À Volta Da Identidade (e Do Seu Jogo Fascinante)

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Questão da identidade é debatida ao longo do artigo.

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  • Volta da Identidade (e do seu Jogo Fascinante).

    Luiz Fernando D. D u arte

    prprio do senso comum ter de se organizar sobre esquemas classificatrios que se apresentam ao senso crtico como empobrece- dores e reificantes. De um certo modo, toda empresa intelectual tal como se a concebe em nossa cultura extrai seu sentido e prazer da denncia e dissecao desses esquemas, de cujos escombros esquadrinhados parece emergir a luz sempre ansiada. Extrai-se esse prazer do efeito mas tambm do fato: a operao em si pode ser ela mesma luminosa, no que reitere a reproduo da esperana. O trabalho que desenvolve Manuela Carneiro da Cunha * a propsito dos negros no Brasil e retornados frica no sculo X IX exemplar nos dois sentidos: no primeiro, de contribuir para o desmantelamento do esquema mitolgico do negro no Brasil, com sua bem arrumada coroa de implicaes (a Africa , a escravido, a religio ) ; no segundo, de contribuir esttica da produo antropolgica, numa articulao singular de coerncia, complexidade e scholarship.

    H de se acrescentar que a excelncia a esses nveis fundamenta um propsito mais ambicioso inexplicito ao longo da anlise; rapidamente esboado na Introduo e Concluso que o de servir a uma reflexo adensada sobre o problema (ou problemas) da identidade. Nessa linha, o livro ganha uma dimenso mais ampla, como elemento de um trabalho analtico que , possivelmente, o de toda a obra da autora, por mais que aparentemente voltada para objetos dspares.

    * CUNHA, Manuela Carneiro da. Negros, Estrangeiros. Os Escravos Libertos e Sua Volta Africa. So Paulo: Edit. Brasiliense, 1985, 231pp.

  • Ao nvel mais formal, notvel como a cadeia de argumentao se urde pela justaposio de inmeros pequenos elos, nodulos, que merecem da autora um tratamento eqanimemente meticuloso. Isso permite que cada segmento seja aproprivel em separado com um proveito prprio, iluminando questes da mais diversa ordem. Muitos desses elos incluem reviso de bibliografia muito especializada ou utilizao de recursos bibliogrfico: preciosos, sem que transpire como pesada a erudio imprescindvel. Uma marcao no- exaustiva faz ressaltar a reviso do estatuto social da populao de origem africana ao longo do sculo X IX no Brasil, atravs dos mecanismos de identidade e distino concentrados no aparelho jurdico - poltico, ou disseminados na vida quotidiana; a justa nfase na sub- suno da questo da escravido questo maior da reproduo da sujeio e dependncia no espao social brasileiro; a demonstrao do processo de incitao volta frica do negro liberto e apatrida no Brasil; a reviso da questo da provenincia tnica da populao escrava e dos mecanismos que, na, frica, permitiam (e de um certo modo) o apresamente e trfico negreiro, e, coroando o trajeto, a exposio das complexas condies de implantao e desenvolvimento econmico, poltico e cultural da comunidade dos negros brasileiros (mais uma vez estrangeiros) em torno de Lagos.

    Outros ndulos mais especficos chamam, particularmente, a ateno de quem, como Manuela Carneiro da Cunha, se compraz com a observao e anlise dos processos de construo das identidades sociais. Penso na bela exposio no entanto to curta da dana das imagens mitolgicas do negro e do ndio na produo do imaginrio da nao brasileira aps a Independncia. Ou, ainda, na anlise da diaspora mercadora mecanismo de instituio sociolgica universal, que conforma a identidade dos brasileiros na frica. Ser, talvez, porm, o captulo sobre o catolicismo em Lagos o mais instigante sobre esse ponto. A anlise do modo pelo qual esses homens que se afirmam, principalmente, animistas na Bahia e so os mais ortodoxos do> muulmanos em Serra Leoa, tornaram-se os paradigmas de catolicidade entre os protestantes, muulmanos e animistas de Lagos, na Nigria (Cunha, 1979 '.36) tem uma eficcia quase didtica para essa dessubstantivao , essa contextualizao, que exige uma concepo crtica das identidades sociais. Pode-se, atravs dos elementos dessa anlise, materializar cada um dos pontos tericos fundamentais que sobre a identidade a autora faz aqui e ali repontar.

  • O primeiro o ponto da eontrastividae, enquanto processo que faz opor, em um nivel, elementos partcipes, em outro, de alguma forma de continuidade. Essa questo j aparecia com toda clareza no seu livro sobre os Krah, tentando combinar a tradio radcllffe- browniana da dinmica sociolgica entre cooperao e conflito e a questo.

    'Pois np nos parece diz a autora que a hostilidade; derive da alteridade, mas sim o contrrio. No porque o outro diferente que eu o hostilizo, mas eu o hostilizo para coloc-lo como diferente. para poder pensar-nos que nos opomos. No plano da sociedade, instaura-se a especificidade do grupo pela negao do estrangeiro. Matandov-se o inimigo, afirma-se o eu pela negao do outro, do no-eu (Cunha, 1978: 81).

    O estudo da amizade formal e do companheirismo naquela sociedade lhe propiciava, justamente nesse sentido, um modo de se pensar a alteridade e conseqentemente de se colocar a identidade" (ibidem :50). Ao analisar a passagem de uma cultura original para uma cultura de contraste e ao se inquirir sobre o modo de determinao dos sinais diacrticos em seu artigo sobre a etnicidade (Cunha, 1979), a autora j utilizava referncias ao material que veio a ser o de Negros, Estrangeiros. No balano abstrato que a concluso desse ltimo livro, Manuela Carneiro da Cunha podia assim, reiterar que o que se ganhou com os estudos de etnicidade foi a noo clara de que a identidade construda de forma situa- cional e contrastiva. . . (Cunha, 1985: 206).

    O segundo ponto, intimamente ligado ao primeiro, o da no~ substancialiade de toda identidade. O que no quer dizer no-con- cretude ou desimportncia, mas apenas o fato de que, ao nvel analtico, no h nada que carregue o fato de identidade alm do propriamente simblico, do propriamente cultural. A polmica da autora com os famosos critrios de identidade tnica da FUNAI se concentrava, justamente, nesse ponto, na crtica transposio das substancializaes inevitveis do senso comum para a fundamentao de uma poltica de Estado fortemente tendenciosa.

    Mas a prpria restrio da identidade a um fenmeno cultural exige da autora novas especificaes, para evitar que a se redupli- quem as reificaes. O recurso metodolgico aquele a que nos habituou o funcionalismo e a que o estruturalismo apenas concedeu uma dimenso mais abstrata: o da preeminencia da funo , ou

  • sentido numa totalidade presente ou sincrnica, sobre os efeitos da continuidade passado/presente. assim que ela poder dizer ter-se passado

    da identidade enquanto uma constante, algo imutvel que caracterizaria um grupo, presa idia de uma histria realmente presente em uma cultura anteposta, a uma concepo mais adequada que poderamos chamar de algbrica de identidade, adotando assim uma imageim de Simmel que compara a identidade a uma varivel numa equao (talvez tivesse sido mais apropriado falar em um sistema de equaes) : embora se trate sempre da mesma varivel, seu valor muda em funo dos valores dos outros fatores (Cunha, 1985: 208).

    Essa demonstrao crtica corre, porm, pari passu com a demonstrao de que, ao nvel da constituio e vivncia da identidade (ou das identidades), a construo da continuidade temporal, da semelhana com um passado , da designao de uma tradio que apresenta como fundamental. Opem-se, assim, cada um em seu nvel, o reconhecimento de que a questo da identidade tnica de Lago 3 s era inteligvel no contexto local e no como resqucio de situaes anteriores (Cunha, 1985: 15) e as representaes e prticas de seus informantes , exigindo para sua culinria na frica o leite- de-coco que no Brasil fora apenas um substituto da original e africana semente de egusi (Cunha, 1985: 120), ou induzindo um dos missionrios catlicos que conheceram a munificncia de seus dzimos e esprtulas em Lagos a esmolar (com resultados decepcionantes) no seu pas de origem, o Brasil (cf. Cunha, 1985: 156). Para alm da ironia pitoresca desses meandros da identidade e das identificaes, Manuela Carneiro da Cunha comenta que a ironia que essa semelhana ao passado , de sada, um projeto e um projeto irreali- zvel, a menos que, ao inverso de se adequar o presente ao passado, se proceda na ordem inversa, ou seja, se adeque o passado ao presente. o que se faz. As tradies, como se sabe hoje, so sempre reinventadas (Cunha. 1985: 207).

    Essa questo da preeminncia da funo sincrnica sociolgica ou simblica no abole, porm, antes complica como aponta a autora a questo das continuidades subjacentes continuidade imaginria construda. Pois, se o sentido dos elementos comandado pela relevncia no novo sistema, no irrelevante o acervo disponvel (social e historicamente restrito) para sua seleo e recomposio, assim como no irrelevante a relao entre as ordens ou nveis

  • sucessivos de relevncia ou sentido na construo das identidades sociais (e, dentro destas, das pessoais). Esse problema estava muito explicitamente presente no seu artigo sobre a etnicidade e a evocao de Lvi-Strauss era inevitvel (Cunha, 1979: 37). Mas tambm estava presente no livro sobre os Krah, a respeito da continuidade daquela cultura, face s inovaes e mudanas oriundas do contato. O confronto entre as preocupaes expressas nos dois textos parece-me expor de maneira mais clara as duas pontas do impasse em que estanca a anlise da identidade na diacronia. Por um lado, o pressuposto da preeminencia da funo sincrnica implica em que, como diz Manuela Carneiro da Cunha a propsito da experincia Krah, a experincia nova [seja] apreendida atravs de um arcabouo mental preexistente (Cunha, 1978:5). Por outro lado, o mesmo pressuposto exige a concluso bvia de que no se podem definir grupos tnicos a partir de sua cultura, embora, como veremos, a cultura entre de modo essencial na etnicidade (Cunha, 1979: 36).

    A contradio a no do pensamento da autora (que me poderia objetar, alm do mais, que a cultura e o arcabouo mental no so a mesma coisa, ou entes do mesmo nvel) e nem , talvez, sequer uma contradio. Trata-se, antes, efetivamente, de um desses impasses que definem as fronteiras de um determinado estilo de pensar, de um certo processo de conhecimento, de construo das prprias questes. Se o evoco porque ele me parece transitar constante e implicitamente ao longo das anlises da autora, como o mistrio da epgrafe ao artigo sobre a etnicidade.

    Tambm temeria, por outro lado, que a no resoluo desse impasse permitisse que o recurso chamada dimenso poltica da identidade (ou, mais uma vez, das identidades) pudesse vir a ocupar o lugar da articulao faltante. No este, tampouco, um perigo do pensamento de Manuela Carneiro da Cunha. Sua nfase numa dimenso poltica decorre da postura analtica sempre muito concreta (eu diria quase inglesa ) , caminhando concomitantemente sobre o sociolgico e o simblico , entre o Cila e Caribdis do em- piricismo e do intelectualismo . O poltico, nesse caso, no um nvel ontologicamente privilegiado, uma dimenso da prpria contrastividade: percebeu-se tambm que, se a identidade repousa numa taxonoma social, resulta de uma classificao, deriva da que ela um lugar de enfrentamentos. . . (Cunha, 1985: 206). No dela, mas de muitos de seus leitores, que eu temeria a ereo de estratgias de maximizao de poder individualizantes, se no individuais como reduo da questo do modo, sentido e direes da se

  • leo dos traos aportados/construdos na mudana de uma identidade social.

    Um dos aspectos mais inspirados da anlise de Manuela Carneiro da Cunha o da crtica a qualquer hiptese de interpretao da identidade pela continuidade dos sentimentos . Embora esse tipo de crtica seja j agora clssico na Antropologia, a sua aplicao em reas localizadas do senso comum sempre esclarecedora, inclusive, talvez, cada vez mais, da prpria necessidade desse recurso ideolgico. A manuteno de uma identidade separada diz a autora no se deve simplesmente saudade da Bahia ou a um desejo unilateral de distanciamento, mas convenincia de se preservar uma distino (Cunha, 1985, :150). claro que com isso no se minimiza toda a fora com que os imperativos sociais se impem aos sujeitos, justamente, atravs disto a que chamamos as emoes ou os sentimentos. Ou que no seja fundamental reconhecer em tomo de qu se desencadeiam as paixes delineadoras da identidade dos sujeitos sociais. Esse , creio, o fio que perpassa a anlise da religiosidade dos brasileiros em Lagos. Em torno dela que ensejou a cristalizao de um catolicismo tomado como sinal por excelncia da identidade brasileira em Lago, (Cunha, 1985, : 151), viceja a minuciosa interpretao que faz Manuela Carneiro da Cunha dos ponderabilssimos Imponderabilia garimpados nas mais diversas e notveis fontes: a saudade ; as vocaes ou aptides profissionais; o gosto culinrio, arquitetnico ou musical; a nominao individual; e, mxime, isso a que ainda temos de chamar to desajeitadamente de crenas ou sentimentos religiosos , propriamente ditos . Tudo isso compreendido como recursos ou elementos de confirmao das relevncias no novo sistema, e no como pontes para-sociais entre um passado enrijecido na memria e o presente.

    A dessubstantivao da identidade passa ainda por um plano de questes que, na obra de Manuela Carneiro da Cunha, pode ser axiado em torno da categoria contexto:

    As distines eram, como vimos, de vrios tipos. Em um nvel, era-se brasileiro, noutro era-se, juntamente com os saros, retornada, noutro ainda era-se egba retornado, ijex retornado ... Essas diversas Identidades eram operativas em determinados contextos. Eram essas distines que permitiam a ao poltica e o comrcio. (Cunha, 1985: 150).

    A concomitncia de mltiplas possibilidades de classificao/identificao ao longo de um mesmo eixo de significao uma caracte

  • rstica universal da identidade tal como se pode hoje reconhecer. Tem sido, porm, tambm fonte dos mais intrincados embaraos ao pensamento antropolgico, por fora da persistncia fundamental do conceito aristotlico de identidade na tradio do racionalismo ocidental. Eu mesmo procurei analisar algumas das repercusses dessa questo em outros trabalhos, atravs da determinao de um plano de situacionalida.de, ao mesmo tempo, distinto e englobante dos planos de emblematicidade e de contrastividade da identidade social (Duarte 1984 e 1986). Creio que por ver em Negros, Estrangeiros uma to constante lucidez prtica em torno de todos os pontos em que hoje se pode visualizar a questo da identidade, que me surpreende a referncia to passageira no encerrar da Introduo a uma conotao reificante da identidade: A identidade entre os brasileiros de Lagos e os libertos africanos da Bahia no ficou demonstrada. H continuidade, sim, mas identidade, em que sentido? De certa forma, o nexo do trabaho e talvez sua fecundidade est precisamente nessa questo irresolvida? (Cunha, 1985 p: 15). O termo aqui aparece com as conotaes da mesmidade que o cercam, o mais freqentemente, na linguagem comum: a qualidade que entre dois seres os torna idnticos . Esse no o sentido, porm, em que Manuela Carneiro da Cunha o usa ao longo de todo o trabalho, nem aquele em que eu creio se pode dele fazer um uso heurstico em Antropologia. Nesse outro sentido, e em coerncia com o carter puramente algbrico, situacional , que havamos ressaltado a partir das colocaes da autora, tanto se pode dizer que h, em um nvel, uma identidade comum a africanos libertos no Brasil e brasileiros na frica, quanto, em outro, que no o h. Concordo com a autora que, por a, se do o nexo e fecundidade de seu trabalho, mas como questo praticamente resolvida, ou, at mesmo, como lio contra a ameaa de solues lineares, aristotlicas, por assim dizer.

    Esse , alis, o sentido de todo esse curto e caloroso artigo de Lvi-Strauss, citado pela autora, com que se encerra o Seminrio Uldentit: o da oposio a todo substancialismo , esttico ou dinmico. A identidade como um tipo de foco virtual, ao qual indispensvel que nos refiramos para explicar um certo nmero de coisas, mas sem que tenha jamais uma existncia real (apud Cunha, 1985: 209).

    bem possvel como diz Manuela Carneiro da Cunha ao fim do livro que talvez a histria no faa sentido e que a identidade seja uma condio suprflua . Creio que , porm, mais notvel e digno de exame que, para alm do interesse e significao a que

  • aludia Borges a propsito de Citizen Kane, a boa explorao da identidade. a especulao sobre seus desafios, ainda nos provoque tanto fascnio, a ns, cticos ruminantes deste fim de sculo.

    BIBLIO GR AFIA

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