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403 A Visão Brasileira da Futura Ordem Global* Daniel Flemes** Ponto de Partida: Uma Ordem Global em Mudança Recentemente, muitos estudos têm apontado para uma mudança de poder global favorável aos BRICs (Brasil, Rússia, Índia e China) e a outras potências emergentes (GOLDMAN SACHS, 2007; COOPER; ANTKEIWICZ, 2008; MAHBUBANI, 2008). Espera-se que os polos de poder até então existentes na Europa e na América do Norte per- cam poder militar e econômico relativo. E chega-se mesmo a contestar a dominação dos valores e da cultura ocidentais (COX, 2007; IKEN- BERRY, 2008; ZAKARIA, 2008). O papel mais protagonista das potências emergentes na economia mundial e na governança global após a bipolaridade vem sendo discutido sob os rótulos de potências emergentes, grandes potências, potências intermediárias e Estados pivotais (CHASE et al., 1996; SCHOEMAN, 2003; HAKIM, 2004; SOARES DE LIMA; HIRST, 2006; HURRELL, 2006; FLEMES, 2007a). Debates relacionados tratam da ascensão e queda de “hiperpotên- cias” (CHUA, 2008) e da teoria de transição de poder, focada nas Artigo recebido em março e aceito para publicação em maio de 2010. Traduzido por Victor Coutinho Lage. E-mail: [email protected]. Pesquisador do German Institute of Global and Area Studies (GIGA) e membro do Regional Powers Network (RPN). E-mail: [email protected].

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A Visão Brasileira da Futura Ordem Global* Daniel Flemes**

Ponto de Partida: Uma Ordem Global em Mudança

Recentemente, muitos estudos têm apontado para uma mudança de poder global favorável aos BRICs (Brasil, Rússia, Índia e China) e a outras potências emergentes (GOLDMAN SACHS, 2007; COOPER; ANTKEIWICZ, 2008; MAHBUBANI, 2008). Espera-se que os polos de poder até então existentes na Europa e na América do Norte per-cam poder militar e econômico relativo. E chega-se mesmo a contestar a dominação dos valores e da cultura ocidentais (COX, 2007; IKEN-BERRY, 2008; ZAKARIA, 2008). O papel mais protagonista das potências emergentes na economia mundial e na governança global após a bipolaridade vem sendo discutido sob os rótulos de potências emergentes, grandes potências, potências intermediárias e Estados pivotais (CHASE et al., 1996; SCHOEMAN, 2003; HAKIM, 2004; SOARES DE LIMA; HIRST, 2006; HURRELL, 2006; FLEMES, 2007a).

Debates relacionados tratam da ascensão e queda de “hiperpotên-cias” (CHUA, 2008) e da teoria de transição de poder, focada nas

Artigo recebido em março e aceito para publicação em maio de 2010. Traduzido por Victor Coutinho Lage. E-mail: [email protected]. Pesquisador do German Institute of Global and Area Studies (GIGA) e membro do Regional Powers Network (RPN). E-mail: [email protected].

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formas específicas de conflitos que são gerados entre Estados e-mergentes e hegemônicos (ORGANSKI; KUGLER, 1980; GILPIN, 1981; TAMMEN et al., 2000). A mesma questão tem sido abordada pela perspectiva da geopolítica (OVERHOLT, 2008) e das hierar-quias internacionais de poder (LAKE, 2007). O recente debate a respeito da unipolaridade (IKENBERRY et al., 2009) centra-se no argumento neorrealista de que poderes estabelecidos e emergentes irão tanto buscar a dominação hegemônica em suas próprias regi-ões quanto tentar enfraquecer a posição de outras potências dentro de suas regiões (WOHLFORTH, 1999; HUNTINGTON, 1999; MEARSHEIMER, 2001). A teoria da balança de poder prevê que os Estados responderão ao poder concentrado com vários tipos de balanceamento de poder (WALTZ, 2000; LEVY, 2003; PAPE, 2005; LIEBER; ALEXANDER, 2005). Outros trabalhos questio-nam se a transformação sistêmica se desdobrará em um concerto ou cartel de potências (KAGAN, 2008), em um “mundo não polar” (HAASS, 2008), em uma “instável multipolaridade” (HUM-PHREY; MESSNER, 2006), uma “multi-multipolaridade” (FRI-EDBERG, 1994; NOLTE, 2008) ou uma “ordem mundial multirre-gional” (HURRELL, 2007; FLEMES, 2008a).

Contudo, o ponto de partida é a atual ordem global, que reflete uma mistura de um concerto de grandes potências e de estruturas multirre-gionais. Ela consiste, de um lado, na União Europeia como uma região relativamente funcional e, de outro, em muitas grandes potências sem regiões funcionais, como os Estados Unidos, a China, a Rússia e a Índia. O Brasil (assim como a África do Sul) está agora em uma en-cruzilhada e pode buscar ativamente estratégias globais com ou sem sua região. As escolhas e estratégias dos formuladores de política externa brasileira afetarão a balança entre as concepções supracitadas de ordem global. As posições de potências do Sul como o Brasil, por um lado entre o centro e a periferia da atual ordem global e, por outro, no nexo das políticas internacional e regional, demandam estratégias de política externa particularmente complexas. Abordagens estratégi-cas precisam considerar ao menos três fatores contextuais: primeiro, a contínua superioridade de atores globais estabelecidos (EUA) e emer-

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gentes (China), em termos de poder material; segundo, o fato de as questões regionais e globais estarem cada vez mais inter-relacionadas; e, terceiro, o fato de as estratégias de política externa serem mapeadas em relação a um pano de fundo de um sistema internacional que se move de uma ordem unipolar para uma multipolar.

Com base nessas observações, este artigo abordará, em primeiro lugar, a concepção brasileira da futura ordem global; em segundo lugar, as estratégias de política externa perseguidas por Brasília com vistas a contribuir para esta ordem global; e, em terceiro lugar, se a região do Brasil representa uma ajuda ou um obstáculo na realização de suas metas globais.

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Historicamente, a política externa brasileira pode ser dividida em duas tradições de pensamento. Uma enfatizou as relações com os Estados Unidos e com alguns Estados europeus, a fim de promover o comércio bilateral e adquirir reconhecimento internacional. A outra foi baseada na identidade do Brasil como um país em desenvolvimento e objeti-vou construir uma rede de “terceiro-mundismo” (JAGUARIBE, 2005). A partir dessa perspectiva, as primazias do desenvolvimento e do multilateralismo são dois legados que condicionam a política ex-terna do Brasil até hoje (SOARES DE LIMA; HIRST, 2006). Os go-vernos do presidente Lula da Silva foram bem-sucedidos em conectar essas diferentes tradições, enfatizando uma “política externa autôno-ma” (SOARES DE LIMA, 2008, p. 64). A busca por autonomia “deve levar à participação ativa do Brasil na criação e aplicação de normas internacionais que forem mais próximas dos valores e interesses brasi-leiros” (PINHEIRO GUIMARÃES, 2006).

A partir de uma perspectiva realista, os Estados buscarão o tipo de ordem global que lhes permita exercer maior influência nas questões mundiais. Ordens globais diferentes, como um concerto de grandes potências ou um sistema multirregional, determinarão os variados graus de influência de potências regionais, intermediárias e grandes. Portanto, a concepção ideal de ordem global de Brasília depende também de sua autopercepção como

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uma potência regional, intermediária ou grande. Esse pré-requisito bas-tante simples complica de várias maneiras a abordagem. Em primeiro lugar, a autopercepção pode não ser idêntica tanto à realidade quanto à percepção de outros. Em segundo lugar, nem todas as categorias se ex-cluem mutuamente, de forma que os Estados podem desempenhar, por exemplo, os papéis de potências regionais e intermediárias ao mesmo tempo. E, em terceiro lugar, é preciso que não apenas identifiquemos o(s) papel(is) do Brasil na atual ordem global, mas também que avaliemos seu papel global no médio prazo.

O Brasil é uma potência regional na América do Sul. Diferentes autores esforçaram-se para desenvolver um conceito de potência regional no sistema internacional (ØSTERUD, 1992; SCHOEMAN, 2003; SCHIRM, 2005; NOLTE, 2007; FLEMES, 2007c). A maior parte desses autores concorda que uma potência regional (1) é parte de uma região geografi-camente delimitada; (2) está pronta para assumir a liderança; (3) ostenta as capacidades necessárias para projeção de poder regional; e (4) é alta-mente influente em questões regionais. Em contribuição anterior, de-monstrei que o Brasil cumpre esses requisitos básicos (FLEMES, 2007b). É controverso se, por um lado, a aceitação por parte de potenciais segui-dores e, por outro lado, a interconexão econômica, política e cultural da potência regional dentro de sua região são precondições ulteriores para o status de poder regional. Eu argumento que a existência e a participação do Estado dominante em instituições regionais é um pré-requisito para a aceitação regional. De fato, sua incorporação nos processos de tomada de decisão regionais e a representação dos respectivos resultados em negoci-ações globais marcam a principal diferença entre hegêmonas globais e meras grandes potências, as quais em geral também cumprem os quatro requisitos supracitados.

O Brasil, diferentemente dos EUA e da China, não pode ter esperança de se tornar uma potência dominante em qualquer que seja a futura ordem global, em razão de lhe faltarem recursos materiais. O Brasil não é uma grande potência. Grandes potências são aqueles Estados capazes, por meio de sua grande força econômica, política e militar, de exercer poder na diplomacia mundial. Suas opiniões devem obriga-toriamente ser levadas em consideração por outras nações antes que

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estas adotem uma ação diplomática ou militar. Em contraste com suas relações com meras potências regionais, os outros respondem às gran-des potências com base em cálculos de nível sistêmico sobre a distri-buição de poder presente ou no futuro próximo (BUZAN; WAEVER, 2003, p. 35). Hurrell (2006) menciona quatro critérios que caracteri-zam uma grande potência: (1) capacidade de contribuir para a ordem internacional; (2) coesão interna que permite uma efetiva ação estatal; (3) poder econômico, como altas taxas de crescimento econômico ou um amplo mercado; e (4) poder militar, com a habilidade para compe-tir com outras potências dominantes em uma guerra convencional. O Brasil definitivamente não satisfaz o último critério. Em razão disso, não parece provável, a princípio, que a concepção brasileira da futura ordem global se caracterize por “anarquia e luta por poder” (MEAR-SHEIMER, 2001).

O Brasil pode ser definido como uma potência intermediária, no in-tuito de serem enquadrados seu comportamento e suas opções de polí-tica externa ao nível global (FLEMES, 2008a). Vários atributos foram utilizados para caracterizar as potências intermediárias. Alguns auto-res as definiram pelos seus recursos de poder, como suas capacidades militares (WIGHT, 1978, p. 65) ou sua base demográfica e econômica (KELLY, 2004). Ainda que o potencial econômico das potências e-mergentes (WILSON; PURUSHOTHAMAN, 2003) tenha que ser levado em consideração, seus recursos materiais acabam tendo uma posição inferior quando se trata de barganhas em questões globais. O governo brasileiro e, em particular, os diplomatas do Itamaraty estão cientes de que o Brasil ainda não pode competir com as grandes po-tências estabelecidas. Muitos estudiosos aceitaram uma definição de potências intermediárias que é baseada em seu comportamento inter-nacional, e não no seu poder material. De acordo com a definição comportamental, as potências intermediárias engajam-se em middle-powermanship:*

* O termo middlepowermanship poderia ser traduzido como “comportamento próprio de potências médias”. Opta-se, no entanto, por conservar o termo no original, em inglês. Agradeço ao professor doutor Eugênio Diniz pela sugestão supracitada. (N. do T.)

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[…] a tendência a buscar soluções multilaterais

para problemas internacionais, a tendência a adotar posições de compromisso em disputas internacionais e a tendência a adotar noções de “boa cidadania internacional” para guiar a di-plomacia. (COOPER et al., 1993, p. 19).

Potência intermediária é um termo usado na disciplina de Relações Internacionais para descrever Estados que não possuem status de gran-des potências, mas que possuem influência internacional. Keohane (1969, p. 298) define potências intermediárias como Estados cujos líde-res reconhecem que não podem agir de maneira efetiva sozinhos, mas que podem ser capazes de ter impacto sistêmico em um pequeno grupo ou por meio de uma instituição internacional. Logo, a meta geral de um Brasil que se enxergue como uma potência intermediária deve ser obri-gatoriamente a criação de um arcabouço comum de regras e instituições de governança global ou uma ordem de potências intermediárias. Con-forme Cox (1996, p. 245), uma potência intermediária apoia o processo de organização internacional, em razão de seu interesse em um ambien-te estável e ordenado, em vez da imposição de uma visão ideologica-mente preconcebida de uma ordem mundial ideal.

No entanto, a tese subjacente a este artigo é a de que o Brasil tem uma visão de uma ordem global melhor. Podemos concluir, portanto, que as vestes de potência intermediária já estão demasiado apertadas para o Brasil? No mínimo, a existência de sua própria concepção de ordem global indica que a (prospectiva) autopercepção dos formuladores de política externa brasileira excede as limitações do status de mera po-tência intermediária. Em adição a isso, suas expectativas em relação a um status de grande potência no médio prazo são fomentadas por previsões de progressivo crescimento econômico (GOLDMAN SA-CHS, 2007). O Brasil ainda não se qualifica para um lugar no rol das grandes potências, todavia seu governo não está disposto a ser classi-ficado junto com o “resto medíocre” e está buscando fortalecer sua influência e prestígio, com vistas a se tornar uma grande potência na futura ordem global. Se essas premissas estiverem adequadas, será racional para Brasília ambicionar uma ordem de grandes potências ou

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um concerto de grandes potências. Nesse caso, a meta primordial consistiria em ascender na hierarquia internacional dos Estados de modo relativamente independente das práticas políticas aplicadas e das estruturas mais ou menos institucionalizadas.

Em tal mundo, cada grande potência tentaria maximizar sua parte no poder mundial, o que significa auferir poder em detrimento de outros Estados (MEARSHEIMER, 2001, p. 2). Contudo, quais Estados per-derão poder se o Brasil ganhar mais: Estados regionais ou outras grandes potências? Isso depende da decisão básica de Brasília em incluir ou não os interesses regionais em sua estratégia global. A deci-são poderia variar de acordo com as diferentes áreas temáticas, porém a existência de práticas participativas de tomadas de decisão indicaria que Brasília busca incluir interesses regionais e luta por um sistema multirregional de relações internacionais ou uma ordem de potências regionais. A distinção entre ordens de potências grandes, intermediá-rias e regionais é artificial e, obviamente, uma simplificação para fins analíticos. Ao fim, avaliaremos o balanço entre essas concepções em diferentes áreas temáticas (comércio e questões de segurança), e não sua detecção no mundo real. Por ora, a distinção analítica servirá para enquadrar as potenciais opções estratégicas do Brasil em cada uma dessas concepções de ordem global.

Antes de lidar com as estratégias globais do Brasil na próxima seção, considerarei outro fator que pode influenciar a visão de Brasília a respeito da futura ordem global. Os diplomatas da Presidência e do Itamaraty não definirão as metas de política externa e as estratégias conexas simplesmente com base nos (potenciais) recursos do país e na ordem ideal com o objetivo de converter esses recursos em influência política. Eles ainda tentarão avaliar a probabilidade de cenários alter-nativos de ordem global com base em cálculos ao nível sistêmico.

Nesse aspecto, o comportamento dos Estados Unidos e o seu potencial posicionamento na futura ordem global são de grande relevância. Não podemos esperar pelo completo declínio da superpotência em breve. Ao contrário, a distribuição global de capacidades militares, econômicas e de pesquisa e desenvolvimento indica uma unipolaridade sistêmica que pode perdurar por muitas décadas (IKENBERRY et al., 2009). Em especial, a

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superioridade militar dos Estados Unidos é muito acentuada e sua indús-tria de defesa está se beneficiando de retornos crescentes de escala (CA-VERLEY, 2007). Além disso, a mudança de governo dos Estados Unidos pode gerar a legitimidade internacional que definhou durante a adminis-tração de George W. Bush. Barack Obama se empenhará na restauração da autoridade moral dos Estados Unidos (SLAUGHTER, 2009). No entanto, potências emergentes como o Brasil não são confrontadas apenas com uma potência de status quo. Muitas grandes potências estabelecidas estão lutando para defender suas prerrogativas, protegidas por um denso sistema de relações econômicas, políticas e de segurança, incluindo uma comunidade de segurança entre algumas das potências líderes (IKEN-BERRY; WRIGHT, 2008).

Essas observações reforçam o prospecto de uma ordem de grandes potências, que se imagina que seja propensa ao conflito (MEAR-SHEIMER, 2001; KAGAN, 2007). Contudo, três argumentos sugerem a menor probabilidade de amplos conflitos entre as grandes potências do mundo. Primeiro, guerras de grandes potências como veículos de transição de poder não são prováveis, em razão da posse e do potenci-al uso de armas nucleares pelas grandes potências. Portanto, a expec-tativa é de que a redistribuição violenta de poder seja um jogo de so-ma zero. Segundo, a ordem internacional existente é mais aberta, insti-tucionalizada, consensual e baseada em regras do que as ordens inter-nacionais passadas. Assim, na perspectiva das potências emergentes, ela é mais fácil de aderir e mais difícil de derrubar, uma vez que lhes provê algumas proteções (por exemplo, as regras de não discriminação da Organização Mundial do Comércio (OMC)) e essas potências po-dem ascender por meio das hierarquias de instituições internacionais (IKENBERRY; WRIGHT, 2008). E, terceiro, na perspectiva dos Es-tados Unidos, pode ser aconselhável para o país fomentar instituições globais, considerando que seu papel hegemônico declinará nos próxi-mos anos. O valor de regras e instituições pode crescer, na medida em que essas regras possam ajudar a resguardar a ordem internacional preferida. Pode-se esperar que os Estados Unidos reformem e consoli-dem as instituições internacionais, tornando-as capazes de perdurar

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“após a hegemonia”, ao mesmo tempo refletindo interesses e valores dos próprios Estados Unidos (KEOHANE, 1984; IKENBERRY, 2001). Essas instituições formais ou clubes informais de governança possibilitam ao país reduzir a parte de seu fardo, por meio da negocia-ção de um novo conjunto de barganhas com o Brasil e outras potên-cias emergentes (HURRELL, 2010, p. 63). O cenário de instituições globais funcionais ou comitês diretores informais e, portanto, modos de tomada de decisão mais ou menos baseados em regras reflete fortes elementos de uma ordem de potências intermediárias.

Em comparação, poucos eventos na arena global sugerem a emergên-cia de uma ordem de potências regionais. A maioria dos Estados do-minantes não opera com base em processos de cooperação regional e instituições regionais funcionais. Até então, a União Europeia é um caso desviante no sistema internacional. E, como Hurrell (2009) nos lembra, as grandes potências bem-sucedidas são exatamente aquelas que não precisam ser potências regionais e podem evitar imbróglios regionais custosos. De acordo com essa visão, não ser uma potência regional pode ser a rota para um bem-sucedido status de grande po-tência. Porém, ao menos dois importantes fatores distinguem o Brasil de “grandes potências solitárias”, como os Estados Unidos, a China, a Rússia e a Índia. Primeiro, os processos de cooperação regional na América do Sul, como o Mercado Comum do Sul (Mercosul) e a Uni-ão de Nações Sul-Americanas (Unasul), são mais institucionalizados do que, por exemplo, a Associação Sul-Asiática para a Cooperação Regional (SAARC, na sigla em inglês) ou a Organização de Coopera-ção de Xangai (SCO, na sigla em inglês). Segundo, a base de poder material do Brasil é comparativamente modesta e sua necessidade de adquirir peso nas barganhas globais pode torná-lo mais dependente de sua região. Dessa forma, sua rota para o status de grande potência pode conduzi-lo à América do Sul. Considerando os recursos materi-ais superiores dos outros países dos BRICs, Brasília pode experimen-tar um rude despertar do seu sonho de grande potência, caso negligen-cie seus potenciais aliados regionais.

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No entanto, os cálculos em nível sistêmico dos formuladores de políti-ca externa do Brasil sugeririam que eles tivessem uma expectativa de uma futura ordem global moldada por grandes potências por meio de instituições internacionais. Portanto, a grande estratégia do Brasil teria que consistir em uma combinação de abordagens associadas às gran-des e às intermediárias potências. O status de potência regional será visto no máximo como um trampolim em direção ao desejado status de grande potência.

Perseguindo Metas de Grande Potência por meio de um Discurso de Potência Intermediária?

A meta primordial das potências intermediárias é a criação de regras e instituições de governança global. Por conseguinte, os objetivos de política externa das potências intermediárias sobrepõem-se aos “fins civis” (MAULL, 1990; DUCHÊNE, 1973) de política externa, defini-dos como cooperação internacional, solidariedade, domesticação das relações internacionais, responsabilidade pelo meio ambiente global e difusão de igualdade, justiça e tolerância (DUCHÊNE, 1973, p. 20). Estas são “metas do ambiente social”, e não “metas de posse”, para usar a distinção de Arnold Wolfers (1962, p. 73-76). Metas de posse avançam o interesse nacional por meio da agregação de poder e são características das políticas externas de grandes potências. Metas do ambiente social almejam moldar o ambiente no qual os Estados ope-ram. Podem ser apenas meios para se alcançarem metas de posse, mas podem também ser metas que transcendem o interesse nacional e são amplamente compartilhadas. Em outras palavras, um senso de “res-ponsabilidade global” (SCHOEMAN, 2003, p. 351) está presente no caso de uma potência intermediária.

A categoria de potências intermediárias é particularmente promissora na explicação da estratégia comum e dos padrões de comportamento do Brasil e seus parceiros do Sul no Fórum de Diálogo entre Índia, Brasil e África do Sul (IBAS). O Fórum IBAS foi lançado em junho de 2003, em Brasília, pelos ministros de Relações Exteriores dos três Estados,

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como prosseguimento das conversas informais levadas a cabo durante o encontro do G8 em Evian. Em setembro de 2003, os chefes de governo fundaram o G3, durante a 58ª Assembleia Geral das Nações Unidas, e contribuíram de maneira crucial para o fracasso da conferência da OMC em Cancun, na medida em que fizeram pressão por mudanças funda-mentais nos regimes de subsídio agrícola do mundo desenvolvido. Jun-tos, Índia, Brasil e África do Sul estão fazendo lobby por uma reforma nas Nações Unidas e, em especial, no Conselho de Segurança, que con-cederia um papel mais forte para países em desenvolvimento da África, da Ásia e América Latina, tornando-o mais democrático, legítimo, re-presentativo e responsivo. Enquanto a iniciativa do IBAS pode, portan-to, ser vista como um esforço para crescimento do poder de barganha de nações em desenvolvimento, a cooperação entre África do Sul, Índia e Brasil está focada igualmente em áreas concretas de colaboração. Co-mércio, segurança energética e transporte são apenas as questões mais proeminentes na colaboração setorial do IBAS. O IBAS pode ser carac-terizado, então, tanto como uma aliança estratégica na busca por inte-resses comuns em instituições globais, quanto como uma plataforma para cooperação Sul-Sul bilateral, trilateral e inter-regional. A coopera-ção setorial deve formar uma sólida base para diplomacia trilateral nas questões mundiais (FLEMES, 2007a).

A liderança funcional do IBAS/G3 tem sido mais evidente nas negoci-ações da OMC. Liderando a coalizão G21 dos países em desenvolvi-mento na Rodada de Doha, Índia, Brasil e África do Sul demandaram o estabelecimento de condições de mercado global que permitiriam aos países em desenvolvimento se beneficiar de suas vantagens com-parativas na agricultura, na indústria e nos serviços. Assim, a trinca* cooperou com a visão em defesa da eliminação das altas barreiras não tarifárias ao comércio impostas pelos países desenvolvidos. Outras demandas almejam reformar as instituições de Bretton Woods: a legi-timidade do Fundo Monetário Internacional depende de uma reforma em seu sistema de cotas que o torne mais representativo do mundo em

* No original, o termo utilizado é troika. A tradução do mesmo por trinca perde parte da polissemia do termo original. Troika significa tanto um trio quanto uma carruagem puxada por três cavalos; assim, estar-se-ia fazendo a alusão ao grupo de países emergentes que estariam avançando no sistema interna-cional. (N. do T.)

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desenvolvimento; a presidência do Banco Mundial tem sido sempre ocupada por um cidadão estadunidense e indicado pelo governo dos Estados Unidos, da mesma forma que o diretor-gerente do FMI tem sido sempre um europeu – para serem legítimos, ambos deveriam ser eleitos pelos membros das instituições, sem consideração de suas nacionalidades.

No entanto, a abordagem de potências médias pode explicar apenas parcialmente a estratégia dos Estados do IBAS. Há alguma evidência de que o engajamento do IBAS/G3 no middlepowermanship (COO-PER et al., 1993) em defesa dos princípios de boa cidadania global e do multilateralismo democrático seja uma mera bandeira discursiva para perseguir metas de posse ou de grandes potências. A meta pri-mordial das grandes potências consiste na agregação de poder e na ascensão na hierarquia internacional dos Estados. Em primeiro lugar, o G3 nem sempre falou em nome do Sul global: é verdade que as negociações na OMC fracassaram em razão de os países industrializa-dos não estarem dispostos a reduzir seus subsídios agrícolas em uma medida suficiente, porém o G3 não tem representado a rede de impor-tadores de alimentos, a maior parte de países menos desenvolvidos, que não está interessada na redução dos subsídios agrícolas na Europa e nos Estados Unidos que mantêm os preços baixos. A maioria dos países menos desenvolvidos são países da África subsaariana, do Sul da Ásia e da América do Sul, os quais não têm se sentido representa-dos por seus “líderes regionais”. Isso pode ser visto como um primeiro sinal de que a abordagem do Brasil (e do IBAS) é mais pluralista do que universalista em essência.

Em segundo lugar, enquanto as negociações na OMC pouco têm pro-gredido em termos de conteúdo, Brasil e Índia vêm sendo capazes de aprimorar suas posições na hierarquia do comércio internacional. Na conferência da OMC de 2004, em Genebra, eles foram convidados a formar o grupo de preparação do G5, junto com a União Europeia, os Estados Unidos e a Austrália. E, no encontro do G8 em 2007, na Ale-manha, Brasil, Índia e África do Sul (com China e México) foram convidados a formalizar seu diálogo com o clube elitista dos países industrializados mais ricos por meio do assim chamado processo de

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Heiligendamm ou O-5. Enquanto esses convites já refletem a aceita-ção e o reconhecimento crescentes do seu status (prospectivo) de grande potência pelas grandes potências estabelecidas, o encontro do G20 em Pittsburgh, em setembro de 2009, definiu um papel protago-nista ao Brasil e aos seus parceiros do IBAS, assim como a outras cinco economias emergentes da Ásia e da América Latina (China, Indonésia, Coreia do Sul, Argentina e México). O G20 se tornará o novo conselho permanente para cooperação econômica internacional e essencialmente substituirá o G8, que continuará a se encontrar para discutir questões primordiais de segurança, porém portará reduzida influência. O G20 decidiu em Pittsburgh prover apoio político para uma mudança na representação de países no FMI de ao menos 5%, em prol de mercados dinâmicos emergentes.

Em terceiro lugar, o discurso de justiça global do IBAS é duvidoso, tendo em vista que o Brasil e a Índia têm disputado (com Brasil e Japão) para serem membros permanentes do Conselho de Segurança das Nações Unidas. Índia e Brasil convidaram a África do Sul para aderir ao grupo, porém o país teve que se conformar às orientações da União Africana, que a impede de avançar sua candidatura por si pró-pria. O Painel de Alto Nível da ONU sugeriu um plano alternativo, mais participativo, de um sistema regular de rotação dos membros, que foi rejeitado por Índia e Brasil. Contudo, a expansão do Conselho de Segurança privilegiaria apenas poucos jogadores. Com vistas a alcançar a duradoura democratização da organização, a Assembleia Geral teria que ser fortalecida.

Na seção anterior, assumimos que a autopercepção do Brasil e os cálculos ao nível do sistema de seus formuladores de política externa conduziriam a uma combinação de estratégias de potências grandes e intermediárias. Um breve olhar sobre o comportamento de política externa em algumas instituições globais selecionadas sugere que os elementos de potência intermediária são principalmente discursivos ou “estratégicos”, ao passo que os elementos de grande potência são de fato os verdadeiros fins da política externa brasileira. Por conseguinte, a abordagem global de Brasília consistiria basicamente em estratégia discursiva que destaca sua função representativa para o mundo em

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desenvolvimento, em geral, e sua região, em particular, enquanto, concomitantemente, almeja tornar-se um membro do clube das gran-des potências. No entanto, é mais provável que um discurso duvidoso não seja suficiente para alterar a distribuição de poder em seu favor e para torná-lo capaz de ser um formulador de decisão global. Quais opções estratégicas complementares podem ser perseguidas pelo Bra-sil, com vistas a adquirir influência global, prestígio e poder de barga-nha?

Soft Balancing: Construção de Aliança Flexível em Instituições Globais

As opções de política externa do Brasil são limitadas, face ao esmagador poder material (hard power)* do atual hegêmona. Embora o Brasil (assim como a Índia e a África do Sul) desfrute de crescente influência, ainda está localizado na periferia do atual sistema mundial e comanda recursos materiais relativamente modestos. Uma razão crucial para a hegemonia dos Estados Unidos nas relações internacionais é sua supremacia militar. Washington contabiliza mais da metade do gasto global com defesa (SI-PRI, 2008) e 60% do gasto mundial com pesquisa e desenvolvimento (BICC, 2008). Em termos militares convencionais, o país permanecerá a potência global dominante por muito tempo. Como consequência, este é um tempo árduo para um balanceamento material baseado em alianças militares de compensação (balanceamento externo) e em acúmulo de armamentos (balanceamento interno).

Como Nye (2004) argumenta, a unipolaridade global real requer a dominação do hegêmona em dois campos adicionais: economia global e outros problemas transnacionais, como terrorismo, crime, aqueci-mento global e epidemias. Como demonstra a atual crise econômica, problemas transnacionais podem ser resolvidos apenas por meio da

* No original, o termo é hard power. Além de aparecer nesta frase, o termo é usado apenas mais uma vez no resumo (abstract) do texto original. A opção foi traduzir como “poder material”, ainda que hard power seja mais abrangente, incluindo não apenas o poder material, como a expectativa existente de que quem o possui estaria disposto ao seu emprego efetivo. Como o termo não aparece nenhuma outra vez, optou-se por apenas indicar entre parênteses sua ocorrência no original. Agradeço ao professor doutor Eugênio Diniz por me atentar para isso. (N. do T.)

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cooperação de muitos jogadores. Por conseguinte, estes devem obriga-toriamente ser os campos de jogos em que potências emergentes ad-quiram influência; seu sucesso dependerá em larga medida da solidez de seu jogo de equipe. O Brasil e seus pares já demonstraram sua habilidade em avançar suas metas, em especial as metas econômicas, na ordem existente. Em comparação, os ganhos esperados a partir de uma derrubada violenta da ordem internacional vigente são bastante limitados. Portanto, estratégias institucionais parecem ser as mais promissoras para impactar na hierarquia internacional dos Estados.

O soft balancing não desafia diretamente a preponderância militar dos Estados Unidos, e sim se utiliza de ferramentas não militares para adiar, frustrar e minar as políticas unilaterais da superpotência (PAPE, 2005, p. 10). O soft balancing envolve estratégias institucionais como a formação de coalizões ou alianças diplomáticas limitadas, como o IBAS, o G3 e o G21, para restringir o poder dos Estados Unidos e de outras grandes potências estabelecidas. Essa estratégia institucional é referida também como um “amortecimento” e almeja estender o espa-ço de manobra de Estados mais fracos vis-à-vis Estados mais fortes (GREENFIELD PARTEM, 1983; GRIES, 2005). Ela ainda envolve o fortalecimento de laços econômicos entre potências emergentes por meio de colaboração setorial. Isso poderia eventualmente alterar a balança de poder econômico no médio prazo. Paul (2005, p. 59) define três precondições para o comportamento de soft balancing:

(1) A posição de poder e o comportamento mi-

litar do hegêmona são de crescente preocupa-ção, porém ainda não representam um desafio sério à soberania de potências de segunda linha; (2) o Estado dominante é uma fonte primordial de bens públicos, tanto na área econômica quanto na de segurança, que não pode ser sim-plesmente substituída; e (3) o Estado dominante não pode facilmente retaliar, seja porque os es-forços de balanceamento dos outros não são ex-plícitos ou porque eles não desafiam diretamen-

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te sua posição de poder com meios militares. Enquanto perseguirem o soft balancing, Esta-dos de segunda linha poderiam se engajar com o hegêmona e desenvolver elos institucionais com ele, a fim de apartar possíveis ações retali-atórias.

Estratégias “vinculantes” almejam restringir Estados mais fortes por meio de acordos internacionais (IKENBERRY, 2003). E, de fato, Brasil, Índia e África do Sul mantêm elos com os Estados Unidos em uma variedade de áreas temáticas e em diferentes graus de institucio-nalização. Os presidentes Bush e Lula assinaram um acordo de coope-ração em biocombustíveis em março de 2007. Um acordo em coope-ração nuclear civil entre Estados Unidos e Brasil foi concluído nos anos 1990. Além disso, a Organização dos Estados Americanos (OE-A) conecta Washington e Brasília de diversas maneiras, e os dois Estados foram os negociadores fundamentais no processo da Área de Livre Comércio das Américas (ALCA).

Washington não ameaça a soberania das potências emergentes, e a coalizão de soft balancing conserva um baixo perfil. Após o primeiro encontro ministerial do Fórum IBAS, o ministro das Relações Exterio-res do Brasil, Celso Amorim, estava disposto a enfatizar que o IBAS não pretende criar novas divisões geopolíticas: “Este é um grupo para difusão da boa vontade e da mensagem de paz – nós não somos contra ninguém” (apud MILLER, 2005, p. 52).

A afirmação do diplomata pode ser desmentida em certa medida, ten-do em vista as ferramentas de soft balancing usadas pelos Estados do IBAS. Pape (2005, p. 36-37) menciona negação territorial, imbróglios diplomáticos e fortalecimento econômico como mecanismos de soft balancing. Os Estados podem negar o acesso a seu território para utilização dos mesmos como palcos de forças terrestres dos Estados Unidos e como trânsito de forças aéreas e navais. Embora essas medi-das bastante ásperas sejam raras nas relações bilaterais das três potên-cias do Sul com os Estados Unidos, há evidências de negação territo-rial ao menos no caso brasileiro. Um pedido da ministra das Relações

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Exteriores dos Estados Unidos, Madeleine Albright, foi rejeitado em 2002: ela pediu à Brasília o direito de usar bases aéreas brasileiras e outras instituições militares na região da Amazônia, porém Brasília recusou estritamente o estabelecimento de bases militares dos Estados Unidos em seu território, assim como a concessão de direitos de tra-vessia para os aviões militares no conflito colombiano (FLEMES, 2006, p. 243). Além disso, a despeito do duradouro interesse do Pen-tágono pelo caso indiano, não há bases militares dos Estados Unidos na Índia ou na África do Sul.

Contudo, os instrumentos mais importantes de política externa empre-gados pelo Brasil e seus parceiros do IBAS são o que Paul (2005, p. 57) chamou de “imbróglio diplomático” e “fortalecimento econômi-co”. Este último almeja alterar o poder econômico relativo por meio de blocos comerciais e outros tipos de colaboração setorial que eleva-riam o crescimento econômico dos membros, ao passo que afastariam o comércio dos não membros. O imbróglio diplomático, por seu turno, descreve o uso de regras e procedimentos de instituições internacio-nais que visam influenciar a política externa primária do Estado:

De fato, a soberania pode ser cada vez mais de-finida não pelo poder de insular um Estado de influências externas, mas pelo poder de partici-par efetivamente em instituições internacionais de todos os tipos. […] Não existe grande dúvida sobre as vantagens que com frequência levam Estados intermediários a favorecer o multilate-ralismo e as instituições […]: o grau em que instituições proveem espaço político para a construção de novas coalizões, com vistas a ten-tar e tornar efetivas normas emergentes, de ma-neira que sejam congruentes com seus interes-ses, e a contrabalançar ou desviar as preferên-cias dos mais poderosos; e a extensão em que as instituições proveem “oportunidades de voz” para que seus interesses sejam conhecidos e pa-

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ra que possam competir por apoio político no mercado de ideias mais amplo. (HURRELL, 2000, p. 3-4).

Índia, Brasil e África do Sul utilizam instituições de governança global e encontros para construírem novas coalizões para persegui-rem interesses comuns: o Fórum do IBAS foi lançado no encontro de 2003 do G8, em Evian, e o G3 foi estabelecido durante a As-sembleia Geral da ONU no mesmo ano. A estratégia de utilizar instituições internacionais para a construção de coalizões Sul-Sul culminou na criação do G21, com seu impacto amplamente reco-nhecido na governança econômica global, ocorrida na conferência da OMC em Cancun. A Rodada de Doha demonstra particularmen-te a habilidade da trinca em determinar a agenda institucional, a fim de influenciar as normas internacionais emergentes em favor de seus interesses. A contribuição específica da política externa brasi-leira sob o governo Lula da Silva consiste em colocar em prática, por meio da diplomacia, a autonomia que por muitos anos foi vis-lumbrada por grande parte da comunidade de política externa (SO-ARES DE LIMA, 2008, p. 65). O último passo nesse aspecto foi a formalização das relações entre os países dos BRICs, como um mecanismo adicional de ação coordenada. De acordo com o minis-tro Celso Amorim (2008), estes quatro países estão tentando se consolidar politicamente como um bloco que ajudará a balancear e democratizar a ordem internacional no começo deste século.

Outros líderes dos BRICs e do IBAS também se utilizam de organiza-ções internacionais como plataformas para desafiar a legitimidade da atual ordem internacional e para mudar as normas dominantes existen-tes. Em sua posição de presidente do Grupo dos 77 e China, o ex-presidente sul-africano Mbeki disse na conferência dos Países Não Alinhados em setembro de 2006, em Havana: “O fortalecimento da cooperação Sul-Sul tem ajudado a criar uma voz mais forte para os países em desenvolvimento em fóruns multilaterais […], em especial no que tange ao processo corrente das reformas fundamentais da O-NU, assim como das instituições de Bretton Woods” (apud CAPE TIMES, 18 de setembro, 2006).

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Potências emergentes contrabalanceiam os interesses e as preferências das grandes potências estabelecidas dentro das instituições globais. O Brasil e a Índia são o quarto e o quinto demandantes mais ativos no mecanismo de solução de controvérsias da OMC. Junto com outros países, eles têm usado instituições internacionais para resistir às tenta-tivas dos Estados Unidos de promoverem novas normas concernentes ao uso da força, incluindo a guerra preemptiva, à condicionalidade da soberania e ao direito de uso da força para a promoção de uma mu-dança de regime (HURRELL, 2006, p. 11). Opondo-se na ONU à intervenção no Iraque liderada pelos Estados Unidos em 2003, os três Estados (e outras grandes potências) negaram legitimidade à superpo-tência e tentaram frustrar os planos de guerra, reduzindo o número de países dispostos a lutar junto com o país. Por exemplo, Brasil e África do Sul foram bem-sucedidos no apoio a muitos Estados menores lati-no-americanos e africanos em suas atitudes de desaprovação, a despei-to da considerável pressão por parte de Washington.

Resumindo, em primeiro lugar, o Brasil desempenha um papel-chave em uma multiplicidade de instituições globais. Está profundamente integrado na ordem global e opera em instituições globais individuais, no intuito de fomentar alterações incrementais de poder. Recentemente, esse curso de ação tem a intenção de transformar a ordem global de maneira que se torne possível no médio prazo o desejado status de grande potência. Em segundo lugar, para realizar essa meta, a diplomacia brasileira é ativa e inovadora no desenvolvimento de novos processos de cooperação: Brasí-lia iniciou o Fórum do IBAS e é descrita por muitos comentaristas políti-cos como a força motora no G3. Em terceiro lugar, o Brasil está perse-guindo uma estratégia de “latente multi-institucionalização” (FLEMES, 2007b), que é refletida em sua onipresença no palco global em alianças flexíveis, todas elas caracterizadas por baixos graus de institucionalização (G3, G4, O-5, G21, G77). Essa estratégia garante um máximo de sobera-nia, flexibilidade e independência nacionais aos formuladores de política externa brasileira. Em quarto lugar, a abordagem de soft balancing do Brasil e de seus pares já deixou sua marca na ordem global dos anos recentes. Sua efetiva participação em instituições globais por meio de “comitês diretores” informais (IKENBERRY; WRIGHT, 2008), aos

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quais é mais fácil de aderir do que, por exemplo, ao Conselho de Segu-rança, pode impactar no caráter do multilateralismo e, em especial, nos seus valores procedimentais no longo prazo. E, em quinto lugar, o soft balancing na forma de uma combinação de um discurso de potência intermediária com uma multi-institucionalização latente é uma estratégia promissora no pano de fundo da visão brasileira da futura ordem global. Em uma ordem de grandes potências moldada por meio das instituições internacionais, aqueles jogadores que efetivamente operarem dentro delas inovando, construindo coalizões e sendo porta-vozes e, ao mesmo tempo, preservando em grande medida a soberania e a independência, têm o potencial de influenciar substancialmente os resultados da futura política global.

A Região como Ajuda ou Obstáculo em Barganhas Globais

As iniciativas regionais da administração de Lula da Silva introduzi-ram uma mudança: de um aprofundamento institucional do Mercosul para a sua extensão. Ou, em outros termos, uma mudança de políticas externas dirigidas pelo comércio e pela economia para um foco mais político e estratégico, concentrado na construção de uma base de po-der regional para diplomacia global em uma nova ordem mundial depois da unipolaridade. A admissão da Venezuela como o quinto membro pleno do Mercosul em julho de 2006 reafirmou a intenção do Brasil de ampliar seu espaço de manobra em direção ao norte da Amé-rica do Sul. Desde 2003, e seguindo Bolívia e Chile, Peru, Colômbia e Equador assinaram acordos de associação com o Mercosul. O Merco-sul estendido é, portanto – com exceção do Suriname e da Guiana –, geograficamente congruente com a Unasul, uma iniciativa brasileira de integração, que começou em 2004 e que inclui todos os Estados sul-americanos.

O Brasil também desempenha uma parte de liderança na cooperação em defesa e segurança na América do Sul (FLEMES, 2006). O grau de institucionalização na luta multilateralmente organizada contra as ameaças transnacionais à segurança é maior do que na cooperação em defesa. A Conferência do Mercosul é o mais significativo fórum de

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diálogo sobre ameaças transnacionais e medidas comuns para sua contenção. Consiste em diferentes grupos de trabalho, por exemplo, contra o crime organizado envolvendo drogas (Reunião Especializada de Autoridades de Aplicação em Matéria de Drogas (RED)) e o terro-rismo (Grupo de Trabalho Especializado sobre Terrorismo (GTE)). Realizações iniciais ao nível operacional incluem a ação coordenada das forças de polícias federais dos Estados do Mercosul, o estabeleci-mento de um centro regional para treinamento policial e a implemen-tação de uma rede de dados regional para a troca de informações rele-vantes sobre segurança (Sistema de Intercâmbio de Informação de Segurança do Mercosul (SISME)).

Em termos de cooperação militar e em defesa, a missão da ONU no Haiti, MINUSTAH, é de grande relevância para a cooperação militar e em defesa na América do Sul. A missão de estabilização é composta por tropas sul-americanas e é comandada pelo Brasil. Isso está demonstran-do, pela primeira vez na história, a capacidade de Estados sul-americanos em lidar por si mesmos com crises regionais. Em março de 2008, o presidente Lula da Silva propôs a criação de um Conselho de Defesa Sul-americano (CDS), focado no estabelecimento de uma alian-ça de defesa similar à da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) e, no longo prazo, de forças armadas sul-americanas e de uma indústria regional de armamentos. Os membros da Unasul concordaram, em dezembro de 2008, com o estabelecimento do CDS como um meca-nismo de prevenção de conflito com base em consultas mútuas. O Bra-sil será o jogador dominante no CDS, assim como na Unasul. No que diz respeito ao potencial militar, o Brasil posiciona-se muito à frente dos seus vizinhos na América do Sul. Os gastos militares brasileiros nos últimos anos (2005-2007) foram maiores do que a soma dos gastos com defesa de Argentina, Chile, Colômbia e Venezuela.

Em primeiro lugar, o CDS consolidará o status de potência regional do Brasil e proverá suporte a suas ambições de se tornar um membro permanente do Conselho de Segurança da ONU. Em segundo lugar, ele pode ser visto com uma contrainiciativa brasileira ao estabeleci-mento de forças armadas comuns pela Alternativa Bolivariana para as Américas (ALBA), promovida pelo presidente da Venezuela, Hugo

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Chávez. Em terceiro lugar, e de maneira convincente, o CDS almeja excluir Estados Unidos (e México) das questões de segurança da A-mérica do Sul, substituindo os mecanismos de resolução de conflito da Organização dos Estados Americanos (OEA). Isso é um resultado do fato de que a esfera de influência do Brasil (ou fronteira regional) é limitada, acima de tudo, por uma potência externa: os Estados Unidos. Essa “linha fronteiriça” se tornou visível durante as negociações sobre a Área de Livre Comércio das Américas (ALCA). Brasília predomi-nou como o principal oponente de Washington, ainda que muitos países latino-americanos estivessem interessados em uma área conti-nental de livre comércio. Os Estados da América Central e do Caribe (além de Colômbia, Peru e Chile) já haviam concluído acordos de comércio bilaterais com os Estados Unidos. Isso para não mencionar o México, ligado à economia dos Estados Unidos pelo Tratado Norte-Americano de Livre Comércio (NAFTA, na sigla em inglês). A hege-monia estadunidense nas Américas do Norte e Central, assim como no Caribe, é incontestável.

Ao lado de valores comuns, como democracia e direitos humanos, articulados por todos os chefes de governo da América do Sul, a regi-ão é marcada por agudas diferenças: por exemplo, alguns Estados sul-americanos, como a Venezuela de Hugo Chávez e a Bolívia de Evo Morales, não mais compartilham o paradigma da economia de merca-do. Em nítido contraste, Chile, Colômbia e Peru assinaram acordos de livre comércio bilaterais com os Estados Unidos. E, enquanto Bogotá busca cooperação militar e em segurança com Washington, nos termos do Plano Colômbia, Caracas sente-se ameaçada por uma potencial intervenção militar dos Estados Unidos. Já Brasília adota uma posição moderada e tenta mediar essas posições polares.

A aceitação do status de liderança do Brasil na América do Sul depen-derá, em grande medida, da sua habilidade de mediar essas posições extremas. Brasília está tentando construir pontes entre as clivagens políticas e ideológicas, guiando os Estados da região em direção à meta compartilhada de um espaço sul-americano. As principais ideias de sua “hegemonia consensual” consistem na proteção da democracia, no crescimento econômico e em respostas regionalizadas para os desa-

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fios da globalização, por meio de acordos multilaterais dentro da A-mérica do Sul (BURGES, 2008, p. 75). O Itamaraty está propagando essa abordagem e as instituições multilaterais como sendo do mais amplo interesse da região. No entanto, a Iniciativa de Integração da Infraestrutura Regional Sul-americana (IIRSA) e o Mercosul propici-am vantagens muito superiores à maior economia regional, uma vez que o Brasil é o maior exportador de produtos manufaturados, assim como o líder em termos de investimento estrangeiro direto (IED) na América do Sul. No caso das negociações da ALCA, a abordagem multilateral do Brasil remodelou as relações Norte-Sul, permitindo aos países participantes a negociação com os Estados Unidos em bases mais iguais. O Brasil exerceu seu poder, propondo ideias iniciais e guiando as discussões subsequentes. Os diplomatas brasileiros desta-caram a estratégia de incitamento de respostas coletivas pautadas em discussão e inclusão como uma de suas forças. Em particular, no curso da IIRSA e da Unasul, o Itamaraty articulou uma agenda pluralista e conduziu um discurso de criação de consenso na América do Sul.

Incentivos materiais, como a provisão de bens públicos regionais e o pagamento dos custos de integração, também gerariam mais aceitação na América do Sul. Por intermédio de seus vários engajamentos de mediação e suas iniciativas de cooperação em segurança, Brasília provê estabilidade regional. Além disso, o Brasil investe nos bens públicos de segurança energética regional e infraestrutura (por meio da Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana (IIRSA)). Contudo, o Brasil não está arcando com uma grande parte dos custos de integração econômica. Por exemplo, o Brasil não apoia os membros menores por meio de pagamentos para fundos estruturais. É verdade que o Brasil amortizou as dívidas da Bolívia (50 milhões de dólares) e do Paraguai (1 bilhão de dólares) nos últimos anos, porém os vizinhos menores demandam que o Brasil abra seu mercado consumidor para seus bens. No Brasil, muitos seto-res da sociedade são céticos em relação à integração regional e não estão dispostos a arcar com os custos da liderança regional. Isso inclui os setores de negócios e, em especial, de exportação, que poderiam

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sofrer com a redução de medidas protecionistas e a abertura da eco-nomia.

Portanto, a disposição do Brasil em prover bens públicos difere de acordo com a área temática sob consideração. Brasília não está pronta para arcar com os custos da integração econômica, porém está dispos-ta a fazer o que for necessário para a provisão de estabilidade regional. Essa disposição tangente à estabilidade pode ser explicada pelas espe-radas economias de escala induzidas na medida em que se prover estabilidade e proteção regionais. O Brasil tem elevado recentemente seus gastos militares, a fim de assegurar o status de poder militar do-minante na região (FLEMES, 2008b). Em sua busca pelo estado da arte da tecnologia militar, o país entrou em uma parceria estratégica com a França, em dezembro de 2008, assinando contratos de arma-mento por 8,5 bilhões de dólares. Diferentemente dos investimentos nas economias estatais regionais, o volume de investimentos em tec-nologia e equipamento militares, que possui o objetivo de projetar força à distância (em especial, capacidades navais e aéreas), varia relativamente pouco, em relação ao número de Estados incluídos na esfera de influência regional.

O número dos beneficiados pela estabilidade induzida pelo Brasil tem aumentado nas últimas décadas: Argentina, Cone Sul, Unasul. Isso levou ao problema do carona (free-rider): os vizinhos do Brasil receberam os benefícios da ordem social sem qualquer custo, sem terem que aceitar sua dominação ou cumprir com suas demandas. Uma solução para esse problema é a multilateralização do compro-misso brasileiro com a estabilidade sul-americana por intermédio do Conselho de Defesa Sul-Americano (CDS). Assistência mútua e reciprocidade são os princípios mais relevantes para evitar o carona e aumentar a dependência dos Estados da região (LAKE, 2007). O Brasil queria um conselho similar à OTAN, pautado no princípio de defesa coletiva, porém foi confrontado com uma resistência, em especial da Colômbia, o aliado mais próximo dos Estados Unidos na América do Sul. O CDS reduz o número de alianças independentes entre seus subordinados. Ele também os torna dependentes do Brasil

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e, portanto, sujeitos, ao menos em parte, à influência de Brasília em suas políticas de segurança.

Finalmente, o Brasil poderia construir instituições inclusivas e demo-cráticas que permitiriam a participação de jogadores secundários, como Venezuela, Chile e Argentina – e também os Estados menores da América do Sul – nos processos de tomada de decisão regionais, a fim de promover aceitação regional à sua reivindicação de liderança. A hegemonia cooperativa (PEDERSEN, 2002) inclui a prontidão em compartilhar o poder em uma base permanente. Todavia, o Brasil não compartilha o poder com seus vizinhos em uma base permanente, uma vez que o Mercosul e a Unasul não possuem competências significati-vas. O Brasil possui papéis de liderança nessas instituições regionais sem estar preparado para as concessões econômicas ou a transferência de soberania para instituições regionais.

O Brasil não apoia a consolidação institucional do Mercosul. Ao con-trário, é o país que menos ratifica as resoluções do bloco. O fato de o Mercosul não ser hoje nem um mercado comum nem uma área de completo livre comércio é, em parte, uma consequência da política externa brasileira, que é muito mais focada na soberania nacional do que na integração do país em instituições regionais no longo prazo. Ou, nas palavras de Pedersen (2002), os formuladores de política ex-terna do Brasil preservam a estrutura regional de federação assimétri-ca. Sob essas circunstâncias, a aceitação regional do status de lideran-ça do Brasil e a disposição dos seus potenciais seguidores em segui-lo serão bastante limitadas.

Conclusão

Atualmente, Brasília não demonstra a vontade política para construir instituições regionais capazes de representar a América do Sul em barganhas globais nos termos de uma ordem multirregional ou ordem de potências intermediárias. As razões cruciais disso são as clivagens políticas e ideológicas que separam os Estados da América do Sul e resultam em um conjunto bastante limitado de interesses comuns. Embora Brasília esteja tentando construir pontes que dirimam essas clivagens, a unificação da região e a evolução de uma política externa

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comum parecem muito improváveis aos formuladores de política ex-terna brasileira. Nessa perspectiva, o investimento em bens públicos que não promovam o interesse nacional do Brasil parece ser um negó-cio altamente incerto. Isso se aplica ainda mais para os custos políticos incorridos pelo estabelecimento de instituições supranacionais que limitariam fortemente o espaço de manobra de Brasília e que entrari-am em choque com sua tradicional estima por soberania nacional. Contudo, as políticas econômica, energética e de infraestrutura regio-nais de Brasília almejam primordialmente maximizar os benefícios nacionais a custos e investimentos mínimos.

A administração de Lula da Silva parece assumir que unificar a Amé-rica do Sul em termos políticos é uma missão impossível e que, por conseguinte, o Brasil é forçado a lutar pelo status de grande potência sem o apoio de uma aliança de integração regional. Em adição a isso, os formuladores de política externa brasileira esperam que a transfor-mação sistêmica leve a uma ordem de grandes potências, governada por instituições globais mais ou menos formalizadas ou comitês dire-tores. Em tal futura ordem, não se espera que as organizações regio-nais sejam de grande ajuda para influenciar os resultados da política global. Ao contrário, para efetivamente operar dentro de instituições globais inovando e construindo coalizões, a preservação da soberania e da independência é altamente valorizada por Brasília. Nesse sentido, uma aliança de integração regional institucionalizada seria um obstá-culo em barganhas globais, à medida que potencialmente limitaria a flexibilidade e a independência diplomáticas do Brasil.

Com seu proeminente papel nas políticas regionais de defesa e de segu-rança, o governo Lula assegurou a si próprio o status e o reconhecimento como um estabilizador e um mediador sul-americano. Nesses termos, Brasília pode usar a América do Sul como uma base de poder geoestraté-gica para a busca por seus interesses na política mundial, sem que tenha que se atar à região ou representar seriamente os interesses regionais ao nível global. A limitação do papel de potência regional nas questões de segurança é particularmente considerável, tendo em vista o desejo por um assento permanente no Conselho de Segurança, o qual é visto como o maior indicador do status de grande potência.

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Em suma, o Brasil persegue uma estratégia global de soft balancing por meio de uma combinação de um discurso de potência intermediá-ria e uma latente multi-institucionalização, a fim de se qualificar para um lugar no rol das grandes potências. A abordagem regional com-plementar do Brasil consiste, de um lado, também em uma multi-institucionalização latente cujo objetivo é controlar e integrar potenci-ais contestadores de sua liderança regional. De outro lado, ela destaca o papel do Brasil como uma “potência militar mediadora” para asse-gurar a estabilidade regional. Uma América do Sul comparativamente estável pode ser um trampolim em direção a um status autônomo de grande potência.

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A Visão Brasileira da Futura Ordem Global

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Resumo

A Visão Brasileira da Futura Ordem Global

Este artigo visa desdobrar a concepção brasileira da futura ordem global localiza-

da entre os polos extremos de um concerto de grandes potências e de uma ordem

mundial multirregional. O autor demonstra como os formuladores de política

externa brasileira contribuem para um tipo de ordem global que oferece espaço de

manobra para a potência emergente. As opções de política externa do Brasil são

limitadas, diante do superior poder material (hard power) das grandes potências

estabelecidas. A estratégia de soft balancing do Brasil envolve estratégias institu-

cionais, como a formação de coalizões diplomáticas limitadas ou alianças para

restringir o poder das grandes potências estabelecidas. O Brasil tem estado entre

os mais poderosos condutores de mudança incremental na diplomacia mundial e é

beneficiado em grande parte pelas conectadas mudanças de poder global. Em

uma ordem global moldada por grandes potências por meio de arranjos e institui-

ções internacionais, esses jogadores que efetivamente operam em ambos como

inovadores, construtores de coalizões e porta-vozes, ao mesmo tempo em que

preservam grande parcela de soberania e autonomia, têm o potencial de influenci-

ar substancialmente os resultados da futura política global.

Palavras-chave: Brasil – Política Externa – Soft Balancing – Construção de

Alianças – Ordem Global – Governança Global

Abstract

Brazil’s Vision of the Future Global Order

This article aims to unfold the Brazilian conception of the future global order

located between the extreme poles of a concert of great powers and a

multiregional world order. The author demonstrates how Brazilian foreign policy

makers contribute to the kind of global order, which offers most room to

manoeuvre to the rising power. The foreign policy options of Brazil are limited in

view of the superior hard power of the established great powers. Brazil’s soft

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Daniel Flemes

436 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 32, n. 2, julho/dezembro 2010

balancing strategy involves institutional strategies such as the formation of

limited diplomatic coalitions or ententes to constrain the power of the established

great powers. Brazil has been amongst the most powerful drivers of incremental

change in world diplomacy and it benefits most from the connected global power

shifts. In a global order shaped by great powers through international groupings

and institutions, those players who effectively operate within them as innovators,

coalition builders and spokesmen while preserving great amounts of sovereignty

and autonomy have the potential to substantially influence the outcomes of future

global politics.

Keywords: Brazil – Foreign Policy – Soft Balancing – Alliance-Building –

Global Order – Global Governance

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Pensamento Brasileiro e Integração Regional

437

Pensamento Brasileiro e Integração Regional* Tullo Vigevani** e Haroldo Ramanzini Júnior***

Introdução

O objetivo deste trabalho é analisar a forma como algumas escolas de pensamento, representadas por figuras significativas, percebem o tema da integração regional no Brasil. Nosso foco é a segunda metade do século XX, buscando compreender as concepções de projeção regional e internacional do país que fundamentam as possibilidades de integra-ção. Para isso serão discutidos o papel do Estado, a visão de país, o nacionalismo, o desenvolvimento econômico e o subdesenvolvimento, o reconhecimento internacional e a percepção dos países vizinhos. A ideia da especificidade frente a esses aparece na obra de intelectuais e de formuladores de políticas, fazendo-se presente em muitos países, inclusive dessa região. Buscaremos entender como essa ideia evoluiu no Brasil, chegando, nos anos 1980, à aceitação da existência de uma co-munidade de interesses com os países do Cone Sul e da América do Sul.

As ideias brasileiras a respeito da integração regional são influenciadas pela dimensão continental do país e pela aspiração por um papel de

Artigo recebido em junho e aceito para publicação em agosto de 2010. Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP), professor de Ciência Política da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e pesquisador do Centro de Estudos de Cultura Contemporâ-nea (CEDEC) e do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT/INEU). E-mails: [email protected]; [email protected]. Doutorando em Ciência Política pela USP, professor assistente do Instituto de Economia da Universidade Federal de Uberlândia (UFU) e pesquisador do CEDEC e do INCT/INEU. E-mail: [email protected]; [email protected].

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Tullo Vigevani e Haroldo Ramanzini Júnior

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destaque no cenário internacional, estimuladas, por sua vez, pela própria história e pela formação do Estado e do território. Algumas dessas idei-as, junto às rivalidades seculares na bacia do Prata, inclusive no século XX, não fortaleceram a perspectiva da integração e, ao longo do tempo, por conta de fatores internos e externos, houve significativa mudança na maneira como se vê o tema da integração regional.

Como argumentaremos, as modificações ocorridas e o surgimento de novas concepções não superaram totalmente a estrutura de ideias ante-rior, que contribui para algumas dificuldades na integração. As ideias não se transformam em ações sem que ocorra algum processo de rotini-zação, normalmente de longa duração, ligado a certos interesses. Duran-te muito tempo, a relação do Brasil com os vizinhos foi impulsionada por aspectos de rivalidade e de diferenciação. Hoje, a concepção pre-dominante é diferente, mas encontra dificuldades para se enraizar.

Nosso intuito consiste em discutir a tradição do pensamento brasileiro no tocante à integração regional, verificando os momentos de existên-cia e suas formas e os momentos de não existência. Há, no Brasil, linhas de pensamento desenvolvimentista, americanista e antiamerica-nista e nacionalista, mas não existe uma longa tradição do pensamento brasileiro latino-americanista – o que não quer dizer que diferentes pensadores ou correntes fossem contrários às perspectivas da integra-ção, mas que o projeto e a ideia de um Brasil subjacente às suas refle-xões, na maior parte das vezes, não incluía a integração com os países vizinhos como uma variável importante. Darcy Ribeiro (1996), e ou-tros, discutiu nos anos 1950 e 1960 a importância da integração, con-siderando necessária a união dos países da região contra o imperialis-mo norte-americano. Integrantes do pensamento geopolítico brasileiro também nas décadas de 1950 e de 1960, como Golbery do Couto e Silva (1967), com influência significativa na Escola Superior de Guer-ra (ESG), fizeram do interesse nacional o eixo de suas preocupações. Nesse período, o conceito de desenvolvimento, tal como formulado pelos integrantes do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), não situava a integração com os vizinhos como um componente fun-damental. Para eles, a preocupação principal, visando o interesse do país, era a integração nacional.

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Pensamento Brasileiro e Integração Regional

439

A ideia de Brasil-potência foi constitutiva da Doutrina de Segurança Nacional, muito importante durante o regime militar (1964-1984). A concepção nacional-desenvolvimentista e o modelo de industrializa-ção por substituição de importações, assim como a leitura que alguns fizeram das teses da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL), fortaleceram a perspectiva nacional de desenvolvi-mento e de projeção internacional.

As ideias incidem no contexto cultural no qual se formula a posição internacional dos países – embora não sejam as únicas determinantes e não estejam dissociadas dos interesses – e são compreendidas a partir dos problemas históricos aos quais se relacionam. Assim, é preciso considerar os contextos específicos em que são formuladas e discuti-das. No caso brasileiro, uma poderosa matriz no campo intelectual é a ideia do desenvolvimento político e econômico.

No Brasil, até os anos 1980, o tema da integração não se viu associado à grande agenda. A partir da Segunda Guerra Mundial, o problema do desenvolvimento/subdesenvolvimento, o tema da industrialização e as discussões a respeito da participação do capital estrangeiro na econo-mia do país estiveram focados em uma lógica estritamente nacional. Na projeção internacional, o núcleo do debate centrou-se na necessi-dade de uma política externa mais independente, menos alinhada aos Estados Unidos. Na década de 1970, particularmente nos governos Garrastazu Médici (1970-1973) e Ernesto Geisel (1974-1978), ganhou força a ideia de Brasil-potência, que trouxe dificuldades no relaciona-mento com os países da região, sobretudo a Argentina. Nos anos 1980, no bojo do processo de redemocratização, da crise da dívida externa e da espiral inflacionária, o tema e a possibilidade da integração regio-nal emergiram de forma mais concreta na percepção de parte dos inte-lectuais brasileiros. Autores como Celso Lafer (1973) compreenderam a importância do entendimento entre Argentina e Brasil desde o início dos anos 1970.

Na segunda seção deste texto, analisaremos a maneira como o ISEB entendia o Brasil e as implicações nas relações com seu entorno. Na terceira seção, discutiremos a política externa independente, com base nas análises de San Tiago Dantas e de Araújo Castro, e considerare-

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mos o pragmatismo responsável, a partir do pensamento de Azeredo da Silveira, tendo em vista a existência parcial de algumas coincidên-cias analíticas. Na quarta seção, analisaremos a doutrina da ESG, sobretudo as ideias de Golbery do Couto e Silva, que teve importância considerável durante o regime militar brasileiro e contribuiu para a formulação de relações na região. Na quinta seção, abordaremos o modo como as ideias da CEPAL foram absorvidas no Brasil, com ênfase nas concepções de Celso Furtado, relacionando-as à visão de América Latina. Discutiremos também as concepções de dois intelec-tuais brasileiros ligados à teoria da dependência, Fernando Henrique Cardoso e Ruy Mauro Marini. Na sexta seção, veremos as ideias re-centes relacionadas à integração, principalmente de Celso Lafer e de Samuel Pinheiro Guimarães, que identificamos como bastante repre-sentativas do pensamento contemporâneo. Nas considerações finais, delimitaremos os principais aspectos do pensamento brasileiro sobre a integração regional. Argumentaremos que, se no século XIX e na maior parte do XX a questão regional não esteve no centro das preo-cupações, houve mudanças nos anos 1980 e 1990 e no século XXI no sentido de incorporar a ideia de integração da região como um tema de peso intelectual e político.

O ISEB: Concepções Sobre o Brasil e o Desenvolvimento Nacional

O ISEB foi criado em 1955, sob a liderança de um grupo de intelectu-ais brasileiros coordenados por Hélio Jaguaribe. Participaram, entre outros, Álvaro Vieira Pinto, Cândido Mendes, Alberto Guerreiro Ra-mos, Nelson Werneck Sodré e Roland Corbisier. Durante seus nove anos de existência (1955-1964), o ISEB constituiu-se em um centro de elaboração teórica de um projeto nacional-desenvolvimentista.

A reflexão isebiana legou ideias que tiveram impacto no debate inte-lectual brasileiro. Pécaut (1990) considera que a ideologia desenvol-vimentista do ISEB se tornou progressivamente o horizonte de pen-samento para o qual tendia a opinião pública. Como veremos, está ausente no instituto a ideia de América Latina, a não ser como parte de

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Pensamento Brasileiro e Integração Regional

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um bloco geral, que deveria contrapor-se ao imperialismo. No plano das ideias, nas décadas de 1950 e de 1960, o ISEB tornou-se um con-traponto à ESG. Enquanto essa, sob influência de oficiais como Gol-bery do Couto e Silva, Cordeiro de Farias e Castello Branco, via o mundo a partir da perspectiva Leste-Oeste, o ISEB desenvolvia a matriz do pensamento nacionalista e desenvolvimentista. O sujeito principal, ator decisivo, era a nação.

O objetivo do ISEB era formular estudos e fomentar debates capazes de oferecer suporte para a elaboração de uma política ou estratégia nacional de desenvolvimento. Da mesma forma, buscava contribuir para a emergência de um pensamento brasileiro capaz de sugerir solu-ções para as dificuldades nacionais, com ênfase nas dimensões socio-políticas e culturais do desenvolvimento. Segundo Pereira (2004), com a eleição de Juscelino Kubitschek (1956-1960) o ISEB transformou-se no principal centro do pensamento nacionalista e desenvolvimentista, concebido pelo grupo como uma ideologia que poderia levar o país à superação do atraso econômico e da alienação cultural através da ação estatal planejada, da intervenção econômica e de uma ampla aliança multiclassista. Toledo (2005) argumenta que embora não possa ser rigorosamente identificado como um aparelho ideológico a serviço do chamado desenvolvimentismo de Kubitschek, era certo que – particu-larmente nos primeiros anos dessa administração – havia uma sintonia nítida entre os intelectuais do instituto e o projeto industrializante do governo.

A preocupação central desse grupo era pensar o desenvolvimento e, dentro do possível, influenciar o governo a adotar suas recomenda-ções. Tenhamos em conta que se iniciando em 1953, com aceleração a partir de 1958, desenvolveu-se entre os países latino-americanos uma discussão, sob patrocínio da CEPAL, que levaria à assinatura do Tra-tado de Montevidéu em 1960, que constituiu a Associação Latino-Americana de Livre Comércio (ALALC). Essa negociação não teve repercussão significativa entre os membros do ISEB, permanecendo relegada a aspectos técnicos do comércio. As grandes correntes de pensamento permaneceram distantes do tema da integração.

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Os membros do ISEB, apesar das diferentes matrizes teóricas e ideo-lógicas, convergiam no sentido de considerar que no Brasil, histori-camente, as elites não teriam buscado orientar seus interesses de acor-do com as necessidades da sociedade. Concordavam também no diag-nóstico de que o país somente poderia ultrapassar o estágio de subde-senvolvimento mediante a intensificação da industrialização, pensada como um fenômeno nacional e não conectada à potencialidade de um mercado regional. Mesmo iniciativas relativas à integração, por parte da Argentina no governo Perón, não repercutiram no debate intelectu-al do período. A industrialização era vista como o elemento dinâmico do desenvolvimento. A política deveria ser nacionalista e sua efetiva-ção introduziria mudanças no sistema político, determinando o enfra-quecimento das antigas elites dirigentes do país e a consequente dimi-nuição do peso dos atores ligados ao latifúndio mercantil, modificando o quadro de hegemonia da classe agrária dominante.

A visão de que os empresários constituíram o núcleo do desenvolvi-mento foi posteriormente criticada por Fernando Henrique Cardoso (1972), que buscava demonstrar a fragilidade da “ideologia que afir-mava a viabilidade da aliança entre a burguesia nacional, parte da massa popular urbana e o Estado para produzir transformações estru-turais capazes de dinamizar o desenvolvimento econômico em bases nacionais” (CARDOSO, 1972, p. 14). Na perspectiva do fortalecimen-to do capitalismo nacional, não surgia a ideia do estreitamento das relações com o entorno geográfico. Parecia não haver motivação para isso. Na verdade, em todo o mundo subdesenvolvido, mesmo quando se buscaram acordos políticos entre os países, o não alinhamento e o neutralismo estavam presentes; a perspectiva de integração e uma ideia de identidade não emergiam. Na Europa, porém, a noção de integração e de comunidade desenvolveu-se nos anos 1950 e 1960, motivada por circunstâncias históricas, sociais, geopolíticas e econô-micas específicas.

Na visão isebiana, a defesa da revolução democrático-burguesa, que alguns chamam de ideologia nacional-populista (CARDOSO, 1972; WEFFORT, 1978), apontava para a necessidade de uma união entre burguesia nacional, camponeses, proletariado e outros segmentos

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Pensamento Brasileiro e Integração Regional

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sociais interessados na industrialização nacional para combaterem os latifundiários ligados ao comércio exportador. Segundo Guerreiro Ramos (1960, p. 70), “em conclusão, [...] devem ser considerados como adversos aos objetivos nacionais todos os fatores que contribu-am para a formação de pressões psicossociais, políticas, ideológicas, institucionais e econômicas, tendentes a debilitar o capitalismo brasi-leiro”. Para ele, assim como para outros membros do ISEB, os grupos ligados à economia agrário-exportadora e ao imperialismo internacio-nal eram os elementos que mais ameaçavam o projeto nacional-desenvolvimentista. A visão de mundo, ainda que inserida no contexto das ideias do período, relacionava-se ao debate nacional, à solução nacional dos problemas. Compreender o significado dessa perspectiva é fundamental para entender por que existiu um razoável desconheci-mento da região. Esta era parte dos países subdesenvolvidos, com os quais o Brasil compartilhava interesses, mas quase sempre não como a parte mais identificada com a perspectiva nacionalista e anti-imperialista que tinha presença maior em outros continentes.

Sodré (1967), retomando parte da linguagem da III Internacional, enfocou os entraves para o desenvolvimento, considerando as relações de produção e mostrando o papel negativo do imperialismo. Na visão desse autor, a presença de “relações feudais” no campo, a influência nociva do capital estrangeiro e a dominação imperialista seriam os principais entraves para o desenvolvimento do capitalismo no Brasil. Trata-se de uma perspectiva de avanços nacional. A revolução brasi-leira relacionar-se-ia com o fim do poder e da hegemonia das classes latifundiárias e do imperialismo, pois reforçariam o colonialismo e dificultariam a formação da economia nacional (SODRÉ, 1967).

A solução dos problemas insere-se em uma perspectiva nacional, o que não surge como contraposto à América do Sul e à conexão com os países da região; há simplesmente uma ausência de conectividade. O monopólio da terra por parte dos latifundiários e o imperialismo obs-truiriam o crescimento econômico e deveriam ser combatidos no pla-no nacional. Sodré enfatizou a necessidade de uma industrialização planificada em bases estritamente nacionais para viabilizar o desen-

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volvimento capitalista nacional e preparar a passagem ao socialismo (BIELSCHOWSKY, 2004).

Para o ISEB, o conceito de desenvolvimento envolve o processo de acumulação de capital, a incorporação de progresso técnico e a eleva-ção dos padrões de vida da população, e iniciar-se-ia com uma revolu-ção capitalista e nacional. Seria, segundo Pereira (2004, p. 58), um processo de crescimento sustentado da renda da população, sob a liderança estratégica do Estado, tendo como atores principais os em-presários nacionais. Portanto, o desenvolvimento seria nacional, por se realizar internamente, sob a égide de instituições definidas e garanti-das pelo Estado. No plano internacional, a preocupação central referia-se à busca da superação da dependência externa e de suas consequên-cias. Como argumenta Corbisier (1968, p. 33) “se o projeto de desen-volvimento visa promover a emancipação nacional, sua realização implicará a negação prévia da dependência, isto é, entrará em contra-dição como o domínio de nossa economia por qualquer centro hege-mônico estrangeiro”. Com o beneficio do ex post facto, pode-se afir-mar que essa forma de análise levou à identificação exclusiva dos problemas brasileiros na contradição centro-periferia, de forma que as possíveis identidades com o entorno acabaram subsumidas.

No pensamento de Ignácio Rangel (1962), Guerreiro Ramos (1960) e Hélio Jaguaribe (1958; 1972), a superação do subdesenvolvimento por meio da industrialização estaria relacionada à superação do capitalis-mo mercantil. Seria com a passagem desse para o capitalismo indus-trial que a acumulação capitalista com incorporação sistemática do progresso técnico se viabilizaria e possibilitaria o crescimento susten-tado da renda e a melhoria dos padrões de vida da população. Já a revolução nacional, seria a associação dos diversos setores da socie-dade em torno de um projeto. Nesse sentido, o nacionalismo seria a ideologia da revolução nacional. Segundo Sodré (1960, p. 33):

[...] o nacionalismo surge da necessidade de compor um novo quadro conjugando interesses de classe, reduzindo-os a um denominador co-mum mínimo, para a luta em defesa do que é

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Pensamento Brasileiro e Integração Regional

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nacional em nós. É o imperativo de superar a contradição entre a burguesia nacional e a clas-se trabalhadora que adota o nacionalismo como expressão oportuna de uma política.

Como vimos, a industrialização, a possibilidade de aliança entre as classes em prol do desenvolvimento, um projeto nacional, a questão dos investimentos estrangeiros, o nacionalismo e a problemática do mimetismo cultural eram alguns dos principais temas presentes no debate intelectual do período. No que tange aos aspectos internacio-nais, a principal temática, inclusive no ISEB, era a crítica ao imperia-lismo, para demonstrar as diferenças nos processos de desenvolvimen-to do centro e da periferia, sendo essas questões discutidas na CEPAL. A periferia, ao contrário do centro, teria de superar, em seu processo de desenvolvimento, os interesses do capitalismo internacional e das elites locais alienadas, ligadas ao imperialismo. Como argumenta Corbisier (1968, p. 53):

[...] podemos perceber que nada há em comum, a não ser a identidade do termo, entre o nacio-nalismo dos países subdesenvolvidos, em luta contra as nações opressoras pela conquista da soberania política e da independência econômi-ca, e o nacionalismo dos países industrializa-dos, empenhados em manter o domínio de suas áreas coloniais e em conquistar ou ampliar mer-cados para as suas manufaturas.

Essa concepção deixa subjacente a questão da região sul-americana. Há uma potencial coincidência de interesses, mas ela não se materiali-za. Nisso reside a dificuldade de pensar a questão da América Latina: a região não é vista, não passa a integrar as preocupações políticas, econômicas e culturais.

O tema da integração regional, no sentido da discussão das possibili-dades de adensamento das relações entre os países da região, não está presente no pensamento brasileiro daquele período. A maneira como

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esses intelectuais pensavam o Brasil e o desenvolvimento nacional não poderia estar contextualizada em um processo de integração regi-onal, que, por definição, tem como pressuposto a perda de autonomia em algumas funções do Estado nacional para recompô-las em nível regional, diminuindo, portanto, a chamada autonomia do Estado na-cional (MATTLI, 1999; MARIANO, 2007). Quando a América Latina surge na reflexão isebiana, o foco não era a integração regional, mas o entendimento das causas históricas do subdesenvolvimento latino-americano. Como veremos, esse entendimento tem algum parentesco com outras linhagens de pensamento brasileiras, como a teoria da dependência, mas há profundas diferenças. A não reflexão sobre a região não é uma casualidade, ela derivou dos fundamentos conceitu-ais dos isebianos, baseados na ideia de que o Estado é o locus resolu-tivo; consequentemente é a ele que se dirigem as atenções.

Política Externa Independente e Pragmatismo Responsável

No início da década de 1960, a afirmação de um novo perfil sociopolí-tico da sociedade brasileira, a força das ideias nacionalistas, a radicali-zação das posições de alguns grupos políticos e sociais, as transforma-ções no cenário externo e a busca pela atuação internacional autônoma foram aspectos que ajudam a entender o contexto de emergência da Política Externa Independente (PEI) (1961-1964). Em geral, a literatu-ra atribui a San Tiago Dantas sua formulação.

A partir do governo Jânio Quadros (1961), o Brasil viveu três anos de mudanças significativas nas prioridades, na implementação e no qua-dro conceitual orientador de suas relações externas, que foram relati-vamente interrompidas a partir do golpe militar de 1964. Em parte, essas prioridades foram retomadas a partir de meados dos anos 1970, ainda que haja fortes diferenças entre as duas políticas. Nessa seção, buscaremos discutir alguns aspectos conceituais da PEI e do Pragma-tismo Responsável (PR) (1974-1978), recorrendo às ideias de San Tiago Dantas, de Araújo Castro e de Azeredo da Silveira.

Os princípios básicos da PEI eram a ampliação do mercado externo, a formulação autônoma dos planos de desenvolvimento econômico, a

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necessidade de manutenção da paz mediante a coexistência pacífica, o desarmamento geral e progressivo, a não intervenção nos assuntos internos de outros países, a autodeterminação dos povos, o respeito ao Direito Internacional e o apoio à emancipação completa dos territórios não autônomos (DANTAS, 1962). Alguns desses princípios estavam presentes na política exterior do Brasil, mas outros eram novos, como a questão do apoio brasileiro à emancipação completa dos territórios não autônomos, o que mudava a posição do Brasil em relação ao re-gime salazarista de Portugal.

A PEI buscava transformar a atuação internacional do Brasil e projetar uma posição menos alinhada aos Estados Unidos. Fonseca Jr. (1998, p. 363) considerou que “o período é de abertura universalista da polí-tica externa e de coleção de um acervo de relações bilaterais de amplo alcance [...] são estabelecidos ou renovados vínculos com os países africanos, amplia-se a presença no Oriente Médio e, mais importante, os laços com a América Latina ganham nova densidade”. Na mesma direção, Dantas (1962, p. 11) entendeu que

[...] a rápida ampliação do mercado externo de nossos produtos tornou-se um imperativo do desenvolvimento do país [...]. A conquista de mercados [deve ser] a tônica de nossa política econômica exterior. Nossa política voltou-se para a América Latina, em primeiro lugar, e, em seguida, para os países socialistas, sem desprezo das possibilidades de incremento do comércio com os Estados Unidos e com a Europa Ocidental.

Gilberto Freyre (1962, p. 294), por sua vez, considerava que

[...] essa política de instituir um sistema efetivo de relações mais estreitas entre as novas nações africanas e asiáticas e o Brasil deve ser realiza-da com tato e sabedoria. Porque implica tanto

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em maior independência para o Brasil em face de alianças mais antigas quanto em sua lideran-ça natural de todo um novo grupo de nações tropicais com problemas similares àqueles já a caminho de solução entre os brasileiros.

Gilberto Freyre, preocupado com as relações com os países africanos, dissociou-se da PEI, sinalizando que a liderança brasileira em relação aos países tropicais deveria ser compatível com as alianças antigas, que o autor associa particularmente a Portugal.

Na década de 1960, até 1964, foi intensa, nos marcos da PEI, a parti-cipação brasileira em iniciativas internacionais que tinham como tema a superação do subdesenvolvimento. A preocupação com os projetos de desenvolvimento nacional era suficientemente forte para ser incor-porada à lógica de qualquer processo de integração mais amplo. A busca pelo desenvolvimento era vista como possível apenas como consequência do esforço nacional, que deveria ser interno. A questão da integração com outros Estados, mesmo os do entorno, não surgia como um problema relevante no período. Amado (1996, p. 284) ob-servou que “para muitos observadores, a PEI, instituída no governo Quadros, resultou da consciência de que o Brasil já não podia ficar confinado aos princípios do pan-americanismo”.

O aprofundamento da industrialização do país, tendo influências ise-bianas, tinha como pressuposto que o Brasil mantivesse uma posição mais autônoma frente aos Estados Unidos, ao mesmo tempo em que a formulação conceitual da PEI era permeada por uma gama de ideias oriundas do nacional-desenvolvimentismo do período. Fonseca Jr. (1998, p. 302) reforçou essa interpretação ao afirmar que a PEI “nasce de um projeto político, de uma concepção intelectual”, que incluía uma crítica ao status quo internacional e à forma como o tema do desenvolvimento era discutido. Araújo Castro, importante formulador da política externa durante esse período, numa crítica ao modo como o subdesenvolvimento era tratado internacionalmente, argumentava que “tenta-se converter o grave problema do subdesenvolvimento em um mero problema de estabilização, com o esquecimento do fato de que

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se fossemos estabilizar muitos países no nível econômico atual, pro-cederíamos uma estabilização em nível extremamente baixo” (apud AMADO, 1982, p. 182). José Honório Rodrigues (1966, p. 187), por sua vez, afirmou que “a política independente foi logo aceita pela opinião pública e pelos setores mais progressistas. O Brasil desejava seguir uma política de portas abertas, sem compromissos com blocos ideológicos ou militares”.

Surgiu, com a PEI, o paradigma universalista (MELLO, 2000; FA-VERÃO, 2006) ou globalista (PINHEIRO, 2004) da política externa brasileira. Por outro lado, o agravamento da crise nos anos do governo João Goulart (1961-1964) dificultou a efetiva implementação das propostas da PEI. Essas, em outras condições políticas e bases sociais, foram parcialmente retomadas a partir de meados dos anos 1970, com o PR desenvolvido pelo ministro das Relações Exteriores Azeredo da Silveira no governo Ernesto Geisel (1974-1978) (FONSECA JR., 1996).

Segundo Dantas (1962, p. 5), a PEI visava “a consideração exclusiva do interesse do Brasil, visto como um país que aspira ao desenvolvi-mento e à emancipação econômica e à conciliação histórica entre o regime democrático representativo e uma reforma social capaz de suprimir a opressão da classe trabalhadora pela classe proprietária”. As ideias nacionalistas das décadas de 1950 e de 1960 e a formulação da PEI, tal como elaborada por Dantas e por Castro, representavam não apenas uma posição frente ao mundo exterior que buscava impul-sionar o desenvolvimento industrial do Brasil e aumentar as exporta-ções, mas continham também a proposta de projetar o Brasil como um ator relevante no palco internacional. Castro (apud AMADO, 1982, p. 212) considerou que “O nacionalismo não é, para nós, uma atitude de isolamento, de prevenção ou de hostilidade [...]. É um esforço para colocar o Brasil no mundo, mediante a utilização de todos os meios e com o concurso de todos os países que queiram colaborar conosco no equacionamento e solução dos problemas mundiais”.

Percebe-se nessa formulação um interesse evidente pela cooperação com os países da América Latina, vista como parte de um conjunto

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mais amplo de países, onde a especificidade das relações regionais não surgia com evidência. Além da componente nacionalista, o proje-to da PEI, incorporando parte da reflexão do ISEB, relacionava-se ao aspecto doméstico da integração de amplos setores sociais ao projeto de desenvolvimento nacional, inclusive da política externa. Como afirma Dantas (1964, p. 525): “desenvolver-se é sempre emancipar-se. Emancipar-se externamente, pela extinção de vínculos de dependência a centros de decisão políticos ou econômicos, localizados no exterior. E emancipar-se internamente, o que só se alcança através de transfor-mações da estrutura social”.

O aspecto independentista da PEI foi claramente exposto na Confe-rência da Organização dos Estados Americanos (OEA) realizada em Punta del Este, em janeiro de 1962, quando San Tiago Dantas defen-deu uma posição de neutralidade ativa em relação a Cuba, opondo-se à ideia de uma possível invasão da ilha com o apoio da OEA e distanci-ando-se claramente da posição dos Estados Unidos. O Brasil opôs-se às sanções contra Cuba e, junto com Argentina, México, Chile, Bolí-via e Equador, absteve-se da resolução que suspendia o governo cuba-no da OEA. Naquele momento, a questão cubana simbolizava um aspecto importante das relações hemisféricas; em particular, sinalizava como eram percebidas as relações com os Estados Unidos, a solidari-edade continental, o problema do comunismo e o princípio da não intervenção (VIZENTINI, 1994). A convergência com tais países da América Latina se deu pela contraposição aos Estados Unidos e não propriamente por um acordo explícito entre os Estados da região, que implicaria um pensamento comum. No período da PEI, houve movi-mentos no sentido de aproximação com os países vizinhos, particu-larmente com a Argentina, como sinaliza a reunião de Uruguaiana, em 1961, entre os presidentes Jânio Quadros e Arturo Frondizi.

Alguns dos formuladores da PEI e do PR concentraram suas preocu-pações no debate sobre a estrutura do sistema internacional, preocupa-dos com as premissas para atingir a paz. Na visão de Araújo Castro, a paz surgiria da combinação entre segurança e desenvolvimento eco-nômico e social, não de uma situação de equilíbrio de poder entre as potências. Castro (1970) entendia que a eventual evolução para o

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estágio de supranacionalismo e de interdependência pressupunha um nível prévio de soberania e de total independência política e econômi-ca, uma ideia forte tanto na PEI quanto no PR, que deve ser entendida, sobretudo no último, para a relação do Brasil com os países desenvol-vidos e subdesenvolvidos, inclusive os vizinhos latino-americanos.

Assim colocado o problema, passamos a entender como, no período do PR, as relações com os vizinhos, sobretudo com a Argentina, foram difíceis e como as concepções ligadas à escola de segurança nacional conviveram com o PR. As dificuldades com os vizinhos, particular-mente com a Argentina, foram superadas apenas a partir de 1978, no final do governo Geisel, no governo João Baptista Figueiredo (1979-1984) e, de forma mais estável, no governo José Sarney (1985-1989).

Com o objetivo de precisar o pensamento dos formuladores da PEI em relação ao entorno regional, não se pode esquecer que a ideia univer-salista presente neles incluía a aproximação com a Argentina como uma de suas diretrizes, sobretudo para San Tiago Dantas. Segundo o autor (DANTAS, 1962, p. 19), “merecerá particular atenção o aprimo-ramento de nossas relações com a República Argentina, em relação à qual nos anima o sentimento de colaboração, de apoio e de afeto, ca-paz de conduzir-nos, no interesse de todas as demais nações deste hemisfério, a uma constante integração de ordem econômica e cultu-ral”.

A partir da queda de Frondizi, em 1962, por meio de um golpe militar, a política argentina sofreu retrocessos na relação com o Brasil. Ganharam maior projeção as ideias de grupos nacionalistas conservadores que aler-tavam para os riscos da “hegemonia” brasileira (FAUSTO; DEVOTO, 2004). Castro (1982), no discurso dos três D’s (Desenvolvimento, De-sarmamento e Descolonização), na ONU, em 1963, afirmou que “O Bra-sil não pertence a blocos, mas integra um sistema, o sistema interameri-cano, que concebemos como um instrumento de paz e de entendimento entre todos os membros da comunidade das nações”. Discutindo as rela-ções Brasil-Argentina no período da PEI, Cervo e Bueno (2002, p. 312) afirmam que “a retórica da solidariedade, da cooperação para o desenvol-vimento, a ampliação do mercado pelas associações aduaneiras e o desejo de unir esforços para que ambos os países adquirissem maior participação

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nos assuntos internacionais aparecem nos discursos e comunicados con-juntos”. Percebe-se assim que a questão regional e as relações com os países vizinhos não passam despercebidas, ainda que, para os formulado-res da PEI, o tema central seja o universalismo e a projeção do Brasil no mundo. A não centralidade do tema regional é muitas vezes atribuída à instabilidade dos vizinhos.

Nos marcos da PEI, sobretudo na visão de San Tiago Dantas e de Araújo Castro, as relações com a Argentina e com outros países da região eram consideradas importantes, mas não constituíram o núcleo conceitual dessa política. Havia um forte componente terceiro-mundista e de crítica às políticas das potências dominantes, ao “con-gelamento do poder mundial”. O objetivo principal era posicionar-se de modo contrário às exigências de alinhamento e atingir certo grau de autonomia frente aos dois polos de poder da Guerra Fria, os Estados Unidos e a União Soviética. Buscava-se afirmar os interesses brasilei-ros como essencialmente diferentes daqueles das potências, explorar áreas de convergência com países que partilhavam com o Brasil a condição de subdesenvolvimento e intervir com posição própria no debate a respeito das grandes questões internacionais.

Lafer (1973) entendeu que a PEI procurou articular no sistema inter-nacional uma frente única dos países subdesenvolvidos. A busca por maior independência nas relações internacionais do país, simbolizada pelo vínculo com os Estados Unidos durante o período, pode também ser relacionada à Argentina e a outros países da região. É significativa a justaposição feita por Rodrigues (1965, p. 36) quanto à relação de independência que o Brasil deveria manter tanto com os Estados Uni-dos quanto com a América Latina. “O entendimento com os Estados Unidos, como a harmonia com a América Latina – hoje acrescida da área de livre comércio, é uma legítima filiação que devemos manter para nossa segurança e desenvolvimento.” A integração regional, apesar de considerada, não constituía a preocupação central da PEI.

A influência da PEI, que certamente não se restringia à política internacional, mas refletia uma concepção de mundo, desdobrou-se no surgimento da revista Política Externa Independente, cujos três únicos números foram publicados em 1965 e 1966, durante o

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governo militar, por um grupo composto principalmente por inte-lectuais do Rio de Janeiro. A revista teve fortes conexões com a PEI e com as perspectivas ao mesmo tempo universalistas e nacio-nal-desenvolvimentistas. A preocupação com o Terceiro Mundo era forte e o interesse pela América Latina derivou disso, assim como o anticolonialismo e o antiamericanismo. Houve defesa do fortaleci-mento da relação do Brasil com os países subdesenvolvidos, prin-cipalmente os africanos, e era forte o argumento de que a indepen-dência e a autodeterminação deveriam ser os princípios condutores do ordenamento internacional.

É importante notar que a questão latino-americana ganhou destaque. O conceito geral do primeiro número da revista era o de que

[...] uma frente latino-americana sólida e coesa não deverá contentar-se com a defesa unificada de reivindicações comuns e sim procurará esta-belecer modalidades de convivência com a par-ticipação exclusiva de países latino-americanos, capazes de contribuir para a progressiva inte-gração de suas economias [...]. A verdadeira e grande aliança dos países subdesenvolvidos da América Latina é aquela que os congrega com os demais países subdesenvolvidos da África e da Ásia (APRESENTAÇÃO, 1965, p. 6).

O tema surgiu com destaque, mas apenas no contexto terceiro-mundista, muito forte no período. Na revista, os temas específicos da integração ganharam realce, sendo que o documento de Felipe Herre-ra, Carlos Sanz de Santamaría, José Antonio Mayorbe e Raúl Prebisch sobre a criação de um mercado comum latino-americano foi nela pu-blicado. Ao mesmo tempo, a crítica aos Estados Unidos, o antiameri-canismo, era uma presença forte, manifestando-se pela denúncia de submissão da OEA a eles e, sobretudo, pela crítica radical à invasão da República Dominicana em 1965, que foi imediatamente associada à dura oposição ao governo militar brasileiro presidido por Castello Branco e a seu chanceler Vasco Leitão da Cunha.

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A América Latina surgiu, então, no debate sobre o desenvolvimento. É interessante notar que a maior parte das análises identificou aspectos comuns aos países da região no contexto da Guerra Fria, sobretudo uma perspectiva nacional de desenvolvimento. Martins (1965, p. 202) considerava que

[...] a viabilidade política da América Latina te-rá cada vez mais que depender da ação de suas forças sociais internas. Por isso, entendo que os problemas do desenvolvimento têm que ser e-quacionados cada vez mais a partir de aqui e de agora, em função dos interesses específicos de cada nação latino-americana, rompendo com o sistema de alianças internacionais que cada na-ção, que cada uma das classes sociais dessas nações, era até aqui levada a sustentar e a se submeter.

Há, nesse entendimento, a crítica ao imperialismo e ao alinhamento internacional com os países centrais e, sobretudo, a indicação da potencialidade do desenvolvimento nacional e não propriamente regional.

Na revista Política Externa Independente, estavam presentes os temas latino-americanos, principalmente os relativos à necessidade dos países da de terem autonomia em seu relacionamento externo, sobretudo frente aos Estados Unidos. A questão da integração surgiu como tema, mas não era central, subordinando-se ao desenvolvimento e à necessidade de romper a hegemonia dos países centrais, em pri-meiro lugar a norte-americana.

O termo PR foi usado o de Pragmatismo Ecumênico e Responsável, resultado de uma definição do presidente Geisel, de 1974, quanto à política externa de seu governo tal como vinha sendo estruturada no âmbito do Ministério das Relações Exteriores. Pinheiro (2000, p. 464) argumenta que as linhas gerais do PR foram traçadas durante os en-contros do presidente eleito Geisel e do candidato a chanceler Azeredo

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da Silveira. Importa considerar, para os objetivos deste trabalho, que as ideias de Azeredo da Silveira a respeito da política externa brasilei-ra, em boa medida coincidentes com as percepções de Geisel, foram centrais na formulação conceitual e na implementação do PR.

De acordo com Souto Maior (1996, p. 340), o PR impunha uma ne-cessidade e uma consequência para a política externa brasileira. Em primeiro lugar, a indispensabilidade de uma aproximação política com os demais países em desenvolvimento – surgida no início da década de 1960 com a PEI, mas desgastada após 1964. Por outro lado, o re-sultado seria a “aceitação de um certo grau de fricção com as grandes potências econômicas, principais beneficiárias da ordem internacional que se desejava modificar”. Um dos objetivos do PR era aumentar as margens de manobra do Brasil no sistema internacional face aos limi-tes estritos impostos pela Guerra Fria.

O PR traz em seu bojo modificações importantes em muitas áreas da política externa: nas relações com os Estados Unidos, África, Europa, Oriente Médio, China e na bacia do Prata, sobretudo com a Argentina e os países andinos. Houve uma maior aproximação com a República Federal da Alemanha, tendo como objetivo a assimilação da tecnolo-gia nuclear para fins pacíficos, visando a produção de energia. O obje-tivo era o desenvolvimento e o fortalecimento do poder no campo das relações internacionais. Segundo Silveira (1976, p. 62):

Não queremos um novo status para o Brasil por-que nos movam ambições de prestígio e de poder pelo poder. O que interessa ao nosso país – e a atual política externa procura interpretar fielmen-te este desejo – é aumentar o nosso papel nas grandes decisões que afetam a vida das nações de modo a possibilitar a mobilização de recursos necessários ao desenvolvimento econômico e so-cial do nosso povo nas melhores condições pos-síveis.

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O PR incluía também um fundamento fortemente realista no entendi-mento da dinâmica internacional, representando um aprofundamento da percepção que negava a conveniência de um alinhamento ideológi-co aos Estados Unidos e enfatizando a ideia de autonomia nacional. Comparando a PEI de Quadros e de Goulart e o PR de Geisel, Fonseca Jr. (1996, p. 329-330) afirmou que, com relação à formulação doutri-nária, ambos pautaram a busca pela autonomia “pelo contraste com o que preconizam os hegemônicos”. Dito em outras palavras, como argumenta Faverão (2006), a diplomacia brasileira, em ambos os mo-mentos, distanciava-se dos embates de cunho ideológico relativos à disputa Leste-Oeste e pleiteava propostas reformistas da ordem mun-dial.

Há diferenças importantes entre o projeto da PEI e o do PR, princi-palmente no que se refere à relação com a Argentina. No período 1974-1978 há um acirramento significativo das divergências Buenos Aires-Brasília, muito em função das ideias de Geisel e de Silveira e do peso dos geopolíticos brasileiros. Simetricamente, as ideias geopolíti-cas também acresceram sua importância na Argentina. Azeredo da Silveira opunha-se à tradicional política brasileira de acomodação em relação ao vizinho. Segundo Spektor (2004, p. 208):

[...] para Silveira, o declínio argentino abria

caminho para um novo arranjo regional no qual o Brasil abandonaria sua posição acuada. Na análise de Silveira, havia uma incongruência entre a estrutura sul-americana de poder (onde a Argentina não mais tinha meios materiais ou sociais para pressionar o Brasil como o fizera) e o comportamento das unidades (onde o Brasil dos tardios anos 60 continuava comportando-se como se a Argentina tivesse capacidade de pressioná-lo).

Por conta dessa percepção, há, no período, políticas brasileiras que não se esforçaram para diluir o clima contencioso em torno da questão dos rios internacionais. Nota-se também a exclusão da Argentina das

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iniciativas multilaterais do Brasil. Silveira (1976, p. 57) entendia que “Um país com interesses crescentemente globais, em um universo cada vez mais solidário e interdependente, não pode circunscrever sua política a uma região determinada”. Lafer (2004) afirmou que o PR se caracterizou pela exacerbação do contencioso de Itaipu, com todas as inevitáveis consequências que uma relação difícil com a Argentina trouxe para a preservação de um clima de cooperação para o desen-volvimento na América do Sul.

Na formulação do PR, o Brasil deveria ter um papel central na Améri-ca Latina. Essa seria a base de sua ação internacional: a inserção brasi-leira não ficaria restrita à região, o país buscaria projetar-se no mundo. A ideia não é nova na forma de pensar o próprio destino. A política de aproximação com a América Latina e do Sul, embora considerada importante em si mesma, não perdia de vista o âmbito global. Segun-do Silveira (1974, p. 21), “elevado nas dimensões da sua economia e do seu poder nacional, projetando-se num mundo onde se estreita a convivência entre as nações, não será possível ao Brasil alhear-se do que ocorre em outras áreas”. Em uma visão crítica de alguns dos con-ceitos e ideias orientadores da PEI e do PR, Ferreira (2001, p. 63), considerando principalmente as posições regionais do Brasil, argu-menta que

[...] as denúncias sobre o congelamento do po-der mundial e as reiteradas afirmações de que a política de poder deve ceder lugar a um ordena-mento jurídico internacional justo (as quais vêm do governo Médici e se repetem), da mesma forma que a recusa em reconhecer a existência de zonas de influência – tudo soa como tentativa de autoafirmação de um país que ressente da po-sição menor em que se encontra, embora a partir dela exerça, em seu âmbito específico de ação, a mesma política que condena nos demais.

Isto é, há uma descontinuidade nas posições. Em relação aos mais fortes, busca-se a redistribuição de poder. Para o PR, o poder do país

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na região seria suficiente para justificar-lhe maior influência. Nesse caso, o PR diferencia-se da PEI. No PR, o papel atribuído à região e ao relacionamento com os países vizinhos não poderia implicar em posições que atenuassem o caráter universalista/ecumênico da política externa. Azeredo da Silveira se preocupava com o que considerava riscos para a política regional brasileira quando afirmava que:

À medida que o Brasil mergulha no Cone Sul, perde em universalização, que deve ser a chave de nossa política externa. Além disso, precisarí-amos nos lembrar de que, a despeito de nossos complexos em relação ao Sul ‘branco’, os nos-sos vizinhos estão em todos os quadrantes e fa-lam línguas diferentes do espanhol. Um excesso de preocupação nossa em relação aos brancos do Sul custa-nos caro na América Latina e no resto do mundo. Assim, é impróprio para o Bra-sil ter uma aliança com a Argentina (apud MAGNOLI et al., 2000, p. 43).

Não contraditoriamente, Silveira (1976, p. 33) também considerava

que “Toda nação, qualquer que seja o seu grau de industrialização e a sua riqueza em recursos naturais, necessita inter-relacionar-se com as demais, sobretudo com as que lhe estão próximas, a fim de melhor atender aos seus justos imperativos de progresso e bem-estar”. O autor aponta que

Coube ao Governo Geisel introduzir o ‘ecume-nismo’ também nas nossas relações regionais, se é que posso me expressar através de um aparente paradoxo. Com efeito, os trinta meses do atual Governo assistiram a uma enorme intensificação de nossos contatos com os países da América do Sul que se situam fora da região platina, sem pre-juízo – é claro – da manutenção do alto nível a-

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tingido nas relações com os países da menciona-da área (SILVEIRA, 1976, p. 59).

No pensamento de San Tiago Dantas e de Castro, o universalismo brasileiro não se contrapõe à busca por aproximação e cooperação com o entorno geográfico. Quando a aproximação não acontece, deve-se a razões específicas, concretas, à instabilidade principalmente. A região é considerada parte dos países subdesenvolvidos, portanto da-queles com os quais haveria uma comunidade de destino. O PR coin-cide com a PEI ao colocar o universalismo e o combate ao congela-mento de poder no centro das preocupações, visando a projeção de poder, mas se diferencia exatamente na questão objeto deste texto, a relação com os vizinhos. Silveira situa essas relações como, ao menos em parte, contrapostas à busca pelo universalismo.

A ESG e o Pensamento Geopolítico

Nesta seção, analisaremos elementos da doutrina da ESG, buscando entender como essa instituição pensava o país, o desenvolvimento e a forma de inserção internacional. A partir disso, discutiremos seu modo de compreender a América Latina e a integração. Especial ênfase será dedicada às ideias de Golbery do Couto e Silva, um dos principais e mais influentes formuladores do pensamento geopolítico. A análise concentra-se no período entre sua fundação, em 1949, até o início da década de 1980, quando se encerra o regime militar, em 1984.

A ESG, vinculada ao Estado-maior das Forças Armadas, representou, desde seu surgimento, um foro privilegiado de formulação doutrinária conjunta entre o Exército, a Marinha e a Aeronáutica. O objetivo da escola era desenvolver e consolidar os conhecimentos necessários para o planejamento da segurança nacional. Nesse ambiente, as diversas considerações sobre geopolítica e estratégia militar encontraram terre-no para seu desenvolvimento, gerando ideias que até meados dos anos 1980 influenciaram a relação do Brasil com os países vizinhos.

Parte das concepções da ESG e a Doutrina de Segurança Nacional (DSN) foram influenciadas pelo pensamento desenvolvido na primeira

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metade do século XX por Alberto Torres e por Oliveira Vianna, que consideravam necessário um Estado forte para compensar o egoísmo das elites e o despreparo das massas para a atuação política. Parte do pensamento da ESG teve como referência a experiência da Força Ex-pedicionária Brasileira (FEB) na Segunda Guerra Mundial. Moura (1996) entende que a FEB foi considerada, por parte dos militares brasileiros, como o núcleo de um projeto político cujo objetivo era intensificar as forças armadas e dar ao Brasil uma posição de proemi-nência na América Latina e de importância no mundo, como aliado dos Estados Unidos.

A doutrina da ESG pode ser entendida como um projeto nacional de desenvolvimento. Entre o corpo de oficiais presentes na escola, era forte a visão do Brasil-potência, erigida sobre um processo de evolu-ção capitalista transnacionalizada sob a direção da elite civil e militar. A noção de “construção de potência” (CAVAGNARI FILHO, 1987) trazia a expectativa de que a ascensão do país na hierarquia interna-cional tivesse como corolário a ampliação das atribuições do poder militar na defesa dos interesses nacionais além-fronteiras. Como vi-mos, a ideia de transformar o Brasil em um ator relevante no sistema internacional não era exclusiva da ESG ou das Forças Armadas, mas foi no meio militar e por meio da DSN que se transformou em um projeto da ditadura militar brasileira. A soberania, para a ESG, seria o “poder de autodeterminação, sem a interferência de nenhum outro. É o poder originário que governa e disciplina juridicamente a população que se encontra no território do Estado” (DREYFUSS, 1987, p. 167).

Na ótica da escola, a garantia da soberania se daria mediante o fortale-cimento do poder nacional, o que se relacionava com uma maior pro-jeção internacional. Grande parte dos estudos produzidos pela ESG considerava que o Brasil, em função de sua posição geográfica e di-mensão continental, deveria alcançar tal projeção e, desde a criação da escola, surgiu a preocupação de viabilizar o país como potência. Co-mo argumenta Miyamoto (1995, p. 123), “não há motivos para duvi-dar que a ESG procurou desde o início elaborar um modelo de desen-volvimento para fazer com que o país passasse a ocupar um lugar de relevo no concerto internacional das nações”.

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A ideia de Brasil-potência era muito forte entre os geopolíticos brasi-leiros, sobretudo no fim dos anos 1960 e na década seguinte. A noção de Brasil como potência mundial presente no livro de Carlos Meira Mattos (1960) foi além da ideia de Mário Travassos (1935), que pen-sava em termos do Brasil como potência continental. Essa discussão se originou na primeira metade do século XX, porém autores como Elyseo de Carvalho e Leopoldo Nery da Fonseca haviam abordado a questão nas primeiras décadas do século XX (MIYAMOTO, 1995).

Os principais conceitos presentes na DSN eram segurança, poder na-cional, estratégia, objetivos nacionais, fronteiras ideológicas, guerra ideológica e guerra subversiva. A DSN foi influenciada pelo contexto internacional da Guerra Fria, que Couto e Silva (1967, p. 130) caracte-rizava como “o quadro do atual antagonismo dominante entre o Oci-dente democrata e cristão e o Oriente comunizado e materialista”. Desde seu surgimento, a doutrina da ESG teve um fundamento anti-comunista e uma visão realista do sistema internacional. Nesse senti-do, como argumenta Stepan (1975, p. 132), por o comunismo ser um inimigo, “os Estados Unidos, sendo o principal país anticomunista, eram um aliado natural”.

Ainda assim, havia grande ênfase, do ponto de vista doutrinário, para garantir a capacidade do país de tomar decisões independentes e quan-to à necessidade de robustecimento do poder nacional, permitindo ao Estado fazer-se forte o bastante para, em um mundo dominado pela lógica fria dos interesses, abrir seu próprio caminho, visando a criação de um novo centro de poder independente na América do Sul (GAR-CIA, 1997).

Pécaut (1990) entendeu que a DSN estava longe de se resumir – como se afirmaria muitas vezes após 1964 – a uma concepção de ação antis-subversiva, pois comportava também, como demonstram as obras de Golbery do Couto e Silva, um programa de industrialização para o Brasil. Nas palavras desse militar, um “plano de reforço do potencial nacional”. Com o golpe militar de 1964, o conjunto de ideias reunidas na DSN contribuiu para as diretrizes políticas do novo regime. Rodri-

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gues (1966, p. 1999) considerou que “o golpe de abril de 1964 está dominado pela ideia de segurança e pelo planejamento da segurança nacional. Esta é a roupagem nova, que veste o atual Governo brasilei-ro, filho natural da Escola Superior de Guerra”.

As ideias geopolíticas de Golbery do Couto e Silva (1967; 1981) esta-vam fundamentadas nas concepções de segurança nacional. A percep-ção era a de que a segurança do país, no momento histórico da Guerra Fria, somente seria garantida por meio do fortalecimento do poder nacional. Dentre os objetivos nacionais permanentes, na visão de Cou-to e Silva (1967, p. 75), estaria o “fortalecimento do prestígio nacional no âmbito externo, com base no princípio da igualdade jurídica dos Estados, e a crescente projeção do país no exterior com vistas à salva-guarda eficaz de seus próprios interesses e em benefício também da própria paz internacional”. Nesse caso, diferentemente do verificado na PEI, a ideia de “fortalecimento do prestígio nacional no âmbito externo” trouxe consigo o objetivo de projetar internacionalmente as singularidades brasileiras no contexto dos países emergentes, particu-larmente os sul-americanos. Couto e Silva (1967; 1981) não tinha uma perspectiva belicista da projeção continental ou regional do Brasil, mas suas ideias de fortalecimento do poder nacional e de maior proje-ção do país na região continham um potencial de desestabilização político-estratégica com consequências consideradas negativas pelas elites dos outros países da América do Sul (MIYAMOTO, 1995), ainda que tivesse preocupações com temas que apenas poderiam ser resolvidos por meio da cooperação setorial.

Para esse autor, o melhor caminho para adquirir poder no sistema internacional seria mediante o fortalecimento dos laços com o Ociden-te. Aceitava-se a hegemonia norte-americana no Atlântico Sul ressal-vando o “direito inalienável” de o Brasil vir a exercê-la no futuro. Eliminada a “ameaça comum”, o expansionismo soviético, os Estados Unidos, na visão de Couto e Silva (1981), deveriam voluntariamente deixar de exercer a hegemonia na região, assumindo o Brasil tal direi-to, tendo em vista a unidade geopolítica sul-americana (CAVAGNA-RI FILHO, 2000).

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Embora houvesse o reconhecimento da hegemonia, isso não implicava a subordinação às posições norte-americanas. Na visão de Couto e Silva (1981), a relação bilateral era vista como tendo interesses igual-mente compartilhados. Em termos políticos, por conta do papel de aliado estratégico dos Estados Unidos na região e da participação no sistema de defesa ocidental, contra o comunismo internacional, a ex-pectativa era a de que o Brasil pudesse exercer um papel de destaque na região. A aliança deveria resultar em benefícios para o país, inclu-sive fortalecendo sua posição. Como sabemos, mesmo em outros perí-odos históricos, grupos dirigentes do Estado acreditaram nessa possi-bilidade, que não se concretizou.

Referindo-se à integração com os países vizinhos, Couto e Silva (1967, p. 134-135) entendeu que uma maior integração física poderia aumentar o peso específico do Brasil. Segundo ele, a integração dos países da região tornaria “a participação brasileira muito mais efetiva na área vital e decisiva da soldadura continental cuja instabilidade natural sempre poderá constituir um perigo a exigir pronto remédio”. É importante destacar a ideia da instabilidade dos países vizinhos presente na reflexão desse autor e a consequente ideia da singularida-de brasileira. Para ele, a questão da integração é importante e estraté-gica. Discutindo as tentativas de integração na década de 1960, o autor se manifesta favorável, considerando que

[...] o mercado comum que ora se está estabe-lecendo, grande passo projetado no sentido de maior unidade continental e de um desenvolvi-mento econômico mais acelerado e coerente, exige, sobretudo, para sua concretização, a base física de um sistema adequado de circulação em toda a América do Sul. O Brasil não se poderia retardar em cooperar, decididamente, na criação dessa base indispensável (COUTO E SILVA, 1967, p. 135).

A maior parte dos esquemas geopolíticos brasileiros, que tocavam de alguma forma temas de integração regional, elaborados a partir da

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década de 1920 e centrados nas potencialidades geográficas do territó-rio nacional, discutiam a questão do controle físico do continente sul-americano e de seus acessos marítimos, na perspectiva de possibilitar ao Brasil o controle das áreas vitais. A ideia essencial era a de que, obtido tal controle por meios pacíficos, estariam asseguradas as condi-ções para se formar uma poderosa unidade geopolítica sob a hegemo-nia ou a liderança brasileiras, abrangendo a América do Sul, o Atlânti-co Sul e o Pacífico Sul-Americano. A efetivação dessa estratégia de-mandaria, obrigatoriamente, a integração e a organização do espaço nacional, o fortalecimento da defesa nas fronteiras, o exercício da liderança político-econômica no continente sul-americano, o estabele-cimento de uma saída em direção ao Pacífico e a neutralização de pretensões hegemônicas de qualquer outro país sul-americano (CA-VAGNARI FILHO, 2000).

É importante reter, da discussão acima, sobre a ESG e o pensamento geopolítico brasileiro, como lembrou Miyamoto (1995), que as obras de Golbery do Couto e Silva, Carlos de Meira Mattos, Mário Travas-sos e outros, foram utilizadas pelos geopolíticos de outros países da região para mostrar que a política brasileira era fundamentada nas concepções desses autores. Muitas vezes, ou na maior parte das vezes, não era o caso. É importante registrar que as ideias da ESG e de Gol-bery do Couto e Silva, quanto às concepções de parte dos geopolíticos brasileiros, viam o tema da integração regional a partir da considera-ção de que a América do Sul seria uma área privilegiada para a proje-ção geopolítica do país. O conceito de “projeção de poder” no plano regional e a percepção do destino do Brasil como “grande potência mundial”, forte na ESG e entre os geopolíticos, causaram desconfian-ça nos vizinhos quanto às intenções do Brasil na região nas décadas de 1960 e 1970. A concepção geopolítica influenciava as ideias relacio-nadas à integração regional, que era vista e favorecida na medida em que serviria para adequar as relações entre os Estados às necessidades brasileiras. No plano econômico, a integração era reconduzida a inte-resses que deveriam ser instrumentos de fortalecimento da posição comercial na região: “tudo faremos em favor do fortalecimento da

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ALALC, para aumentar a presença do Brasil no mercado latino-americano” (LEITÃO DA CUNHA, 1965, p. 136).

A CEPAL e a Teoria da Dependência

Nesta parte do trabalho abordaremos o modo como as ideias da CE-PAL foram incorporadas à visão de América Latina e de integração regional de parte dos pensadores brasileiros, particularmente na déca-da de 1960. Nossa principal referência será Celso Furtado, que teve e tem influência no pensamento econômico brasileiro de matriz nacio-nal-desenvolvimentista. Celso Furtado foi um dos autores brasileiros mais ligados às formulações teóricas da CEPAL, tendo sido, na verda-de, um de seus criadores.

Dosman (2008, p. 279) afirmou que “A mais poderosa unidade da ECLA [Comissão Econômica para América Latina e o Caribe (CE-PAL)] era a Divisão de Desenvolvimento, liderada por Celso Furtado [...]. Sua divisão era o centro de pensamento em teorias de desenvol-vimento e planejamento da organização” em 1951. Furtado contribu-iu, inclusive, para a estruturação do corpo de conceitos e de funda-mentos que deram origem à teoria estruturalista do desenvolvimento econômico da CEPAL. Uma das ideias centrais que impulsionou o surgimento da CEPAL foi o entendimento de que os países subdesen-volvidos necessitariam de uma formulação teórica independente, ou ao menos adaptada, pois em aspectos relevantes funcionavam de maneira diferente dos países desenvolvidos. Celso Furtado teve papel fundamental nessa agenda de estudos da CEPAL, iniciada por Raúl Prebisch. O subdesenvolvimento, na visão de Furtado (1961), era um processo histórico autônomo, não uma etapa pela qual necessaria-mente tenham passado as economias que alcançaram um grau superi-or de desenvolvimento. Seria, portanto, um processo particular, resul-tante da penetração das empresas capitalistas modernas em estruturas sociais arcaicas: haveria um fenômeno de homogeneização dessas estruturas híbridas, a partir do processo de industrialização. Sabemos que essa linha de ideias tinha afinidades com as de outros intelectuais e escolas de pensamento.

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Em seguida, discutiremos as ideias de intelectuais brasileiros ligados ao que ficou conhecido como Teoria da Dependência, que contemplava parte dos temas presentes na reflexão cepalina, muitas vezes com uma perspectiva diferente. Uma ideia enfatizada pela CEPAL era a da impor-tância do Estado na industrialização dos países da região. Os formulado-res da Teoria da Dependência buscavam compreender as limitações e as possibilidades para o desenvolvimento e para a industrialização dos paí-ses da região. Consideraremos Fernando Henrique Cardoso e Ruy Mauro Marini, por sua importância e representatividade.

No Brasil, as ideias da CEPAL proporcionaram a rationale para uma posição nacionalista e centrada no Estado que precedia a existência dessa instituição, estando presente na reflexão brasileira ao menos desde 1930. Sola (1998) entendeu que havia uma conexão entre de-senvolvimento econômico e certa concepção de desenvolvimento político na forma como as ideias da CEPAL foram absorvidas no Brasil. Assim, o crescimento e a integração do mercado interno – a principal mola propulsora do desenvolvimento para a CEPAL – eram tidos como inseparáveis de uma posição político-ideológica, pois a meta que consistia na formação e na diversificação do mercado inter-no – “deslocamento do centro dinâmico do crescimento” – assumia também a forma de categoria política; isto é, de um processo de inter-nalização dos centros de decisão. Do ponto de vista internacional, essa ideia fortalecia a perspectiva de uma ação externa independente, não condicionada a qualquer tipo de amarra bilateral, regional ou multila-teral.

Na visão de Bielschowsky (2004), há três características principais no pensamento de Celso Furtado. Em primeiro lugar, a defesa da lideran-ça do Estado na promoção do desenvolvimento, através de investi-mentos em setores estratégicos e, sobretudo, de planejamento econô-mico. O Estado deveria coordenar os esforços de industrialização de forma a reunir condições para superar os obstáculos estruturais que dificultavam o desenvolvimento. Em segundo lugar, a obra de Furtado defende a tese estruturalista de submissão da política monetária e cambial àquela de desenvolvimento, base da argumentação nacionalis-ta, em oposição aos programas de estabilização que tiveram defenso-

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res influentes no Brasil, como Eugenio Gudin. Furtado acreditava que o sucesso da industrialização brasileira dependia fortemente do con-trole dos agentes nacionais sobre as decisões fundamentais à econo-mia do país. Em terceiro lugar, sua obra revelou, de modo crescente, um compromisso com as reformas de cunho social, inclusive com a agrária.

Havia uma forte percepção sobre a importância do mercado interno na dinamização da produção e da renda. Furtado inclina-se para a análise histórica das possibilidades dinâmicas de superação da dependência do comércio exterior ou do próprio subdesenvolvimento, pela via do crescimento através do fortalecimento do mercado interno (BIELS-CHOWSKY, 2004). Nos anos 1950 e 1960, o capital estrangeiro ori-ginado nos países centrais era visto por Furtado como negativo para o desenvolvimento. Ao mesmo tempo, por ser o fator de integração das economias dos países periféricos à economia internacional, era visto como tendo interesses regionais. A consequência é não haver outra possibilidade de desenvolvimento senão pela via nacional.

Furtado (1978; 2000) atribuía um papel importante à integração regio-nal, sem deixar de enfatizar as ideias de planejamento e os centros nacionais de decisão. O tema da integração regional não era o núcleo central de sua reflexão, mas esteve presente em algumas de suas obras. “A teoria da integração constitui uma etapa superior da teoria do de-senvolvimento e a política de integração, uma forma avançada de política de desenvolvimento. O planejamento da integração surge, pois, como a forma mais complexa dessa técnica de coordenação das decisões econômicas” (FURTADO, 2000, p. 331). Em outro texto, também nessa direção, Furtado (1978, p. 267-268) considera que

[...] longe de ser uma simples questão de libera-lização de comércio, o verdadeiro problema con-siste em promover a criação progressiva de um sistema econômico regional, o que não será tare-fa pequena, em razão da orientação anterior de desenvolvimento, dos riscos de agravamento da concentração geográfica tanto das atividades e-

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conômicas como da apropriação dos frutos do desenvolvimento [...]. Os centros de decisão mais importantes, aqueles que são de natureza política e estão capacitados para interpretar as aspirações das coletividades, continuarão a exis-tir por muito tempo no plano nacional.

É importante observar que a integração regional é pensada com base no fortalecimento de capacidades nacionais. Trata-se de uma visão brasileira, mas também latino-americana, sobre esses proces-sos, uma vez que, ao menos nas formulações europeias sobre a questão, a integração regional, na maior parte das vezes, era pensa-da como um processo de abdicação parcial da soberania, ainda que lenta, ou de mudança do foco da capacidade nacional, do âmbito do Estado-nação para o regional-comunitário (HAAS, 1964).

Nos marcos da CEPAL, a industrialização era vista, nas décadas de 1950 e 1960, como a solução a longo prazo para o problema da vulne-rabilidade externa, que seria uma característica intrínseca dos proces-sos de industrialização periféricos. A integração regional era apontada, também, como uma possível resposta para esse problema. A CEPAL esteve diretamente envolvida na criação da ALALC e entendia que esse novo acordo regional poderia contribuir para o início de um pro-cesso de diversificação das exportações dos países da região por es-forço próprio, através da via, “teoricamente” mais fácil, do comércio intrarregional. O mercado comum latino-americano teria a virtude de ampliar as transações dos setores industriais exigentes, facilitando o aprofundamento do processo substitutivo de importações (BIELS-CHOWSKY, 2000). Porém o impulso mais forte para o Tratado de Montevidéu de 1960 foi a necessidade de reagir à redução das expor-tações e dos termos de troca dos principais países: Argentina, Brasil e México.

Os objetivos cepalinos em relação à integração e a passos de maior envergadura demonstravam-se difíceis de ser alcançados porque os pressupostos das políticas nacionais a respeito do desenvolvimento não os colocavam como questões centrais. Como argumenta Cervo

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(2008, p. 155), o pensamento cepalino erigido em torno de conceitos como indústria, emprego, proteção, mercado interno e autossuficiência se expressou em práticas políticas que tiveram como consequência, ainda que não fosse seu objetivo, constranger os processos de integra-ção. Celso Furtado, como formulador, inspirou uma forte vertente, baseada na percepção nacional de interesses a promover. Rompendo com Prebisch em 1955, manteve-se significativamente fiel aos pressu-postos que havia formulado. Ao conceber a Superintendência para o Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE) e ao tornar-se um pioneiro da ideia de planejamento, consolidou a concepção de que essa ideia tem como eixo a integração nacional.

No mesmo contexto intelectual do surgimento da CEPAL, ou seja, no bojo das tentativas dos pensadores da região de analisar de maneira autônoma e particular a economia local e regional bem como as rela-ções com o mundo, surgiu a Teoria da Dependência. Ela buscava compreender como ocorria a reprodução do sistema capitalista de produção na periferia, partindo da ideia de que ele criava diferencia-ções em termos políticos, econômicos e sociais entre países e regiões, fazendo com que a economia de algumas nações fosse condicionada pelo desenvolvimento e pela expansão de outras (SANTOS, 1970).

De certa forma, diferentemente das formulações da CEPAL, entre os dependentistas era forte a relação entre subdesenvolvimento e desen-volvimento capitalista mundial. Os teóricos da Dependência conside-ravam o desenvolvimento um processo nas disputas sociais e políticas, ou seja, havia uma dimensão propriamente política e não apenas eco-nômica. Cardoso e Faletto (2004) consideraram que a política é o meio pelo qual se possibilita a determinação econômica; ou seja, par-te-se da ideia de que a referência às “situações históricas” nas quais se dão as transformações econômicas é essencial para a compreensão do significado dessas e para a análise de seus limites estruturais e das condições que as tornam possíveis (CARDOSO; FALETTO, 2004).

No quadro da Teoria da Dependência, as interpretações são diversas (CHILCOTE, 1974), o que traz certa dificuldade em falar de uma Teoria da Dependência como algo homogêneo, ainda que entre a mai-or parte dos autores haja uma visão convergente no sentido de vincu-

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lar o paradigma do desenvolvimento latino-americano à dependência. Parte da literatura costuma dividir a Teoria da Dependência em duas correntes: a weberiana, identificada nos trabalhos de Cardoso e Falle-to, que partilha a possibilidade de um desenvolvimento dependente, e a marxista, ligada à reflexão, entre outros, de Marini, que, a partir da ideia de superexploração da força de trabalho, discute o desenvolvi-mento do subdesenvolvimento e não vislumbra a possibilidade de um desenvolvimento dependente. Pode-se talvez dizer que a segunda versão concede maior peso causal aos fatores externos, ainda que não desconsidere os internos, na determinação das situações de dependên-cia/subdesenvolvimento, ao passo que a versão apresentada por Car-doso e Falleto relativiza a determinação externa, enfatizando a possi-bilidade de uma situação de desenvolvimento dependente-associado como resultado da ação dos agentes locais em conexão com forças econômicas externas.

Marini (2000) entende que a única forma de enfrentamento e de supe-ração da situação dependente dos países da região, inclusive o Brasil, seria a ocorrência de uma revolução socialista. Os países subdesen-volvidos seriam dependentes porque reproduzem um sistema social limitado por relações políticas e econômicas, tanto nacionais quanto internacionais. No entendimento de Marini (2000, p. 109), a depen-dência deve ser “entendida como uma relação de subordinação entre nações formalmente independentes, em cujo âmbito as relações de produção das nações subordinadas são modificadas ou recriadas para assegurar a reprodução ampliada da dependência”. O obstáculo fun-damental a qualquer processo real de desenvolvimento seria o imperi-alismo, que extrairia praticamente todo o excedente produzido pelos países subdesenvolvidos (MARINI, 1978).

Nessa visão, a burguesia local estaria, em boa medida, subordinada ao imperialismo, no sentido de que não disporia de autonomia para proje-tar maiores possibilidades de desenvolvimento autônomo. Percebem-se claramente, nessa interpretação, limites estruturais para os projetos nacionais de desenvolvimento, bem como para qualquer forma de integração regional. A aproximação com o outro, na região, implica a superação prévia desses limites. Apenas a ruptura com o sistema in-

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ternacional propiciaria o desenvolvimento em termos de autossufici-ência, criando, portanto, condições para colocar a integração na ordem do dia.

Marini (2000) entendia que no caso do Brasil, a partir de 1964, com o governo militar de Castello Branco, a burguesia projetou uma política externa que recorreria ao subimperialismo, via exportação de seus produtos manufaturados a países ainda menos desenvolvidos, uma vez que a superexploração da força de trabalho impediria a formação de um mercado interno. O conceito de subimperialismo refere-se à neces-sidade da burguesia nos países dependentes em desdobrar sua acumu-lação para o exterior no momento em que alcança determinado grau de composição orgânica do capital com a industrialização. Nesse sentido, a debilidade do capitalismo brasileiro teria atingido a etapa imperialis-ta antes de ter conseguido a mudança global da economia nacional e estaria em situação de dependência crescente diante do imperialismo internacional. A consequência mais importante desse fato seria que, ao contrário do que acontece com as economias capitalistas centrais, o subimperialismo brasileiro não poderia converter a “expoliação” que pretende realizar no exterior em fator da elevação do nível de vida interno, capaz de amortecer o ímpeto da luta de classes; teria, ao con-trário, pela necessidade que experimenta de proporcionar um sobrelu-cro a seu “sócio maior norte-americano”, que agravar violentamente a exploração do trabalho no marco da economia nacional, em um esfor-ço para reduzir seus custos de produção (MARINI, 2000).

O mesmo autor, por meio do conceito de subimperialismo, qualificou a entrada do Brasil, ainda que de forma dependente e subordinada, na etapa capitalista de exportação de capitais a manufaturas, e explicou a busca pelo controle de matérias primas e de fontes de energia no exte-rior. Um corolário importante dessa situação seria a projeção de uma política externa “expansionista” e relativamente autônoma.

Para Cardoso e Faletto (2004), a situação de dependência exigia a análise da maneira como as economias subdesenvolvidas se vincula-ram historicamente ao mercado mundial e de como se constituíram os grupos sociais internos que definiram as relações internacionais intrín-

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secas ao subdesenvolvimento. A depender de como se organizariam politicamente as classes, haveria tipos diversos de vinculação com o centro. Segundo Cardoso (2004, p. 23), ao repensar a Teoria da De-pendência, essas vinculações são diferenciadas:

[...] uma coisa é quando se tem, como no Brasil e na Argentina, um setor local que é capaz de produzir acumulação – na agricultura que seja, no café, no gado. Ele cria capital aqui dentro e, mais tarde, investe esse capital até na indústria. Depois ele se associa, mas tem algum dinamis-mo [...]. Outra coisa é quando se tem um encla-ve, quando o capital vem de fora, passa pelo pa-ís, e a realização é feita lá fora [...]. E há um terceiro modo, quando os capitais externos pas-sam a investir na periferia. Investimento na produção de bens de consumo e de bens de ca-pital. Aí você tem uma outra dinâmica.

A consideração das diferentes situações na América Latina estava muito presente e influía nas formas de se perceber a integração. Para essa vertente da Teoria da Dependência, o desenvolvimento seria um processo social e, a priori, não seria correto atribuir totalmente ao imperialismo internacional a situação de debilidade dos países depen-dentes. Cardoso e Faletto (2004) consideraram que o desenvolvimento econômico nos países periféricos dependeria de uma estratégia diversa da ideia de “desenvolvimento para dentro”. Serra e Cardoso (1978) criticam a noção de superexploração presente na obra de Marini (2000) e indicam que o desenvolvimento, mesmo dependente, poderia apresentar ganhos de produtividade para os países subdesenvolvidos. Está presente uma clara diferenciação entre os países da região e, portanto, uma visão não única dela. A percepção da região dependeria de seus diferentes níveis de desenvolvimento e a integração teria ne-cessariamente de considerar esses níveis.

O objetivo do trabalho de Cardoso e Faletto (2004, p. 13)

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[...] é esclarecer alguns pontos controvertidos

sobre as condições, possibilidades e formas do desenvolvimento econômico em países que mantêm relações de dependência com os polos hegemônicos do sistema capitalista, mas, ao mesmo tempo, constituíram-se como Nações e organizaram Estados nacionais que, como todo Estado, aspiram à soberania. Por outro lado, procurou-se mostrar, implicitamente, que falar da América Latina sem especificar dentro delas as diferenças de estrutura e de história constitui um equivoco teórico de consequências práticas e perigosas.

Esses autores entendem que, desde o momento de instauração das nações, o centro político das forças sociais dos países latino-americanos tenta ganhar certa autonomia e busca sobrepor-se à situa-ção do mercado. Contudo, as vinculações econômicas continuam sen-do definidas objetivamente em função do mercado externo e limitam as possibilidades de decisão e de ação autônoma. O padrão de desen-volvimento para as sociedades latino-americanas, necessariamente, seria dependente, cabendo às instâncias políticas nacionais instituírem padrões que poderiam oscilar entre os pares desenvolvimen-to/dependência e estancamento/autonomia.

Ao definirem que o paradigma mais adequado de desenvolvimento latino-americano no quadro da dependência seria o par desenvolvi-mento/dependência, Cardoso e Faletto (2004) o colocam como um limite à expansão da região, mas o indicam como o único possível para o desenvolvimento nas condições conhecidas. Pensar a região, América Latina e América do Sul, implica perceber como o paradigma pode ser ajustado, de modo que ao menos os países em condições semelhantes possam articular-se para buscar maximizar vantagens relativas.

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As Análises de Celso Lafer e Samuel Pinheiro Guimarães: Visões Contemporâneas

Nesta parte do trabalho, analisaremos a visão brasileira sobre a região presente nas reflexões de Celso Lafer e de Samuel Pinheiro Guima-rães, pela importância de ambos nos tempos atuais, em particular para a política exterior do Brasil. Esses autores, embora tenham vincula-ções teóricas distintas, bem como diferentes visões sobre a natureza do sistema internacional, têm um entendimento que interpretamos como semelhante no que se refere à análise da região e ao papel que o Brasil deveria desempenhar no mundo. Da mesma forma, enfatizam a importância da aliança estratégica com a Argentina para a otimização da inserção brasileira no Cone Sul e na América do Sul. Ao mesmo tempo, parte do projeto de inserção internacional do Brasil presente na reflexão desses autores, por conta do peso que colocam na projeção do país no mundo, traz desafios para a relação bilateral com a Argentina. Lafer e Guimarães são referências importantes da tradição liberal e nacional-desenvolvimentista de inserção internacional do Brasil.

Lafer (1973), desde os anos 1970, enfatizou a importância do enten-dimento entre Argentina e Brasil. O eixo estruturante de sua análise, presente no trabalho publicado com Felix Peña (LAFER; PEÑA, 1973), é a ideia de valorização do contexto regional – entendido como o subsistema latino-americano de nações – para a elaboração de uma estratégia de participação autônoma no sistema internacional. Há o reconhecimento, naquele momento, de que “na América Latina, a identificação nacional continua prevalecendo. A prova de que chegou a hora de ir mais além do Estado-nação (Hoffmann-Haas) ainda está para ser feita” (LAFER; PEÑA, 1973, p. 30).

Um conceito importante na reflexão de Lafer (2004), explicativo de parte das visões contemporâneas da região, é o do universalismo, que estaria associado às características geográficas, étnicas e culturais do país. Para ele, essa noção incorporaria a pluralidade dos interesses do Estado e da sociedade, as afinidades históricas e políticas, e simboliza-ria a preocupação em diversificar ao máximo as relações externas do país, pluralizar, ampliar e dilatar os canais de diálogo com o mundo.

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Na ótica econômica, a ideia de universalismo manifestar-se-ia por meio do termo global trader, uma vez que o país possui intercâmbio com uma pluralidade considerável de nações, não restringindo sua pauta mercantil a regiões específicas e limitadas. Do ponto de vista político, a ideia que perpassa a noção de universalismo, que, inclusive, tem implicações para os processos de integração regional da região, é o projeto de tornar o Brasil um ator relevante no cenário internacional através da intensa participação em diversos foros bilaterais, regionais e multilaterais. A operacionalização desse ativismo externo universa-lista, de base nacional, necessitaria de uma integração regional essen-cialmente intergovernamental que não criasse qualquer tipo de amar-ras à projeção externa brasileira.

Lafer (2004) trabalhou com o conceito de potências médias para ca-racterizar a inserção internacional do Brasil. Essas seriam um grupo específico de países no sistema internacional que teriam um tipo pró-prio de política externa, na medida em que se diferenciariam das gran-des potências e não se confundiriam com países pequenos ou pouco expressivos no sistema. No caso brasileiro, essa noção complementa a ideia de que o Brasil deveria ter um papel singular no mundo por con-ta de suas características. O aumento da capacidade de influência brasileira no sistema internacional resultaria em um crescimento das margens de ação externa e do papel do país como mediador interna-cional, projetando seu poder pela legitimidade, não pelo confronto ou pela capacidade militar. Do ponto de vista da integração regional, a caracterização do Brasil como potência média, conjugada com o con-ceito de universalismo, ajuda a entender parte da dificuldade nacional em lidar com o tema do aprofundamento institucional da integração no Cone Sul que, possivelmente, restringiria a autonomia ou a liberdade desejada para a política brasileira em relação à região e ao mundo.

O mesmo autor argumenta que no caso do Brasil “se, pela limitação dos seus meios, é uma potência média no sistema internacional, ao mesmo tempo é uma potência média de escala continental, condição que lhe confere, naturalmente, um papel na tessitura da ordem mundi-al” (LAFER, 2004, p. 76). Ao mesmo tempo em que enfatiza a inser-

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ção multilateral do Brasil e as questões relativas à legitimidade e a outras formas de soft power, havia um componente regional substanti-vo na sua reflexão (LAFER, 1973; 1993; 2004).

Parecia-me evidente que a América Latina, em geral, e o Mercosul, em particular, eram a nossa circunstância, a nossa vida, o nosso desti-no. Desde o primeiro momento, vi no Mercosul uma plataforma de inserção competitiva do Brasil que era importante pelas oportunidades que gerava e pelo que representava como interlocução no plano mun-dial. Estava também muito consciente de que as tensões existentes no mundo deixavam claro que deveríamos partir da noção de fronteira-separação para a de fronteira-cooperação [...]. Eu tentava fazer esse tipo de articulação entre o interno e o externo, e ao mesmo tempo me dava conta de que um país com as dimensões do Brasil tem interesses gerais (LAFER, 1993, p. 279).

Na reflexão desse autor, o peso da integração regional para o Brasil seria sempre contextualizado considerando a projeção do Brasil em outras arenas internacionais. Pelo fato do Brasil ter “interesses gerais” na dinâmica de funcionamento do sistema internacional, sua inserção não poderia ficar ou ser restringida pela lógica dos processos de inte-gração regional, que necessariamente tendem a limitar a autonomia de ação dos Estados-membros.

Referindo-se à ideia de Mercosul, Guimarães (2006, p. 359) entende que

O Mercosul, não o programa de integração com a Argentina, foi imaginado dentro de uma políti-ca econômica geral neoliberal dentro dos países [...]. A miopia da estratégia brasileira ao abando-nar o modelo político da cooperação Brasil-Argentina e trocá-lo pelo modelo neoliberal co-mercialista de integração preconizado pelo Tra-tado de Assunção foi notável.

É importante lembrar que o início da integração com a Argentina (Declaração de Iguaçu, novembro 1985; Programa de Integração e Cooperação Econômica – PICE, julho 1986, e os 24 Protocolos decor-

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rentes; Tratado de Integração, Cooperação e Desenvolvimento, no-vembro 1988) correspondeu a uma lógica desenvolvimentista e prote-cionista que visava estimular a emulação empresarial para a moderni-zação e a inserção competitiva conjunta no sistema econômico inter-nacional.

Com o decorrer do tempo, segundo argumenta Guimarães (2006), observou-se a gradual perda de importância do tema do desenvolvi-mento no âmbito da integração e, ao mesmo tempo, a crescente rele-vância atribuída aos fluxos comerciais. Por conta disso, o autor discute a necessidade de restaurar a ideia do desenvolvimento econômico com base no mercado interno (agora regional). Em sua visão, uma questão importante seria estabelecer uma estratégia gradual para transformar o Mercosul, de um esquema “neoliberal do tipo integração aberta”, em um projeto de desenvolvimento regional. No plano econômico, as questões centrais seriam a redução da vulnerabilidade externa e das disparidades sociais internas e a recuperação da capacidade de formu-lar e de executar políticas de maneira autônoma (GUIMARÃES, 2006).

A argumentação do autor, favorável à integração econômica e à coope-ração política entre Brasil e Argentina, parte de uma visão teórica realis-ta da dinâmica mundial e traz a ideia de que a integração regional não pode ser exclusivamente comercial, mas deve ser parte de uma estraté-gia comum de desenvolvimento, em especial na área industrial e de serviços. A integração comercial regional, desde que acompanhada de uma política industrial regional, poderia contribuir para alcançar níveis superiores e mais amplos de industrialização. Guimarães (2007) consi-dera que o objeto da política externa brasileira seria a América do Sul e que o núcleo da política brasileira na América do Sul seria o Mercosul. O cerne da política brasileira no Mercosul, por sua vez, teria de ser, sem dúvida, a Argentina. O autor entende, portanto, que “qualquer tentativa de estabelecer diferentes prioridades para a política externa brasileira, e mesmo a atenção insuficiente a esses fundamentos, certamente provoca-rá graves consequências e correrá sério risco de fracasso” (GUIMA-RÃES, 2007, p. 1).

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Guimarães (1999) utilizou a noção de “grande Estado periférico” para caracterizar a inserção externa brasileira. Em sua percepção, esse tipo de Estado se defrontaria com um cenário internacional baseado em “estruturas hegemônicas de poder”. Assim como o objetivo estratégi-co dessas seria a própria preservação e expansão, devido aos benefí-cios que os países situados em seu centro derivam delas, os objetivos estratégicos finais dos grandes Estados periféricos seriam participar dessas estruturas hegemônicas – de forma soberana, não subordinada – ou promover a redução de seu grau de vulnerabilidade diante da ação dessas estruturas.

Apesar das diferenças entre Brasil e outros grandes Estados periféri-cos, ao compartilharem características e interesses e estarem situados em regiões distantes eles não estariam diretamente em competição e, assim, haveria condições para a construção de projetos políticos co-muns (GUIMARÃES, 1999). A categoria de “grande Estado periféri-co” parece buscar singularizar a política externa do Brasil, inclusive em relação aos países da região. Há, nessa reflexão, a identificação da possibilidade do Brasil vir a constituir coalizões com outros grandes Estados periféricos, para participar mais efetivamente das estruturas hegemônicas e para introjetar seus interesses na dinâmica das organi-zações internacionais. Guimarães (1999, p. 21) entende que “apesar de notáveis diferenças, o Brasil compartilha semelhanças e interesses comuns com certos Estados da periferia justamente por ser, como eles, um ‘grande país periférico’, o que os distingue, radicalmente, dos países médios e pequenos da periferia”.

Tanto no pensamento de Lafer quanto no de Guimarães, a integração sul-americana está muito presente. A conexão entre o Cone Sul é vista pelos autores como um primeiro passo para a posterior integração sul-americana. Além disso, a reflexão sobre a América do Sul e Latina, na maior parte das vezes, é contextualizada considerando a inserção do Brasil em outras arenas internacionais. Esse parece ser um traço per-manente no pensamento brasileiro sobre a integração regional.

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Breves Considerações Finais

Essa discussão demonstra que, em correntes importantes do pensa-mento brasileiro da segunda metade do século XX e do início do sécu-lo XXI, o tema da integração regional não esteve no núcleo das refle-xões, no plano político, econômico ou cultural. Ainda que na literatura o tema da América Latina surja esporadicamente, a continentalidade do país não estimulou sua inserção nos grandes debates nacionais. Há explicações. A quase totalidade dos demais países divide a origem colonial espanhola, o que tem seu peso, ainda que em alguns casos tenha sido negativo. As mudanças esboçadas na década de 1970, con-solidadas a partir de 1985, são importantes.

As correntes de pensamento aqui discutidas, o Instituto Superior de Estudos Brasileiros, a Política Externa Independente, o Pragmatismo Responsável, a Escola Superior de Guerra e o pensamento geopolítico, a Comissão Econômica para América Latina e o Caribe e a Teoria da Dependência, assim como as ideias de dois representantes do pensa-mento brasileiro contemporâneo no tocante à política exterior e à inte-gração regional têm em comum a ênfase na capacidade nacional e na necessidade do país de atuar internacionalmente de maneira indepen-dente; o que também acontece em países como o México, o Chile e a Argentina, sem falar em outros continentes. Há um forte acento na especificidade, no desenvolvimento e na integração nacionais.

A ideia do fortalecimento nacional é enraizada e determinou muitas das batalhas políticas internas. A partir do momento em que o debate sobre a integração regional surgiu de forma consistente, nos anos 1980, foi visto como um instrumento de fortalecimento nacional. Não é uma particularidade brasileira. Todos os processos de integração partem do pressuposto de que serão benéficos para o país e para toda a sociedade. Entre os autores e as escolas de pensamento estudados, pode-se afirmar que há certa predominância da teoria realista de rela-ções internacionais; isto é, a cooperação vista como um objeto de fortalecimento nacional que pode dar-se na perspectiva do interesse comum. O cerne da questão parece ser o desenvolvimento. No tocante à projeção externa, o debate centra-se no papel que o país deveria desempenhar no sistema internacional. Também nesse caso, a partir da

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década de 1980, a integração regional foi vista como compatível e até mesmo fortalecedora do desempenho.

Os conceitos de nacionalismo e de autonomia são muito fortes. O Brasil, como quase todos os países da América Latina, esteve condi-cionado no século XX às relações com os Estados Unidos. Como se aproximar, obter benefícios, ser autônomo e fortalecer um projeto nacionalista, vimos serem os leit motif permanentes. A autonomia remete à ideia de ampliação das margens de atuação ou de escolha de parte do Estado. O desdobramento, como acreditamos ter demonstra-do, foi a não urgência de um projeto de integração regional. Em al-guns casos, o tema não é objeto de interesse. Em outros, como no pensamento cepalino brasileiro, é considerado, mas remetido a um depois um pouco distante.

As mudanças econômicas e políticas dos anos 1970 estimularam a passagem de uma formulação idealista de integração para uma ideia concreta. A noção de desenvolvimento encontrou um terreno comum com a de integração, ainda que com todos os percalços que permane-cem no final da primeira década do século XXI. Por isso mostramos que as ideias de Celso Lafer e de Samuel Pinheiro Guimarães, com todas as suas diferenças, indicam a absorção do tema no corpo do Estado brasileiro e da sociedade, ao menos de suas elites.

No passado – no ISEB, na PEI, nas ideias cepalinas no Brasil, nos teóricos da Dependência brasileiros –, não houve uma teorização contrária à integração. Essa questão se colocou parcialmente no caso do Pragmatismo Responsável. O tema, porém, não chegava a ser formulado, pois a nação foi a questão privilegiada. Dentro dis-so, a industrialização. A busca pelo fortalecimento do papel inter-nacional do país era a decorrência. Nas décadas de 1950 e 1960, o tema central, que absorvia as melhores energias da inteligência juntamente com o desenvolvimento, era a busca por compreender as causas do atraso, determinante para as condições de vida e para a projeção externa. A compreensão dos mecanismos reguladores das relações centro-periferia era vista como decisiva. A América Latina passou a ser um importante objeto de estudo pelo pertenci-mento ao mesmo polo.

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Resumo

Pensamento Brasileiro e Integração Regional

O objetivo deste trabalho é analisar a forma como algumas escolas de pensamen-

to, representadas por figuras significativas, percebem no Brasil o tema da integra-

ção regional. O foco é a segunda metade do século XX, buscando compreender as

concepções de projeção regional e internacional do país, que fundamentam as

possibilidades de integração. Para isso, serão discutidos os seguintes temas: o

papel do Estado, a visão de país, o nacionalismo, o desenvolvimento econômico e

o subdesenvolvimento, o reconhecimento internacional e a percepção dos vizi-

nhos. A ideia da especificidade frente aos países vizinhos é um elemento presente

na obra de intelectuais e de formuladores de políticas. Ela se faz presente em

muitos países, inclusive em outros dessa região. Buscaremos entender como essa

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ideia evoluiu no Brasil, chegando, nos anos 1980, à aceitação da existência de

uma comunidade de interesses com os países do Cone Sul e da América do Sul.

Palavras-chave: Integração Regional – Política Externa Brasileira – Pensamento

Brasileiro

Abstract

Brazilian Thought and Regional Integration

The aim of this article is to analyze the way some schools of thought represented

by persons of renown look upon the issue of regional integration in Brazil. The

focus is on the second half of the 20th century, seeking to understand the concep-

tions of the country’s regional and international projection that ground the possi-

bilities for integration. To this end, the following themes are discussed: the role

of the State; the vision for the country; nationalism; economic development and

underdevelopment; international recognition; and neighbors’ perception. The idea

of specificity in relation to neighboring countries is an element present in the

work of intellectuals and policy-makers. It is also present in other countries,

including in countries of this region. We endeavor to understand how this idea

evolved in Brazil, culminating in the 1980s with the acceptance of the existence

of a community of interests with the countries of the Southern Cone and of South

America.

Keywords: Regional Integration – Brazilian Foreign Policy – Brazilian Thought

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