acompanhado de seu fox terrier Milu e outros per-sonagens icônicos como o Capitão Haddock ou os gêmeos Du-pont e Dupond, Tintin é outro grande exemplo da competência

dos quadrinhos em gerar dinheiro não somente pelas HQs em si, mas pela capacidade de se adaptar a outros meios e produ-tos. Existem diversos filmes de Tintin (o mais recente lançado em 2011), duas séries de desenhos animados, adaptações para o rádio feitas pela BBC britânica, peças de teatro, jogos de vi-deogame e inúmeros livros analisando Hergé e a importância de sua obra. 39 #

Tintim e Milu: a obra foi adaptada para diversos meios como desenhos animados, filmes e videogames.

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# Capítulo 1

História da História em Quadrinhos

No final da década de 1930 começou o que os pesquisadores cha-maram de a “Era de Ouro” dos quadrinhos, que está diretamente ligada com o nascimento dos super-heróis. O marco dessa história não poderia ser outro senão o Super-Homem, um dos primeiros super-heróis, que se mostrou para o mundo em 1938 (apesar do Fantasma – The Phan-tom – ter surgido dois anos antes e ser uma espécie de super-herói sem superpoderes).

O Superman foi criado por Jerry Siegel e Joe Shuster. Apareceu pela primeira vez em 1933 como um vilão de uma fanzine (revista feita por fãs de forma amadora e com baixa circulação) criada por Siegel. Mas os autores se depararam com muitas rejeições a princípio para serem publicados “de verdade”. Houve até a intenção - que acabou sendo recu-sada - de transformar a criação em tiras de jornal. Foi somente em 1938 que a recém-criada DC Comics aceitou apostar no Super-Homem em formato de comic book (uma revista de quadrinhos em “capítulos” onde a história é continuada na edição seguinte), o que ainda não era comum no meio. O herói ganhou sua revista própria, a  Action Comics  No. 1, publicada em abril de 1938 (apesar de a capa mostrar “junho 1938”). Tal edição é tão rara hoje em dia que um exemplar foi vendido em 2010 por £646 mil libras (mais de dois milhões de reais), apesar de seu preço ori-

Super-heróis

O Super-Homem foi publicado em 1938 e popularizou os comic books. ▲

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ginal ser de apenas dez centavos de dólar. A partir daí, todos os personagens criados passaram a ser publicados em comic books, e o formato ganhou grande identificação com os super-heróis.

Assim como já havia acontecido com outras histórias em quadrinhos, a popularidade do Super-Homem o fez “voar” para outras mídias, como lista Álvaro de Moya em “A História das Histórias em Quadrinhos”. As tiras de jornal, antes rejeitadas, começaram a ser publicadas menos de um ano após o surgi-mento do herói. Em 1940, já havia uma série de rádio dedicada ao personagem. No ano seguinte, eram criados os primeiros de-senhos animados (já a cores). Com o passar das décadas, mais e mais produtos foram sendo criados, como filmes, seriados, livros e até um musical da Broadway.

O sucesso do Superman no final da década de 1930 mudou a história dos quadrinhos e abriu espaço para outros humanos excepcionais. Batman apareceu pela primeira vez em 1939, na revista Detective Comics No. 27, se tornando um dos principais personagens da DC. No mesmo ano, embarcando na popula-ridade dos heróis, foi criada a Marvel Comics (então chamada de Timely Comics), que viria a se tornar, junto com a DC, as duas grandes editoras de super-heróis. Sua publicação de es-

Batman apareceu pela primeira vez na Detective Comics #27; o Tocha Humana e o Príncipe

Submarino estavam na edição de estreia da Marvel.

O Capitão Marvel não passava de uma cópia do Super-Homem. Na imagem, os dois lutam em um episódio do desenho Liga da Justiça Sem Limites.

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treia (Marvel Comics No. 1) trazia personagens como o Tocha Humana, de Carl Burgos, e o Príncipe Submarino, de Bill Everett. A editora ainda criaria o Capitão Marvel, personagem que não passava de uma cópia do Super-Homem. A DC processou a Marvel por plágio e venceu a disputa judicial anos depois, interrompendo a publicação do herói.

Em 1941, a Marvel encontrou outro “Capitão” para publicar. Pela pri-meira vez o Capitão América aparecia em cena, como um símbolo esta-dunidense na Segunda Guerra Mundial. A primeira edição trazia o herói acertando um soco no queixo de Hitler – foi um sucesso. Outros heróis que ainda são vastamente conhecidos também foram criados nessa época. É o caso de Robin, Lanterna Verde, The Flash e Mulher-Maravilha, todos da DC Comics.

Ao longo dos anos, as histórias dos super-heróis foram recriadas e recontadas diversas vezes, procurando mantê-los atualizados para a época. Em 2012, a DC Comics “zerou” suas edições de comic books para reco-meçar a história de seus heróis. Entre mudanças e novidades, a editora anunciou que o Lanterna Verde é homossexual e que Batman possui um irmão mais velho que é vilão.

Essa renovação é algo que ajuda o gênero de “super-herói” a manter a sua popularidade até os dias de hoje. Apesar de ter havido períodos de menor intensidade, o estilo sempre encontrou formas para se reinventar e voltar a fazer sucesso, como foi o caso da “Era de Prata”. Ao final da Segun-da Guerra Mundial, em 1945, até o fim da década de 1950, os super-heróis perderam popularidade, possivelmente até por uma “saturação” do gênero.

# Capítulo 1

História da História em Quadrinhos

O Capitão América, símbolo dos Estados Unidos na Segunda Guerra, acerta um

soco em Hitler na sua edição de estreia.

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A “Era de Prata”, contando principalmente com o escritor Stan Lee e o artista Jack Kirby, foi responsável por reestabelecer os super-heróis.

O marco inicial do período pertence à DC. Foi a introdução de uma versão moderna do The Flash, feita pela editora em 1956. Outros per-sonagens seguiram o modelo, sendo o Lanterna Verde o de mais noto-riedade. No começo de 1960, a empresa ainda teve outra grande ideia: formar um time com os seus super-heróis. Nascia assim a Liga da Justiça, composta por Super-Homem, Batman, Mulher-Maravilha, The Flash, Lanterna Verde e outros.

A reação da Marvel não tardou a vir. Stan Lee criou “O Quarteto Fantástico” (The Fantastic Four) como resposta ao time de super-heróis da DC. A grande inovação aplicada a esses personagens foi trazê-los para o “mundo real”. Eles eram mais “humanos”, com seus medos, conflitos existenciais e problemas de pessoas comuns, como não ter dinheiro para pagar o aluguel. Apesar de serem um time, eles também se desentendiam uns com os outros.

Esse tipo de abordagem se tornou muito popular e abriu espaço para Stan Lee (e Jack Kirby) criar novos personagens conhecidos até hoje. En-tre 1962 e 1963, o mundo ganhou diversos novos heróis, como o Hulk, Homem de Ferro, Thor, os mutantes do X-Men, e aquele que se tornou um dos mais famosos, o Homem-Aranha (este também em parceria com

O Homem-Aranha estreou em 1962 na Amazing Fantasy #15, um dos períodos mais criativos de Stan Lee.

O Quarteto Fantástico trazia super-heróis humanizados, com

problemas comuns da sociedade.

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# Capítulo 1

História da História em Quadrinhos

Steve Ditko). Ainda em 1963 também foram criados Os Vingadores, um time de super-heróis reunindo os personagens da Marvel, contrabalance-ando A Liga da Justiça da DC Comics.

Após esse período, discute-se a existência da “Era de Bronze”, que iria de 1970 até o meio da década de 80. Ela não é tão estabelecida quan-to às eras anteriores (de Ouro e Prata), mas seria responsável por tra-zer temas mais adultos como drogas e religião, além dos personagens ganharem traços com maior sexualidade. No entanto, considerando a existência ou não de uma “Era de Bronze”, desde a “Era de Prata” os super-heróis se mantém em evidência e são uma das bases da cultura pop. Não só os quadrinhos como as diferentes mídias são responsáveis por fazer com que o interesse sobre os personagens não se perca. Ano a ano são lançados seriados, jogos de videogame e filmes sobre os heróis que apareceram nos quadrinhos. Apesar dos comics books disputarem lugar com esses diversos tipos de entretenimento, as novas tecnologias também são uma forma de revitalizar as HQs. É possível ler comic books pela internet ou até comprá-los para ler em tablets.

A popularidade dos super-heróis é indiscutível. Nesse ano de 2012, o filme “Os Vingadores” bateu vários recordes. O final de se-mana de estreia rendeu 207,4 milhões de dólares nos Estados Unidos, superando o recorde anterior por mais de 30 milhões de dólares e se tornando o filme mais rápido a atingir a marca dos $200 milhões. No total, “Os Vingadores” arrecadou quase 1,5 bilhão de dólares em todo o mundo.

O sucesso dos super-heróis parece não ter época para acabar. Prova disso foi o filme Os Vingadores,

que bateu recordes de bilheteria em 2012.

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Com a queda de popularidade dos super-heróis no come-ço da década de 1950, outros gêneros apareceram para ocupar o espaço. Entre eles estavam as tiras de jornal com um humor mais inteligente. Muitas vezes essas HQs não buscavam apenas divertir, mas também causar reflexão com temas sociais e po-líticos. Os desenhos eram mais simples do que os quadrinhos de aventura do passado, em parte porque o espaço para as HQs nos jornais estava diminuindo. Com os cenários praticamente inexistentes, os diálogos ganharam destaque. Esse tipo de tira se aproxima bastante do que Calvin e Haroldo viria a ser trinta anos depois, e duas das principais influências de Bill Watterson surgiram nessa época: Pogo e Peanuts.

Escrita por Walt Kelly, Pogo é vista como a precursora das tiras com temáticas sociais. O gambá que dá nome à obra e Al-bert, o crocodilo, apareceram pela primeira vez em 1941, ainda com formas primárias do que viriam a ser nas tiras, na edição número um da Animal Comics, uma publicação de quadrinhos da editora Dell Comics.

Foi somente em 1948, porém, que Pogo virou uma tira de jornal. Kelly foi contratado pelo New York Star para desenhar

“Conhecemos o inimigo e ele somos nós”; cartaz de Pogo de 1970 (e reproduzido

no ano seguinte) para o Dia da Terra. ▲

Pensativas

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# Capítulo 1

História da História em Quadrinhos

charges políticas e aproveitou para lançar seus personagens em HQs diárias, usando seu conhecimento da época em que trabalhou para os estúdios da Disney (antes de trabalhar para a Dell Comics).

No entanto, no começo do ano seguinte, o jornal foi encer-rado. Mas Pogo ficou pouco tempo sem uma “casa”. Menos de quatro meses depois, a tira começou a ser distribuída para vários jornais por meio do Post-Hall Syndicate até a morte do artista em 1973. Por algum tempo, Selby, a mulher de Kelly, continuou a desenhar a obra, mas parou em 1975.

Todos os personagens de Pogo eram animais falantes com personalidades humanas. E não eram poucos. Contando os ani-mais que faziam rápidas aparições durante algumas tiras, os per-sonagens chegavam à casa das centenas. Geralmente as reflexões que faziam eram sobre a natureza humana - uma característica que Bill Watterson certamente levou consigo para Calvin e Ha-roldo – e sobre política.

Das tiras com humor inteligente, que destacavam mais o diálogo do que o cenário, Pogo era uma das que trazia os dese-nhos mais bonitos e detalhados da época, a despeito de outras de suas contemporâneas, como Recruta Zero (de Mort Walker), ou o próprio Peanuts, de Charles Schulz. Isso acontecia tanto nas tiras diárias em preto e branco quanto nas HQs dominicais, com maior número de quadros e a cores. Assim como em Krazy Kat,

os panos de fundo do pântano em que os personagens viviam eram bem trabalhados e a paisagens mudavam com frequência de quadro para quadro. Outra semelhança com Krazy Kat é a for-ma peculiar de linguagem. Os personagens falavam uma “lingua-gem do pântano”. Kelly trocava palavras com sons parecidos mas significados diferentes para criar humor, fazia variações na escri-ta das palavras e criava exclamações e onomatopeias. “E coitados dos tradutores para encontrar sinônimos à altura”, lembra Sônia Luyten. Alguns personagens traziam letras góticas ou cartazes de circo em seus balões, sugerindo um tipo de voz e personalidade.

Apesar de não ser muito conhecida no Brasil, Pogo chegou a figurar em mais de 400 jornais de 14 países, tendo vendido cerca de 300 milhões de cópias dos seus livros de coletânea. Já a outra tira desse período, Peanuts, é bastante conhecida – não só aqui, mas em todo o mundo.

A tira de Charlie Brown e seus amigos é uma das HQs mais conhecidas de todos os tempos. Grande parte disso se deve a gi-gantesca quantidade de merchandising que Charles Schulz con-seguiu atingir com os seus personagens durante os 50 anos da obra - principalmente com o cãozinho Snoopy, talvez até mais conhecido do que o protagonista inicial. É muito provável que você já tenha visto bolsas, cartões, camisetas e diversos objetos com os personagens. O beagle se tornou até símbolo de empresas, como a MetLife (companhia de seguros).

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Os personagens de Schulz foram licenciados para todo tipo de produtos. Snoopy virou símbolo da Metlife.

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# Capítulo 1

História da História em Quadrinhos

Várias pessoas podem inclusive conhecer os personagens sem nunca ter lido as tiras, tamanho o número de outras mí-dias para qual Peanuts migrou. Além dos livros de coletânea (com “Peanuts Completo” previsto para ter 25 livros, com o lançamento do último em 2016), a turma de Charlie Brown virou desenho animado e apareceu em diversos especiais para

a TV e filmes. Eles também já foram tema de musicais, peças teatrais, discos, assunto de documentários e usados para jogos de videogame. Existem até parques de diversão temáticos para entreter as crianças.

A história de Peanuts começou em 1950, quando Charlie Brown apareceu em um painel semanal que Schulz desenhava

Charlie Brown, Snoopy e a turma de Peanuts. Vários personagens novos

surgiram com o passar dos anos.

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chamado Li’l Folks. A partir daí, o autor come-çou a desenvolver a tira (com quatro painéis), que mantinha uma linha parecida com seus painéis únicos, e conseguiu um contrato com o United Feature Syndicate. A agência, porém, mudou o nome da tira para Peanuts - Minduim no Brasil - porque o título Li’l Folks se asseme-lhava a outras obras, como  Li’l Abner  e  Little Folks. Schulz nunca se mostrou satisfeito com o nome, mudando quando possível em livros e outros formatos.

No começo só havia quatro personagens (Shermy, Patty, Snoopy e Charlie Brown), e eles ainda possuíam traços menos definidos, diferentes dos quais ficariam conhecidos, prin-cipalmente Charlie Brown e Snoopy. O garoto era desenhado com uma cabeça oval, parecida com uma bola de futebol-americano; Snoopy se assemelhava a um cachorro comum em vez de ter os traços característicos que conhece-mos hoje.

Com o passar dos anos, a tira foi ganhan-do outros personagens que deram novos tons para a história em quadrinhos. Alguns surgi-

Charlie Brown é o autêntico “perdedor”. São seus fracassos que causam

empatia e compaixão dos leitores. ▲

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ram logo nos primeiros anos, como Linus van Pelt, o melhor amigo de Charlie Brown; Lucy, a menina mandona irmã de Li-nus; e Schroeder, o garoto que toca piano e por quem Lucy é apaixonada. Outros surgiram bem depois, no final da década de 60, como Marcie, a garota de óculos que gosta secretamente de Charlie Brown e Woodstock, o passarinho amigo de Snoopy.

Apesar de ser uma tira só com crianças – nunca nenhum adulto apareceu – a primeira história de Peanuts já mostrava a sua diferença para outras tiras com garotos, com um dos perso-nagens (Shermy) falando sobre o seu «ódio» por Charlie Bro-wn. Em Peanuts, as crianças encaram o mundo de uma maneira humana, com seus problemas, inseguranças e emoções - como se fossem adultos.

 Mais do que isso, Peanuts sempre foi a “celebração” do fra-casso. As crianças são o oposto dos heróis que surgiram nas dé-cadas anteriores. O humor das tiras vem da rejeição, do fracasso e da insegurança, e a conexão com o público se dá por meio da empatia com os personagens. Como Bill Watterson ressaltou na introdução que fez para a biografia de Schulz (Schulz and Peanuts: A Biography, de David Michaelis) “você fica realmente envolvido com os personagens, sente que os conhece», e tiras como Peanuts “vão além de uma piada por dia, e nos levam para um mundo especial”.

Segundo o autor da biografia, grande parte da inspiração para as HQs vieram da vida conturbada de Schulz - desde os pais ausentes na infância e a vida difícil na escola até os casa-mentos frustrados. O autor, porém, parecia optar pelo sucesso no trabalho à felicidade pessoal: preferia manter sua vida desse jeito e continuar a ter o combustível para a sua criação. Diversas tiras correspondem a situações reais que aconteceram com o autor e a pessoas ao seu redor.

A vida e a obra de Schulz se confundem até o dia de sua morte. No ano de 2000, com 77 anos, o autor de Charlie Brown já estava com a saúde deteriorando e decidiu se aposentar. A última tira diária foi publicada no dia 3 de janeiro daquele ano, mas ainda havia cinco HQs de domingo para serem exibidas. Schulz faleceu no dia 13 de fevereiro, um dia antes da última obra de Peanuts ser publicada. Mais do que uma história, os quadros traziam imagens simbólicas da série e um texto de Schulz anunciando a sua aposentaria e agradecendo aos fãs.

Watterson, em sua introdução para a biografia de Schulz, chega à conclusão de que Peanuts basicamente define a tira mo-derna, com os “desenhos limpos e minimalistas, o humor sarcás-tico, a forte honestidade emocional, os pensamentos internos de um animal de estimação, o tratamento sério dados às crianças, as fantasias malucas e o merchandising em escala enorme”.

# Capítulo 1

História da História em Quadrinhos

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Durante o final dos anos 1960 e na década de 1970, os qua-drinhos underground se popularizaram. Essa era uma época de enorme instabilidade no mundo, com os jovens questionando os sistemas vigentes e estabelecendo a contracultura. A juventu-de americana questionava o american way of life e a Guerra no Vietnã, e os hippies pregavam a paz e o amor. O movimento de contracultura ficou bastante conhecido na música, sobretudo com os Beatles. Nos quadrinhos, surgiram os underground “co-mix”, escritos dessa maneira para se diferenciar das publicações tradicionais (os comics).

Segundo Nobu Chinen, as HQ underground, ou seja, pro-duzidas e distribuídas de forma alternativa e independente, exploravam diversos temas que, por conta do Código de Éti-ca vigente, os gibis de banca não podiam abordar. Nos Esta-dos Unidos, esse Código de Ética (o Comics Code Authority) restringia o conteúdo das publicações de HQs. Os syndicates também eram responsáveis por terem censuras internas e pu-blicavam só o que agradaria (segundo eles) o grande público. Os comix começaram a ganhar popularidade entre o público

Underground

jovem contestador exatamente por não ligarem para a censura. O famoso “é proibido proibir”, como cantou Caetano Veloso.

Os quadrinhos do gênero, que eram produzidos de forma independente, abordavam de forma explícita o sexo, drogas, rock ‘n’ roll, violência e política - temas que não apareciam (ou eram publicadas de maneira mais sutil) nas publicações mains-tream. A intenção era chocar o público conservador.

Em 1972, Fritz the Cat virou desenho animado. Crumb não gostou do

resultado e matou o personagem.

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# Capítulo 1

História da História em Quadrinhos

Um dos principais desenhistas do período foi Robert Crumb, sendo Fritz the Cat e Mr. Natural suas principais obras. Fritz apa-receu em revistas como Help! e Cavalier na metade da década de 60 e se tornou um dos personagens mais icônicos do período underground por representar as linhas gerais do movimento. O gato era “descolado”, usa-va drogas, se envolvia com forças terroristas e es-tava sempre atrás de aventuras sexuais, algumas com temas pesados como incesto ou estupro. A popularidade de Fritz fez até com que ele virasse desenho animado em 1972. Crumb, porém, não ficou satisfeito com o resultado, se desentendeu com os produtores e acabou matando Fritz em uma tira, dando fim ao personagem.

Em 1968, foi lançada a primeira edição de uma publicação própria de Crumb, a Zap Co-mix (que ajudou a popular o termo “comix”). A revista trazia  Mr. Natural  na capa, um perso-nagem que, de longe, lembrava o antigo Yellow Kid. Ele era careca e vestia, além das botas, um avental amarelo como única peça de roupa. Diferentemente do personagem de Outcault, porém, Mr. Natural é velho e possui uma longa barba branca. Ele é uma espécie de guru que possui grande conhecimento e é procurado por seguidores para saber

mais sobre a vida. Mr. Natural é contra o mundo moderno e prega que se deve viver na natureza, como um eremita. Assim como Fritz the Cat, o personagem ganhou revistas específicas

para ele nos anos seguintes.Tamanha era a intensidade do conteúdo da

Zap Comix que ela não poderia passar ilesa. A edi-ção No. 4, por exemplo, foi alvo de polêmica por conter uma história de incesto e acabou recebendo diversos processos. Em Nova York, foi condenada por obscenidade e teve sua venda proibida. Mas isso só ajudou na publicidade da Zap Comix e a tornou mais conhecida para os jovens que formavam o público consumidor. No total foram publicadas 16 edições da Zap, sendo a última delas em 2004.

O movimento underground nos quadrinhos perdeu sua força no final da década de 1970. A arte começou a ficar “estereotipada” e já não havia mais a mesma criatividade para novas publicações. Ou-

tro fator que contribuiu foi que, em parte, o gênero foi absorvido pelo mercado. As grandes editoras

começaram a ter  publicações com temas mais livres e voltados para os adultos. Os assuntos antes tão polêmicos - sexo, drogas e violência – começaram a aparecer no mainstream (mas de forma menos explícita e mais contextualizada).

Mr. Natural foi capa da Zap Comix #1, lançada em 1968.

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O termo graphic novel (ou “romance gráfico”) não possui uma definição fechada. Em geral, ele é usado para determinar histórias (fic-cionais ou reais) que se utilizam da linguagem sequencial – ou seja, os quadrinhos - para contar uma narrativa.

Até aí, parecido com os comic books, certo? Mas o termo foi popu-larizado justamente para causar diferenciação entre os dois gêneros. As principais diferenças são que as graphic novels contam histórias maiores e grande parte das vezes possuem temas mais complexos vol-tados para o público adulto. Outra diferença está no acabamento: as graphic novels são publicadas no formato de livro, mais duradouro e com um acabamento melhor do que as revistas de HQs.

Apesar de ter sido usado antes, o termo se popularizou com a pu-blicação de Um Contrato com Deus (A Contract with God, and Other Tenement Stories, no original) de Will Eisner, em 1978, que buscava se mostrar diferente dos comic books. O livro, com quase 200 páginas, continha quatro histórias em forma de arte sequencial. A temática era de imigrantes no bairro do Bronx, em Nova York.

A partir de então, as graphic novels começaram a ter maior desta-que. Maus, de Art Spiegelman - provavelmente o livro mais famoso do

Graphic Novels

Página de Um Contrato com Deus, de Will Eisner. Livro popularizou

o termo “graphic novels”. ▲

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# Capítulo 1

História da História em Quadrinhos

gênero - foi outro responsável não só por trazer atenção para o novo termo como aos quadrinhos de forma geral. Spielgelman se baseou nas experiências de seu pai como sobrevivente do Holocausto para contar sua história. Os personagens da guerra eram mostrados como animais – os nazistas eram os gatos e os judeus os ratos. A obra foi publicada originalmente de forma seriada na revista Raw, entre 1980 e 1991. A versão completa - no formato de li-vro e com os últimos capítulos - só foi editada depois, o que rendeu o Prêmio Pulitzer em 1992, se tornando o pri-meiro livro de quadrinhos a receber o prêmio.

De Yellow Kid até as graphic novels, esses foram os principais movimentos que os quadrinhos viveram em sua história de pouco mais de cem anos. Esse era o con-texto em que Calvin e Haroldo foi criado durante os anos 1980. Vale lembrar que um novo estilo ou gênero que sur-

Maus, de Art Spiegelman, foi o primeiro livro de quadrinhos a ganhar o prêmio Pulitzer.

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gia, marcado em alguma década, não necessariamente excluía o que vinha sendo feito antes. Os diferentes modos de HQs conseguiam (e conseguem) coexistir em suas diversas produ-ções artísticas.

Atualmente também existem as “webcomics”, quadrinhos produzidos especialmente para o meio digital. A internet pos-sibilita uma grande variedade de publicações – desde artistas profissionais que publicam suas obras na rede até pessoas “co-

muns” que criam tiras em sites específicos para esse fim.Como Calvin diz na tira, a história é a ficção que inventa-

mos para nos persuadir que os eventos são previsíveis e que a vida tem ordem e direção. É impossível entender a história em toda a sua complexidade, seja dos quadrinhos, do cinema ou da humanidade. Esse capítulo visa dar uma pequena luz nos prin-cipais eventos que ocorreram com as histórias em quadrinhos desde o seu surgimento.

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# Capítulo 2

O MundoMágico de

Calvin e Haroldo

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# Capítulo 2

O Mundo Mágico de Calvin e Haroldo

Bill Watterson estava com 28 anos quando começou a dese-nhar as tiras de Calvin e Haroldo (Calvin and Hobbes, no original). Mas é claro que sua paixão pelos quadrinhos e pelo desenho havia começado muito antes, já na infância. Naquela época, ele estava longe de ser conhecido e William Boyd Watterson II, seu nome de nascimento, era apenas uma criança começando a ler e apreciar as histórias em quadrinhos.

Nascido em 5 de julho de 1958, Bill morou com os pais em Alexandria, Virginia (nos Estados Unidos) até os seis anos, quan-do a família se mudou para Chagrin Falls, Ohio, um subúrbio pró-ximo a Cleveland. Foi lá que, com essa pouca idade, ele começou a nutrir o gosto pela arte sequencial.

Diferentemente do que se pode imaginar, Watterson não se parecia nada com seu personagem Calvin, uma criança agitada que está sempre aprontando. “Não que ele não tivesse imaginação, porque claro que ele tinha. Mas não de uma maneira fantasiosa”, James Watterson, pai de Bill, contou certa vez ao jornal Cleveland Plain Dealer. “Ele não possuía um amigo imaginário como Harol-do e não era um Denis, O Pimentinha”.

Bill Watterson, o autor

Watterson era uma criança tranquila que encontrou diversão na coleção de livros de Schulz do seu pai. Como ele lembraria na coletânea Os Dez Anos de Calvin e Haroldo, “os livros de Peanuts foram uma das primeiras coisas que eu li, e assim que os vi, eu sou-be que queria ser um cartunista”. Um dos livros chamava “Snoopy” e possuía uma página em branco para o leitor fazer uma cópia do cachorro beagle. Bill desenhou o personagem e a paixão pela HQ havia nascido. “Eu instantaneamente me identifiquei com os de-senhos planos e despojados, a honestidade das inseguranças das

Bill Watterson em uma das pouquíssimas fotos suas já publicadas. ▲

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crianças, e com o mundo bizarro e separado de Snoopy”, lembra Watterson. Nos anos seguintes, ele passou a comprar as coleções anuais de Peanuts. Mais do que isso, usava os livros como base para copiar os desenhos e fazer os seus próprios. Como recorda na introdução de The Complete Calvin and Hobbes, “eu amava os desenhos expressivos, e a economia de linha de Charles Schulz se encaixava perfeitamente com a minha falta de paciência e habili-dades mínimas de desenho”. Como quase toda criança, ele queria “resultados instantâneos, não um processo de aprendizado”, e de-senhava “com a ideia de algum dia de tornar o próximo Charles Schulz”, como contaria ao Wall Street Journal.

Na época, Watterson não tinha noção do quão revolucioná-rio era Peanuts e como ela estava mudando as histórias em qua-drinhos. “Eu só sabia que tinha um tipo de humor e verdade que faltava em outras tiras”, disse ele. Décadas depois, Watterson falou sobre a característica da tira de Schulz que mais o marcou e que ele, indubitavelmente, levou para Calvin e Haroldo. “Acho que a coisa mais importante que aprendi com Peanuts é que uma tira pode ter um gume emocional e pode falar das grandes questões da vida de uma maneira sensível e perceptiva”, analisa o cartunista.

Em 2007, Bill Watterson aceitou o pedido do Wall Street Jour-nal para escrever uma análise sobre a biografia de Schulz (Schulz and Peanuts: A Biography, de David Michaelis). Ele destacou a for-ça que a série tinha na cultura pop já na década de 1960 quando

teve seu primeiro contato com a obra, com os livros mais vendi-dos e o “império de merchandising que estava se desenvolvendo, com bonecos, blusas de moletom, calendários e especiais para a TV”. Watterson, porém, mostrou apreço por uma característica que ele considerava muito importante: “o sucesso comercial de uma tira frequentemente ofusca o triunfo artístico, mas durante os 50 anos [de Peanuts], Charles Schulz escreveu e desenhou ele mesmo cada painel, fazendo de sua tira um registro extremamen-te pessoal de seus pensamentos. Foi um modelo de integridade e devoção que deixou uma impressão profunda em mim”.

Com um processo de merchandising grande fica difícil para o cartunista escrever e desenhar a sua tira diariamente e fazer todo o programa de licenciamento. Assim, na maior parte das vezes, assistentes são contratados para ajudar o artista. Com o tempo, pode ser que o cartunista nem desenhe mais a obra que criou, apenas assine o trabalho realizado por um assistente. Wat-terson certamente nunca apoiou esse tipo de ação, tendo ele pró-prio “escrito cada palavra, desenhado cada linha e pintado cada cor” de suas tiras.

No começo da adolescência, Watterson descobriu outra tira que teria grande influência sobre o seu trabalho: Pogo, de Walt Kelly. Com seus desenhos exuberantes, a tira era, em algumas ma-neiras, o oposto de Peanuts. “O humor e o trabalho artístico foram o que me atraíram primeiro”, Watterson comentaria em 1988 para

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O Mundo Mágico de Calvin e Haroldo

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uma plateia na Universidade Estadual de Ohio. “Pogo falava sobre os defeitos da natureza humana: as suspeitas, preconceitos, polui-ção, bombas. Mas também celebrava a tolice, nonsense e o simples prazer de um grande piquenique. Falava de amizade e amor, nos-so estranho sistema político, beisebol, e centenas de coisas gran-des e pequenas”. Em The Complete Calvin and Hobbes, Watterson ainda recorda que a obra de Kelly o levou a tentar desenhar coisas diferentes, além da visão lateral. O humor menos óbvio também o marcou. “O humor geralmente encontrado em Pogo está mais no diálogo longo do que em tiradas de efeito, e acho que isso ficou comigo, também”, escreveu o cartunista.

No mesmo período, Watterson conheceu Krazy Kat, de Geor-ge Herriman, completando o que seriam suas maiores influências para Calvin e Haroldo. Apesar da restrição no desenvolvimento da história, que se desenvolvia apenas no triângulo amoroso entre a gata, o rato e o cachorro, era a atmosfera da história em quadri-nhos – com sua linguagem de dialetos e fundos que mudavam de painel para painel - que impressionou o jovem Bill. “A limitação da narrativa de Krazy Kat parece ter libertado todos outros aspectos do desenho para se tornar poesia, e a tira é, para mim, o desenho em sua maior pureza”, falou ele em um raro discurso no Festival de Arte de Cartoon em 1989 na Universidade Estadual de Ohio.

Watterson estava dedicando cada vez mais tempo às ilus-trações. Sua família dava apoio, tendo comprado uma mesa de

desenho para o pequeno artista. Na sétima série, Bill já sabia que queria ser cartunista. Sua outra opção, astronauta, “nunca foi mui-to uma possiblidade, já que eu nem gosto de andar em elevadores”. Então, quando ele “parou de entender ciências e matemática”, a decisão estava tomada.

No entanto, a profissão que não foi para frente, reapareceu durante as aulas de alemão no colegial. Watterson criou algumas histórias em quadrinhos para o curso. Uma delas mostrava um amigo e ele com trajes de super-heróis. A outra tinha como per-sonagem o Raumfahrer Rolf (Cosmonauta Rolf), que se dava mal em uma aventura e era devorado por um monstro. Anos mais tar-de, Bill tentou, sem sucesso, vender uma tira com o cosmonauta. No fim, ele acabou servindo como embrião do que viria a ser o Cosmonauta Spiff, alter-ego de Calvin.

Na época final de colégio, os desenhos já estavam tomando conta da vida do futuro cartunista. “Dificilmente eu deixava algu-ma folha passar sem colocar algum desenho nela. Eu ilustrava mi-nhas lições de casa, eu desenhava histórias em quadrinhos, pôs-teres, cartões, e publiquei charges no jornal e anuário da escola”, lembra Watterson. Durante seu último ano, conseguiu inclusive ter algumas charges publicadas no jornal Sun Herald.

Já na faculdade, em Kenyon College, Ohio, Bill se voltou para as charges políticas. Isso porque já havia um exemplo a ser segui-do: Jim Borgman, que acabara de se forma em Kenyon e estava

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trabalhando para o Cincinnati Enquirer como chargista político. “Borgman foi generoso e encorajador, oferecendo conselhos e críticas construtivas por muitos anos enquanto eu tentava seguir os seus passos”, lembra Watterson. Nos seus primeiros dias de fa-culdade, o calouro também conheceu Richard West, um veterano que estava no último ano e era editor-chefe do Kenyon Collegian, jornal da instituição. Watterson faria cartuns para o jornal durante os quatro anos do curso. West se recorda de como ele ficou en-tusiasmado quando conheceu Borgman, que também havia de-senhado para a publicação, percebendo que era possível ganhar dinheiro fazendo charges – e ele estava no mesmo lugar de alguém que tinha acabado de conseguir isso.

Bill também contribuía para o jornal de outras formas. A mais notável delas era uma história em quadrinhos chamada Mewkis and Fester sobre dois estudantes que moravam juntos e enfren-tavam os problemas escolares. Segundo Nevin Martell, autor de Looking for Calvin and Hobbes, o espírito da tira se assemelhava com Calvin e Haroldo, apesar delas não serem nada visualmente parecidas. Assim como Calvin, Mewkis e Fester também intera-gem com o mundo acadêmico de uma forma desastrosa, tentando evitar trabalhos da escola, sempre estando em apuros e com certa aversão à autoridade.

Watterson ainda possuía a ambição de ser um chargista po-lítico. Escolheu cursar ciência política como sua matéria princi-

pal da faculdade, ao perceber que esse não era um assunto que ele dominava. “Apesar de ter nascido em uma era de [Guerra do] Vietnã e [escândalo de] Watergate, de alguma maneira eu nunca tinha prestado muita atenção em governos, história, política, ou as notícias de maneira geral em meus dezoito anos de vida”, lembra Watterson. Querer ser chargista político sem entender do assunto parecia ser uma decisão errada, mas Jim Borgman pode ser visto como o “culpado” disso. “Eu vejo agora que isso [entender do as-sunto] era de certa forma uma obrigação ao escolher as charges políticas como carreira, mas a ignorância cria coragem, e o exem-plo de Borgman fazia tudo parecer possível”. Mas nem os estudos

Além de desenhar cartuns para o Kenyon Collegian, Watterson também publicava

suas ilustrações nos anuários da turma.

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# Capítulo 2

O Mundo Mágico de Calvin e Haroldo

de ciência política na faculdade ajudaram muito os desenhos do cartunista. Ele lembra que leu Platão, Maquiavel, Hobbes e Locke, mas descobriu que isso fornecia “pouca percepção sobre a crise de combustível de 78...”. Nem tudo foi desperdício, no entanto: “...mas um dos autores me forneceu o nome para um personagem de história em quadrinhos alguns anos depois”.

Perto de se formar, o cartunista selecionou “algumas seis charges que faziam sentido” dos quatro anos de desenhos no Kenyon Collegian e enviou para jornais com a esperança de conse-guir um trabalho. Em uma virada inesperada do destino, ele con-seguiu um contrato de seis meses no Cincinnati Post, jornal rival da publicação onde Jim Borgman trabalhava.

O único problema é que Watterson não tinha talento para ser chargista político e raramente conseguia que algum desenho fosse publicado. Como ele próprio escreveu na introdução de The Com-plete Calvin and Hobbes, o trabalho foi um desastre desde o pri-meiro dia. Ele teve várias ideias rejeitadas e começou a fazer rascu-nhos cada vez mais bizarros na esperança de cumprir o prazo, até o editor falar para ele tirar um dia de folga: “a partir daí, só piorou”.

Desempregado ao fim do contrato, Bill se voltou para as his-tórias em quadrinhos. Mais especificamente sobre aquele cosmo-nauta que ele desenhava nas aulas de alemão no colegial. Já reba-tizado de Spiff, o astronauta era um baixinho tagarela (de certa forma parecido com Calvin), com um pequeno bigode, óculos de

aviador e um charuto. Spiff viajava pelo espaço em um dirigível junto com o seu assistente atrapalhado chamado Fargle. Watter-son enviou a tira para várias agências de distribuição, mas foi re-cusado por todas.

O ano era 1981 e ele estava sem perspectivas para o futuro - ainda faltavam quatro anos até Calvin e Haroldo “surgir” em sua vida. Enquanto isso, as contas precisavam ser pagas e ele arranjou um trabalho funcional criando layouts de propagandas de carros e supermercados por um pequeno salário. Sem desistir do sonho de ser cartunista, Watterson continuava a ter charges publicadas no Sun Herald. Além disso, desenhava histórias em quadrinhos

Uma das charges políticas de Watterson para o Cincinnati Post.

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em seu tempo livre, buscando criar alguma que fosse aceita por um syndicate.

Ser aceito por uma agência distribuidora e ter sua tira publi-cada em jornais não é tarefa fácil. Tudo começa com a enorme concorrência - os syndicates recebem milhares de novas tiras por ano. Muitas delas são ruins e logo descartadas. Quando a agência encontra alguma HQ que acha que vale a pena investir, o cartu-nista recebe um valor para produzir um mês ou dois de tiras. A obra é analisada e recebe sugestões do syndicate para ficar pronta para os jornais. Caso a tira seja aprovada, um editor é designado para o cartunista e um pacote inicial com as melhores histórias é preparado para ser vendido.

O caminho até essa etapa é longo, e não significa que a bata-lha está vencida – também é preciso que os jornais aceitem com-prar a tira. Existe pouco espaço para as histórias em quadrinhos nos veículos, e o mesmo já está repleto de tiras populares que podem se manter por décadas na publicação. Para uma nova tira entrar é preciso que uma velha saia. E se a novata não conquistar o gosto do público, é a primeira a ir embora quando uma nova HQ aparecer. Levando em conta que tudo dê certo, a tira é publicada em alguns jornais e os lucros são divididos meio a meio entre car-tunista e syndicate, o que geralmente não rende muito para o ar-tista. Pouquíssimos atingem o sucesso, ganhando muito dinheiro seja pela quantidade de jornais em que a tira é publicada ou com

o lançamento de coletâneas em livro e a possibilidade de licenciar os personagens para outros produtos e mídias.

Bill Watterson continuou a desenhar e enviar tiras para os syndicates. A maior parte delas nunca “viu a luz do dia”. Em março de 1982, no entanto, ele começou a mandar a história In The Dog House, o pequeno embrião do que viria a ser o famoso Calvin e Haroldo. A tira possuía diversos personagens. Um deles era um menino chamado Marvin que tinha um tigre de pelúcia com o nome de Hobbes que “ganhava vida” com a sua imaginação. O United Features Syndicate mostrou interesse em continuar vendo trabalhos do artista, e receberam Fernbusterville, uma nova versão da tira, com menos personagens, mas que ainda mostrava outras pessoas além de Marvin e Hobbes. O syndicate não gostou da tira propriamente dita, mas se interessou pelo menino com o tigre de pelúcia e pediu que ele desenvolvesse uma tira focada neles.

No começo, Watterson teve certa apreensão em fazer uma história focada em uma criança, em parte por causa da longa som-bra que Peanuts tinha causado no gênero. No entanto, conforme desenhava, a tira foi evoluindo naturalmente. “Tornou-se muito mais fácil de escrever o material”, o cartunista contou anos depois para a revista Honk!. “As personalidades deles expandiam fácil, e isso é uns 75% de todo o trabalho. Se você tem as personalidades, você os entende e os identifica; você pode coloca-los em qualquer situação e ter uma boa ideia de como eles vão responder”, analisa

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# Capítulo 2

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Watterson. “Aí é só uma questão de lixar e polir as piadas. Esses dois personagens me deram um “click” quase imediato e eu me senti bem confortável trabalhando com eles”.

Watterson continuava lapidando o que se tornaria uma das tiras de maior sucesso do planeta. Em julho de 1983, o menino teve seu nome mudado para Calvin, porque uma HQ chamada Marvin, de Tom Armstrong, havia sido lançada e Bill não queria confusões sobre isso. Anos mais tarde, ele falaria que os nomes Calvin e Hobbes foram homenagens do tempo em que estudou ciência política em Kenyon College. Calvin era uma referência a John Calvin (João Calvino), o teólogo protestante que acreditava em predestinação. Hobbes era uma referência a Thomas Hobbes, filósofo inglês com uma visão negativa da natureza humana. Rich West, porém, amigo de Watterson desde os tempos da faculdade, tem uma versão um pouco diferente. “Isso não é verdade, a liga-ção entre os dois nomes não foi natural”, ele contou a Nevin Mar-tell para o livro Looking for Calvin and Hobbes. “A tira não veio da ideia de que os dois personagens teriam nomes com referência a pensadores filosóficos. De qualquer forma, Hobbes foi definitiva-mente uma homenagem – e talvez um pouco de ironia – para seu diploma em Kenyon. Calvin foi uma coincidência”.

A tira foi revisada, ganhou o nome de Calvin and Hobbes e es-tava perto do formato que conheceria o sucesso. Calvin já era o ga-roto baixinho que conhecemos, mas possuía um cabelo tijelinha

que cobria seus olhos. Haroldo e a ideia das duas versões do tigre – pelúcia e real - já estavam ali também. Os pais do menino e Su-sie, a colega de classe e vizinha, completavam o elenco principal.

Watterson reenviou a história para o United Features Syndi-cate e recebeu o contrato de desenvolvimento para produzir certo número de tiras. A direção da agência, responsável por selecionar as tiras, gostou e viu potencial em Calvin e Haroldo. Porém, na-quela época, eles representavam Peanuts e Garfield, que traziam uma enorme quantidade de dinheiro para a empresa, e estavam sob pressão para arranjar outra HQ “das grandes”. Para determi-nar qual das tiras que tinham em mãos era a com maior potencial comercial, o syndicate usou grupos de pessoas para dar notas e classificar as obras. Calvin e Haroldo, surpreendentemente, não se saiu bem e acabou sendo rejeitado.

Mas, alguns meses depois, o United Features pensou em ou-tros planos para Watterson. Eles obtiveram os direitos de um per-sonagem robô chamado Robotman e “pensaram que talvez eu pu-desse colocá-lo na minha tira, usando a imaginação de Calvin ou algo assim”, lembra o cartunista. O objetivo era expor o robô em uma HQ e criar um grande programa de licenciamento em cima dele, fazendo brinquedos para crianças. Caso Bill aceitasse, Calvin e Haroldo seria pego pelo syndicate e ele finalmente conseguiria o trabalho com que sempre sonhou. Mas Watterson possuía uma posição bem firme a respeito disso, conforme escreveu na intro-

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dução de The Complete Calvin and Hobbes. “Por mais que eu quisesse o emprego, era difícil decidir o que me ofendia mais – escrever e desenhar material para um personagem que não era meu, ou criar uma tira de quadrinhos com a proposta de anunciar um produto comercial”.

Apesar de ter sido rejeitado, Watterson nunca havia chegado tão perto de conseguir emplacar sua tira. Voltou para o trabalho de criação de layouts, mas decidiu tentar outras agências de distribuição. Em fevereiro de 1984, en-viou à criação para o Washington Post Syndicate, mas sem sucesso. Em novembro do mesmo ano, contatou o Uni-versal Press Syndicate (UPS). Lee Salem, editor da agência na época, se encantou. “Eu fiquei tão impressionado pelo trabalho que tive que colocar de lado para poder olhá-lo mais tarde e ver se minha reação inicial era justificável”, lembra ele. Depois de receber o pedido e enviar mais amostras da tira, Watterson estava pronto para assinar o contrato em março de 1985. Porém, algumas pendências com o United Features Syndicate precisaram ser resolvi-das – Bill teve que devolver os mil dólares que havia rece-bido para poder rescindir o contrato de desenvolvimento assinado anteriormente. Feito isso, Bill Watterson estava oficialmente ligado ao Universal Press Syndicate, a casa de Calvin e Hobbes ao longo de seus dez anos.

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Para o leitor que não está familiarizado com as histórias de Calvin e Haroldo (e eu certamente espero que esse livro desperte o desejo), é essencial conhe-cer os personagens e o modo de como eles interagem dentro da HQ. Antes de saber o que aconteceu com Bill Watterson após ter assinado o contrato para es-crever e desenhar Calvin and Hobbes, esse subcapítu-lo abordará os personagens e suas relações.

Calvin e Haroldo é uma tira com poucos per-sonagens, principalmente se comparada a outras de enorme elenco como Pogo e Peanuts. As histórias sempre giram em torno de Calvin e os personagens secundários estão diretamente ligados a ele.

Calvin é um garoto de seis anos que aparente-mente é uma criança como as outras – e semelhante à maioria dos leitores, o que causa identificação. Ele não gosta de ter que tomar banho, dormir cedo, acor-dar de manhã para ir à aula enquanto poderia ficar lendo quadrinhos ou assistindo a desenhos animados e geralmente reclama da comida da mãe (mas come

Os personagens

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com gosto quando acredita ser algum tipo de alimento aliení-gena ou nojento de alguma forma).

A diferença é que Calvin é hiperbólico, exagerado, um ga-roto que quer tudo do seu jeito e não mede esforços para isso. Nas palavras de Watterson, “Calvin é energético, ousado, sem-pre procurando viver no limite. Ele vive inteiramente no pre-sente, e faz tudo o que for possível para tornar os momentos

mais excitantes”. Outra coisa que diferencia Calvin das demais crianças é saber articular seus pensamentos e opiniões de ma-neira adulta, mesmo quando seus desejos são infantis e banais, como... querer um lança-chamas. Para Watterson, a maioria dos humanos envelhece sem crescer, e dentro de cada adulto há um garoto mimado que quer tudo do seu jeito; Calvin representa essa imaturidade que é da natureza humana.

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Calvin odeia ter obrigações e recusa a autoridade de uma ma-neira geral, se questionando e argumentando o porquê de ter que fazer o que os pais mandam ou de ser obrigado a estar na escola. Claro que isso gera muitas peripécias de sua parte, inventando mo-dos de não fazer a lição de casa, se escondendo na hora de tomar banho ou tentando prender a babá do lado de fora da casa para não ter que dormir cedo.

O garoto é filho único e mora com os pais, mas é o seu tigre (e melhor amigo) Haroldo com quem ele mais interage. Haroldo (Hobbes, no original, em homenagem ao filósofo) é o responsável

pela “mágica” da tira. Na presença de Calvin, o tigre é um persona-gem “real”: os dois conversam, brincam, correm atrás um do outro. Para as outras pessoas, porém, Haroldo não passa de um tigre de pelúcia. “Eu não gosto de fazer muita análise sobre isso”, contou Watterson na entrevista para a Honk! em 1987. “Quando Haroldo é um tigre de pelúcia em um painel e vivo no outro, eu estou jus-tapondo a versão “adulta” da realidade com a versão de Calvin, e convidando o leitor a decidir qual é mais verdadeira”.

Watterson abordou o assunto novamente no livro Os Dez Anos de Calvin e Haroldo, em que escreveu: “O assim chamado

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A terceira tira de Calvin e Haroldo, a primeira aparição das “duas versões” de Haroldo.

“truque” da minha tira – as duas versões de Haroldo – é às vezes mal entendido”. O criador do personagem não vê Haroldo como um boneco que ganha vida por milagre quando Calvin está por perto ou como um produto da imaginação do garoto. Na verdade, ele prefere não discutir isso. “A natureza da realidade de Haroldo não me interessa, e cada história dá voltas para evitar resolver a questão. Calvin vê Haroldo de uma maneira, e todo mundo mais vê Haroldo de outra maneira. Eu mostro duas versões da realidade, e cada uma faz sentido completo para o participante que a vê”. Para o autor, isso acaba sendo uma metáfora de como a vida funciona.

“Nenhum de nós vê o mundo exatamente da mesma maneira, e eu apenas desenho isso literalmente na tira. Haroldo é sobre a na-tureza subjetiva da realidade do que sobre bonecos criando vida”.

Haroldo é o companheiro de Calvin em todas as suas aventu-ras e participa das invenções do garoto, como o clube que criaram para atazanar as garotas da rua (no caso, representadas apenas pela vizinha Suzie). Ou então no Calvinbol, um esporte que o próprio Calvin criou, já que ele não se sentia à vontade com as regras e organizações de outras modalidades. O jogo possui apenas duas regras: um, não existem regras; e dois, você nunca pode jogar da

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mesma maneira duas vezes. Jogado com bandeiras, máscaras e bolas de todos os tipos, Calvin e Haroldo inventam novas regras à medida que o jogo se desen-rola tentando tirar melhor proveito da situação. No fim, o que vale é a diversão, já que determinar quem venceu seria difícil quando o placar é “Q a 12”.

Calvin também se diverte com brinquedos que geralmente são genéricos (como carrinhos), o que ajuda a tira a não ficar datada, e servem apenas para explorar a imaginação do garoto. O maior exemplo disso é a sua caixa de papelão vazia, que logo vira um metamorfoseador, duplicador ou máquina do tempo. “Uma caixa de papelão se torna uma série de gran-des invenções com um pouco de imaginação”, escreve Watterson em Os Dez Anos de Calvin e Haroldo. Du-rante o inverno, a criatividade do garoto se volta para os bonecos de neve. Seus modelos são sempre criatu-ras abomináveis que geralmente tem um trágico des-fecho. Eles são atropelados, levam tiros de canhão ou acabam sendo devorados por bonecos maiores. Por vezes, ele ainda escolhe perturbar o pai, fazendo bo-necos simulando uma greve contra o “governo” dele como pai ou bloqueando a garagem com algum outro tipo de criação.

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Quando Calvin está brincando sozinho ou entediado durante a aula, sua imaginação o leva para diferen-tes lugares e ele se “transforma” em diversas coisas, como crocodilos, tu-barões, robôs, um raio-X humano, ou dinossauros (talvez o único assunto que realmente desperte o interesse do garoto). Com tantas fantasias, Calvin acaba criando completos alteregos

em seu dia a dia. Entre outros, estão o Cosmonauta Spiff, o Homem-Estu-pendo e Tracer Bullet, cada um dese-nhado em um estilo diferente e com suas próprias características.

O Cosmouta Spiff é uma sátira do gênero espacial, ao estilo de Flash Gordon, com destaque para as paisa-gens e bastante ação. “A narração de Flash Gordon é bastante exagerada,

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então eu faço Spiff descrever seus próprios fei-tos com uma busca similar por superlativos de tirar o fôlego”, escreve Watterson em Os Dez Anos de Calvin e Haroldo. “As tiras de Spiff são limitadas em potencial narrativo, mas são di-vertidas de desenhar. Os planetas e monstros oferecem grandes possibilidades visuais, espe-cialmente as tiras dominicais.”

Já o Homem-Estupendo é o super-herói que Calvin criou para resolver situações que ele

não consegue lidar, como evitar fazer lição de casa ou lutar contra a babá Rosalyn para não ter que dormir cedo. Como é comum nas HQs de super-herói, Watterson desenha os quadros alternando os ângulos de visão e fazendo uso de sombras.

Tracer Bullet é um alterego pouco usado, mas bem interessante. Calvin assume o papel de um detetive particular dos anos 1940 ou 1950. As histórias adquirem um tom film noir,

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com bastante uso do preto, e o garoto narra suas ações de ma-neira sofisticada, interpretando o papel. Esse alterego não costu-ma aparecer muito, mas Bill Watterson explica que “as histórias de Tracer Bullet consomem muito tempo para escrever, então eu não as tento com muita frequência. Eu não sou nada familiar com film noir ou livros de detetive, então essas são apenas sátiras dos clichês do gênero”.

Enquanto Calvin é fantasioso e acredita que o mundo gira ao seu redor, Haroldo faz o contrabalanço, sendo um personagem

mais “pé no chão”. Segundo Watterson, “Haroldo é realmente difí-cil de definir, e, de alguma maneira, eu me sinto relutante em fazer isso. Existe alguma coisa um pouco peculiar sobre ele que, espero, não seja categorizada de imediato”. O tigre é sensato, digno, e se orgulha de não ser humano, principalmente quando debate com Calvin o lado ruim da natureza humana.

Ao desenhar Haroldo, Watterson buscou preservar o seu lado felino, tanto na movimentação física quanto na atitude, e não dei-xar o humor acontecer apenas por meio do seu comportamento

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“humano”. O tigre foi bastante inspirado em uma gata chamada Sprite que o cartunista teve à época. “Sprite não apenas forneceu o corpo longo e as ca-racterísticas faciais de Haroldo, ela também deu o modelo de sua personalidade”, lembra Watterson. Com uma “tendência enervante de aparecer do nada em alta velocidade”, ela foi a inspiração para a ideia de Haroldo dar um bote para receber Calvin quando ele chega da escola.

Watterson também tomou um cuidado espe-cial para Haroldo não se tornar o protagonista da HQ. “Personagens animais tendem a receber mais atenção. Sempre há o risco dele fugir com a tira”, diz o cartunista. “Em Peanuts, Snoopy se tornou o protagonista. Você tem que ficar de olho nesse tipo de coisa para ter certeza de que o animal não está mudando a tira para uma direção que você não quer ir”.

Longe de fugirem com a tira para qualquer lu-gar, os pais de Calvin nunca receberam nomes por-que a importância deles para a HQ é apenas serem o pai e a mãe de Calvin. O pai de Calvin trabalha durante os dias de semana e adora andar de bicicle-ta, acordando cedo até nos finais de semana de frio

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para dar uma volta – levando Calvin a se perguntar como ele sabe diferenciar os dias de trabalho dos de lazer. Watterson usou um exemplo bem próxi-mo de si para construir o personagem. “O pai de Calvin é uma sátira do meu próprio pai”, diz o au-tor. “Qualquer tira sobre como o sofrimento ‘cons-trói caráter’ é normalmente uma transcrição exata das explicações do meu pai de por que estávamos todos gelados, exaustos, famintos e perdidos em viagens de acampamentos. Essas são coisas mui-to mais engraçadas depois de vinte e cinco anos”. Qualquer um familiarizado com Calvin e Haroldo sabe que o pai de Calvin sempre tenta ensiná-lo a lição de que mesmo que alguma coisa ruim acon-teça, a situação vai, pelo menos, “construir o seu caráter”. Isso inclui as diversas vezes que o pai leva a família para acampar. Além de estar quase sem-pre chovendo, o pai é o único animado em acordar cedo e viver no meio da natureza, enquanto Calvin e a mãe não veem a hora de voltar para casa.

Segundo Watterson, Snoopy se tornou o protagonista em Peanuts, algo que ele não

queria que se repetisse com Haroldo.

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Há pelo menos outras duas situações recor-rentes na tira em que Calvin interage com o pai. Uma delas é a pesquisa de opinião que Calvin faz para tentar influenciar o “governo” de seu pai. “Calvin não tem uma ideia totalmente clara de como seu pai continua pai, então ele usa sua pró-pria opinião para tentar influenciar a política com estatísticas”, escreve Watterson em Os Dez Anos de Calvin e Haroldo. O pai sempre está mal nas pes-quisas e Calvin o importuna dizendo que se tivesse a liberdade para dormir tarde ou ganhasse mais sobremesas isso mudaria, mas o pai nunca cede.

Em contrapartida, o pai adora zombar de Calvin dando respostas absurdas para as suas perguntas. Calvin faz questões que qualquer criança curiosa faz. O pai, não sabendo responder, prefere inven-tar. Assim, o vento surge dos espirros das árvores, os bebês são comprados em lojas e o gelo flutua porque quer se aquecer perto do sol.

Já a mãe de Calvin não tem uma inspiração real declarada. Ela é responsável pela casa e por educar Calvin. Em uma das tiras, o pai de Calvin fala para o garoto que a mãe costumava trabalhar antes dele nascer, mas no geral esse assunto não

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é abordado. Ela dá duro no trabalho doméstico e para preparar refeições, apesar do garoto estar longe de reconhecer seu esforço. Calvin geralmen-te reclama da comida, e só fica animado quando acredita que é alguma coisa nojenta ou vinda de outro planeta.

Na maior parte do tempo, vemos a mãe de Calvin está o disciplinando. Ela sempre está pro-curando-o para dar banho ou acordando o garoto para fazer com que ele chegue ao ponto de ônibus sem se atrasar. Raramente a vemos em momen-tos calmos, e quando acontece é antes de Calvin

aprontar alguma coisa e tirar o seu sossego. “Logo no começo, os pais de Calvin foram criticados pelos leitores por serem pouco amorosos e des-necessariamente sarcásticos. Na ocasião, eu acho que era incomum uma tira de jornal se concen-trar nos aspectos exasperantes de crianças sem uma porção de abraços e sentimentalismos para suavizar”, lembra Watterson. Mas ele explica que na tira só vemos um lado dos personagens. “Nós normalmente só vemos os pais de Calvin quando eles estão reagindo ao garoto, então como perso-nagens secundários, eu tentei mantê-los realistas, com um senso de humor razoável a respeito de terem um filho como Calvin. Eu acho que eles fa-zem um trabalho melhor do que eu faria”.

Quem não dá tanto trabalho para os pais é Susie Derkins, a vizinha e colega de sala de Cal-vin - ela é o oposto do garoto. Susie foi parcial-mente inspirada em Melissa Richmond, a mulher que Watterson conheceu ainda no colégio e com quem se casou em outubro de 1983. Nas palavras

dele, Susie é sincera, séria e inteligente – o tipo de garota pela qual ele era atraído na escola e com quem acabou se casando. “Derkins”, in-

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clusive, era o nome de um cachorro da família da esposa. Susie leva a escola a sério e é uma criança comportada de ma-

neira geral – ela sempre se recusa a passar as respostas para Calvin durante as provas (ou dá respostas absurdas, que o garoto aceita de pronto). Ela gosta de tomar chá com seus próprios bichos de pelúcia, especialmente o coelho Mr. Bun, mas ele não “cria vida” como Haroldo.

A relação de Susie com Calvin se dá por contraste. “Eu sus-peito que Calvin tem uma leve paixonite por ela e a demonstra tentando irritá-la, mas Susie é um pouco enervada e repelida pela

esquisitice de Calvin”, escreve Watterson. “Isso encoraja Calvin a ser ainda mais estranho, então é uma boa dinâmica”. Calvin sem-pre consegue fazer Susie se sentir enojada na hora do almoço dizendo que trouxe catarro, sanduíche de olho de lula ou outra coisa nojenta para comer. Watterson diz que levou algum tempo para pegar o jeito da relação dos dois, já que no começo as tiras focavam demais no conflito amor e ódio e exageravam na tensão quase romântica. Com o tempo, porém, o cartunista começou a deixar a personalidades dos dois rebaterem e as histórias fluíam das visões diferentes dos personagens.

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Susie ainda é perseguida pelo clube “Abaixo as Meninas Sebo-sas”, que Calvin criou com Haroldo para provocar as meninas da vizinhança – ou seja, Susie. O garoto sempre busca acertar bolas de neve (no inverno) ou bexigas d’água (no verão) na menina, mas os planos nunca dão certo. Calvin sempre subestima Susie, que acaba contornando a situação e levando a melhor sobre o garoto.

Calvin e Susie estudam na mesma sala, comandada pela Srta Wormwood. A professora já tem certa idade e é a responsável por aguentar a rebeldia e falta de atenção de Calvin na sala de aula. Watterson diz que nas tiras “nós vemos sugestões de que ela está esperando para se aposentar, que fuma demais, e que toma muitos remédios. Eu acho que ela acredita seriamente no valor da edu-cação, portando nem é preciso dizer que é uma pessoa infeliz”. Frequentemente, a Srta Wormwood manda Calvin para a dire-toria, onde ele encontra Spittle. O diretor raramente fala, apenas aparece com um cara de cansaço enquanto Calvin tenta dar uma explicação absurda para suas atitudes.

Em geral, as outras crianças da escola não tem nome e não aparecem muito, a não ser Moe. Esse é o garoto que faz bullying em Calvin – ele está sempre batendo no garoto e roubando seu dinheiro do almoço. Watterson diz que Moe representa todos os cretinos que ele conheceu. “Ele é grande, burro, feio e cruel. Eu me lembro que a escola estava cheia de idiotas como Moe. Eu acho que eles se multiplicam em pisos úmidos de vestiários”, escreve

o autor em Os Dez Anos de Calvin e Haroldo. Na maioria das ve-zes, Calvin não confronta Moe. Em uma ocasião, porém, ele leva Haroldo consigo na esperança que o tigre irá devorar o valentão. Como Calvin está cheio de confiança ao encarar o grandalhão, Moe desconfia que alguém está observando e Calvin se safa.

Outra pessoa de quem Calvin consegue por ventura se safar é Rosalyn, a babá que cuida dele quando os pais saem para jantar. Apesar do sofrimento que é lidar com o garoto, ela faz isso para poder pagar a faculdade. O seu preço sempre aumenta e Rosalyn recebe o dinheiro adiantado, já que nenhuma outra pessoa aceitar

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tomar conta de Calvin. Ela é rígida e tem pouca paciência, o que a faz ser “provavelmente a única pessoa de quem Calvin tem medo”, segundo Watterson. O autor não imaginava que fosse usá-la na tira mais de uma vez. “Eu a coloquei numa tira dominical bem no começo, sem nunca pensar nela como um personagem regular, mas sua intimidação sobre Calvin me surpreendeu, então ela fez aparições desde então”. 

As duas primeiras visitas de Rosalyn para cuidar de Calvin são “vencidas” pela babá, que o tranca na garagem e ameaça ligar para os pais dele. A partir daí, Calvin só apronta. Ele a tranca para

o lado de fora da casa, faz intriga para o namorado dela pelo tele-fone e rouba a tarefa escolar da moça. Na última seção de histórias em que ela apareceu, porém, os dois conseguiram se entender. Ro-salyn negociou com Calvin que se ele não desse problemas para ela, ele poderia dormir meia hora mais tarde e eles jogariam um jogo da escolha do garoto. Calvin escolhe Calvinbol. A babá rapi-damente entra no espírito da brincadeira e os dois se divertem. No fim, Calvin vai dormir no horário combinado e os dois se enten-dem pela primeira (e última) vez.

Outros personagens chegaram a aparecer na tira, mas ne-

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nhum com muita importância, como um médico de Calvin, o barbeiro Pete, a professora substituta e o professor de educação fí-sica Sr. Lockjaw. Além deles, Watterson criou o Tio Max, irmão do pai de Calvin, mas era um personagem deslocado na história. “Eu lamento ter introduzido o Tio Max na tira. Na época, eu pensei que um novo personagem ligado à família abriria possibilidades de história: a família poderia ir visitá-lo, e aí por diante”, escreve Watterson em Os Dez Anos de Calvin e Haroldo. “Depois da his-

tória sair, eu percebi que eu não havia estabelecido muita identi-dade para Max, e que ele não revelava nada de novo em Calvin. O personagem, eu concluí, era redundante”. Havia ainda outro problema com a inclusão desse parente da família. “Também era muito incômodo que Max não podia se dirigir aos pais de Calvin pelo nome, e isso deveria ter me indicado que a tira não era pro-jetada para os pais terem relacionamentos adultos externos. Max desapareceu”.

Calvin e HaroldoWatterson havia assinado o contrato com o Universal Press

Syndicate. Novas tiras estavam em produção, os personagens começavam a se desenvolver e só faltava emplacar a tira no jornal. “Eu estava entusiasmado e morto de medo ao mesmo tempo”, lembra Watterson sobre ter assinado o contrato. Nos meses seguintes, ele redesenhou as tiras seguindo a “sugestão óbvia” do editor de tirar o cabelo da frente dos olhos de Calvin e as histórias mais fracas foram descartadas. Também criou ti-

ras dominicais, com formato maior de meia página e a cores. Enquanto a HQ era oferecida aos jornais, Watterson trabalha-va em novos materiais. Finalmente, no dia 18 de novembro de 1985, Calvin and Hobbes fez sua estreia aparecendo em trinta e cinco jornais dos Estados Unidos.

A primeira tira mostra Calvin capturando Haroldo, “vivo”, com um sanduíche de atum em uma armadilha para tigres. “Na época, eu pensei que fosse importante estabelecer como Calvin

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e Haroldo se juntaram, mas agora eu acho que isso foi desneces-sário”, analisa Watterson. Somente na terceira tira é que o leitor descobriria que, sem estar sozinho com Calvin, Haroldo era visto apenas como um bicho de pelúcia.

Após um mês de tira, os personagens principais já haviam aparecido, mas as personalidades de Calvin e Haroldo ainda não estavam completas. Watterson diz que “no começo de uma tira de jornal, os personagens são definidos de forma vaga, e podem se desenvolver em quase qualquer direção. Isso é um pouco exci-tante, mas o cartunista pode se prender em cantos se não tomar

cuidado. Os personagens são estabelecidos pelos seus atos, então é importante fazer escolhas que não limitem a tira mais tarde”. Ten-do escrito apenas alguns meses de material, ele ainda conhecia vagamente seus personagens, e isto o fez criar histórias que não levariam a lugar nenhum.

Um desses casos é o já citado Tio Max, irmão do pai de Cal-vin que não acrescentou nada à história. Outro exemplo nas tiras iniciais de histórias sem rumo definido se dá quando Calvin vai acampar com os Escoteiros Lobinhos. “Eu pensei originalmente que as caminhadas e os acampamentos poderiam oferecer algu-

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mas histórias humorísticas, mas a situação sempre era desajei-tada”, analisa Watterson. “Calvin e Haroldo precisavam estar no seu próprio mundo, então colocar uma tropa de garotos em volta deles não fornecia muito material”. O autor abandonou essas tiras ao perceber que elas iam contra a personalidade de Calvin, e que, de toda maneira, ele não era o tipo de garoto que se juntaria a um grupo. Por fim, acabou encontrando uma forma melhor de dese-nhar Calvin longe de casa. “Mais tarde eu mandei Calvin acampar com a sua família, e isso se encaixa muito melhor no mundo da tira”, diz Watterson.

Calvin e Haroldo finalmente estava nos jornais e Bill Watter-son havia conseguido o seu emprego dos sonhos. Mas Lee Salem, seu editor, lhe aconselhou sabiamente a não largar o emprego diá-rio fazendo layouts. Muitas tiras acabam depois de alguns anos ou meses por não ter um apelo de público ou até pela falta de ideias originais do cartunista para a tira. Além do mais, a tira novata é a primeira a ser descartada caso alguma outra com potencial apa-reça porque o jornal já está cheio de tiras populares. Outra razão para manter o emprego decorre da grande quantidade de jornais assinantes necessária para que o cartunista ganhe um salário com o qual consiga viver.

Apesar dos avisos, Watterson resolveu correr o risco e largou o emprego após três meses de tira, quando os ganhos com Calvin e Haroldo se tornaram equivalentes ao do trabalho funcional. “Eu

imaginei que se Calvin e Haroldo desse errado não seria porque eu estava trabalhando nas tiras apenas nas noites e finais de se-mana”, lembra Watterson em The Complete Calvin and Hobbes. Alguns meses depois, ele também deixou de fazer charges para o Sun Herald.

O tempo ia passando e a decisão de Watterson parecia ter sido acertada. Cada vez mais jornais se tornavam assinantes. Após seis meses, o Plain Dealer, da cidade onde Bill Watterson morava, pegou a tira. “Foi emocionante quando eu finalmente pude ver Calvin e Haroldo impresso todo dia. Eu finalmente me senti como um cartunista de verdade”, lembra Bill.

Após um ano, a tira estava em 160 jornais e Bill já preparava seu primeiro livro de coletânea – “Calvin and Hobbes” – lança-do em abril de 1987. Ele se tornou um dos livros mais vendidos da época e ajudou a impulsionar a tira. Depois de um ano e seis meses de quando tudo começou, o número de jornais assinantes pulou para 300.

Watterson estava feliz com o sucesso da tira, mas não esta-va preparado para a atenção que lhe estava sendo dada. Ele logo passou a receber cartas de fãs pedindo autógrafos e arte original. “Cartunistas são celebridades de um nível bem baixo, mas qual-quer quantidade [de atenção] é estranha”, relata Watterson. Aves-so à fama, ele começou a se sentir incomodado. O cartunista não gostava de se expor publicamente, e havia concordado em fazer

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apenas algumas entrevistas e aparições para promover a tira. “Além de não gostar da diminuição de privacidade e da grande sensação inibitória de estar sendo vigiado, eu dava valor a minha vida chata e anônima”, diz Watterson. “Na verdade, eu não via como eu poderia escrever honestamente sem ela”.

Ainda em 1986, Watterson e a esposa se mudaram para Hud-son, Ohio. Ele mudou o seu número de telefone, parou de dar en-trevistas e separou um quarto da casa só para seu trabalho. Dessa forma conseguia se concentrar na única coisa que importava em sua vida: Calvin e Haroldo. “Alguns repórteres levaram isso como um desafio pessoal para se intrometerem, mas no geral minha vida pacata me permitia concentrar no trabalho”, lembra ele.

O processo de trabalho do cartunista era bem solitário. Wat-terson trabalhava em casa e mandava as tiras via correio para se-rem aprovadas pelo syndicate. “Eu nunca tive a sensação de uma plateia lendo o meu trabalho”, lembra o cartunista. “Isso não era problema, já que me deixava preservar a ideia de que eu estava desenhando a tira principalmente para entreter a minha esposa. Para mim, o mundo de Calvin e Haroldo era muito pequeno e privativo”.

Em um período anterior à internet, e-mail e Photoshop, le-vava mais de uma semana para Watterson saber quais tiras se-guiriam em frente para receber tinta. O pior era quando alguma HQ vinha marcada como “não”. Era preciso escrever outras tiras e

esperar essas serem aprovadas. Os prazos que ele pensava estar em dia davam um passo para trás. No começo, muitas tiram eram re-cusadas. Watterson diz que nem sempre concordava, mas decidiu nunca argumentar sobre essas decisões. “Qualquer tira que preci-sasse de uma defesa não era algo que eu queria publicado”, escreve em The Complete Calvin and Hobbes. “Eu basicamente confiava no julgamento dos meus editores, e tendo eles como uma rede se-gura, eu frequentemente mandava ideias sobre as quais não estava certo para ver a reação deles”.

Watterson mantinha um padrão de qualidade alto, tendo por vezes jogado fora semanas de material que ele não considerava bom o suficiente. “A qualidade de uma tira é determinada pela quantidade de ideias na lata do lixo”, define o autor de Calvin e Haroldo. Ele diz que todos os cartunistas escrevem muitas tiras ruins e a eterna pressão pelos prazos pode fazer com que qualquer ideia seja publicada. A única solução é estar longe das datas finais para poder escrever um material melhor.

Todo o processo de criação se concentrava apenas em Bill Watterson, que logo foi consumido por Calvin e Haroldo. “Eu não estava procurando por uma vida balanceada naquela época, e não é preciso dizer que eu não encontrei uma. Ainda sim, eu não teria feito as coisas dessa maneira se não amasse o trabalho”. Watter-son gostava de ter esse controle sobre seus personagens e o senso artesanal da obra. Como escrever e desenhar eram um processo

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lento, ele buscava manter qualquer distração ao nível mínimo. Um dia de trabalho rendia em média seis tiras diárias ou uma dominical. No fim, apesar da grande quantidade de tarefas, ele sentia satisfação na qualidade das tiras e orgulho do padrão estabelecido dia após dia. “Eu também gostava da responsabilidade de saber que, para o suces-so ou o fracasso, tudo era meu trabalho”, escreve ele em The Complete Calvin and Hobbes.

Watterson se tornou ainda mais recatado depois de uma en-trevista para o Los Angeles Times em 1987. O cartunista falou sobre o fato de gostar de estar isolado de outras pessoas e de que a fama poderia arruinar seu trabalho. Após a entrevista, Bill avisou o seu editor Lee Salem que não falaria mais com a imprensa, pois achou o tom das perguntas insultante – no fim das contas, Watterson ain-da daria algumas poucas entrevistas. Ele também não fazia questão de aparecer para receber prêmios. Com a tira já aparecendo em 900 jornais pelo mundo e mais um livro de coletânea (“Tem Alguma Coi-sa Babando Debaixo da Cama”) na lista dos mais vendidos, o autor recebeu em 1988, entre outros, seu segundo prêmio Reuben Awards, da Associação Nacional de Cartunistas dos Estados Unidos. Como havia feito em 1986, ele não apareceu na cerimônia, deixando a hon-ra para a diretoria do Universal Press Syndicate – fato que se repetiria em todos os prêmio ganhos por Bill Watterson.

Nos anos seguintes, a tira se popularizou ainda mais, o que levou à inevitável discussão entre Watterson e o syndicate sobre o licencia- 85 #

“Como é feito – o fascinante processo revelado!”. Watterson tira sarro de si mesmo

em um cartum desenhado para a sua entrevista na revista Honk!, em 1987.

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mento da tira. Watterson não queria ver seus personagens saírem do mundo que criou para serem transformados em brinquedos. «É quase impossível fazer alguém entender porque, cinco anos na culminação dos sonhos da minha vida, eu estava pronto para dei-xar a tira e perder tudo em vez de ficar apavorantemente rico com produtos de Calvin e Haroldo”, escreve em The Complete Calvin and Hobbes. “Tudo que eu posso dizer é que eu trabalhei muito tempo para conseguir o trabalho e trabalhei duro depois que o consegui para permitir que outras pessoas fugissem com a minha criação depois da sua popularização”.

O impasse começou inclusive a afetar o trabalho de Watter-son que colocou o tema - de forma disfarçada – em algumas ti-ras. Em uma delas, Calvin faz um protesto sobre tomar banho: “não volto atrás naquilo que acho certo! Me recuso a abrir mão dos meus princípios!”. Porém, depois que sua mãe o coloca na banheira, ele chega à conclusão de que “eu não preciso compro-meter meus princípios porque eles não têm a menor influência no que acontece comigo mesmo”. Em outra HQ, dominical, Calvin “subitamente percebe que o mundo não tem matiz, saturação ou luminosidade” e os quadros não são coloridos. No fim, a explica-ção: “o problema é que você vê tudo em termos de preto e branco”, diz o pai de Calvin – da mesma maneira que o syndicate argu-mentava com Watterson, que desenhou isso literalmente na tira. Calvin responde com o pensamento do autor sobre o assunto - “às

vezes, é assim que as coisas são!”. Watterson explica que não teria desenhado as tiras se o material não se sustentasse sozinho ou se fosse incoerente com os personagens, “mas tiras como essas me ajudaram a rir do meu próprio problema em uma época que mui-to pouco disso parecia engraçado”.

Pelo contrato assinado, todos os direitos dos personagens pertenciam ao syndicate. Eles poderiam criar o que desejassem de Calvin e Haroldo ou inclusive mandar Watterson embora e contratar outro cartunista. Porém, eles sabiam que isso seria um erro e queriam a aprovação do autor para fazer os produtos. Mas Watterson jogava duro com essa questão. Ele estava pronto para parar de fazer a tira caso sua vontade de não ter a HQ licenciada não fosse aceita. Quando assinou o contrato com o syndicate, ele era um cartunista desconhecido e não tinha poder de barganha. Mas com o sucesso que Calvin e Haroldo atingiu, ele conseguiu fazer sua vontade prevalecer. Um novo contrato foi feito dando ao autor todos os direitos sobre os personagens que havia criado.

Após viver intensamente de Calvin e Haroldo por cinco anos e exausto com a briga pelo licenciamento, Watterson recebeu a oferta do syndicate para tirar dois períodos longos de férias de nove meses cada - o primeiro teve início no dia 5 de maio de 1991.

É raro cartunistas tirarem férias e isso tenciona o relaciona-mento entre o artista e os jornais. As tiras originais dão lugar a repetidas, que estão longe de ter o mesmo valor para os jornais

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e os leitores. E os editores, claro, não gostam de pagar duas vezes pelo mesmo material. Para serem justificadas, as reprises devem ser mais populares que as possíveis HQs substitutas e esse era o caso de Calvin e Haroldo. Alguns jornais inclusive traziam uma contagem regressiva para os leitores saberem quanto tempo falta-va para as tiras inéditas voltarem.

Watterson recebeu críticas por ficar esse tempo afastado. Ele rebateu dizendo que “alguns cartunistas podem cumprir seus pró-prios padrões de qualidade e estarem no campo de golfe ao meio-

-dia, mas não é esse o caso para todo mundo. Na minha opinião, qualquer pessoa criativa pode ser desculpada por algum tempo de folga ocasional para recarregar as baterias e perseguir outros interesses”.

As tiras originais voltaram no dia 2 de fevereiro de 1992, mas engana-se quem pensou que Watterson não causaria mais “problemas”. Ele escreveria depois que já esperava que Calvin e Haroldo acabasse em poucos anos, e qualquer coisa que quisesse fazer com a HQ teria que ser nesse momento. Durante as férias, o cartunista ficou fascinado com as tiras de domingo de Krazy Kat das décadas de 1920 e 1930, que ocupavam uma página inteira de jornal. Assim, ele veio com a ideia de mudar o formato das suas tiras dominicais. “Com frequência eu precisava eliminar diálogos ou simplificar desenhos para que eles se encaixassem no espaço arbitrário que o formato concedia”, diz Watterson. “Pensar que eu poderia desenhar uma tira melhor do que os meus leitores esta-vam vendo me irritava”.

O formato rígido foi feito para dar flexibilidade aos editores de jornais que poderiam cortar partes das tiras de domingo ou diminuí-las. Elas são desenhadas em três fileiras com divisão de quadros específica que não permite variação. Impresso em ta-

Calvin e Haroldo ganharam um tempo de folga com as férias do autor.

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manho total, o formato ocupa meia página de jornal. Como poucos veículos publicam uma HQ nesse tamanho, existe a opção de cortar a fileira de cima, reduzindo o tamanho para um terço de página. Assim, os dois primeiros quadros tem que ser escritos com piadas “descartáveis”, já que o cartunista deve pensar que nem todos os leitores terão acesso a eles. Também existe outra opção para ocupar ainda menos espaço. Todos os quadros são mantidos, mas são reduzidos drasticamente para ficar em um quarto de página.

A ideia de Watterson era vender a tira dominical apenas no formato de meia página e sem restrições de quadros - e o Universal Press Syndicate concordou, apesar de avisar que muitos jornais recusariam a HQ se não pudessem rearranjá--la. A agência provou-se certa e a tempestade veio. “Alguns editores ficaram furiosos. Eles me informaram que os car-tunistas não tinham que tomar decisão de espaço em nome deles”, lembra Watterson. “Eles ressaltaram que tinham acabado de pagar por nove meses de reprises. Eles argu-mentaram que, desde que pagaram pela tira, ela deveria

Exemplo de tira de domingo com limitação de quadros (remodelada para o formato de livro) e com liberdade de criação após a mudança de Watterson.

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servir às necessidades deles, não às minhas. Eles questionaram a minha familiaridade com o mundo real e se perguntaram se meu ego tinha algum limite. Eles ameaçaram cancelar outras ti-ras do Universal em retaliação por atacado. Eles insistiram que outras tiras populares teriam de ser canceladas para dar espaço à minha”, lista o autor. “Nesse último ponto, diversos cartunistas e juntaram a eles”.

Watterson possuía uma visão diferente dos editores e la-mentou que nenhuma das discussões se pautava na necessidade gráfica dos quadrinhos. Em Os Dez Anos de Calvin e Haroldo ele escreveu que não estava dizendo aos editores o que fazer, estava apenas estabelecendo as condições pelas quais venderia seu trabalho - e se alguém achasse as condições inaceitáveis, era livre para publicar outra coisa. “Qualquer pressão que [um edi-tor] sentisse para pegar a minha tira vinha dos leitores do seu jornal, e eu não peço desculpas por oferecer uma tira popular”. Para o cartunista, esse nem era o cenário ideal, já que ele visu-alizava que as seções de quadrinhos poderiam ser reprojetadas para dar mais espaço às tiras. Watterson estava mais uma vez lutando pela sua arte. Como a tira dominical no novo formato levava o dobro de tempo para ser feita e não foi aceita por al-guns jornais, ele estava, basicamente, travando uma disputa em que trabalharia mais para receber menos.

No fim das contas, a agência acabou cedendo na questão do

tamanho e a tira era vendida em meia página ou em um formato reduzido, mas sem as restrições dos quadros. Muitos jornais pe-garam a tira reduzida, mas Watterson não precisava desperdiçar quadros e podia projetar o espaço de forma mais eficaz. «Com este novo formato, eu desenhei muitas tiras que nunca poderia ter desenhado antes. Em algumas das minhas novas tiras dominicais, eu fui capaz de desenhar quadros grandes ou até vinte quadros pequenos, e isso abriu novas maneiras de contar uma história”. Watterson acredita que essa mudança levou a tira em uma nova direção e é uma das partes do trabalho da qual mais se orgulha. “Eu acredito que fui capaz de tornar o mundo de Calvin mais vi-vido e que tornei o espaço mais emocionante de se olhar. Essas não são preocupações sem importância, são o que fazem uma tira divertida de se ler”. Mais do que divertido, a pequena “revolução” de Bill Watterson foi uma satisfação pessoal. Ele diz que isso foi o mais próximo que conseguiu chegar da sua “visão de como uma tira em quadrinhos deve ser”.

Outra mudança que a tira sofreu ao longo dos anos - mas sem percalços - foi na aparência dos personagens. A diferença é notável do início da obra, principalmente nos dois primeiros anos, para o período restante. Calvin e Haroldo eram achatados no papel e menos elaborados. Com o tempo, foram ganhando uma forma mais tridimensional. «No começo, a tira tinha um vi-sual mais caricatural, plano. As fantasias eram desenhadas assim

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também. Em algum ponto, eu percebi que as fantasias podiam ser desenhadas em outros estilos e, na verdade, isso acrescentou uma camada engraçada à tira quando a imaginação parecia mais ‘realista’ que a ‘realidade’”, escreve Watterson. “À medida que as fantasias se tornavam complexas visualmente, eu precisei que os personagens fossem mais tridimensionais, para que eu pudesse desenhá-los de diferentes perspectivas. Isso gradualmente mu-dou a aparência deles». Haroldo, por exemplo, ficou mais esguio e felino, para que ele pudesse  funcionar tanto horizontalmente (se esgueirando ou dando o bote) quanto verticalmente (andan-do). «A tira se adaptou às suas necessidades por tentativa e erro, e agora as primeiras tiras parecem muito estranhas para mim», completa Watterson.

Apesar de ter conseguido o que queria – o controle sobre seus personagens e o formato maior na tira de domingo – Wat-terson encaminhava Calvin e Haroldo para o seus anos finais. A discussão sobre o merchandising havia feito Bill perdeu um pou-co o encanto sobre as histórias em quadrinhos e o ritmo em que trabalhava levava a uma vida desequilibrada. Dessa forma, Wat-terson não teria fôlego para levar a tira por muito tempo mais. Lee Salem, o editor, se recorda que “1992 foi o ano que nós sabí-amos com certeza de que ele iria parar”. O término ainda estava três anos distante, mas o Universal Press Syndicate já sabia que ele aconteceria em algum momento.

Entretanto, isso não diminuiu o volume de produção de Wat-terson. Além de se manter nos prazos para a publicação das tiras diárias e dominicais – que já apareciam em mais de 1800 jornais – os livros de coletânea continuavam sendo publicados, alguns trazendo comentários do autor, novas artes e histórias originais. Ao todo, seriam lançados 18 livros de Calvin e Haroldo. O últi-mo deles, The Complete Calvin and Hobbes, foi lançado em 2005 e contém três livros enormes – pesando mais de 10 quilos - com todo o conteúdo já criado para os personagens.

Em 1994 veio um novo balde de água fria para os jornais. Watterson iria tirar o seu segundo período sabático, começando no dia 3 de abril. Assim como na primeira vez, ele queria escapar do trabalho pesado e se dedicar à pintura, algo que havia desper-tado seu interesse, para recarregar as baterias.

As tiras originais voltaram no dia 1º de janeiro de 1995, no que seria o último ano de Calvin e Haroldo, embora somente Salem, seu editor, e algumas pessoas importantes do Universal soubessem disso. Algumas das HQs já traziam o tom de que as histórias estavam chegando ao fim. A mais marcante é a tira do-minical do dia 15 de outubro de 1995, em que Haroldo pergunta para Calvin “se as coisas boas durassem pra sempre, nós sabería-mos dar o valor que elas têm?”. Pouco depois, Watterson enviou uma carta para os editores dos jornais assinantes, publicada no dia 9 de novembro, anunciando o fim da tira:

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Eu vou parar com Calvin e Haroldo no final do ano. Esta não foi uma decisão fácil ou tomada às pressas, e saio com tristeza. De qualquer modo, meus interesses mudaram e acredito ter feito o possível de acordo com as obrigações de fechamentos diários e qua-dros pequenos. Estou ansioso para trabalhar num ritmo mais ponderado, com menos compromissos artísticos. Ainda não decidi sobre futuros projetos, mas meu relaciona-mento com o Universal Press Syndicate continuará.

É uma honra que tantos jornais publiquem Calvin e Haroldo e me orgulho disso. Agradeço seu apoio e indulgência durante a década passada. Desenhar a tira foi um privilégio e um prazer e agradeço a você por ter me dado esta oportunidade.

Sinceramente, Bill Watterson

A última das 3160 tiras foi publicada no domingo do dia 31 de dezembro de 1995. A essa altura, Watterson havia vendido 23 milhões dos livros de Calvin (o número ago-ra passa dos 30 milhões) e apareceu diariamente em cerca de 2500 jornais do mundo (só superado por Garfield e Peanuts). A última história traz Calvin e Haroldo prontos para descer uma montanha na neve com um trenó. Apesar da HQ ser a cores, Watter-son coloriu apenas o veículo e os personagens, deixando bastante branco nos quadros para refletir a ideia da tira.  “Tudo que era familiar desapareceu! O mundo parece novi-nho em folha”, começa Haroldo. “Um ano novo! Uma chance para recomeçar do zero”, responde Calvin. Haroldo fala novamente: “É como ter uma folha enorme e branca pra gente desenhar!”. “Um dia cheio de possibilidades!”, reflete Calvin, que continua: “O mundo é mágico, Haroldo, amigão...”. Apesar de fechar a história de Calvin e Haroldo, a tira se abre para mostrar as inúmeras possiblidades de recomeços da vida com a frase final de Calvin enquanto os dois descem montanha abaixo: “...vamos explorá-lo!”

 

# Capítulo 2

O Mundo Mágico de Calvin e Haroldo

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“Com a tira se aproximando de dez anos de publicação, eu senti que havia feito tudo que queria e que meus interesses esta-vam mudando”, escreve Watterson em The Complete Calvin and Hobbes sobre o fim na tira. “Eu não queria que Calvin e Haroldo caísse em repetições desanimadas como acontece com muitas ti-ras de longa duração. Eu estava pronto para perseguir diferentes desafios artísticos, trabalhar em um ritmo menos frenético com menos conflitos de negócios, e, não coincidentemente, começar a reestabelecer algum equilíbrio para a minha vida”.

Bill Watterson passou a se dedicar mais à pintura, um interes-se que adquiriu e cresceu nos últimos anos da tira. Apesar disso, ele reconhece que as histórias em quadrinhos são um meio úni-co, que atinge milhões de pessoas e oferece uma relação de longa duração entre o cartunista e o público. “As pessoas investem só alguns segundos lendo qualquer tira, mas o cartunista pode falar com os leitores por anos, e isso é uma quantidade incrível de aces-so à mente delas. É um privilégio muito raro ter o seu trabalho lido pelas pessoas todos os dias, ano após ano. Se você está incli-nado a ir além das piadas e dizer algo sincero, honesto e reflexivo, você tem uma tremenda oportunidade”.

Watterson nunca gostou da exposição que a fama lhe trazia e recusava a ideia de ser uma celebridade. Com o fim de Calvin e Haroldo, ele finalmente pôde desaparecer. A última entrevista que ele deu pessoalmente a um jornalista foi em 1989 e a última apari-ção pública aconteceu em 1990, em um discurso de graduação da Kenyon College, faculdade em que estudou. De lá para cá, alguns jornais já tentaram encontrar Watterson, como o Cleveland Plain Dealer, em 1998, ou o Cleveland Scene e o Washington Post, em 2003, mas sem sucesso.

O autor de Calvin e Haroldo voltou a responder perguntas em maio de 2005 por meio de uma ação promocional para o lan-çamento de The Complete Calvin and Hobbes. O syndicate esco-lheu 35 entre mais de 2500 perguntas que os fãs enviaram para Bill Watterson. O cartunista escolheu 15 para responder via e-mail, tratando questões como de onde vinha a inspiração para as tiras, a visão sobre os quadrinhos e as suas influências na pintura. Cinco anos depois, em 2010, concedeu outra entrevista por e-mail, res-pondendo algumas poucas perguntas para o Cleveland Plain De-aler, principalmente sobre o legado da tira. No ano anterior, 2009, Watterson não respondeu uma carta do escritor Nevin Martnell

Depois do fim

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para ser entrevistado pessoalmente para o livro Looking for Calvin and Hobbes. Antes disso, alguns textos do cartunista foram publi-cados, como a análise para o Wall Street Journal sobre a biografia de Schulz em 2007 e uma pequena introdução para uma coleção da tira Cul de Sac, de Richard Thompson, em 2008.

Bill Watterson conseguiu sua vida pacata de volta com o fim de Calvin e Haroldo, mas mostra humildade e orgulho pelo tra-balho que criou. “O fenômeno de Calvin e Haroldo foi uma da-quelas vezes em que os planetas se alinham. De alguma maneira tudo deu certo, e os leitores estavam prontos para a tira no mesmo momento em que eu estava pronto para desenhá-la”, escreve ele em The Complete Calvin and Hobbes. “Eu certamente não espero duplicar o sucesso ou amplo apelo da tira. Para ser honesto, ver os

planetas em linha me assusta e uma vez é provavelmente o sufi-ciente. Mas a experiência de escrever e desenhar Calvin e Haroldo mudou minha vida, e aquele nível de desafio e comprometimento será meu objetivo em qualquer coisa que vier a fazer. Eu realmente amei desenhar essa tira de história em quadrinhos, e sempre olha-rei Calvin e Haroldo com grande orgulho e afeição”.

“Eu me sinto confiante de que fiz a melhor tira de quadrinhos que eu poderia fazer”, conclui Watterson, que explica porque pa-rou de fazer a tira após dez anos. “Parecia um gesto de respeito e gratidão para com os meus personagens deixá-los em sua melhor forma. Eu gosto de pensar que, agora que eu não estou registrando tudo que eles fazem, Calvin e Haroldo estão por aí se divertindo ainda mais”.

Licenciamento da tiraTiras de histórias em quadrinhos podem render dinheiro.

Muito dinheiro. Os cartunistas recebem pela quantidade de jor-nais em que a tira aparece e pelos direitos dos eventuais livros de coletânea. Geralmente, esses valores são divididos em 50-50 entre

o syndicate e o artista, mas não é aí que estão os milhões de dólares para uma tira de sucesso.

É o merchandising feito com o licenciamento da tira que pode deixar o cartunista – e mais ainda o syndicate – milionários. Isso

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engloba qualquer produto que conte com alguma criação do ar-tista, sejam lancheiras, camisetas, bonecos, bichos de pelúcia, mo-chilas... Enfim, qualquer coisa. Os personagens são vistos como ótimos garotos-propaganda, já que possuem um grande apelo e nunca envelhecem.

Peanuts e Garfield, as duas maiores tiras de história em quadrinhos que já existiram em termos de número de jornais assinantes, não por coincidência são as duas que movimenta-ram a maior quantidade de dinheiro, inclusive levando seus au-tores, Charles Schulz e Jim Davis, a figurar na lista da Forbes dos “humoristas” mais ricos durante o final da década de 1980. Pe-anuts chegou a receber cerca de um bilhão de dólares por ano, enquanto Schulz levava de 30 a 40 milhões anualmente. Davis criou Garfield tendo em vista o sucesso (e o dinheiro) que Sno-opy rendia com seus licenciamentos. Hoje em dia, Garfield é a tira mais lida no planeta, com uma estimativa de que 260 mi-lhões de pessoas (cerca de 4% da população do mundo) leiam a história em quadrinhos diariamente. O número de produtos licenciados também é grande e variado, indo das tradicionais canecas e camisetas até cruzeiros temáticos e assentos de priva-da. Em 2004, estimou-se que os produtos de Garfield rendiam entre 750 milhões e um bilhão de dólares em 111 países.

O licenciamento é visto como o caminho normal para uma tira popular. Primeiro porque os syndicates existem para buscar

o lucro – que vem principalmente dos licenciamentos. Por isso que eles procuram tiras com potencial, para começo de conver-sa. Segundo, porque na nossa sociedade, na grande maioria das vezes, o “sucesso” está atrelado ao status de fama e a capacidade de ganhar muito dinheiro. Com os cartunistas é a mesma coisa, e, além de ter seus personagens divulgados em outros mercados (com a chance de atrair novos leitores), eles também podem arrecadar uma bela grana.

Com a popularidade que Calvin e Haroldo atingiu nos primeiros anos da publicação, logo se imaginou que o suces-sor de Peanuts e Garfield havia sido encontrado e que ela seria a próxima grande tira licenciada. O Universal Press Syndicate não poderia estar mais enganado, mas havia pouco separando a agência do pote de ouro.

O contrato de Watterson dava ao syndicate os direitos totais sobre seus personagens. Esse tipo de cláusula é comum, já que a corporação utiliza seu poder de barganha superior em desvan-tagem do cartunista. O artista fica encurralado: se recusar, ele pode tentar um improvável contrato melhor em outra agência, distribuir sua tira de forma independente, mas sem os contatos e a reputação do syndicate, ou arranjar outro trabalho. O cartu-nista iniciante se vê praticamente sem opções a não ser aceitar. Muitos nem encontram problema nisso, já que esperam que a tira seja licenciada e ganhem dinheiro extra. Com Watterson

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não seria assim, mas naquele momento de sua vida ele nem es-tava pensando nisso. “Na ocasião, eu não havia pensado muito em licenciamento e a questão não estava entre as minhas preo-cupações principais. Dois syndicates já haviam rejeitado Calvin e Haroldo, e eu me preocupava mais sobre as consequências contratuais se a tira fracassasse do que se a tira tivesse sucesso”, escreve o autor em Os Dez Anos de Calvin e Haroldo. “Ansioso pela oportunidade de publicar meu trabalho, eu assinei o con-trato, e só depois, quando a pressão de comercializar ressaltou minhas opiniões sobre a questão que eu entendi a encrenca em que tinha me colocado”.

Com os direitos da tira, o Universal Press Syndicate poderia fazer o que bem entendesse, como estampar Calvin e Haroldo em qualquer produto ou criar desenhos animados e filmes. Poderia até mandar Watterson embora e contratar outro artista, já que com os direitos dos personagens sendo do syndicate, o criador se torna, em tese, uma pessoa substituível. Mas o UPS sabia que, na prática, isso não era assim. Bill Watterson havia criado Cal-vin e Haroldo e era difícil imaginar outra pessoa desenhando a tira que possuía aquele mundo tão próprio. Tal atitude provavel-mente seria um desastre e mataria a sua HQ de tanto potencial. “Nós tivemos sorte que ele não ligou um dia e disse ‘vou embora’”, admite o editor Lee Salem. O syndicate tratava a questão do mer-chandising com cuidado para não desagradar o artista. A agência

recebia ofertas de licenciamento e as mandava para Watterson com a esperança de que ele aprovasse alguma delas.

As primeiras possibilidades de negócio apareceram antes mesmo da tira completar um ano – e, com o sucesso crescente de Calvin e Haroldo, só aumentaram. Após dois anos de discus-sões entre o artista e o syndicate, Watterson acabou concordan-do em criar um modesto calendário de 16 meses para os anos de 1988-89, mas perto das propostas recebidas, isso era quase nada. O produto vendeu bem e Watterson ainda criou outro para o

Cartum de Bill Watterson sobre a posição de desvantagem do cartunista na hora de assinar o contrato com o syndicate.

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Calendário de 16 meses de Calvin e Haroldo, um dos pouquíssimos

produtos licenciados por Watterson.▲

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ano seguinte, mas isso não foi o começo de uma enxurrada de itens licenciados como esperava o Universal Press Syndicate. Calvin e Haroldo teria pouquíssimos produtos oficiais, como uma camiseta com Calvin - baseada em uma tira de domin-go - para promover uma mostra sobre os 100 anos das HQs e os grandes quadrinhos dos Estados Unidos. Outro seria o livro Teaching with Calvin and Hobbes, que Watterson autorizou – com impressão limitada – devido ao pedido de uma professora que usava as tiras para ensinar crianças com dificuldades de aprendizado.

A “novela” ficou ainda mais absurda quando começaram a surgir produtos piratas de Calvin e Haroldo para suprir a de-manda. Camisetas com desenhos copiados das tiras ou com distorções dos personagens – com cenas obscenas ou referên-cias a drogas – se tornaram famosas. O UPS se aproveitou disso para pressionar Watterson a aceitar um programa limitado de licenciamento. Segundo o syndicate, seria mais fácil acabar com as mercadorias piratas se houvesse produtos oficiais. O autor, porém, se recusava a “negociar princípios” e não aceitou.

No começo de 1991, as discussões chegaram ao ponto máximo. Watterson queria ter o controle sobre a sua criação e a certeza de que nenhum licenciamento “pesado” acontece-ria. Sem essa garantia, ele estava preparado para encerrar sua carreira. O syndicate sabia que ele não estava blefando. Lee Sa-

lem lembra que houve muitas conversas na corporação sobre qual era o propósito de uma agência de distribuição. Por fim, tomaram a sábia decisão de que estavam no negócio para “atrair e cultivar talentos, então a última coisa que queríamos fazer era ter a reputação de destruir uma das maiores estrelas das últimas duas décadas”, disse o editor para o livro Looking for Calvin and Hobbes.

Após mais de cinco anos de disputa, o Universal Press Syn-dicate aceitou renegociar o contrato, dando a Watterson direito total sobre seus personagens. “E eu não irei licenciar Calvin e Haroldo”, enfatiza o autor no livro de coletânea de dez anos da tira. Isso significava que o UPS abria mão dos seus potenciais milhões de dólares para manter Watterson desenhando as his-tórias do garoto de seis anos e seu tigre.

Watterson é provavelmente o único cartunista que discutia com a sua agência de distribuição por essa questão. Geralmen-te, as brigas acontecem para que os artistas ganhem mais di-nheiro, não menos. Mas, no fundo, quais eram as razões de Bill Watterson para rejeitar de todas as formas a comercialização de sua história em quadrinhos?

O artista tratou a questão em seu discurso sobre os qua-drinhos na Ohio State University em 1989. Em 1995, deu um ponto final ao tema abordando as razões de sua posição sobre o merchandising no livro Os Dez Anos de Calvin e Haroldo. A

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saturação do mercado com os personagens é o primeiro motivo dado pelo autor. “Eu acredito que o licenciamento normalmen-te desvaloriza a criação original”, começa Watterson. “Quando os personagens de quadrinhos aparecem em produtos incontá-veis, o público inevitavelmente fica cheio e irritado com eles, e o apelo e valor do trabalho original são diminuídos”.

Watterson acredita que as mercadorias mudam a percepção do público sobre o que os personagens realmente significam. “Uma tira com muitas palavras, de vários quadros, com conver-sa extensa e personalidades desenvolvidas não se condensa em uma ilustração de caneca sem uma grande violação do espírito da tira”, escreve ele. O autor de Calvin e Haroldo acredita que o mundo de uma tira de jornal deve ser um local especial, com a sua própria lógica e vida. E, segundo ele, esse pequeno universo é mais frágil do que as pessoas pensam. “Quando tudo que é divertido e mágico é transformado em algo à venda, o mundo da tira é diminuído”. Watterson mostrava a preocupação de que qualquer movimento errado poderia destruir o valor especial de sua tira e ele não iria deixar que outras pessoas tivessem qualquer responsabilidade nisso. “Eu não quero que algum es-túdio de animação dê a voz de um ator a Haroldo, não quero alguma companhia de cartões usando Calvin para desejar um feliz aniversário às pessoas e eu não quero que a questão da rea-lidade de Haroldo seja decidida por um fabricante de bonecos”,

lista Watterson. “Calvin e Haroldo foi projetado para ser uma tira e isso é tudo que eu quero que ela seja. É o único lugar onde tudo acontece do jeito que eu pretendo”.

Outro motivo citado por Bill Watterson são os assisten-tes – algo que se torna praticamente inevitável devido a grande quantidade de trabalho para manter a tira diária e fazer todo o programa de licenciamento. Segundo ele, o cartunista deve se tornar um capataz de fábrica, delegando responsabilidades e supervisionando a produção de coisas que ele não cria. “Alguns cartunistas não se importam com isso, mas eu entrei no mundo dos cartuns para desenhar cartuns, não para comandar um im-pério corporativo. Eu me orgulho muito do fato de que escrevo cada palavra, desenho cada linha, coloco as cores em cada tira de domingo e pinto cada ilustração dos livros pessoalmente”.

Para Watterson, assim que a tira recebe um programa de licenciamento e assistentes para ajudar no trabalho, fica mais difícil fazer experimentos e levar a tira para novas direções. Isso encoraja uma suavidade para servir ao gosto de todos. Como consequência, existem até os cartunistas estabelecidos que nem se dão mais ao trabalho de desenhar a tira. Assistentes anôni-mos fazem o trabalho e o autor original da tira leva o crédito apenas assinando. “Além da desonestidade envolvida, esses car-tunistas mais uma vez encorajam a visão errada de que assim que os personagens estão inventados, qualquer funcionário me-

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díocre pode produzir o material de maneira automática”, disse Watterson em seu discurso de 1989.

Segundo ele, essas tiras são escritas por um comitê com o ob-jetivo que não avançar os personagens, mas mantê-los exatamente onde sempre estiveram. Sem se desenvolver, eles se tornam previ-síveis e, consequentemente, tão fáceis de escrever que um comitê pode fazê-lo. Os ilustradores possuem tarefa parecida: deixar cada desenho tão polido e perfeito que ele perde a individualidade. As-sim, não dá para saber quem está desenhando. “É uma produção de linha de montagem. É eficiente, mas deixa os quadrinhos sem opinião, repetitivos e sem graça. Nós precisamos ver mais criado-res tendo orgulho da sua criação e fazendo o trabalho pelos quais são pagos. Se escrever e desenhar quadrinhos se tornou um fardo para eles, vamos ver algumas aposentadorias precoces e espaço para novos talentos”, critica Watterson na continuação do discur-so. O artista se orgulha se de manter longe desses métodos, como escreveu em em Os Dez Anos de Calvin e Haroldo. “Minha tira é uma operação de baixa tecnologia, de um homem só, e eu gosto dela desse jeito. Eu acredito que é a única maneira de preservar o artesanato e manter a tira pessoal. Apesar do que alguns cartunis-tas dizem, aprovar o trabalho de outra pessoa não é a mesma coisa que você mesmo fazer”.

Todos os motivos apresentados por Watterson contra o licen-ciamento se resumem na ideia de que, para o autor, eles repre-

sentam a corrupção da integridade da tira. No fundo, o objetivo que todas as histórias em quadrinhos é entreter o leitor, mas algu-mas podem ir além e “ter um ponto de vista e um objetivo sério por trás das palavras”. Para Watterson, quando o cartunista está tentando falar honestamente e seriamente sobre a vida, ele tem a responsabilidade de pensar além de satisfazer cada capricho e de-sejo de mercado. Ele diz que “cartunistas que pensam que podem ser levados a sério como artistas enquanto usam os protagonistas para venderem cuecas estão se iludindo”.

Cartum de Watterson ironizando os cartunistas que usam assistentes para fazer todo o trabalho.

“Você desenhou outro lote para eu assinar? Excelente!”. ▲

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“Tiras de HQ deveriam ser tratadas como uma forma séria de arte, argumenta Watterson”

com as caretas de seus personagens. ▲

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O autor de Calvin e Haroldo acredita que os personagens per-dem a sua credibilidade quando começam a representar grandes marcas. A inocência e sinceridade dos personagens são corrom-pidas quando essas qualidades são usadas para vender produ-tos. A voz deles é cooptada pelas preocupações financeiras dos fabricantes de brinquedo, produtores de televisão e anunciantes. “O trabalho do cartunista não é mais o de um pensador original; seu trabalho é manter seus personagens lucrativos”, diz Watterson. Assim, é gerada a dúvida se os personagens dizem coisas porque realmente acreditam naquilo ou porque seus sentimentos vendem camisetas e cartões. “Com a sua integridade desaparecida, uma tira perde seu significado mais profundo”, escreve Watterson. Ele diz que o licenciamento deixou alguns cartunistas extremamente ricos, mas com uma perda considerável para o pequeno mundo precioso que eles criaram.

Watterson não queria que o mesmo acontecesse com o peque-no mundo que ele criou. “Minha tira é sobre realidades particulares, a magia da imaginação e a característica especial de certas amiza-des. Quem iria acreditar na inocência de um garotinho e seu tigre se eles se aproveitassem da sua popularidade para venderem produ-tos de que ninguém precisa a preço exagerado? Quem iria confiar na honestidade das observações da tira quando os personagens são contratados como anunciantes?”, questiona Watterson. Para ele, a profissão de cartunista é um trabalho especial que dá a chance de

falar para milhões de pessoas – e sem a sinceridade dos personagens, nada faria sentido. “Se eu fosse minar meus próprios personagens as-sim, eu teria aberto mão do raro privilégio de ser pago para exprimir minhas próprias ideias para ser um vendedor comum e um ilustra-dor contratado”, escreve Watterson. “Eu teria traído minha própria criação e eu não me presto para esse tipo de cartunismo”.

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Tomando por base a opinião e decisão de Bill Watterson de não licenciar seus personagens, deixando de receber milhões de dólares, é cabível uma análise das tiras nas quais ele critica a sociedade capitalista em que vivemos. Vale lembrar que esse é um recorte temático dentro de todas as tiras produzidas por Watterson, que também apresentam diversos outros assuntos.

As tirinhas usadas serão as originais, em inglês, por três motivos. O primei-ro se baseia na falta de tradução de alguns livros de coletânea para o português--brasileiro. O segundo é para preservar a tipografia original, assim como foi escrita pelo autor, e não utilizar possíveis letras pré-formatadas que foram digitadas para a tradução. O terceiro motivo é estético, já que as tiras produzidas para o livro The Complete Calvin and Hobbes (em inglês) possuem uma definição melhor do que as publicadas em português para os livros de coletânea. Dessa forma, serão utilizadas as tiras em inglês com uma tradução livre - feita por mim - buscando manter o sentido e espírito original.

Análise das tiras• Data: 11 de novembro de 1993

TRADUÇÃO TIRA #1Calvin: Hoje em dia, comerciais não vendem apenas um produto. Eles vendem uma atitude! Olha só para esse!Calvin: Aqui está um cara legal falando que ninguém diz a ele o que fazer. Ele faz o que quer e compra esse produto como um reflexo dessa independência.Haroldo: Então, basicamente, esse cara está encorajando todo mundo a expressar sua individualidade por meio da conformidade na escolha de marcas?Calvin: Bom, parecia mais rebelde da maneira como ele disse.Haroldo: Mm.

• Data: 12 de outubro de 1993

TRADUÇÃO TIRA #2Calvin: Aqui está outro comercial com atitude.Calvin: Esse cara não gostava do emprego dele, então ele se demitiu e agora escala pedras! Olha, ele manda em si mesmo. Vive do jeito que quer e nos seus próprios termos!Haroldo: Se ele largou o emprego, eu me pergunto como ele consegue comprar esse tênis de atleta tão caros que está divulgando.Calvin: Talvez a mãe dele tenha comprado pra ele.Haroldo: Espero que ela pague as contas médicas quando ele cair daquela pedra.

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TIRA #1

TIRA #2

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“Hoje em dia, os comerciais não vendem apenas um produ-to. Eles vendem uma atitude!”. Calvin percebe algo que as empre-sas levaram certo tempo para se dar conta e colocar em prática. A influência cultural das corporações, que nos atinge intensamente nos dias de hoje, começou a se fortalecer durante o século 20, es-pecialmente na década de 1980 (mesmo período em que Calvin e Haroldo começou a ser desenhado). As empresas perceberam que deveriam investir principalmente nas suas marcas e não nos seus produtos. 

Segundo Naomi Klein, autora do livro “Sem Logo”, as em-presas começaram a perceber de que estavam sobrecarregadas - com excesso de pessoas e produzindo demais - durante a re-cessão econômica vivida naquela década por conta de crises do petróleo. Ao mesmo tempo, um novo tipo de negócio começou a aparecer. Eram as empresas que se focavam não em produzir coisas, mas em fortalecer as imagens de suas marcas. Os produtos eram aspectos incidentais, que na maioria das vezes eram fabri-cados por terceiros, fora do país. O dinheiro a ser ganho não es-tava na fabricação, mas no marketing. Com o sucesso da fórmula, deu-se início a uma “corrida pela ausência de peso”, como diz Klein, em que se buscava ter menos funcionários e uma imagem mais poderosa. Assim, as corporações mais conhecidas passaram não a produzir e distribuir seus produtos, mas a comprá-los e colocar a sua marca.

Voltando brevemente na história, foi na segunda metade do século 19 que a publicidade começou a se desenvolver. As mer-cadorias começaram a ser produzidas em fábricas e o mercado ficou cheio de produtos uniformes, parecidos uns com os ou-tros. Ter uma marca competitiva virou uma necessidade na era industrial – com a uniformidade manufaturada das mercadorias, a diferença baseada na imagem do produto era fundamental.

Isso fez com que o papel da publicidade mudasse, deixando apenas de fornecer informes sobre as mercadorias para se focar na construção de uma imagem em torno de algum diferencial do produto. A primeira tarefa do branding (promoção da marca) foi pegar bens genéricos (como açúcar, farinha de trigo, sabão e ce-reais), que antes eram retirados de barris por comerciantes locais, e dar nomes próprios a esses produtos. “Depois de estabelecer o nome e o caráter dos produtos, a publicidade lhes deu um meio de atingir diretamente os prováveis consumidores”, escreve Klein.

Décadas se passaram até as corporações deixarem a produ-ção e publicidade de produtos de lado e se focarem na marca. Para Klein, elas já sabiam que um nome forte agregava mais valor à companhia, mas a “hora da verdade” só aconteceu em 1988, quando a empresa de alimentos Kraft foi comprada pela Philip Morris (atual Altria) por um valor seis vezes maior do que ela valia no papel. O ágio estava na palavra “Kraft” – o até então “abs-trato e não quantificável” valor da marca.

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Para que as empresas continuassem sendo sempre bem--vistas pelos consumidores, o dinheiro investido no branding pe-las empresas é cada vez maior. Algumas criam toda uma cultura corporativa, se assemelhando a seitas ou cultos, visando passar a ideia de um estilo de vida para o comprador. O objetivo não é mais apenas investir em marketing para vender um produto da marca, mas vender a própria marca. Dessa maneira, as fábricas de muitas das grandes corporações perderam importância e fo-ram mandadas para países de terceiro mundo – garantindo um custo menor para a empresa, já que em vários casos os salários são baixos e as condições de trabalho são precárias. Muitas não se responsabilizam por isso, tendo a desculpa de que as empresas que criam seus produtos são terceirizadas. Enquanto isso, as ma-trizes ficaram livres para se concentrar no que realmente importa para eles: criar uma mitologia em torno do seu nome para dar significado aos objetos apenas colocando a sua marca.

Nessa busca pela “essência da marca”, gradualmente as agên-cias publicitárias foram se afastando dos produtos e suas carac-terísticas para se aproximar de um “exame psicológico/antro-pológico de o que significam as marcas para a cultura e a vida das pessoas», escreve Klein. Esse foi um fator importante já que, no fim das contas, a marca é um fator decisivo para a escolha de um produto. O objetivo das corporações passou a ser amarrar a sua marca não em um produto específico, mas fazer dela um

meio de vida, uma atitude, um conjunto de valores, uma expres-são, um conceito.

Partindo dessa premissa, podemos analisar as tiras 1 e 2 de Calvin e Haroldo, publicadas em sequência nos dias 11 e 12 de outubro de 1993. Elas representam bem essa ideia e seguem uma mesma “fórmula”. Calvin se encanta com comerciais de “atitude”, mostrando um cara cool, independente e que vive do seu jeito – um estilo de vida que, de certa forma, todos buscam ou querem ter. Em ambas as tiras, o fascínio de Calvin é confrontado por Haroldo, que representa as ideias e opiniões de Bill Watterson. Na primeira tira, o tigre questiona como a individualidade de al-guém pode ser expressa comprando um produto que o comercial deseja vender para o maior número de pessoas. Calvin parece se convencer com a pergunta retórica de Haroldo, já que responde “Bom, parecia mais rebelde da maneira como ele [o ator do co-mercial] disse” – aqui, o garoto confirma dois pontos. Primeiro, novamente percebemos que ele foi influenciado pelo conjunto de valores que a propaganda passa: um homem rebelde, desafiador – interessante sob o ponto de vista de que não é alguém que se-gue as regras que os outros seguem. O segundo ponto é quando Calvin fala “ele disse”, com ênfase no “ele” - o rapaz do comercial dá a entender que comprar o produto que está anunciando é um reflexo de sua independência. Haroldo desconstrói o anúncio mostrando que essa individualidade é ilusória e Calvin diz que

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o comercial passava a mensagem de forma mais rebelde e desa-fiadora. Esse é exatamente o objetivo da propaganda – vender o cool para os consumidores. Algo que provavelmente Calvin teria aceitado não fosse a intervenção de Haroldo.

A segunda tira segue o mesmo padrão. Dessa vez, o garoto se anima com um anúncio mostrando um cara descolado que largou seu emprego para fazer alpinismo – tomando as rédeas da vida e fazendo tudo do seu jeito. O comercial, novamente, busca vender um conceito junto com o produto. Acoplado ao tênis que o ator usa vem a ideia de liberdade ao abandonar o emprego e estar li-vre para viver na natureza e escalar pedras. O questionamento de

Haroldo acontece novamente no terceiro quadro e traz a ilusão do comercial para a realidade: como ele pode comprar tênis tão caros se largou o emprego? Calvin responde que talvez a mãe dele os tenha comprado, em uma clara desconstrução do comercial por parte de Watterson. O humor é gerado por conta da percepção de Calvin. O pensamento de “a mãe ter comprado o tênis” cria um contraste contra os valores de independência, liberdade e do que seria cool – o oposto do que a propaganda tenta passar. Haroldo ainda guarda uma ironia para o último quadro, dizendo que espe-ra que a mãe pague as contas médicas do sujeito quando ele cair de uma pedra, desmitificando mais uma vez o comercial.

A tira 3 aborda a relação adversa entre o que é exibido (e pro-metido) em um comercial e o que acontece na realidade. A família de Calvin está em uma viagem de acampamento, uma situação que se repete algumas vezes na história em quadrinhos e algo que so-mente o pai gosta de fazer. Ficar longe do conforto de casa é algo que incomoda a mãe de Calvin, enquanto o garoto sempre fica en-tediado e preferiria estar assistindo televisão ou algo do tipo. Para o pai, esse é o único momento em que ele consegue relaxar do tra-balho, do estresse do dia a dia e da vida na cidade. A visão anticapi-

talista de Bill Watterson nessa tira pode ser analisada quando o pai compara a situação vivida por ele – de sua família não querer tirar uma foto – com os comerciais da Kodak, empresa de produção e comercialização de equipamentos fotográficos.

A publicidade, de uma maneira geral, se situa entre as esfe-ras de produção e do consumo. A produção se efetiva em meio a materiais e máquinas. O produto é impessoal, indistinto, múlti-plo, seriado e anônimo. A publicidade faz “o meio de campo” entre as duas partes, escondendo o processo maquinal de criação e se

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usando do lúdico e imaginação para o consumo. Ela é responsável por recriar a imagem do produto, atribuindo identidade e visando colocar a mercadoria dentro das relações humanas que caracterizam o consumo. É a publicidade que dá nome, significados, con-teúdo e representações ao universo dos produtos buscando diferenciar um dos outros de um mesmo tipo.

Segundo Everardo Rocha, autor de “Magia e Capitalismo” e “Sociedade do Sonho”, o anúncio aparece na vida das pessoas – “consumidores” – como um enunciado que intervém na realidade tal como ela era vivida até então. Dessa forma, pode-se dizer quer que o anúncio seja uma ilusão – existe fora da realidade cotidiana – e que se torna “real” pela recepção do consumidor. A propaganda cria uma realidade própria, “convidando” o receptor a entrar no seu mundo, com personagens e situações particulares.

Diversos anúncios se baseiam na técnica de contar uma história que se assemelha

TIRA #3

• Data: 28 de julho de 1989

TRADUÇÃO TIRA #3Pai: Ok, turma, sorriam!Mãe: Ai! Não tira foto de mim! Eu não lavo meu cabelo há três dias e estou coberta de picadas de mosquito!Pai: Mas você não quer uma lembrança da nossa viagem?Calvin: Eu não quero me lembrar dessa viagem! Venho tentando me esquecer dela desde que chegamos aqui! Quando é que a gente vai embora deste buraco?Pai: Na próxima vez que passar um daqueles comerciais felizes da Kodak, vou partir a TV com um machado.

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aos mitos. Em um primeiro momento há uma situação problemá-tica, de impasse - o personagem está triste, sozinho, desolado. Essa imagem se opõe ao final da propaganda, quando ele está feliz, acom-panhado e é reconhecido. Uma transformação tão rápida se dá pela obtenção do produto que está sendo anunciado, que muda a vida do personagem para melhor e resolve seus problemas iniciais.

A intenção da publicidade é que o consumidor passe a acre-ditar nessa “magia” do comercial e inclua o produto no fluxo de sua vida – assim como os personagens da propaganda o fazem. O mundo da publicidade é um lugar mágico, onde, da mesma manei-ra como nos sonhos ou contos de fadas, tudo é possível. Os animais falam, os produtos são a solução para os problemas e os lugares são sempre acolhedores. “É ver o impossível e acreditar nele”, escreve Everardo Rocha em “Magia e Capitalismo”. A publicidade cria nar-rativas de modelos ideais do cotidiano, baseada no estilo de vida das classes dominantes e com o intuito de promover a continuação constante do consumo.

Os anúncios, assim como na promoção da marca, trazem muita coisa além do produto. Segundo Rocha, ele é apresentado como capaz de “trazer ao consumidor todas as sensações, bens, posses e prazeres nele enunciados”. Cria-se a ilusão de que ao obter o produto, o consumidor teria acesso imediato ao universo apre-sentado no comercial.

Quando o pai de Calvin diz “na próxima vez que passar um daqueles comerciais felizes da Kodak, vou partir a TV com um machado”, ele evoca a percepção – e revolta – de que a magia pro-metida pelo comercial não é o que acontece na realidade. A ilusão é rompida. O pai de Calvin não é um consumidor frenético – ao contrário, é sempre crítico a qualquer tipo de publicidade e gosta de levar uma vida simples. Podemos presumir que o fato de ob-ter uma câmera fotográfica para ter “lembranças da viagem” no acampamento era um desejo real, e não fabricado pelo comercial. Mesmo assim, sente-se revoltado quando a sua família não parti-lha da sua vontade de guardar uma lembrança do momento, dife-rentemente do que podemos interpretar do anúncio da Kodak. A mãe de Calvin não quer ser fotografada por considerar que não estava bonita para aparecer na foto (sem lavar o cabelo há três dias e com picadas de mosquito) e o garoto nem queria estar ali em primeiro lugar, portanto não quer se lembrar do momento. Assim como a “atitude” foi vendida para Calvin nas primeiras tiras, o co-mercial da Kodak prometia “momentos felizes” atrelados à compra da máquina fotográfica. A animação do pai de Calvin no primeiro quadro (“Ok, turma, sorriam!”) vira irritação (“vou partir a TV com um machado”) quando ele se depara com a situação real com a sua família e percebe como o comercial da Kodak cria modelos ideais e irreais.

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Uma das empresas que mais investiram em sua marca para promover um estilo de vida para o consumidor foi a Nike, que buscava (e busca) deixar de estar ligada apenas aos esportes e atletas, mas se tornar a própria definição de esporte. Segundo Naomi Klein, a corporação deixou de ser apenas uma empresa de calçados nos anos 80, para se tornar “a melhor empresa de esporte e forma física do mundo”, como disse Phil Knight, o CEO da Nike. Esse projeto possuía três pilares centrais. O primeiro era transformar atletas em superstars e não necessa-riamente associá-los com suas equipes ou esportes, mas com ideias “puras” sobre o que é ser atleta, como perseverança e superação. O segundo pilar era opor os esportes estabelecidos e cheio de regras ao “Puro Esporte” da Nike e da sua equipe de atletas celebridades. O último era a ideia era promover a marca o quanto fosse possível.

O branding da empresa procurava eliminar as fronteiras entre patrocinador e patroci-nado. O maior exemplo desse projeto durante a década de 80 e 90 foi o jogador de basquete

• Data: 26 de julho de 1995

TRADUÇÃO TIRA #4Calvin: Outro fato importante a considerar sobre a cultura popular é que o público da televisão hoje é moderno e sofisticado. Coisas desse tipo não nos afetam.Calvin: Sabemos separar a ficção da realidade. Entendemos a sátira e a ironia. Somos espectadores imparciais e calejados que não são influenciados pelo que assistimos.Haroldo: Acho que estou ouvindo anunciantes gargalhando.Calvin: Peraí, preciso inflar os meus tênis de basquete.

TIRA #4

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Michael Jordan. A Nike passou a fazer comerciais que buscavam não apenas mostrá-lo como atleta, mas como estrela – usando ângulos di-ferenciados que não se veem em partidas comuns, cortes rápidos, clo-ses, e outros truques que passavam a sensação que Jordan realmente podia voar. Claro que não está em discussão a habilidade de Michael Jordan, que é considerado o maior jogador de basquete de todos os tempos, mas, para Klein, a Nike estava criando um “ser superior” jun-tando o talento do atleta com a sua tecnologia de calçados esportivos. Era a produção cinemática ajudando na construção de mitos que a empresa pretendia fazer. O próprio Jordan disse que a Nike o estava “transformando em um sonho”. Com o tempo, o nome do jogador ficou tão grande que ele acabou se desprendendo da Nike e virou ele próprio uma marca esportiva, a JORDAN.

Empresas baseadas na marca, como a Nike, não buscam mais se “atirar” sobre o consumidor. O objetivo é viver com eles – vender um estilo de vida e sempre fazer parte desse modo de viver que o consumi-dor comprou. Para isso, as empresas buscam incorporar o espírito do atletismo, da individualidade, ou da vida selvagem nos seus produtos. A pose vale mais que o objeto.

Tudo isso fornece material para analisar os tênis de basquete de Calvin na quarta tira, que muito provavelmente serviram de inspira-ção para Watterson criar essa história em quadrinhos. Calvin, como a maioria dos telespectadores e consumidores, não se julga influenciado por aquilo que ele assiste na TV. Ele mantém uma postura de estar em

uma posição superior e compreender a essência de tudo que assiste. Haroldo não concorda, se lembrando dos anunciantes: a publicidade é feita e pensada justamente para tocar o consumidor mesmo que sub-jetivamente, e ao dizer que pode “ouvir os anunciantes rindo”, o tigre dá a entender que acredita que os telespectadores como Calvin são in-fluenciados, sim, por aquilo que assistem. No caso do garoto é ainda pior, já que é sabido que as crianças dificilmente conseguem avaliar de maneira crítica os comerciais que veem na televisão. O próprio fim da tira, com Calvin “inflando” seus tênis de basquete – um produto que ele não precisa - confirma que Calvin é influenciado.

A tira faz ainda mais sentido quando conhecemos a personali-dade e características de Calvin. O garoto adora assistir televisão, algo que faz com frequência, e em diversas tiras ele cita programas que assistiu ou realça a necessidade de não perder seu programa favorito. Além disso, Calvin não joga basquete. O garoto tem aversão a esportes com regras e prefere sempre jogar Calvinbol, um jogo que ele inventou no qual as regras são inventadas na hora e uma partida nunca é igual a outra. Apesar disso, o beisebol é retratado eventualmente na tira, com Calvin jogando com Haroldo, com o pai ou na escola. Já o basquete nunca aparece sendo praticado ou é citado como um hobby, revelando a contradição em Calvin ter um tênis apropriado para o esporte. Ele não precisava de um produto desses (e muito menos “inflar” o tênis de basquete), mas adquiriu o calçado por ser algo interessante, da moda. Naquele momento, o tênis de basquete era o cool.

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No início dos anos 1990 deu-se início ao “mercado do cool”, como é aborda-do no documentário “Merchants of Cool”. Com a recessão econômica que acon-teceu na década de 1980, sobretudo nos Estados Unidos, as empresas precisa-vam encontrar um novo público consumidor – e o encontrou nos adolescentes, uma geração que estava disposta a pagar para ser aceita. A “pressão dos colegas” se tornou uma poderosa força de mercado. Mas, como a Nike havia mostrado em seu branding, somente anunciar um produto não era mais suficiente. Era necessário formar identidades que se ligassem à nova cultura dos jovens e as marcas passaram a trabalhar sua imagem usando o estilo cool dos anos 1990.

Assim como Calvin, os jovens se perguntavam “será que eu sou cool?”. A mesma pergunta passou a ser feita pelos donos das marcas, que buscavam trans-formar a imagem delas em algo jovem, moderno e alternativo: em uma úni-

• Data: 8 de maio de 1992

TRADUÇÃO TIRA #5Calvin: Aqui tem um anúncio de um novo chiclete chamado “Hiperbola”, e diz “se você não estiver mascando Hiperbola, deve estar apenas ruminando”. Oh, bela reprodução!Calvin: Puxa, será que eu sou cool o suficiente para mascar Hiperbola? Talvez eu não seja! Talvez se mascar Hiperbola a gente se torne cool!Calvin: Ou talvez se mascar, todos assumam que você é cool, então pouco importa se você é ou não! O que você acha? Eu devo comprar?Haroldo: Se a sua segurança emocional depende de satisfazer um desejo que você não tinha antes de ler este anúncio, vá em frente.Calvin: Acho que eu vou! Cara, ainda bem que eu recebo essa revista!

TIRA #5

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# Capítulo 3

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ca palavra, cool. A ideia era associar a marca a esse estilo de vida e influenciar os jovens descolados, que por sua vez influenciariam os amigos e conhecidos. As empresas perceberam que não era difícil cooptar um estilo e começaram a contratar cool hunters - pessoas que “caçavam” os jovens cool para se utilizar do estilo descolado deles para influenciar o maior número de pessoas.

Em um processo que acontece até hoje, os jovens consumidores, por insegurança pessoal e buscando serem aceitos em seus grupos, passam a acreditar que existe uma capacidade de ser cool intocada que está além do seu alcance. As empresas buscam mostrar qual é a ten-dência para ser descolado, usando a ameaça do “terror da inadequa-ção” como premissa para vender. Segundo o documentário “Criança, a Alma do Negócio”, dirigido por Estela Renner, essa situação também é vivida pelas crianças atualmente. A publicidade apela para o senso de competição, dizendo que a criança não apenas será melhor vista e aceita com tal produto (inserida na sociedade, em outras palavras), como se tornará mais popular entre seus amigos e conhecidos.

Ao ser bombardeada de publicidade sobre como o produto é incrível e com a repetição excessiva dos comerciais, a criança passa a desejar o item e fará de tudo para obtê-lo. Mas o desejo pelo pro-duto não é real, é implantado pela publicidade com as promessas de elevação de status já citadas. Caso consiga a mercadoria, porém, o pequeno consumidor provavelmente a usará por pouco tempo, já que o desejo não é o produto em si, mas a vontade de comprar.

Além disso, a partir do momento em que uma tendência é lança-da, ela já está destinada a se tornar obsoleta pelo surgimento de um novo produto, sendo promovido como uma versão melhor do que a anterior. O que é considerado cool muda muito rapidamente. Quando as grandes corporações se apoderam do que é descolado, aquilo já deixa de ter seu valor de alternativo e moderno. O cool vive em constante mudança, alimentando o marketing das empresas de que os jovens precisam que tal produto naquele momento, fazendo questão de ressaltar a necessidade do “comprar agora” - a tendência não durará para sempre - já antevendo uma futura compra da versão atualizada do produto.

Na quinta tira selecionada de Calvin e Haroldo, a lógica dos per-sonagens é a mesma das que vimos antes: Calvin é o “alvo atingido” da publicidade, enquanto Haroldo analisa a situação de forma mais cons-ciente e irônica. O garoto lê a propaganda no primeiro quadro sendo influenciado pelo slogan forte e pela “bela” imagem, um dos recursos da publicidade para chamar a atenção principalmente das crianças.

Criando uma racionalização, Calvin percebe que ser cool não é di-fícil, já que isso está sendo vendido para ele. Na verdade, não é preciso ser, mas parecer cool. Pelo medo da inadequação na vida social e de ficar isolado na sociedade, ele chega à conclusão que só é preciso que os ou-tros assumam que ele é cool. E, como consumidor inocente, ele acredita na propaganda e pensa que mascando o chiclete, com a sua imagem atrelada ao cool, ele próprio seria visto como descolado e popular.

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A breve fala de Haroldo no terceiro quadro é mais uma vez pre-cisa, reforçando a questão da insegurança emocional do consumidor (Calvin, no caso) de acreditar que o produto pode fornecer o necessário para ele se tornar – ou tornar sua imagem – em algo que ele não é, mas busca ser: popular, moderno, alternativo. Haroldo também fala que o anúncio provocou um desejo que ele não tinha antes, mostrando que esse desejo é ilusório e provocado pela propaganda – que conseguiu atingir o seu objetivo no consumidor. Calvin não entende a ironia de Haroldo (caracterizada, além da fala, pela sua expressão com os olhos semicerrados) e se diz feliz por receber a revista que contém o anúncio.

Com as crianças sendo vistas pela publicidade cada vez mais como “mini-adultos” (para logo torná-las consumidoras), o medo da inadequação e o senso de competição são veiculados e repetidos por toda a formação delas, definindo padrões de consumo desde cedo. Per-ceber isso em algo como chicletes, como é mostrado na tira, é difícil, mas o exemplo pode ser facilmente retransmitido para outros itens como as roupas, onde os padrões são mais visíveis. Isso explica – junta-mente com a já citada “essência da marca” - o porquê de tantos jovens se uniformizarem com camisas e casacos das mesmas marcas, como a Abercrombie & Fitch ou Hollister, por exemplo.

TIRA #6• Data: 27 de fevereiro de 1989

TRADUÇÃO TIRA #6Calvin: Olha só, Haroldo! Eu posso pedir um chapéu oficial do cereal de chocolate Bombas de Açúcar!Calvin: Vê, ele tem uma hélice movida a pilhas no topo e uma grande estrela na frente! Não é demais?Haroldo: Você tem que enviar quatro “selos de comprovação de compra” para conseguir, diz aqui.Calvin: Bem, não fique aí parado ou isso vai levar uma eternidade.Haroldo: Ugh. Esse negócio sempre faz meu coração disparar.

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TIRA #7

TIRA #8

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• Data: 28 de fevereiro de 1989

TRADUÇÃO TIRA #7Haroldo: Blechh. Eu tô enjoado.Calvin: Ah, qual é, é só a sua segunda tigela de cereal.Haroldo: Esse troço é puro açúcar. Calvin: Mas é fortificado com oito vitaminas essenciais, então é bom para você.Haroldo: Dá um tempo. Comer isso é como comer uma tigela de Milk Duds*.Calvin: Olha, aqui na caixa diz, “parte de um café da manhã balanceado, nutritivo e saudável”.Haroldo: E eles mostram um cara comendo cinco laranjas, uma dúzia de bolinhos integrais...Calvin: Sabe por que você treme desse jeito? Aposto que é por falta de vitaminas.* Doce de caramelo com chocolate ao leite comercializado pela The Hershey Company.

• Data: 01 de março de 1989

TRADUÇÃO TIRA #8Calvin: Bom dia, pai! Como está o seu café da manhã?Calvin: Mingau de aveia, né? Uma pasta gosmenta, insípida e incolor.Pai: É. Por que você não vai descrever a sua comida em algum outro canto?Calvin: Aposto que você vai preferir uma tigela do saboroso, crocante por fora e macio por dentro, delicioso cereal coberto de chocolate Bombas de Açúcar! Posso colocar um pouco pra você?Pai: Não, obrigado. Estou tentando chegar à meia-idade.Calvin: E o seu café da manhã, mãe? Chá e torradas sem graça?Mãe: Você quer o chapéu, você que coma o cereal, Calvin.

Essas são as três primeiras tiras de uma sequência de 18 na saga de Calvin pelo chapéu com hélice. A história continua com Calvin comendo todo o cereal necessário, a expectativa em receber o pro-duto que demora semanas para chegar e a decepção ao quebrar o brinquedo quando está tentando montar. O pai consegue consertá--lo, mas a série de tiras termina na frustração de Calvin ao perceber que o chapéu com hélice não é capaz de fazê-lo voar. Por fim, o ga-roto se alegra ao perceber que o brinquedo veio em uma ótima caixa de papelão e pode usá-la para se divertir.

A primeira crítica que podemos notar na tira 6 é a questão do brinquedo estar ligado ao consumo do produto. Calvin quer comer as quatro caixas de cereal não por estar com fome (um desejo real), mas para conseguir o chapéu com hélice (“Eu posso pedir um cha-péu oficial do cereal de chocolate Bombas de Açúcar. [...] Não é de-mais?”). A publicidade se aproveita da imaturidade das crianças e faz de tudo para chamar a atenção e despertar o desejo delas. Usam cores fortes, músicas e personagens infantis em seus comerciais ou estampados nos rótulos dos produtos - personagens como os de his-tórias em quadrinhos, pelos quais Watterson lutou tanto para não ver Calvin e Haroldo fazendo parte. A criança passa a desejar o pro-duto não pelo o seu conteúdo em si, mas pela sua propaganda ou brinquedo de brinde.

Um exemplo notável desse tipo de publicidade voltada para as crianças pode ser visto na rede de fast-food McDonald’s. Como é

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relatado no documentário “Super Size Me”, de Morgan Spurlock, os estabelecimentos do restaurante possuem playgrounds dentro dos seus estabelecimentos, atraindo as crianças desde pequenas para o local e promovem festinhas de aniversário em suas instalações. Assim como o brinquedo está ligado ao cereal na tira de Calvin, o “McLanche Feliz” é o produto do McDonald’s voltado especialmente para as crianças, e sempre vem com um brinquedo – atiçando o de-sejo delas (sem falar no fato da propaganda no próprio nome, ven-dendo a “felicidade”). Além disso, o próprio personagem mascote da empresa é voltado para o público infantil, com o apelo do palhaço Ronald McDonald.

Outro ponto a ser discutido quando Haroldo diz ao final da tira 6 que “esse negócio sempre faz meu coração disparar” é a ques-tão de o produto ser prejudicial à saúde das crianças. O tema é abordado na tira seguinte, apesar da tira 8 também ter uma alfi-netada sobre o assunto quando o pai comenta que “está tentando chegar à meia-idade”.

Como é mostrado no documentário “Criança, a Alma do Ne-gócio”, dados da ANVISA (Agência Nacional de Vigilância Sani-tária) de 2006 relatam que 80% da publicidade de alimentos para crianças são de alimentos calóricos, com alto teor de açúcar e gor-dura e pobres em nutrientes. Esses produtos conseguem chamar a atenção das crianças pela publicidade, como já citado, com suas ca-racterísticas voltadas para o público infantil. Também é possível ver

no documentário que as crianças, em sua maioria, desconhecem o nome de frutas, verduras e vegetais, mas reconhecem facilmente os diferentes tipos de salgadinhos, já que estão em contato constante com as marcas e produtos por meio dos anúncios comerciais.

Mesmo tremendo por consumir tanto açúcar no último quadro da tira 7, Calvin acredita que o cereal faz bem para a saúde. Primeiro ele justifica dizendo que o cereal é “fortificado com oito vitaminas essenciais, então é bom para você”, como podemos presumir que é anunciado e vendido pelo fabricante. Essa crença o faz acreditar que é Haroldo, e não ele, que está tremendo no último quadro, crian-do uma situação de ironia por parte de Bill Watterson. No terceiro quadro, Calvin lê que tal cereal faz “parte de um café da manhã ba-lanceado, nutritivo e saudável”, mas Haroldo constata que a imagem mostra o sujeito comendo apenas alimentos realmente saudáveis.

Mais uma vez, a publicidade é a responsável por mascarar o produto, defendendo aspectos saudáveis do alimento (mesmo quando ele claramente não faz bem à saúde) e omitindo ou escon-dendo as informações sobre os malefícios que o consumo em ex-cesso pode causar. Em sua defesa, as empresas podem alegar que não iriam liberar informações que fossem ruins para elas próprias, mas conhecer todas as informações do produto seria a forma mais honesta dos consumidores escolherem. Um exemplo recente desse tipo de publicidade que tenta enganar criando recortes é o comercial da maionese Hellmann’s, que comparava o seu produto com azeite

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de oliva, dizendo que os dois possuíam “gorduras boas e não tinham gorduras trans”. A maionese ainda levaria vantagem por possuir me-nos calorias, ignorando os malefícios que outras substâncias artifi-ciais adicionadas ao produto industrializado poderiam causar. Na mesma linha, uma campanha dos Sucos Kapo da Del Valle (marca da Coca-Cola Company) enfatiza que os sucos de caixinha possuem a mesma quantidade de calorias de uma maçã, sem levar em consi-deração os diversos açúcares e elementos artificiais como o “aroma sintético idêntico ao natural”.

Segundo dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Es-tatística), a obesidade infantil está crescendo cada vez mais no Brasil. Boa parte disso se deve ao fato de que a maior parte da publicidade de alimentos para crianças são de produtos não saudáveis. Assim, cria-se um embate: de um lado está a saúde das crianças, apoiada por sociedades médicas e organizações de direitos do consumido; do outro, a indústria de alimentos e guloseimas, que não acredita que a publicidade seja um dos principais fatores para o crescimento dos índices de obesidade infantil. Segundo o IBGE, a incidência de sobrepeso entre crianças de cinco a nove anos aumentou em mais de 200% nas últimas três décadas – uma tendência que já pode ser comparada com a epidemia de obesidade nos Estados Unidos, um dos países com as maiores taxas de obesidade do mundo.

O Brasil, assim como os Estados Unidos, não possui leis espe-cíficas que regulem a publicidade infantil. Apesar disso, o Código

do Conar (Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitá-ria) diz que “quando o produto for destinado à criança, sua publici-dade deverá abster-se de qualquer estímulo imperativo de compra ou consumo, especialmente se apresentado por autoridade familiar, escolar, médica, esportiva, cultural ou pública, bem como por per-sonagens que os interpretem”. O Código de Defesa do Consumidor segue uma lógica parecida, proibindo a publicidade que “se aproveite da deficiência de julgamento e experiência da criança”. Na prática, não é isso o que acontece. A autorregulamentação feita pelo Conar possui um claro conflito de interesses entre defender a saúde públi-ca em detrimento do próprio mercado consumidor. No Brasil, os comerciais podem ser veiculados na televisão no intervalo de dese-nhos animados e programas infantis. Algumas vezes, eles trazem os mesmos personagens, como se fosse uma continuação do desenho. Em alguns países, como a Noruega, não é permitido nenhum tipo de publicidade para as crianças. Em outros, como no Reino Unido e Su-écia, é adotada uma proibição parcial, restringindo horários e faixas etárias ou proibindo a aparição de personagens e pessoas famosas nos comerciais infantis.

Hoje em dia, as crianças estão em contato constante com a pu-blicidade. A maioria dos pais trabalha e estão pouco integrados à ro-tina dos filhos. Em contrapartida, a publicidade “conversa” o tempo todo com as crianças, sendo que a principal mídia para transmitir essa comunicação é a televisão. A mídia atualmente ocupa o lugar

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que já foi da família, escola, religião, e é a principal responsável pela formação dos valores e da subjetividade do ser humano – algo que começa desde a sua juventude. E nem é preciso tanto tempo assim. De acordo com o documentário “Criança, a alma do Negócio”, bas-tam 30 segundos para uma criança ser influenciada por uma marca.

A tira 8 mostra outra consequência da publicidade sobre as crianças: elas se tornam um retransmissor do comercial, responsá-veis por promover os produtos dentro da casa em que vivem. Calvin se utiliza da própria linguagem publicitária para desvalorizar o café da manhã do pai (“uma pasta gosmenta, insípida e incolor”) e da mãe (“chá e torradas sem graça”) e valorizar o seu cereal (“saboroso, crocante por fora e macio por dentro, delicioso”) com o objetivo de “vender” o produto para os pais para consumir o cereal das caixas mais rapidamente e obter o brinquedo.

O pai de Calvin mostra saber que aquele produto não é saudá-vel com sua recusa ao cereal (“estou tentando chegar à meia-idade”),

mas mesmo assim não vê problemas em Calvin consumi-lo. Muitas vezes, isso acontece pela insistência dos filhos em comprar tal produ-to, que só chega ao conhecimento dos pais por meio das crianças que o viram em algum comercial. Não é possível notar esse tom na tira, mas geralmente os pais acabam cedendo ao apelo dos filhos como uma forma de recompensar a sua ausência do convívio familiar por conta do trabalho. A publicidade também coloca os pais como “vilões”, já que são os responsáveis por negar o desejo das crianças. Assim, acabam cedendo à pressão dos filhos para não se encaixarem nesse papel.

A publicidade sabe dessa relação entre a insistência das crian-ças e a passividade dos pais e se aproveita para criar propagandas focadas nas crianças. Algumas vezes, mesmo produtos que não são voltados para o público infantil possuem esse apelo, já que grande parte da influência de compra em uma família acontece por meio das crianças.

Os comerciais voltados para o público infantil - com suas co-res, músicas e personagens – não são os únicos a afetar e influenciar as crianças. Os anúncios que possuem adultos como público-alvo também são responsáveis por transmitir valores que são absorvidos

pelas mentes em formação dos jovens, como pode ser discutido com a tira 9 de Calvin e Haroldo.

A publicidade, de maneira geral, leva o desejo consumista para a criança, sem ela ter o discernimento de sua condição financeira e

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do quanto aquele produto pode estar fora da sua realidade. Calvin, possivelmente associan-do o carro esportivo a ter um status alto e uma boa qualidade de vida, pergunta ao pai por que ele não dirige um carro como o do comercial. O pai responde que aquele carro é muito caro (“custa U$40,000 dólares”).

No quadro seguinte, Calvin nota no comercial a “gatinha” que está acompanhando o homem que dirige o carro esporte. Ele pergunta ao pai por que a mãe não se veste “da-quele jeito”, dando a entender que se trata de uma mulher sensual mostrando muito do corpo com roupas curtas. O pai entra na brincadeira retransmitindo a pergunta, de forma divertida (como é possível notar pela sua expressão), para a esposa. A mãe de Calvin con-firma nossas suspeitas dizendo que tais “fantasias adolescentes” só seriam possíveis em uma modelo com implantes. A propaganda do carro se utiliza da mulher sensual para chamar a atenção do público masculino como uma forma de atrelar a ideia de que possuir o carro

• Data: 17 de março de 1992

TRADUÇÃO TIRA #9Calvin: Ei pai, olha esse comercial.Calvin: Por que você não dirige um carro esportivo bacana como aquele cara?Pai: Aquele carro custa U$40,000 dólares.Calvin: E olha a gatinha que está com ele. Por que a mãe não se veste desse jeito?Pai: É, por que você não se veste desse jeito?Mãe: Porque suas fantasias adolescentes necessitam de uma modelo adolescente com implantes, ...querido.Calvin: Talvez vocês precisem beber mais cerveja.

TIRA #9

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esporte está diretamente ligada a ter uma mulher daquelas. Para o público feminino, o anúncio passa os valores de que esse é o padrão de beleza e a mulher deveria ser assim (ou querer ser assim).

Algo muito parecido acontece que a maioria dos comercias de cerveja, como é salientado por Bill Watterson por meio da fala de Calvin no último quadro. “Talvez vocês precisem beber mais cer-veja”, ele diz para os pais. O garoto associa o fato de beber cerveja às perguntas que fez sobre o comercial de carro. Para ele, os pais se tor-nariam mais descolados consumindo a bebida – o pai teria o carro esportivo e a mãe possuiria as formas sensuais da modelo.

Os comercias de cerveja são “famosos” por associar a bebida a bons momentos de alegria, festa e sensualidade. Os anúncios geral-mente apresentam um grupo descolado de amigos, sempre satisfeitos consigo mesmos. Assim, atrelam o consumo da cerveja como parte da rotina de lazer das pessoas. Segundo Ilana Pinsky, autora de “As bebi-das alcoólicas e os meios de comunicação”, essas estratégias de propa-

ganda não funcionam apenas por associarem diretamente o consumo do produto com mensagens alegres, bonitas, eróticas ou engraçadas. Para ela, esse tipo de comercial também cria memórias afetivas posi-tivas, ou “âncoras”, que serão lembradas quando o indivíduo precisa tomar uma decisão. Dessa forma, a propaganda de bebida alcóolica trabalha com ícones de prazer, como a beleza, saúde, força e sexo.

O anúncio de cerveja, mesmo que não sendo diretamente pro-duzido para o público infantil, já é responsável por passar valores, na maioria das vezes machistas, que “definem” os papéis de homens e mulheres na sociedade. A mulher geralmente é vista como objeto sexual, com roupas sensuais e corpos esculturais, e sempre servindo o homem. A menina que assiste a esse tipo de propaganda pode ab-sorver o “padrão de beleza” que é passado e o papel de ser submissa. O garoto, na mesma linha, absorve que esse é o papel da mulher e faz a ligação de que beber cerveja é algo descolado que faz parte da rotina de sair com os amigos.

A décima tira escolhida de Calvin e Haroldo leva à discussão so-bre consumismo, a vontade de comprar para se satisfazer. Mas o que exatamente é o consumismo e qual é a diferença para o consumo?

Do ponto de vista biológico, consumir é algo natural que o ser

humano compartilha com os outros seres vivos. É algo banal e rotinei-ro para a sobrevivência. Nas palavras de Maria Helena Pires Martins, autora de “O prazer das compras”, consumir é uma necessidade e algo que todos os seres vivos fazem para viver. No entanto, o consumismo

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• Data: 27 de maio de 1995

TRADUÇÃO TIRA #10Calvin: Conseguir é melhor do que ter.Calvin: Quando você consegue alguma coisa, é novo e emocionante. Quando você tem alguma coisa, não dá valor e é sem graça.Haroldo: Mas tudo que a gente consegue um dia se torna algo que a gente tem.Calvin: É por isso que a gente sempre precisa de coisas novas!Haroldo: Sinto como se estivesse no sonho de algum acionista.Calvin: “Desperdice e cobice”, esse é o meu lema.

aparece quando os seres humanos passam a consumir o supérfluo em doses desneces-sárias. Segundo ela, o problema está no consumo exagerado de necessidades simbólicas (que não são necessidades físicas para à vida). Ou seja, no consumismo como atitude de vida, em “comprar mesmo que não haja tempo para usar tudo o que se compra, mesmo sem pensar na utilidade e nas consequências geradas por tanta compra”.

Para o jornalista Alexandre Volpi, autor de “A História do Consumo no Brasil”, o padrão consumista das sociedades contemporâneas tende a reduzir o sentido da vida à aquisição de bens e serviços. Ele diz que “as pessoas são ensinadas a acreditar que a vida se resume ao ato de consumir”. Zygmunt Bauman, em “Vida para Consumo”, segue uma ideia semelhante, se usando das palavras de Colin Campbell para dizer que a “revolução consumista” começou quando o consumismo se tornou “especialmente importante, se não central” para a vida da maioria das pessoas, “o verdadeiro propósito da existência”.

TIRA #10

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Na tira 10, Calvin está promovendo o consumismo. Ele não dese-ja obter produtos para se aproveitar dos usos e benefícios que eles po-dem ter; ele quer consumir. O que ele quer é a sensação excitante – que dura pouco tempo – de comprar. O seu desejo não é pelo produto, mas de continuar comprando. Para Bauman, o consumismo é um tipo de arranjo social que resulta da reciclagem de vontades, desejos e anseios humanos rotineiros. Ele diz que isso resultará na força propulsora e operativa da sociedade, que desempenha um processo de auto identi-ficação individual e de grupo, como já foi discutido nas tiras anteriores.

Na tira em questão, Calvin responde para Haroldo que “é por isso que a gente sempre precisa de coisas novas!” quando o tigre argumenta que tudo que a gente consegue (compra) vira algo que a gente “tem” e, segundo o garoto, o que a gente “tem” é sem graça em contraste ao que a gente consegue/compra, que é excitante. O próprio sistema capitalis-ta prevê esse movimento de ter e se desfazer rapidamente, valorizando tanto as virtudes dos objetos quanto as suas limitações. É a obsolescên-cia programada, com um novo produto já estando fadado a ser supera-do dentro de pouco tempo. Bauman diz que “as falhas já conhecidas da mercadoria e aquelas a serem (inevitavelmente) reveladas graças a sua predeterminada e preordenada obsolescência – envelhecimento “mo-ral” – prometem uma renovação e um rejuvenescimento iminentes, novas aventuras, novas sensações, novas alegrias”.

Dessa forma, manter o cliente não satisfeito é tão importante (se não mais) do que mantê-lo satisfeito. “A sociedade de consumo pros-

pera enquanto consegue tornar perpétua a não-satisfação de seus membros”, escreve Bauman. Para ele, o método explícito de atingir tal efeito é depreciar e desvalorizar os produtos de consumo logo depois de terem sido promovidos como desejos dos consumidores. Assim, a expectativa frustrada logo deve dar um lugar a uma nova esperança de satisfação dos desejos - a curta esperança de ter o prazer de viver dentro do mundo fantasioso dos comerciais. Bauman analisa que a sociedade de consumo promete (sobretudo por meio da publicidade) satisfazer os desejos humanos em um grau que nenhuma sociedade do passado pôde alcançar, ou mesmo sonhar. Ele diz que essa promessa de satisfa-ção, no entanto, “só permanece sedutora enquanto o desejo continua insatisfeito; mais importante ainda, quando o cliente não está ‘plena-mente satisfeito’”. Isso quer dizer que a promessa se mantém enquanto o consumidor considera que os desejos que o motivaram a buscar a satisfação não tenham sido totalmente realizados.

O movimento de consumir/descartar se mantém revigorado, dei-xando no consumidor um desejo permanentemente insatisfeito. Isso é algo fundamental para o sistema capitalista continuar funcionando, como Haroldo bem observa dizendo se sentir no “sonho de algum acionista” diante do discurso consumista de Calvin, mostrando que aquele é o cenário perfeito para o sistema. Bauman conclui que a eco-nomia (e a síndrome) consumista envolve “velocidade, excesso e des-perdício”, que é exatamente o que Calvin quer para si e resume com o seu lema “desperdice e cobice”.

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A busca da felicidade é um tema bastante presente na sociedade atual. Para Bauman, o espírito moderno nasceu sob esse signo de buscar a felicidade. Ele diz que “cada membro é instruído, treinado e preparado para buscar a felicidade individual por meios e esforços individuais.” O filósofo político Ronald Dworkin concorda que a busca da felicidade é o que move o ciclo da vida, algo que foi aproveitado pelo sistema capitalista. “Tanto a indústria quanto a publicidade souberam e sabem tirar proveito dessa força motivacional universal para aumentar as vendas de todo tipo de mercadoria; mesmo das mais inúteis”, escreve ele. Como vimos com a tira 3, a ideia de vender a “felicidade” e “bons momentos” é bastante co-mum no meio da publicidade: “abra a felicidade” (Coca-Cola), “lugar de gente feliz” (Pão de Açúcar), “great times are coming” (“os bons momentos estão por vir” - Budweiser), “vem ser feliz” (Magazine Luiza) e “a TV mais feliz do Brasil” (SBT), são alguns exemplos de slogans que se utilizam desse método.

• Data: 11 de janeiro de 1993

TRADUÇÃO TIRA #11Haroldo: Esse boneco de neve não parece muito feliz.Calvin: E não está.Calvin: Ele sabe que é só uma questão de tempo até ele derreter. O sol ignora suas súplicas. Ele sente que sua existência é desprovida de significado.Haroldo: E é?Calvin: Não. Ele está prestes a comprar uma TV de tela grande

TIRA #11

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# Capítulo 3

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Em “Vida de Consumo”, Bauman diz que o valor mais carac-terístico (o valor supremo) da sociedade de consumidores é uma vida feliz, em que todos os outros valores existem para justificar seu mérito. “A sociedade de consumidores talvez seja a única na história humana a prometer felicidade na vida terrena, aqui e agora e a cada ‘agora’ sucessivo. Em suma, uma felicidade instantânea e perpétua”, escreve o autor. Do outro lado, está a infelicidade. Para Bauman, a sociedade de consumidores também é a única sociedade que evita justificar e/ou legitimar qualquer espécie de infelicidade. Ela se re-cusa a tolerá-la e a apresenta como uma abominação que merece punição e compensação. A infelicidade é vista como um desvio que desqualifica seu portador como membro autêntico da sociedade.

Estar infeliz significa ser “fracassado”, “perdedor”. Em contra-partida, o “sucesso” está associado à riqueza material. Com a pressa na rotina dos indivíduos, sem tempo para viver de modo feliz, a publicidade vende a felicidade em caixinhas. A expectativa de ser feliz pela aquisição do produto é frustrada por não preencher o sentimento de infelicidade. Para resolver isso na lógica capitalista, somente uma nova rodada de compras daria conta. Para Alexan-dre Volpi, a sociedade de consumo passou a ver a felicidade menos como um meio pelo qual se vive e mais como um fim a que se chega. Para ele, o sistema capitalista achou um jeito de colocar “a felicidade, o bem-estar, o conforto e o sucesso dentro de objetos e projetos de consumo”.

Analisando a tira 11 de Calvin e Haroldo, o boneco de neve é uma clara metáfora para o ser humano. Ele está triste por sa-ber que sua vida irá acabar e sente que sua existência não tem significado. Ao mesmo tempo, os humanos sabem que um dia irão morrer e dúvidas como o sentido da existência são comuns. O problema é “resolvido” por Calvin dizendo que o boneco de neve encontrará o sentido de sua existência (e consequente-mente sua felicidade) comprando uma televisão de tela gran-de. O filósofo Gilles Lipovetsky, autor de diversos livros como “Os Tempos Hipermodernos”, diz que “ninguém duvida de que, em muitos casos, a febre de compras seja uma compensação, uma maneira de consolar-se das desventuras da existência, de preencher a vacuidade do presente e do futuro”. A compra de produtos é vista como uma resolução para as incertezas e angústias que são comuns à natureza humana. A propaganda se aproveita vendendo não só a mercadoria, mas também a “felicidade” para preencher esse sentimento de incompletude. Como diz Naomi Klein para o documentário “Persuaders”, a questão não está nem na qualidade do produto (e se um é su-perior ao outro), mas no fato de que a mercadoria não vai sa-tisfazer todas as necessidades e sentimentos humanos. Para as empresas isso é bom, já que significa que o consumidor irá às compras novamente.

A busca da felicidade na sociedade de consumidores está

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na esperança de ser feliz. Para Bauman, “estamos seguros em relação à infelicidade enquanto uma parte dessa esperança ain-da palpita. E, portanto, a chave para a felicidade e o antídoto da

miséria é manter viva a esperança de ficar feliz”. Esperança que será mantida com a expectativa de comprar uma televisão de tela grande. Ou com qualquer que seja a próxima compra.

Após a análise dessas 11 tiras de Calvin e Haroldo, fica clara a visão anticapitalista de Bill Watterson. O autor cria situações com os seus personagens que remetem à criticas efetivas aos padrões do sistema capitalista em diversos níveis, mas sobretudo à publicidade e como ela afeta os indivíduos.

Watterson se utiliza das personalidades bem definidas de seus personagens em Calvin e Haroldo para trabalhar com visões opostas. Calvin mostra ideias associadas ao pensamento coletivo da socieda-de de forma geral e é facilmente influenciado pelos padrões de con-sumo. Já Haroldo impõe, de maneira sutil com ironias e sarcasmos, a oposição a esta corrente de pensamentos. Ele é o responsável por dar voz ao próprio Watterson, fazendo críticas às necessidades que o sis-tema capitalista possui para sobreviver. Os pais de Calvin seguem a mesma linha de Haroldo. Eles também se opõem ao filho ao mostrar uma visão simples da vida, sem ser necessário comprar para ser feliz.

Apesar de Watterson ter escrito e desenhado as tiras de Calvin e Haroldo entre 1985 e 1995, as histórias que mostram a visão anti-

capitalista do autor são cada vez mais atuais. De lá para cá, o sistema apenas se fortaleceu. O consumismo virou “hiperconsumismo”; as crianças se tornam consumidoras cada vez mais cedo e a infância é praticamente esquecida; a publicidade investe em novas formas para sempre conectar seus produtos e marcas aos indivíduos. É nesse contexto que podemos ver a perspicácia (e por que não a genialida-de?) de Bill Watterson, ao enxergar situações que já aconteciam no seu tempo, há quase trinta anos atrás, e que só se tornaram maiores com o passar dos anos. Além disso, muitas dessas discussões passam despercebidas no nosso dia-a-dia, e Watterson foi capaz de trazê-las de modo divertido para a vida de milhões de pessoas. Ele é crítico, mas sem ser chato. O autor induz o leitor a pensar e repensar os seus padrões de vida e consumo, podendo levar à grande pergunta: o quanto de mim sou eu mesmo e quanto é afetado pela publicidade? Bill Watterson, com certeza, buscava ser o menos influenciável pos-sível e passava adiante a sua visão anticapitalista por meio das tiras de Calvin e Haroldo.

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Considerações Finais#Consideraçõesfinais

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Não sei bem certo quando foi a primeira vez que li Calvin e Haroldo. Tendo sido uma história em quadrinhos que tive con-tato minha infância inteira, para mim os personagens sempre estiveram ali, esperando para serem lidos e algo de que sempre gostei. Também não tenho certeza, mas acredito que foi em 2007 que descobri a questão do não-licenciamento de produtos de Calvin quando meu pai me entregou um artigo que falava sobre Calvin e Haroldo. “Então é por isso que não existem produtos de Calvin!”. Isso era estranho se levarmos em conta que Snoopy e Garfield podem ser vistos facilmente todos os dias em mochilas, camisetas e onde quer que seja. Aquilo me interessou muito. Por-que alguém deixaria de ganhar dinheiro e dar mais visibilidade aos seus personagens? Guardei aquele artigo em uma gaveta e deixei-o ali, esperando.

Em 2008, eu estava no terceiro ano do colegial e precisava fazer um Trabalho de Conclusão de Curso, algo que não é tão comum em colégios. Não consegui pensar em muitos temas, en-tão resgatei o artigo que estava há meses na minha gaveta. Eu já o havia guardado pensando na possibilidade de fazer meu traba-lho sobre Calvin e Haroldo e, sem encontrar outra coisa que me interessasse, foi o que levei para frente. Também me interessava a questão de que esse não era um assunto muito abordado. Não havia livros e discussões a respeito. Terminei fazendo um traba-lho de 30 páginas que, tendo relido antes de escrever esse livro, ainda não sei como pude ter tirado nota máxima. As análises se baseavam somente no eu achava na minha cabeça e a parte sobre a história de Bill Watterson era rasa. Claro que pesou em meu

favor o baixo rigor por ser tratar de um trabalho para o colégio. Quando precisei escolher meu tema para o TCC da PUC-

-SP, tive poucas dúvidas. Queria me aprofundar no assunto e fa-zer um trabalho “de verdade”. Li tudo que encontrei sobre Bill Watterson e tentei fazer uma análise mais pertinente de sua obra, estudando autores que falam sobre capitalismo, publicidade e a influência desse sistema na sociedade.

É evidente que o trabalho não poderia começar direto na análise. Era necessário um contexto para o leitor, que eu bus-quei fazer nos dois primeiros capítulos. O primeiro, de forma mais geral, busca mostrar tudo o que aconteceu com as histó-rias em quadrinhos antes de Calvin e Haroldo. Aproveitei tam-bém para abordar mais intensamente Krazy Kat, Pogo e Pea-nuts, as três principais influências da tira de Bill Watterson. O segundo, específico sobre Calvin e Haroldo, buscou introduzir o leitor no universo da tira. A intenção era contar desde como surgiu a história em quadrinhos, as relações de seus persona-gens e a visão de Bill Watterson sobre o licenciamento de sua obra, que reflete a sua visão sobre o capitalismo em si. Muni-do desse conhecimento sobre as ideias de Watterson, a análise das tiras, guardada para o capítulo final, buscava mostrar o que estava além daquela “simples” história em quatro quadros. O que elas querem realmente dizer? Qual era o contexto da época? Quais valores elas passam? Mas agora já está um pouco tarde para fazer perguntas. Espero que você, leitor, tenha aproveitado Calvin e Haroldo – A Visão Anticapitalista de Bill Watterson, e conseguido algumas respostas. 129 #

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Bibliografia Selecionada#LivrosBAUMAN, Z. Vida pra Consumo. Rio de Janeiro, RJ: Zahar, 2008BIBE-LUYTEN, S.M. História em quadrinho – leitura crítica. 3ª ed. São Paulo: Edições Paulinas.1984.______ O que é história em quadrinhos. 2ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1987CHINEN, N. Linguagem HQ: Conceitos Básicos. São Paulo: Criativo, 2011.KLEIN, N. Sem Logo. Rio de Janeiro, RJ: Record, 2002MARTELL, N. Looking for Calvin and Hobbes – The Unconventional Story of Bill Watterson and his Revolutionary Comic Strip. Estados Unidos: Continuum, 2009MOYA, A. História da história em quadrinhos. 2ª ed. São Paulo, SP: Brasiliense, 1993.ROCHA, E. Magia e Capitalismo. 3ª ed. São Paulo, SP: Brasiliense, 1995SABIN, Roger. Going underground. Comics, Comix & Graphic Novels: A History Of Comic Art. Londres, Reino Unido: Phaidin Press, 1996WATTERSON, B. Os dez anos de Calvin e Haroldo. Cambuci, SP: Best News, 1996._______ The Complete Calvin and Hobbes. Kansas City, Estados Unidos: Andrews McMeel Publishing, 2005

FilmesCRIANÇA A Alma do Negócio. Direção: Estela Renner. Instituto Alana, 2008THE MERCHANTS of Cool. Direção: Douglas Rushkoff. PBS, 2001THE PERSUADERS. Direção: Douglas Rushkoff. PBS, 2004

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SitesBarnacle Press, http://www.barnaclepress.com/list.php?directory=BusterBrownBBC, http://news.bbc.co.uk/2/hi/americas/8529504.stm Digestivo Cultural, http://www.digestivocultural.com/colunistas/coluna.asp?codigo=212&titulo=Charge,_ Cartum_e_CaricaturaEphemeral Landscapes, http://homes.chass.utoronto.ca/~mfram/index.htmlGilbert Seldes, http://xroads.virginia.edu/~HYPER/SELDES/ch15.htmlIgnatz, http://ignatz.brinkster.net/cforeword.htmlIgnatz Mouse, http://www.ignatzmouse.net/us/archives/tfu/pic.jsp?n=53Impulso HQ, http://impulsohq.com/noticias/o-pai-do-quadrinho-no-brasil/#more-11041Lambiek, http://lambiek.net/artists/t/topffer.htmO Camundongo, http://gutenberg.spiegel.de/buch/4179/1Okeswamp, http://www.okeswamp.com/pogo.htmOld Cononino, http://www.old-coconino.com/sites_auteurs/herriman/mng_herriman.htmOmelete, http://omelete.uol.com.br/quadrinhos/angelo-agostini-pioneiro-dos-quadrinhos/Patrício Jr, http://www.patriciojr.com.br/opiniao-quadrinhos-140-anos-de-historias-no-brasil-por-milena-azevedo/Robert Crumb, http://www.crumbproducts.com/ Stuart Bingham, http://web.archive.org/web/20070324030717/http://www.stuartbingham.info/pages/research/hogarth.htmlThe Guardian, http://www.guardian.co.uk/uk/2003/nov/19/education.highereducation The Straight Dope, http://www.straightdope.com/columns/read/2839/whatever-happened-to-buster-brown-shoesThe Yellow Kid, http://xroads.virginia.edu/~ma04/wood/ykid/intro.htmTime, http://www.time.com/time/specials/packages/article/0,28804,1989458_1989457_1989441,00.htmlTintin, http://us.tintin.com/Toonopedia, http://www.toonopedia.comUnicamp, http://www.unicamp.br/iel/memoria/Ensaios/LiteraturaInfantil/jucaechico/jccapa1.htm

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