A Vontade Como Reino Do Mal 2

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  • 8/14/2019 A Vontade Como Reino Do Mal 2

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    Tpicos de ticaCaius Brando

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    25/06/09

    A VONTADE COMO O REINO DO MAL

    Recentemente, uma comisso do Senado brasileiro aprovou um projetoque reduz a maioridade penal no Brasil, de 18 para 16 anos de idade. Essaresponsabilizao legal seria feita na presuno do adulto de que oadolescente tem a capacidade de discernir entre o certo e o errado, de refletirsobre as conseqncias de seus atos, ou seja, de pensar antes de agir. Novamos aqui discutir o mrito da deciso do Senado sobre o adolescente

    brasileiro, mas o que nos interessa investigar com este exemplo como aresponsabilizao (legal ou moral) fruto da qualidade atribuda ao indivduopela sociedade de ser ele senhor de uma vontade livre e autnoma.

    Quando nos indagamos sobre o porqu agimos moralmente, temos atendncia de voltar nossa ateno aos costumes e religio. Mas, em geral,nos desviamos da pergunta: afinal, o que o bem e o mal? Deveramos nosinteressar tambm por saber em que condies diferentes concepes sobre obem e o mal do origem a costumes e ideais morais diversos, alm deentender em que medida tais ideais regulam as nossas vontades e aes.Seria absurdo tentar responder questes to complexas neste pequeno texto.

    Logo, o que segue uma breve leitura da abordagem de seis pensadores(Aristteles, Santo Agostinho, Descartes, Kant, Nietzsche, e H. Arendt) acercado mal e sua relao com a vontade do homem.

    Admitimos facilmente que um urso devore uma truta viva sem quepossamos atribuir a essa ao nenhuma maldade, posto que o pobre animal incapaz de refletir. Seu comportamento sempre instintivo e obedece ao quechamamos de leis naturais. Admitimos tambm com tranqilidade que noexiste escolha ou deliberao na natureza. Suas leis so necessrias, assimcomo necessrio que a goiabeira d frutos. O conceito de maldade, como ode bondade, no tem nenhuma aplicao no mundo natural, e sim

    exclusivamente na cultura, ou seja, nas aes e pensamentos do homem.Desta forma, para que uma ao seja considerada moral, antes necessrioque o seu agente (o indivduo) tenha conhecimento sobre a situao dada,discernimento a cerca das contingncias e capacidade de deliberao. Sassim poderamos atribuir um juzo de valor s aes de algum. Logo, pelomenos neste planeta, apenas os homens so capazes de agir moralmente, eisto os diferencia daqueles outros seres que se rendem vencidos pelos seusprprios instintos e, assim, permanecem dominados pela natureza.

    O conceito de vontade como entendemos hoje em dia praticamente noexistia na Grcia antiga. Os povos antigos tinham a noo de individualidade,mas no a de subjetividade, que surge somente na poca moderna.

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    Em sua obra tica a Nicmaco, Aristteles reafirma a relao necessriaentre racionalidade e a moralidade. Ele julga que o homem, justamente por serdotado de razo, traz consigo o potencial de agir moralmente. Aristteles nosdiz que somente agindo de forma justa e temperante o homem serconsiderado justo e temperante. A moralidade no est circunscrita razo,

    visto que ela apenas se concretiza com a ao do homem no mundo. Logo, arealizao do homem virtuoso agir bem. Dizer que algum dotado desabedoria prtica significa dizer que esta pessoa age com prudncia, semprecapaz de discernir, julgar, calcular e deliberar. Neste caso, o fundamento dovalor moral est nos resultados da ao (a felicidade, ou seja, o bem viver e obem agir). Essa a moral utilitarista. Uma outra abordagem a cerca dafundamentao da moral, a deontolgica, substitui os resultados da ao pelosprincpios morais. Mas isto, abordaremos mais tarde.

    Agora, nos cabe perguntar como o problema do mal discutido por umpensador religioso, ou seja, algum que acredite em um sumo bem, que seria

    Deus, e que nele no teria maldade alguma.

    O problema a cerca da origem do mal mobilizou vrios filsofos etelogos da Igreja Catlica na idade mdia, entre eles, Santo Agostinho. Suaprincipal preocupao ao escreverO Livre-Arbtrio, foi a de demonstrar que,apesar de ser Deus o criador de todas as coisas, no poderia ser ele o autor domal (Deus a suma bondade, portanto, no poderia praticar o mal). Mas seDeus no responsvel pelo mal praticado no mundo, ento, de onde vem amaldade? Antes de chegar a esta resposta, Agostinho descreve a constantetenso entre a paixo e a razo como fator determinante da vontade humana.A boa vontade seria aquela submissa apenas razo, enquanto que a vontadem reina no imprio da paixo.

    Mesmo sendo Deus onipotente e onisciente, a vontade do homem livre, caso contrrio, se seus pecados no fossem cometidos voluntariamente,ento Deus puniria os pecadores injustamente.

    No entanto, Agostinho defende que Deus no criou o homem dotado derazo para que vivesse eternamente submisso s suas paixes. Atravs darazo e da f, o homem capaz de conter seus impulsos instintivos e purificara vontade dos afetos, aproximar-se de Deus atravs de seus ensinamentos, e

    alcanar assim a prtica da boa vontade. Ao exerccio desta boa vontade,Agostinho sugere quatro virtudes cardeais, a saber: a fora, entendida comouma disposio da alma para desprezar os dissabores; a temperana, queserve ao controle dos apetites; a justia, que seria dar a cada um, o que seu;e a prudncia, ou seja, a obrigao de se desejar apenas o bem. As virtudesque constituem a boa-vontade agostiniana so propriedades da razo. Atravsdela, o homem se faz consciente de suas escolhas e se torna livre e autnomo.

    Se Deus no o autor do mal e se a verdadeira razo leva apenas boa-vontade, ento, o pecado surge com o abuso do livre-arbtrio, quando avontade humana se encontra subjugada pelas paixes.

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    A concepo moderna de vontade comea a surgir no sculo XVII comfundamento na subjetividade da pessoa humana. Ren Descartes, filsofofrancs, compreende o homem e o mundo a partir da certeza de que penso,logo, existo. Assim, Descarte nos revela a capacidade do homem de se voltarpara si mesmo e se reconhecer como pessoa dotada de uma vontade livre.

    Em seu Discurso do Mtodo, Descartes encontra para si mesmo critriospara agir moralmente. Para ele, o pior dos males a indeciso que paralisa apessoa. Como ele se propunha a colocar tudo em que acreditava em dvida, afim de investigar a verdade de todas as coisas, era necessrio criar o que eleprprio chamou de uma moral provisria. Desta forma, poderia manter-semoralmente correto ao longo de sua empreitada investigativa.

    Esta moral provisria cartesiana tem como eixo trs mximas que devemregular a vontade:

    - Obedecer s leis e aos costumes de onde se vive, permanecendo emcontato com Deus atravs da religio, alm de assumir opiniesmoderadas, e sempre seguir os mais sensatos;

    - Ser firme e resoluto, sempre buscando o caminho reto. Caso no possadiscernir as opinies verdadeiras, siga as mais provveis;

    - Procure vencer a si mesmo e no a fortuna, modificar os seus desejos eno a ordem do mundo. A nica coisa sobre a qual temos poder so osnossos pensamentos, por isso, devemos cultivar a razo, conhecer averdade e no desejar o que no se pode ter. Para proceder bem, apenasse faz necessrio que julgue bem.

    Mais uma vez, a virtude moral alcanada atravs da vontade que controlaa si mesma para querer agir sempre bem.

    Emmanuel Kant, filsofo ingls do sculo XVIII, desenvolveu umaabordagem deontolgica da moral, ou seja, os valores morais sofundamentados em princpios revelados pela razo pura a priori. A base damoralidade kantiana a autonomia da vontade livre. Em Kant, a noo devontade toma sua verdadeira forma moderna na filosofia ocidental.

    Mas se a vontade livre, se teoricamente podemos usar a razo para agirem respeito lei moral, porque somos capazes de cometer o mal? E ainda, atque ponto o homem poder ser realmente maligno, ou seja, desejar o mal pelomal, sem obter nisso qualquer vantagem egosta?

    Kant reafirma que apenas os seres racionais so dotados de vontade,podendo, portanto, agir moralmente. Para ele, existem dois tipos de ser e doisrespectivos tipos de vontade. A vontade santa, que a vontade de Deus, puramente racional e essencialmente boa, no havendo nela espao algumpara a maldade. Os afetos, os instintos e as paixes so mbiles corpreos,

    mas Deus um ser simples, sem qualquer participao material. Portanto, suavontade pura tambm.

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    J no caso dos humanos, a vontade dividida tanto pela razo como pelasinclinaes, justamente por ser o homem constitudo de corpo (matria) e alma(razo).

    Uma ao para ser moralmente boa no pode ser influenciada pelasinclinaes, em detrimento do componente racional da vontade. Assim comoAgostinho, Kant encontra a raiz do mal na prpria natureza do homem, na suaprpria vontade em eterno conflito consigo mesma, ou seja, no livre-arbtrio.

    Kant recusa a idia de um princpio maligno como determinante da vontadehumana. O homem sempre busca o bem (mesmo que apenas o bem de si), atmesmo ao causar o mal. Por este mesmo motivo, a felicidade no serve comocritrio para a moralidade. Qual quer tipo de compensao ou de interesseparticular j suficiente para tornar uma ao boa em ao no-moral. Porexemplo, se pratico a caridade porque serei mais feliz assim, ento minha ao

    pode ser boa, mas no moral. A boa vontade totalmente desinteressada.Desta forma, eu teria que fazer a caridade no em vista s possveisrecompensas, mas pelo dever de respeitar a lei moral, ou por amor a ela, paraque minha ao fosse considerada moralmente boa.

    Kant acredita que o egosmo faz parte da constituio humana, mas quetambm temos a fora necessria para vencer esta natureza. Para tanto, bastaque estabeleamos o princpio racional (a lei moral) como fator determinantedas mximas morais que regulam nossas aes.

    Ao contrapor estes dois componentes da vontade humana (razo einclinaes), Kant afirma que o homem tem uma disposio para o bem e umapropenso para o mal. Ele cunha o termo mal radical para falar sobre nossapropenso natural a eleger como princpios de nossas mximas o que no alei moral, em detrimento do imperativo categrico que demanda ocumprimento desta lei. Com o conceito de mal radical, Kant no teve a intenode condenar o homem imoralidade. Ele acredita que a natureza tem umprojeto para o ser humano: a perfectibilidade. Da mesma forma em que o livre-arbtrio a origem do mal, a prpria vontade, quando influenciadaexclusivamente pela razo, que pode levar o homem moralidade em suasaes.

    Agora, por um breve momento, vamos imaginar que Deus tenha morrido.Ainda assim haveria razo para agirmos moralmente? Seria possvelfundamentar a moral dos homens em outro lugar que no fosse o alm-mundo? Por aquele breve momento, poderamos sem Deus e sem ametafsica (depois de Kant, a metafsica sofre descrdito no meio intelectual) nos dar a oportunidade de voltar nossa ateno realidade concreta, para logodescobrirmos que negar o mundo, o corpo e as paixes, negar a prpriavida? Ento, com esta vida, com este corpo e mundo, eu me perguntarianovamente se tenho algum motivo para agir moralmente.

    Nietzsche, filsofo alemo do sculo XIX, estudou a questo do bem e domal com o auxlio da filologia e da histria do homem. Percorrendo a trilha da

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    linguagem, do significado das palavras, Nietzsche identifica diferentes ideaismorais e o exato momento em que a alma do homem se torna m.

    Existem dois tipos de vontades: a vontade guerreira e a vontade sacerdotal.O ideal moral de uma vontade guerreira toma a si mesma como referencial

    para o belo, o bom e o forte. Nesta vontade tem-se o esprito de dominao, deconquista e de valorizao da vida. Sem intermediaes reflexivas, elaresponde imediatamente sua natureza e se satisfaz, tal como aquele ursofazia com as trutas.

    Os homens que viviam assim criam para si um ideal moral que nocompreendia o bem e o mal, mas o bom e o ruim. Ainda com a metfora donosso pescador, natural que as trutas no gostem do que o urso faz comelas, mas isso no lhes d o direito de conden-lo moralmente, pois ele agesem refletir, assim como tambm agem os homens de uma moral dossenhores, pois que esta a vontade guerreira. O que resta s trutas, se no

    sucumbir diante se sua prpria impotncia?

    A vontade sacerdotal fez surgir a moral dos escravos, dos fracos eimpotentes. Incapazes se sobrepujar seus inimigos, os homens de vontadesacerdotal alimentam o dio e o ressentimento. Alimentam-se somente daesperana de que um dia seus algozes sero castigados. Na sua impotncia eescravido, os sacerdotes tambm criam para si um novo ideal moral, tendocomo referncia (negativa) a moral dos senhores. De fato, os sacerdotesinverteram aquele ideal moral para criar o seu. Logo, o que era belo, forte, ricoe poderoso, se torna o smbolo do mal, enquanto o feio, fraco, pobre e escravo,porm digno da bondade divida, bem-aventurado e ser eternamente feliz aolado de Deus, ao passo em que seus inimigos (o homem de vontade guerreira)ardero eternamente no inferno.

    Para Nietzsche, essa foi a vingana mais ardilosa e duradoura da histriada humanidade. Como vimos anteriormente, no pode existir maldade ondeno existe a capacidade de reflexo. Esta foi uma importante contribuio paraa humanidade, no resta dvida nenhuma, mas, com a capacidade de pensar,a vontade sacerdotal fez florescer o dio, a vingana, e a pequenez do esprito.

    Voltemos agora nossa ateno questo sobre se o mal pode ser cometido

    sem maldade. Por exemplo, seria possvel que no fosse um monstro, umcolaborador direto de uma das mais cruis atrocidades cometidas contramilhes de pessoas inocentes, como o extermnio de judeus pelo regimenazista?

    Hanna Arendt, uma terica poltica, nascida em famlia judia, na Alemanha,viveu de perto os horrores da guerra contra seu povo. Depois da guerra, com oobjetivo de aprofundar seu conhecimento sobre os regimes totalitrios e sobrea natureza do mal, Adrendt acompanhou o julgamento de Eichmann emJerusalm, um colaborador direto do nazismo.

    Num texto produzido para uma revista americana, Arendt fala sobre abanalidade do mal para retratar como que, longe de ser um monstro maligno

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    que agiu com o objetivo de fazer o mal pelo mal, Eichmman se revelava umhomem superficial e medocre. Mas o que mais despertou a ateno dapensadora fora a quase total incapacidade de pensar deste personagemcomum. As atrocidades que ele promovera contra os judeus no haviam sidomotivadas por um suposto princpio maligno, mas sim pela obedincia

    cadavrica ou dever. Arendt sublinha que um trao caracterstico de regimesautoritrios a produo de uma massa burocrtica e acrtica, condicionada ano pensar e a seguir ordens de forma irrefletida. Pensar, de acordo comArendt, ser capaz de ser um outro para si mesmo, ou seja, de dialogarconsigo prprio, ou ainda, de fazer o exerccio reflexivo da conscincia.

    Entretanto, a perceptvel ausncia de dio contra o povo judeu no atenuoua pena de Eichmann, visto que a ausncia de culpa moral, no deve, nestecaso, eximir o criminoso de guerra de ser responsabilizado legalmente pelosseus atos.

    Conclui-se, assim, que o mal no depende da vontade de se fazer o malpelo mal, ou seja, de um princpio maligno da vontade. A ausncia depensamento, a irreflexo, como no caso Eichmann, plenamente suficientepara resultar numa obedincia cega como regra de conduta, at quando oresultado deste tipo de obedincia, ainda que inadvertidamente, resulte numamaldade de dimenses impensveis.