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DOSSIÊ CULTURAS E EXPERIÊNCIAS COMPARTILHADAS

ABDALA JUNIOR, Benjamin - fluxos comunitários.pdf

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  • DOSSICULTURAS E EXPERINCIAS

    COMPARTILHADAS

  • Fluxos comunitrios:jangadas, margens e travessias

    BENJAMIN ABDALA JNIORUniversidade de So Paulo

    RESUMO: A PARTIR DA ANLISE DE IMAGENS DO FILME DIRIOS DE MOTOCICLETA, DE

    WALTER SALLES, SO DISCUTIDOS OS SENTIDOS DA PRXIS DO ESTUDANTE ERNESTO

    GUEVARA DE LA SERNA E A PERSPECTIVA LATINO-AMERICANA QUE ELA SUSCITA. O RIO

    AMAZONAS NUCLEAR PARA ESSAS OBSERVAES. EM TORNO DELE, SO

    ENFOCADOS OS ROMANCES A JANGADA, DE JLIO VERNE, O FILME FITZCARRALDO (O

    PREO DE UM SONHO), DE HERZOG, ESCRITOS DE EUCLIDES DA CUNHA E O RECENTE

    ROMANCE DOIS IRMOS, DE MILTON HATOUM. UM DOS TEMAS CENTRAIS DE GUIMA-

    RES ROSA, A TRAVESSIA, SERVE DE MOTIVO PARA A DISCUSSO DO PAPEL DO INTE-

    LECTUAL E DOS COMUNITARISMOS CULTURAIS. A JANGADA DE PEDRA, DE JOS

    SARAMAGO, A INTERLOCUO PORTUGUESA PARA ESSAS REFLEXES.

    RESUMEN: A PARTIR DEL ANLISIS DE IMGENES DE LA PELCULA DIARIOS DE MOTOCICLE-

    TA, DE WALTER SALES, SON DISCUTIDOS LOS SENTIDOS DE LA PRAXIS DEL ESTUDIANTE

    ERNESTO GUEVARA DE LA SERNA Y LA PERSPECTIVA LATINOAMERICANA POR ELLA SUSCITA-

    DA. EL RO AMAZONAS ES NUCLEAR PARA ESAS OBSERVACIONES. EN TORNO A L ESTN

    ENFOCADOS LA JANGADA, DE JULIO VERNE, LA PELCULA FITZCARRALDO, DE HERZOG, LOS

    ESCRITOS DE EUCLIDES DA CUNHA Y LA RECIENTE NOVELA DOS HERMANOS, DE MILTON

    HATOUM. UNO DE LOS TEMAS CENTRALES EN LA OBRA DE GUIMARES ROSA, LA TRAVESA,

    SIRVE COMO MOTIVO PARA LA DISCUSIN DEL ROL DEL INTELECTUAL Y DE LOS

    COMUNITARISMOS CULTURALES. LA BALSA DE PIEDRA DE JOS SARAMAGO ES LA

    INTERLOCUCIN PORTUGUESA EN LO QUE A ESAS REFLEXIONES SE REFIERE.

    PALAVRAS-CHAVE: LITERATURA E POLTICA, LITERATURA E CINEMA, PERSPECTIVAS IBERO-

    AMERICANAS, PAPEL DO INTELECTUAL, GLOBALIZAO E COMUNITARISMOS.

    PALABRAS-CLAVE: LITERATURA Y POLTICA, LITERATURA Y CINEMA, PERSPECTIVAS

    IBEROAMERICANAS, ROL DEL INTELECTUAL, GLOBALIZACIN Y COMUNITARISMOS.

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    Em um ensaio de abertura coletnea Margens da cultura: mestiagem, hibridismoe outras misturas,1 observamos que entendamos a nfase dada discusso damestiagem e hibridismo cultural na atualidade como resposta da crtica paraa necessidade de dar conta dos grandes processos de deslocamentos e dejustaposies do indivduo, das populaes e do conhecimento que tm le-vado ao rompimento com as concepes fixas, sedentrias. Tais processosda mundializao da economia capitalista vinculam-se contemporaneamentecom as necessidades do capitalismo informacional, pautado pela hegemoniadas finanas e a nfase numa economia de mercado. Para essa modulao docapitalismo so imprescindveis os meios digitais, que descartam estratgiasunidirecionais. a partir dessa situao e os fluxos que desencadeia quepretendemos analisar imagens e situaes relativas ao contato de cultura nombito ibero-americano. Figuraro em nosso horizonte o imaginriosubjacente ao conto Orientao, da coletnea Tutamia (Terceiras estrias),publicada por Joo Guimares Rosa em 1967; 2 ao romance Dois irmos, deMilton Hatoum, publicado na virada do milnio;3 ao filme Dirios de motocicle-ta, de Walter Salles4 e seus textos de referncia; ao romance A jangada,5 deJlio Verne, associado figura de seu protagonista (Joam Garral); ao filme deWerner Herzog,6 que recria a personagem Fitzcarrald; e ao romance A janga-da de pedra,7 de Jos Saramago.

    Tais narrativas confluem entre si no sentido de propiciar a problematizaodo olhar europeu sobre a Amrica Latina e das estratgias de ordem comuni-tria do campo intelectual em face dos processos de estandardizao dosprodutos culturais associadas cultura do dinheiro (Fredric Jameson). Do

    1 ABDALA JUNIOR, Benjamin. Um ensaio de abertura: mestiagem e hibridismo, globalizao ecomunitarismo.______.(org.). Margens da cultura mestiagem, hibridismo & outras misturas. So Paulo,Boitempo Editorial, 2004, p. 9-20.2 ROSA, Joo Guimares. Terceiras Histrias. 2.ed., Rio de Janeiro: Jos Olympio Editora, 1968, p.108-110.3 HATOUM, Milton. Dois irmos. So Paulo: Companhia das Letras, 2000.4 SALLES, Walter. Dirios de Motocicleta. FilmFour, 2004. Robert Redford produtor executivo dessefilme.5 VERNE, Jlio. A jangada. So Paulo: Editora Planeta, 2003. A primeira edio de La Jangada, huit centslieues sur lAmazone foi publicada em 1881.6 HERZOG, Werner. Fitzcarraldo (o preo de um sonho), 1982.7 SARAMAGO, Jos. A jangada de pedra. So Paulo: Companhia das Letras, 2003, 16. reimp.

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    ponto de vista terico, nos avizinhamos, nossa maneira e com maior pesopoltico-social, dos modelos explicativos da sociedade em rede, desenvol-vidos sobretudo por Manuel Castells.8 E, criticamente, em relao a Guima-res Rosa, do ensaio Guimares Rosa: fronteiras, margens, passagens, de MarliFantini, que mostra como os:

    flutuantes portos de palavras rosianas criam zonas de confluncia para a coe-xistncia contraditria e desierarquizada entre lnguas e culturas de distintastemporalidades e procedncias. Como um mapa errante, essa nova configura-o discursiva d visibilidade a identidades em curso [...].9

    Esta aproximao crtica ser feita de forma a deixar subjacentes formasde articulaes afins da desregulamentao das redes digitais que segue algica do capital e seus olhares mercadolgicos, mas tambm as novas fron-teiras de cooperao comunitria. Nesse mundo, a imagem do rio, com suasmalhas hdricas, solicita do navegador o conhecimento de rumos, mesmoque provisrios. As malhas encontram equivalncias na possibilidade de onavegador virtual abrir continuamente novos links, para novas e recursivasinteraes. Se nesse universo hegemnico o capital financeiro que de for-ma cada vez mais intensiva substitui distncias por velocidades e se alimen-ta da informao nova para fins de mercado, por outro lado, j que a realida-de hbrida e contraditria, ele no deixa de propiciar tais articulaes pau-tadas pela solidariedade. Importa ao sujeito, ento, aprender a olhar para ooutro, tendo em conta que esse olhar no pode descartar a perspectiva crti-ca. Olhares in/certos, motivados pelo desejo, que apontam para certos ru-mos, agora colocados no plural.

    So consideraes sobre formas migrantes que tm como n, em termosde teoria da informao, conjunes em portos flutuantes, parte da idia deque o hipertexto ao contrrio do que dizem quem se deixa hipnotizar pelosprocessos computacionais no produzido pelo sistema de multimdia

    8 CASTELLS, Manuel. A galxia da Internet. Reflexes sobre Internet, os negcios e a sociedade. Rio de Janeiro:Jorge Zahar Ed., 2003.9 FANTINI, Marli. Guimares Rosa: fronteiras, margens, passagens. So Paulo: Editora SENAC So Paulo/Ateli Editorial, 2004. p. 279-281.

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    usando a Internet como meio de atingir a todos. , em vez disso, produzidopor ns, usando a Internet para absorver a expresso cultural do mundo damultimdia e alm dele.10 Os ns se articulam tambm fisicamente e noapenas virtualmente e so estabelecidos por sujeitos concretos, que tm ex-perincia, histria, conscincia e se organizam em rede com a vida social.

    Um Rocinante motorizado

    Est em exibio nos cinemas brasileiros o filme Dirios de motocicleta, diri-gido por Walter Salles. Seu ncleo simblico, que aparece quase ao final datrama, a travessia do rio Amazonas pelo jovem Ernesto Guevara de laSerna, em 1952. o ponto (n informativo) culminante da viagem de reco-nhecimento da regio que, viria a saber mais tarde, fora denominada denuestra Amrica mestiza, por Jos Mart. O ento estudante de medicinafazia-se acompanhar de seu colega mdico, especializado em hansenase,Alberto Granado. Serviram de base para o roteiro do filme, o dirio de via-gem de Guevara De moto pela Amrica do Sul,11 subsidiado pelos depoimentosde seu amigo de infncia e companheiro de viagem, autor de um livro12 e umartigo13 em torno da mesma aventura. A motocicleta, denominada ironica-mente La Poderosa II, de Alberto Granado, aparece no filme tambm comoutra predicao: Rocinante, atribuda no momento em que os amigospartiram de Crdoba, na Argentina. Esta referncia literria do filme traduzmuito o significado dessa viagem, cujo sentido quixotesco encontraria econo jovem Guevara, que era um devorador de livros.

    Embora o jovem estudante Guevara fosse sempre acometido por acessosasmticos, j fizera um ano antes uma viagem solitria, de bicicleta motori-zada, percorrendo 4.500 km, pelo norte da Argentina. Embalava os dois

    10 CASTELLS, Manuel. A galxia da Internet. Reflexes sobre Internet, os negcios e a sociedade. Riode Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003.11 GUEVARA, Ernesto Che. De moto pela Amrica do Sul Dirio de viagem.. 2. ed., So Paulo: S Editora,2003.12 GRANADO, Alberto. Com el Che por Sudamrica. Havana: Letras Cubanas, 1986.13 GRANADO, Alberto. Um largo viaje em moto de Argentina e Venezuela. Gramma. 16 out. 1967.

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    amigos o conhecimento da Amrica Latina. Vale registrar que esse espritode integrao tambm marcou a produo do filme, que teve a participaode profissionais brasileiros, argentinos, chilenos e peruanos. Essa articula-o comunitria, em termos de realizao, ainda mais ampla, quando con-sideramos que a produo entrou numa rede mundial do cinema dito alter-nativo, que tambm tem suas bases de mercado.

    O jovem Ernesto reclamava de seu confinamento na Faculdade de Medi-cina, em Buenos Aires. O estudante sonhava com horizontes mais largos.Colocou-se desde o incio como um eterno viajante, como observa PacoIgnazio Taibo II, autor de uma das biografias de Guevara.14 Afinava-se ojovem estudante com a voga de um existencialismo social que marcou osanos 50. Ernesto limitava-se a fazer as provas e a viajar. Assim, ao iniciar aviagem, registrou em seu dirio:

    Minha principal obrigao antes da partida foi fazer as provas em todas asdisciplinas possveis na faculdade; a de Alberto, aprontar a moto para a longajornada e estudar nossa rota de viagem. Naquele momento, ainda no imagin-vamos o esforo que teramos que fazer para cumprir nossos objetivos, tudo oque enxergvamos era a estrada poeirenta a nossa frente. Tudo o que vamosera ns dois em nossa moto, devorando os quilmetros rumo ao norte.15

    Estudava para passar nos exames, enquanto viajava. Concluiu o cursoantes de sua durao regulamentar.

    Politicamente, o estudante no se afinava com seus colegas de esquerda porconsider-los sectrios. Foi na travessia vertical da Amrica do Sul, seguindo odesenho dos Andes, que veio a tomar conhecimento da outra margem socialda Amrica Latina. Conheceu tambm o pensamento poltico-social do peru-ano Jos Carlos Maritegui (1894-1930), filho de pai basco e me indgena.Maritegui considerava-se um nmade por ter vivido em muitos pases, apesarde sua curta existncia (35 anos). Travou relaes com o grupo da Claridade,

    14 TAIBO II, Paco Igncio. Ernesto Guevara tambm conhecido como Che. So Paulo: Scritta, 1997.15 GUEVARA, Ernesto Che. De moto pela Amrica do Sul Dirio de viagem.. 2. ed., So Paulo: S Editora,2003. p.16.

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    na Frana, e com crculos gramscianos, na Itlia. Notabilizou-se por imbricar,em seus textos crticos e prtica poltica, esse marxismo que se desenhou naEuropa ocidental com a maneira de ser mestia de seu pas.

    E, ento, o futuro Che Guevara, aps cruzar a Amrica andina, foi ter Amaznia peruana, vindo a estagiar no leprosrio de San Pablo, localidade nodistante de Iquitos, de onde anteriormente partiu a viagem ficcional do roman-ce A jangada, de Jlio Verne, a que nos referiremos mais adiante. A imagemque nos interessa neste momento (e que constitui ncleo simblico do filme deWalter Salles) a travessia a nado do rio Amazonas pelo jovem estagirio.

    A travessia do rio Amazonas por Ernesto Guevara, asmtico desde crian-a, obviamente tem simbolizao poltico-social, pois a personagem sedireciona para a outra margem, onde estavam os internados mais carentes doleprosrio. Estes, na outra margem, se ajuntavam, construindo suas prpriaspalafitas. O futuro Che conseguia ultrapassar, assim, limitaes fsicas ede origem social, embalado pelo sonho de se romper fronteiras de toda or-dem. O episdio no foi registrado em seu dirio. interessante notar queGuevara, em seus depoimentos, sempre aponta suas dificuldades e insufici-ncias, omitindo situaes de herosmo, atestadas por outras pessoas. Nabiografia de Paco Igncio Taibo II, encontramos: Trs dias mais tarde,Ernesto consegue realizar uma das faanhas pela qual daria a vida: atraves-sar a nado o Amazonas uma travessia em diagonal, de uns quatro quilme-tros, aproveitando a corrente. Sai na margem ofegante, mas cheio de felici-dade. No filme, a travessia ocorre tendo como fundo a bela cano Al otrolado del rio, de autoria do compositor uruguaio Jorge Drexter, que acaba deser contemplado por Hollywood com o Oscar de melhor msica:

    Clavo mi remo en el guaCravo meu remo na guaLlevo tu remo en el mioLevo o teu remo no meuCreo que he visto una luz al otro lado del rioCreio ter visto uma luz no outro lado do rio

    El dia le ir pudiendo poco a poco al frioO dia est vencendo pouco a pouco o frio

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    Creo que he visto una luz al otro lado del roCreio ter visto uma luz no outro lado do rio

    Sobre todo creo que no todo est perdidoCreio sobretudo que nem tudo est perdidoTanta lgrima, tanta lgrima y yo, soy un vaso vacoTanta lgrima, tanta lgrima e eu, sou um copo vazio

    Oigo una voz que me llama casi un suspiroOuo uma voz que chama... Quase um suspiroRema, rema, rema-a. Rema, rema, rema-aRema, rema, rema-a. Rema, rema, rema-a

    En esta orilla del mundo lo que no es presa es baldoNesta margem do mundo, o que no represa baldioCreo que he visto una luz al otro lado del roCreio ter visto uma luz no outro lado do rio

    Yo mui serio voy remando muy adentro sonroEu, muito srio, vou remando e, bem l dentro, sorrioCreo que he visto una luz al otro lado del roCreio ter visto uma luz no outro lado do rio

    Sobre todo creo que no todo est perdidoCreio sobretudo que nem tudo est perdidoTanta lgrima, tanta lgrima y yo, soy um vaso vacoTanta lgrima, tanta lgrima e eu, sou um copo vazio

    Oigo una voz que me llama casi un suspiroOuo uma voz que chama... Quase um suspiroRema, rema, rema-a. Rema, rema, rema-aRema, rema, rema-a. Rema, rema, rema-a

    Clavo mi remo en el guaCravo meu remo na gua

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    Llevo tu remo en el moLevo o teu remo no meuCreo que he visto una luz al otro lado del ro16

    Creio ter visto uma luz no outro lado do rio

    A persona Guevara motivada travessia do rio como um ato existencial.L est a luz, um encontro com a populao mais carente do leprosrio. Seusbraos so como remos, no apenas individuais, mas coletivos. Na margemsocial onde ele se encontra, no h rios, fluxos, apenas represas que se fe-cham e no se abrem para a sociedade. Ou ento terrenos baldios por ondecircula a misria. Em meio a este mundo de lgrimas, nem tudo est perdido.Ele como um copo vazio, mas ainda h esperana. O encontro social quese efetivar no gesto de perseguir uma luz do outro lado do rio:

    Cravo meu remo na guaLevo o teu remo no meuCreio ter visto uma luz no outro lado do rio.

    Nesta pequena parfrase da letra da msica de Dirios de motocicleta respira-se uma atmosfera de Guimares Rosa e suas travessias, com a diferena danfase social. Pouco antes da travessia a nado, dia 14 de julho de 1952, diade seu aniversrio, quando completava 24 anos, Guevara foi homenageadono leprosrio. No discurso de agradecimento, aps expressar sua gratido aopovo peruano, Guevara faz referncias ao pan-americanismo:

    Ainda que ns sejamos insignificantes demais para sermos porta-vozes de cau-sa to nobre, ns acreditamos, e essa jornada s tem servido para confirmaressa crena, que a diviso da Amrica em naes instveis e ilusrias umacompleta fico. Somos uma raa mestia com incontveis similaridadesetnogrficas, desde o Mxico at o Estreito de Magalhes. Assim, em uma

    16 Disponvel em www.carnecrua.com.br/archives/001376.htm

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    tentativa de nos livrarmos de qualquer provincianismo imbecilizante, eu pro-ponho um brinde ao Peru e a uma Amrica Unida.17

    O sonho do futuro Che nesse discurso de despedida, ao visualizar anecessidade de integrao da Amrica Latina, antecipa um gesto similar aoque veio a ocorrer com a Unio Europia e que se esboa no Mercosul e avirada brasileira para as naes andinas. Esta regio continental deveria cons-tituir um s pas, para se contrapor diramos, hoje, por referncia socie-dade em rede assimetria dos fluxos, de natureza imperial. H, evidente-mente, no relevo da mestiagem, uma aspirao de universalidade sem fron-teiras. Se em nossa mestiagem radicam marcas dos povos que deram base anossas culturas, como os europeus, africanos e amerndios, aqui vieram flu-xos migratrios tambm de povos de outras regies. E, assim, o jovemGuevara, aps a travessia vertical pelos Andes, horizontaliza e dirige suavontade de transformao um princpio de juventude direcionando-apelas guas simblicas da integrao social amaznica:

    Cravo meu remo na guaLevo o teu remo no meuCreio ter visto uma luz no outro lado do rio.

    O filme mostra, alguns dias depois da travessia, Guevara e Granado numatosca embarcao construda pelos leprosos, denominada Mambo-Tango.Diz seu bigrafo:

    Voltaro alguns dias mais tarde ao rio Amazonas, quando deixam o hos-pital numa balsa precria com uma cabana de galhos no centro, fabricadapelos leprosos a Mambo-Tango, na qual navegam durante trs dias rio abaixo.Fica para a histria uma foto em que os dois argentinos aparecem orgulhososa bordo da balsa, ambos apoiados em seus remos. Ernesto com camiseta deveneziano, Granado com calas quase bombachas.18

    17 GUEVARA, Ernesto Che. De moto pela Amrica do Sul Dirio de viagem. 2.ed., So Paulo: S Editora,2003, p. 164.18 TAIBO II, Paco Igncio. Ernesto Guevara tambm conhecido como Che. So Paulo: Scritta, 1997. p. 51.

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    No mostra o filme, entretanto, que a Mambo-Tango se recusou, apesardos esforos dos aprendizes de navegantes, a estacionar em Letcia, na Co-lmbia, e desceu bastante o rio, entrando clandestinamente em territriobrasileiro. Tiveram de pedir auxlio a um brasileiro beira-rio e voltar numacanoa, remando contra a correnteza durante sete horas.

    Entrecruzam-se, na viagem do futuro Che, sua geografia interior com aexterior da ambincia latino-americana. Essa projeo neo-romntica no dei-xa de guardar relaes com os conceitos relativos alienao postos em circu-lao mesma poca do existencialismo francs, atravs dos Manuscritos econ-micos e filosficos de 1844.19 Analogamente projeo psicolgica de Guevara narealidade social latino-americana, o jovem Marx defende uma relao de au-tenticidade entre o homem e o seu objeto ou produto de trabalho:

    A alienao do trabalhador em seu produto no significa apenas que o trabalhodele se converte em objeto, assumindo uma existncia externa, mas ainda queexiste independentemente, fora dele mesmo, e a ele estranho, e que se lhe opecomo uma fora autnoma. A vida que ele deu ao objeto volta-se contra eleprprio como uma fora estranha e hostil. 20

    Marx refere-se ao trabalho e a alienao do trabalhador produzindo mer-cadorias que no fundo o escravizam. H alienao quando essa relao setorna estranha e o produto do trabalho se transforma em uma forma externade opresso. A analogia aqui se alastra para o trabalho poltico, onde Guevara,de acordo com um conceito largamente usado na poca, procura sua reali-zao. Um trabalho autntico, identificado com o objeto.

    Nessas interaes simpticas, de conjunes, no obstante, h a coexis-tncia do diverso que a mentalidade neo-romntica pode no entender. Aose pensar simbolicamente nas possibilidades das malhas da bacia da integraosubcontinental, deve-se considerar a ordem estatuda pelas margens do rio.No caso do rio Amazonas, esse mundo aqutico, que se intercomunica em

    19 MARX, Karl. Apndice. Apud: FROMM, Erich. Conceito marxista do homem. 8.ed., Rio Janeiro:Zahar Editores, 1983.20 Id. Ibid. p. 91.

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    rede, pode levar a se sonhar analogicamente com a construo de uma esp-cie de banda larga de ordem supranacional. Uma banda virtual suficiente-mente larga capaz de confluir, nos fluxos do rio, pedaos de muitas culturas.No grande rio, smbolo da biodiversidade e das misturas que nos envolvem, possvel descortinar fluxos capazes de integrar dinamicamente o diverso.Uma rede que se desloca da fico para o referente, semelhante a um mito afecundar a realidade (Fernando Pessoa), como se explicita nas formulaessonhadoras do pensamento social de Maritegui. A rede possui bandas quese alimentam recursivamente, abrindo a possibilidade de muitas margens noprocesso de combinao, mas estatuindo uma direo para o conjunto con-traditrio dos fluxos. Como nos dirios de Ernesto Guevara e de AlbertoGranado, as muitas margens registradas na travessia so janelas abertas paraas margens do conhecimento uma travessia por fronteiras comunitrias decooperao, de forma equivalente realizao supranacional do filme. Isto, formas de cooperao capazes de emocionar a todos que ainda cultivamalgum cantinho de dignidade.

    Potencialidade subjetiva e um socialismo inovador

    O pensamento crtico de Maritegui um dos primeiros marxistas latino-americanos , alm de inovador, motiva a reflexo nestes tempos deglobalizao e se identifica com a trajetria herica empreendida por CheGuevara. Maritegui via com desconfiana gestos estereotipados que vie-ram a dar forma ao que veio a ser chamado socialismo real, inclinados desconsiderao dos fatores culturais nos processos sociais e castrao daspotencialidades subjetivas, marcadas negativamente como gestos individua-listas e mesmo aventureiros. Essas predicaes foram atribudas tanto aMaritegui quanto a Guevara. Ficou para ns, depois de mais de 70 anos dofalecimento de Maritegui (35 anos de idade) e de Guevara (39 anos), paraalm da mitificao que muitas vezes os banalizam (sobretudo o segundo), afora, a inclinao, o sentido e o desenho de seu gesto crtico, que se chocamcontra qualquer apreenso dogmtica e acrtica da teoria. Nada avesso aomodo de pensar de Che Guevara do que atitudes burocrticas e efetiva-mente ele no se acomodou por trs de escrivaninhas e a comodidade de um

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    carimbo, smbolo de poder da burocracia de estado. Por outro lado, como umGramsci, Maritegui valoriza a prxis. Mais do que isso, releva a ao heri-ca individual que viria a produzir, noutra situao, um Guevara.

    H, pois, a valorizao da potencialidade subjetiva e, em sua esteira, de umaperspectiva que poderamos chamar de utopia concreta, onde a vontade confluipara o projeto. Para tanto, como em qualquer ao do sujeito importa saber ondeele coloca os ps e por onde circula a cabea. Se a contribuio europia para osocialismo foi importante, importa ento saber como essa teorizao pode con-tribuir para a compreenso da realidade poltico-social latino-americana. Nestecaso, em especial, do Peru. Em nuestra Amrica mestiza, h uma Amrica dedominncia amerndia, africana e europia, com matizaes nacionais e, mesmo,regionais. H diferenciaes que devem ser levadas em conta, em oposio estandardizao geral das idias e dos produtos culturais. Entendemos, na lin-guagem de hoje, que devamos relevar as potencialidades dessas diferenas, semnivel-las mediocrizao do mesmo, que a tendncia da indstria cultural.

    No ficou Maritegui, assim, restrito, s pretensas exclusividades das de-terminaes objetivas. Nem dialeticamente acreditava em snteses inevit-veis. Qualquer travessia, voltando-nos imagem do jovem Ernesto, depen-dia da interao entre pessoa e meio. No mundo instvel e descontnuo dasguas, o trajeto impregna-se de indeterminaes. Vem da a necessidade deuma prxis criativa. esse sentido de prxis que embalou Che Guevara. Eo contato com a obra de Maritegui no Peru, certamente foi um ponto deencontro. Para ambos, o marxismo seria uma espcie de guia para a ao: ...el marxismo es solamente un gua para la accin.21 No aceita uma cartilhadeterminista e rgida como preceituavam os manuais do assim chamado so-cialismo real. Maritegui, ao contrrio dessas posturas rgidas, alm de rele-var a determinao do sujeito, como Guevara (ambos foram consideradosaventureiros pelos seguidores do socialismo real de repetir), valori-zou o poder comunitrio, tendo como referncia os povos indgenas de seupas.22 Nesse horizonte crtico esto os textos de juventude de Marx, particu-

    21 GUEVARA, Ernesto Che. Sobre la construccin del partido. Obras completas. Tomo 1. BuenosAires: Legasa, 1995. p. 180.22 MARITEGUI, Jos Carlos. O problema indgena na Amrica Latina. LWY, Michael. (Org.) O marxismona Amrica Latina: uma antologia de 1909 aos dias atuais. So Paulo: Editora Perseu Abramo, 1999. p. 108-111.

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    larmente os Manuscritos econmicos e filosficos de 1844 e o pensamento de An-tnio Gramsci.23

    Um certo (e cnico) mau-hlito

    Respira-se no filme de Walter Salles, j afirmamos, uma atmosfera afim deGuimares Rosa: a travessia para uma outra margem e as interfaces dessegrande rio, que apontam para as bandas de l. A impulso que motiva osgestos de Guevara se faz na perspectiva aberta por Maritegui. Est nessasguas a idia de mestiagem enquanto coexistncia problemtica de opos-tos: a diversidade e a contradio como foras motrizes de um encontrosocial projetado num ideal de futuro. Imbudo em parte de um certo pensa-mento messinico, Maritegui considerava-se um pessimista em relao realidade social de seu pas e um otimista em relao ao futuro.24 Projetavanesse futuro seu mito socialista, capaz de canalizar os fluxos da diversida-de. No era um dogmtico: a orientao para a travessia aberta e depen-dia fundamentalmente do ideal do sujeito, tomado em suas dimenses in-dividuais e coletivas.

    J a orientao que d ttulo e pauta por estratgias discursivas do contode Guimares Rosa desenha gestos recursivos, que levam reflexo sobretravessias valendo-se de imagens de rios e do serto-mundo. Os fluxos abremjanelas que estabelecem ns associados a uma rede de fluxos que comutamdirecionamentos vetoriais. No h a possibilidades de snteses, quando ex-plora as mltiplas potencialidades das misturas desses fios discursivos, in-trinsecamente hbridas, das inumerveis margens da cultura. As misturas,sempre em processo ao curso das guas do rio-existncia, constituem experi-ncias compartilhadas.

    O conto Orientao uma estria de um cule, transformado em cozi-nheiro de origem chinesa. Ele o Chim, que virou Joaquim e depois

    23 GRAMSCI, Antnio. Cadernos do crcere. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1999-2002. 6 v.24 MARITEGUI, Jos Carlos. Siete ensayos de interpretacin de la realidad peruana. Mxico: Ediciones Era,2002.

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    Quim. Foram as diferenas de seus habitus culturais que acabaram portransform-lo num pequeno proprietrio rural. Comeava na simbolizaodo cozinheiro um processo de misturas que o levam a se apaixonar por umalavadeira sertaneja, culturalmente uma antpoda. O casal se consorcia entreos salamaleques da escrita rosiana e os gestos do Quim/Chin. A lava-deira Rita Rola virou, em seu olhar, a Lita Lola, ou Lolalita. E ofelizquim se apaixonou tanto que se viu falando com ela como um serta-nejo, de ccoras. Entretanto, nesse universo rosiano, a diversidade no leva unidade. Interpuseram-se entre eles, segundo o narrador do conto, a sovi-nice da vida, as inexatides do concreto imediato, o mau-hlito da realidade.

    importante que sublinhemos a expresso inexatides do concreto ime-diato e o fato de as personagens estarem de ccoras, muito prximas, face aface, de forma a sentir o mau-hlito da realidade. Rita-a-Rola, como onarrador explicita no cuidava de snteses. No cuidava de estabeleceruma ponte comunicativa entre as duas margens: recusava-se travessia. E,como este Chin/Quim era snico (grafa-se com s) e no cnico (comc), afastou-se de uma Lolita que se limitava a ser uma Rla que noalava vo.

    Afastando-se do concreto imediato para uma outra banda, Chin/Quim se fez referncia. E assim, distncia, sem o mau-hlito da realida-de, Rita-a-Rola pode incorporar os gestos do cozinheiro, provenientes deuma imaginria banda chinesa. Vem da sua orientao entre o concretoda cultura do arroz e os salamaleques dos gestos leves, opostos aos da rusti-cidade sertaneja: como gorgulho no gro, gro de fermento, fino de bssola,um mecanismo de conscincia ou ccega. Andava agora a Lola Lita compasso enfeitadinho, emendado, reto, prprinhos p e p.25

    A orientao se faz em funo de um problemtico smo algbrico,isto , de um horizonte aberto e desdobrvel de possibilidades, que no seconforma com a sntese. E a inclinao, para Oriente, s possvel quandoa personagem se v no desempenho do papel ativo de uma cozinheira deculturas. Isto , assume sua potencialidade subjetiva. E assim comuta os

    25 ROSA, Guimares. Orientao. Tutamia (Terceiras estrias). 2. ed., Rio de Janeiro: Jos OlympioEditora, 1968. p. 110.

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    gestos de lavadeira, inclinado a repelir as impurezas, pelos de uma cozinhei-ra que tem a sua maneira de ser na associao com a diversidade. Foi umainclinao semelhante que fez com que o chins afirmasse um fluxo recursivo,com direo vetorial oposta. O Chin/Quim, que tranava as pernas maneira chinesa, para melhor decorar o chinfrim de pssaros ou entender opovo passar mirou e se apaixonou por Rita Rola, a sua Lolalita (entre asLolas e as Lolitas). Viu nela uma imagem de beleza, embora, como registracinicamente o narrador (grafa-se com c), ela fosse Feia, de se ter pena deseu espelho. Tudo por obra do olhar, distncia. No o contato imediato.

    Este o mundo do rio, que no segundo o narrador o mundo daponte. Para se evitar o mau-hlito desse mundo e as inexatides do con-creto imediato, o narrador descortina a mediao das culturas, vistas emsuas misturas. Chin/Quim se faz perspectiva in absentia, quando rompecom a amada. Lolalita. Esta havia conhecido de perto a experincia do cozi-nheiro chins em lidar com misturas veio, afinal, a incorpor-la, quando con-seguiu uma distncia capaz de afastar o mau-hlito da realidade. Essa figu-rao da imagem do chins apenas se fez mito para a cozinheira, diferente-mente do mito social de Maritegui que sensibilizou o futuro Che.

    Um incerto porto flutuante

    As migraes culturais so igualmente tematizadas nos dois romances deautoria de Milton Hatoum: Relato de um certo Oriente26 e Dois irmos. H asmigraes internas, veiculadas pelo rio Amazonas. O poder de atrao dasmargens desse veculo, situado neste texto como uma espcie de banda lar-ga, canaliza inclusive culturas de outras bandas, como a dos libaneses. Ohibridismo dessas narrativas no se faz apenas pelo contato de culturas, mis-turando as guas culturais do rio Amazonas, com as do Mediterrneo. Faz-seigualmente atravs das personagens narradoras, situadas nas margens soci-ais: uma narradora feminina em Relato de um certo Oriente e um narrador mes-tio que escreve a partir de sua fronteira social, em Dois irmos.

    26 HATOUM, Milton. Relato de um certo Oriente. So Paulo: Companhia das Letras, 1997. 3. reimp

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    Vamos nos fixar nesse segundo romance. Biologicamente, esse narrador um mestio, filho de uma agregada ndia e de um dos dois irmos, gmeos eidnticos. A diversidade interior e no a semelhana exterior que marcaessa ambivalente unidade paterna: os gmeos eram totalmente diferentes. Seum se inclinava para a marginalidade da terra, o outro se enquadrava numaoutra margem, igualmente problemtica, mas que tem reconhecimento soci-al. Ele era engenheiro e sua atuao o leva a uma outra forma de marginalidade:aquela de quem habita as esferas de poder, seja de poder econmico-socialou de poder simblico. Afina-se melhor, esta ltima personagem, com asflutuaes dos novos tempos.

    Nem esse narrador perifrico famlia e nem sua me sabiam ao certoqual dos gmeos seria seu pai. Esse problema de identidade perseguiu essapersonagem narradora que morava nos fundos da casa, desde sua infncia.Essa obsesso, ao trmino do romance, acaba por se mostrar, comoirrelevante: tudo estava, afinal, em runas. Era uma questo agnica, de for-ma anloga, ao mundo que se estruturara nas margens do rio Amazonas.Outras margens do capitalismo se afirmavam sobre aquelas originrias docomrcio da borracha. E os fluxos hegemnicos j no seguem osdirecionamentos do rio. Os fluxos das guas agora so outros, compelindo auma direo vetorial norte/sul. Resta ento ao narrador o registro agnicodesse modo de vida e interaes familiares e sociais advindas da experinciahistrica amaznica. Sua trajetria cultural de curumim a professor apenaspotencializa seu exlio pessoal: torna-se um exlio mais amplo e mais geral.O fundo de quintal simblico o lugar que ele habita e de onde ele fala -alastra-se para toda a Amaznia.

    No decorrer da narrativa, o antigo curumim procura estabelecer pontescom o mundo dos provveis pais, mas no consegue. compelido a voltarsempre ao ponto de partida. Seu horizonte era dplice, no apenas em rela-o aos gmeos antpodas. No h identidade dada, como aponta sua experi-ncia e sim processos de identificao recursivos com aqueles que marcarammais fundo a sua maneira de ser: a me, radicada terra e o av libans. Osdois, que vieram de terras distantes (do interior amaznico e do exterior)terminam enterrados lado a lado. Como no conto de Guimares Rosa, tam-bm aqui a sntese no possvel. A sntese que se revelou impossvel foisonho de sua av e de sua tia quando procuraram reunir os gmeos antpodas.

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    O resultado foi mais dramtico do que aquele apontado no conto Orienta-o, de Guimares Rosa: colocados face a face, mesmo num projeto, que seafigurava unificador aos olhos da me e da irm, veio a exploso e, com ela,o rompimento definitivo.

    O consrcio produtivo que seguia o curso do rio e que trouxe o desenvolvi-mento da sociedade manauara j morreu, nas imagens de Dois irmos. Os fluxosdo rio perderam sua hegemonia para outros. Manaus, que tinha uma cidadeflutuante popular, que lhe dava uma fisionomia particular, teve o desenho deruas labirnticas destrudo para dar lugar a um porto moderno. Passou a searticular agora em torno de um porto flutuante o Manaus Harbour, nagrande imagem do romance de Hatoum. Diz o narrador do romance:

    Uma tarde de domingo, minha me me convidou para passear na praa ma-triz. Perto dali, atracados no Manaus Harbour, os grandes cargueiros achata-vam barcos e canoas, ocultando o horizonte da floresta. No centro da rua nohavia mais a multido de pssaros que encantava as crianas. (...) O porto flutu-ante estava movimentado, com seus estivadores, guindastes e empilhadeiras.27

    A civilizao se impunha natureza. Um porto flutuante no articuladocom as riquezas dessa banda florestal j oculta, mas com os horizontes demercado que terminam por ocasionar uma descaracterizao mais ampla.Nivela-se a outros portos, construdos de forma similar em escala planet-ria, com linhas semelhantes em suas ambincias fsicas e humanas.

    Uma imensa jangada de madeira

    O narrador de Dois irmos, desde sua perspectiva perifrica, no conseguese fixar em mitos de origem. E far da literatura uma forma ambgua decontato com as renovveis e instveis outras margens da vida amaznica uma busca de identificao mais ampla, sempre em processo. No se trata deuma identidade miticamente situada. No se configuram identidades fecha-

    27 HATOUM, Milton. Dois irmos. So Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 240.

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    das, sequer nos gmeos. Nem de origem: o av, no Amazonas, j outro,distante de sua primeira nacionalidade libanesa. A me j tem pouca coisa aver com a comunidade indgena originria. A volta origem, ao ponto departida, no possvel diante dos fluxos das guas, hbridas e transformadoras,nas quais se embala o rio-existncia.

    Como contraponto a esse processo que escapa s determinaes de narra-dores e personagens, faremos referncia ao romance A jangada, de Jlio Verne.Nessa narrativa no h dvidas quanto orientao do narrador: ele se pau-ta por um idealizado sentido tico, que direciona programaticamente suasaes. Injustamente acusada de roubo e assassinato na regio do Tijuco(Diamantina), a personagem central do romance Joam Garral foi condenada morte no Brasil. Foge ento do pas para as bandas amaznicas do Peru,vindo a se enriquecer. Tornou-se um grande proprietrio numa regio prxi-ma de Iquitos referncia no distante do leprosrio onde estagiou ErnestoChe Guevara , conforme j indicamos.

    Planeja retornar ao Brasil para provar sua inocncia. Um projeto secretoconcertado entre ele e um juiz de Manaus. O pretexto da viagem seria ocasamento da filha em Belm, foz do rio Amazonas. No pretendia, entre-tanto, abandonar seus hbitus senhoriais. Atrs dele gravitava a famlia e osagregados. Derrubou toda uma floresta, mas isso pouco importava, porque,segundo a perspectiva civilizadora que imbui a enunciao, seria plantadaoutra ou um campo de cultivo mais regular e ordenado. Indica Michel Riaudel,no posfcio do romance, que:

    A ao colonizadora no visava apenas valorizar, mas nivelar a diferena: [...] essamilha quadrada, banhada pelas guas do rio e seu afluente, estava destinada a serarroteada, lavrada, plantada, semeada e, no ano seguinte, campos de mandiocas,de cafeeiros, de inhames, de canas-de-acar, de ararutas, de milhos, de amen-doins cobririam o solo, at ento sombreados pelas ricas plantas da floresta. 28

    Nada mais avesso a essa ideologia de poca do que a biodiversidade. Apersonagem de Jlio Verne desloca sua residncia e as dos trabalhadores agre-

    28 RIAUDEL, Michel. Posfcio. In: VERNE, Jlio. A jangada. So Paulo: Editora Planeta, 2003. p. 360.

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    gados, com todas as dependncias, para uma imensa jangada de madeira. Natrajetria extensiva at Belm, ao longo do rio, veio a ocorrer o resgate ticopretendido por Joam Garral, na cidade de Manaus. A personagem, de origembrasileira, pode readotar seu verdadeiro nome, Joam Dacosta. Tudo foi plane-jado nesse romance, construdo a partir de muitos relatos de aventureiros quecruzaram o rio no sculo XIX e de publicaes em revistas. Jlio Verne procu-rava ser exato em suas pesquisas, pois fazia parte da Sociedade Geogrfica deParis. Tambm internamente a razo cartesiana em que se baseia o projeto.H, alm disso, um enigma na forma de criptograma, que cria um derradeiro elongo suspense, cuja soluo deduzida racionalmente.

    Este utpico mundo mvel e flutuante de madeira atracou em muitas mar-gens, sempre ao impulso da determinao do grande proprietrio. Um equiva-lente sentido tico patriarcal figurava analogamente no horizonte das mestiasfamlias amazonenses, como a dos imigrantes libaneses, de Milton Hatoum.As migraes de brasileiros de outras regies, que se mesclavam com osamazonenses mais antigos, como ocorre no romance de Jlio Verne, desenha-vam uma perspectiva idealmente similar sonhada pela famlia de origem liba-nesa. O tempo em Dois irmos, entretanto, era outro. O sistema produtivo,inclusive o comrcio, vinculado a essa sociedade mestia patriarcal j estavaem runas. E as lojas de comrcio do porto flutuante de Manaus o ManausHarbour acabaram por serem substitudas pelos bazares indianos. Novas cor-rentes migratrias, bastante agressivas e competitivas, aventureiras, mais afi-nadas com os novos fluxos da globalizao. O porto flutuante de Manaus aca-ba por se submeter a uma flutuao mais ampla desse mercado, por se restrin-gir importao, segundo o narrador, de quinquilharias procedentes de Miami.

    O deslocamento da jangada evidentemente balizado pelas margens e fluxosdo rio. Quando chega a Belm, o desfecho da intriga j havia sido concertado(Manaus). Era o momento da festa. Curiosamente, a grande jangada foi desfeita erendeu grande rendimento na venda da madeira de primeirssima qualidade. Osmveis da casa senhorial, no: eles foram enviados contra a corrente das guas dorio, num vapor, juntamente com os familiares e agregados. o iderio de ordem eprogresso que motiva os processos enunciativos do romance de Jlio Verne:

    [...] o credo verniano se nutria sobretudo das promessas trazidas com o conheci-mento cientfico. A cincia, geralmente a servio do expansionismo ocidental e da

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    vocao civilizadora de que esse expansionismo se paramentava, estava em plenodesenvolvimento. Na continuidade do projeto enciclopdico das Luzes, ela acu-mulava dados geogrficos, botnicos, zoolgicos, lingsticos, culturais etc. Nodiapaso da nova onda de colonialismo, da qual a Frana e a Inglaterra eram afora de ataque, as exploraes esquadrinhavam o mundo nos seus menoresrecantos, investigavam, mediam, recenseavam. Revestidas da universalidade daRazo e do Progresso destinados, num futuro prximo, a triunfar no mundotodo sobre a barbrie, as exploraes nomeavam, classificavam e etiquetavamo desconhecido, tanto na Amaznia quanto em qualquer outro lugar. 29

    Esse antigo gesto neocolonial continua a ser encenado no novo imprio,atravs da legislao sobre patentes, que descrevem e catalogam a riquezada biodiversidade amaznica. de se aperceber que esse discurso civilizatrioreveste-se de grande atualidade. No se fala tanto hoje em razo e progresso,mas, numa linguagem mais agressiva, em triunfo sobre a barbrie. Paratanto, bombas e torpedos em tudo que for obstculo sociedade administra-da desde os EUA.

    Civilizao e barbrie no serto amaznico

    Euclides da Cunha, em margem da histria,30 apresenta um ambguo re-gistro dessa presena da Ordem e do Progresso na Amaznia, quando foichefe da Comisso Brasileira de Reconhecimento do Alto-Purus. L perma-neceu por 10 meses. Embalado pelo ideal positivista, entendia que os ind-genas deveriam ser pacificados, para que pudessem evoluir segundo osparmetros culturais hegemnicos, dos quais era um porta-voz. Assim, comotambm ocorreu com sua obra-prima Os sertes,31 tambm no que considera-va os sertes amaznicos, acabou por apresentar uma representao amb-

    29 VERNE, Jlio. A jangada. So Paulo: Editora Planeta, 2003.30 CUNHA, Euclides. margem da histria. So Paulo: Cultrix, 1975. Introduo, nota editorial, cotejoe estabelecimento de texto por Rolando Morel Pinto.31 CUNHA, Euclides. Os sertes (campanha de Canudos). So Paulo: Ateli Editorial/Imprensa Oficial doEstado, Arquivo do Estado, 2001.

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    gua da prtica civilizada nessa regio. A penetrao da civilizao se fazatravs de aventureiros nmades. Seus primeiros instrumentos de traba-lho so a carabina Winchester, o machete cortante e uma bssola porttil,para que se norteasse no embaralhado das veredas: Vo em busca doselvagem que devem combater e exterminar ou escravizar, para que do mes-mo lance tenham toda a segurana no novo posto de trabalhos e braos quelhos impulsionem.32 Se Euclides consegue ver um trao de comoventeherosmo nessa prtica, no deixa de observar, na perspectiva do indgena,que ele observado por um civilizado sinistro.

    Destaque-se, nessa passagem, a imagem da bssola do progresso, parafazer face ao embaralhado das veredas. As referncias levam-nos a mun-dos de fronteiras, sejam entre os civilizados e os brbaros, ou fronteirasnacionais entre o Brasil e o Peru. H evidentes analogias situacionais entreos sertes de Euclides da Cunha e aquelas que ocorrero nas narrativas deGuimares Rosa, que tambm participou de aes relativas demarcao defronteiras amaznicas. S que sua bssola no era unidirecional.

    Aps receber as informaes desses aventureiros, ser o momento de seefetivar a conquista, que o termo predileto, usado por uma espcie dereminiscncia atvica das antiqssimas algaras dos condutcios de Pizarro.33

    Aps os quase sempre falveis meios pacficos da conquista atravs de quin-quilharias, resta a caada impiedosa, bala. As referncias de Euclides soperuanas. Como exemplo nico, cita Carlos Fermn Fitzcarrald (1862-1897):

    Quando Carlos Fiscarrald (sic) chegou em 1892 s cabeceiras do Madre deDis, vindo do Ucaili pelo varadouro aberto no istmo que lhe conserva onome, procurou captar do melhor modo os mashcos indomveis que assenhoreavam. Trazia entre os piros que conquistara um intrprete inteligente eleal. Conseguiu sem dificuldades ver e conservar o curaca selvagem.A conferncia foi rpida e curiosssima.

    32 CUNHA, Euclides da. Os sertes (campanha de Canudos). So Paulo: Ateli Editorial/Imprensa Oficialdo Estado, Arquivo do Estado, 2001. p 65.33 CUNHA, Euclides da. margem da histria. So Paulo: Cultrix, 1975. p. 66. Introduo, notaeditorial, cotejo e estabelecimento de texto de Rolando Morel Pinto.

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    O notvel explorador, depois de apresentar ao infiel os recursos que trazia eo seu pequeno exrcito, onde se misturavam as fisionomias dspares das tribosque subjugara, tentou demonstrar-lhe as vantagens da aliana que lhe ofereciacontrapostas aos inconvenientes de uma luta desastrosa. Por nica resposta omashco perguntou-lhe pelas flechas que trazia. E Fiscarrald entregou-lhe, sorrin-do, uma cpsula de Winchester.O selvagem examinou-a, longo tempo, absorto ante a pequenez do projtil. Procu-rou, debalde, ferir-se, roando rijamente a bala contra o peito. No o conseguindo,tomou uma de suas flechas; cravou-a, de golpe, no outro brao, varando-o. Sorriu,por sua vez, indiferente dor, contemplando com orgulho o seu prprio sangueque esguichava... e sem dizer palavra deu as costas ao sertanista surpreendido, vol-tando para o seu toldero com a iluso de uma superioridade que a breve trecho seriainteiramente desfeita. De fato meia hora depois, cerca de cem mashcos, inclusive ochefe recalcitrante e ingnuo, jaziam trucidados sobre a margem, cujo nome, PlayaMashcos, ainda hoje relembra este sanguinolento episdio...34

    Essa imagem de Fitzcarrald est distante daquela posta em circulao naficcionalizao de Werner Herzog, em Fitzcarraldo (o preo de um sonho), pro-duo alem de 1982.35 No filme, ele contava consigo mesmo e mais trstripulantes; na realidade, ele tinha o apoio de cerca de mil indgenas piros ecampas e uma centena de brancos. A personagem central do filme, interpre-tada por Klaus Kinsk,36 um visionrio que tudo faz pela cultura, no caso apera. capaz de tudo sacrificar para se deslocar at Manaus para assistir aoespetculo de Caruso, no magistral teatro s margens do Rio Negro ou emfavor da montagem de um grande espetculo, no nomadismo das guas dorio Amazonas, diante da cidade de Iquitos. Curiosamente, no mesmo textode Euclides da Cunha, bastante prximo da citao acima, quando o ensastase coloca na posio de um viajante que observa as marcas da presena dacivilizao nessa regio fronteiria, encontra ao lado de jornais de Manaus

    34 CUNHA, Euclides da. margem da histria. So Paulo: Cultrix, 1975. p. 67. Introduo, notaeditorial, cotejo e estabelecimento de texto de Rolando Morel Pinto.35 HERZOG, Werner. Fitzcarraldo (o preo de um sonho). FilmProduktion, Zweites Deutsche.36 Outros atores do filme: Cludia Cardinale, Jos Lewgoy, Paul Hittscher, Miguel Angel Fuentes eHuerequeque Enrique Bohorquez, alm de Milton Nascimento e Grande Otelo.

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    e de Lima; e at - o que inverossmil - a tortura requintada e culta de umfongrafo, gaguejando, emperradamente, naquele fundo de desertos, umaria predileta de tenor famoso... 37

    Essa observao contrria ao que ocorre no filme, onde o fongrafo umaforma de encontro entre os civilizados e os indgenas, e as peras acompa-nham todo o deslocamento do barco a vapor, que vai descobrir chegar aovaradouro, denominado Istmo de Fitzcarrald. Em Euclides da Cunha, a obser-vao do escritor-ensasta de que o fongrafo estava gaguejante, emperrado.O escritor positivista no consegue enxergar a fora da alteridade e dabiodiversidade da floresta: para ele a Alta Amaznia um deserto, como sev. No deixa, entretanto, de apontar os problemas da civilizao para ltransplantada. O prprio Fitzcarrald foi vtima desse processo quando procu-rou transplantar para a regio da bacia do Madre de Dis, onde mantinha aexplorao seringueira, uma casa de ferro construda por Gustave Eiffel, emParis. No conseguiu, pois era demasiadamente pesada e a casa, em sua pri-meira verso, acabou sendo montada em Iquitos; posteriormente, com a mortede Fitzcarrald, foi vendida e acrescida de uma outra parte, simtrica.

    Fitzcarrald, filho de marinheiro norte-americano e de uma crioula peruana,tornou-se, em menos de dez anos, o seringalista mais rico do Peru e um dosmaiores de seu tempo. Viveu apenas 35 anos, vindo a falecer num naufrgio e,com ele, seu imprio. Sua base era em Iquitos, mas foi fundamental na cons-truo desse imprio a descoberta da passagem por terra, o istmo que levouseu nome, de nove quilmetros, entre dois afluentes dos rios Urubamba eMadre de Dis. A passagem entre colinas mais baixas foi uma obra notvel,vindo a permitir, num direcionamento do fluxo comercial, a exportao daborracha e, noutro, a importao de artigos industrializados, destinados spopulaes que vieram a se instalar na bacia do Madre de Dis.

    A trajetria de Fitzcarrald emblemtica de muitos outros atores da Ama-znia. Ele, em suas andanas, foi motivado pelo mito de Eldorado, que an-teriormente havia embalado os invasores espanhis. Uma referncia cine-matogrfica desse mito j aparece no filme Aguirre, a clera de Deus, tambm

    37 CUNHA, Euclides. Os sertes (campanha de Canudos). So Paulo: Ateli Editorial/Imprensa Oficial doEstado, Arquivo do Estado, 2001. p. 69.

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    de Werner Herzog,38 quando Pizarro envia Amaznia um grupo de homens procura da legendria cidade de Eldorado. Interpretam o filme o mesmoator Klaus Klinsk e o moambicano Ruy Guerra. Sem se limitar a essa pers-pectiva mtica, mas atrado por ela, o seringalista peruano Fitzcarrald aca-bou por se voltar para o projeto de explorao da borracha que o enriqueceu.Um sculo depois, foi a vez de um norte-americano de origem, Daniel Ludwig,na dcada de 1970, procurar transplantar formas de conforto similares aosua casa desde Nova York num megaprojeto que trocava a mata nativa peloplantio de rvores para a indstria de celulose. um imaginrio anlogo aoque moveu Joam Garral, personagem de Jlio Verne, cem anos antes.O cha-mado Projeto Jari foi inicialmente um desastre em termos econmicos eambientais. Desde o incio figurou como o maior projeto de homogeneizaoda floresta, em oposio ao nomadismo da explorao da borracha do sculoanterior. Num gesto anlogo ao de Carlos Fermn Fitzcarrald, Ludwig trouxedo Japo uma fbrica de celulose flutuante. Diferentemente do Fitzcarraldode Werner Herzog que pretendia transplantar uma pera, com objetivos pu-ramente artsticos e o concretizou, o delrio do bilionrio norte-americanoredundou em grande desastre, que est sendo reparado pela sociedade brasi-leira. Outra tentativa frustrada de estabelecimento de magnatas norte-ame-ricanos na regio foi a produo de seringueiras para a produo de pneus,feita pelo magnata da indstria automobilstica Henry Ford, na dcada de20. Atualmente, a vez da agroindstria instituir-se, pela via nacional, comonovo predador dos rios e das florestas, com muitos e poderosos atores.

    No filme de Werner Herzog, a travessia do barco pelo varadouro implicavaascender a uma colina e se fez com o concurso da fora fsica dos indgenas ea trao dos motores da prpria embarcao. Quem teve a idia de acionar osmotores de forma conjugada com o esforo fsico foi um mestio, que cuidavadas mquinas. O nome dessa personagem Huerequeque, o mesmo nome doator (mestio) que a interpretou. A fora natural dos indgenas e a tcnica dacivilizao somavam-se em suas aes movendo roldanas, que deslizavam obarco sobre trilhos. Todos so movidos por mitos: os indgenas procuravam aexorcizao de seus demnios e Fitzcarraldo a busca de seu Eldorado. Os dois

    38 HERZOG, Werner. Aguirre, a clera de Deus. FilmProduktion, Hessischer Rundfunk4.

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    lados somam-se na travessia e simbolicamente se encontram numa linguagemmais universal, a da msica. O gramofone do filme no emperra, como naviso de Euclides da Cunha, que deve ter sido uma das referncias do cineastaalemo. E no se concretiza na narrativa cinematogrfica o fato de que CarlosFermn Fitzcarrald, ao contrrio do Fitzcarraldo de Herzog, tivesse se trans-formado no grande magnata da explorao da borracha no Peru. A persona-gem de Herzog perde tudo, mas realiza seu sonho de realizar um espetculo depera em Iquitos. No num teatro, como em Manaus, sua grande utopia, masum efmero espetculo flutuante para a populao que se coloca nas margens.Uma performance deslocada de sua casa (teatro, casa de espetculos), quese desvanece em sua prpria execuo, como a prpria comunicao do filme,mas que passa a habitar o imaginrio dos expectadores.

    A jangada ibero-afro-americana

    O romance de Jlio Verne vale-se, alm de fontes documentais, de um imagi-nrio literrio que aponta para mundos paralelos. So mundos que esto emnossa cabea, como a cidade flutuante e a ilha utpica. H toda uma tradioliterria que se alimenta dessas formulaes. Dialogar com ela uma forma deexteriorizar nossa vontade, nossos desejos. E, de uma certa forma, impulsionarnossos gestos. Em Jlio Verne, o fluxo do rio leva as riquezas para fora. Paradentro, vem a modernizao europia que cria as bases para a explorao danatureza. O movimento, seguindo a correnteza do rio, ou contra ela, retilinear.A imaginao utpica se faz entre margens, por onde se afirma o mecanicismode seu tempo. No o que ocorre com o romance A jangada de pedra, de JosSaramago, publicado um sculo depois. Este romance, escrito quando se discu-tia a integrao de Portugal na ento Comunidade Econmica Europia, hojeUnio Europia, exemplar para a discusso do sentido comunitrio entre asnaes ibero-afro-americanas, como o fizemos no ensaio Necessidade e solida-riedade nos estudos de literatura comparada.39 Organizado em torno de estratgi-

    39 Revista brasileira de literatura comparada. Necessidade e solidariedade nos estudos de literatura compara-da. Rio de Janeiro: ABRALIC, 1996. p. 87-95.

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    as geopolticas e associado situao histrica ps-Abril, esse romance permiterepensar a cultura portuguesa em face da dupla solicitao: a integrao europiae a singularidade peninsular. Esta singularidade liga-se s perspectivas que mar-caram a histria de Portugal: a atlanticidade, a ibericidade e a mediterraneidade.

    Se a jangada de Jlio Verne desfaz-se em contato com o Atlntico, a jan-gada de Saramago, formado pelo conjunto das regies e comunidades ibri-cas, tem nesse oceano uma de suas razes de ser histricas. a atraoatlntica que leva a Ibria a se desprender da Europa. Sem o peso do imp-rio, podem os ibricos assim se aproximar de suas ex-colnias. Do ponto devista literrio, embora Saramago faa referncias, s vezes irnicas, litera-tura de seu pas e tambm dos pases hegemnicos, ele tem em mira o realis-mo fantstico ibero-americano. O direcionamento vetorial da factura da es-crita e as formulaes do imaginrio subjacente no vm assim da Europa,mas da Amrica Latina.

    Em epgrafe ao romance de Jos Saramago, o cubano Alejo Carpentierope ao ceticismo que a enunciao credita Europa a perspectiva de queTodo futuro es fabuloso. To fabuloso na efabulao desse romance queesse futuro, na vida como na arte, torna-se avesso ao pragmatismo ctico daEuropa. Um futuro fabuloso prprio de um momento de fratura, ondeprincipia a vida. Viver, nessa perspectiva, criar desenredando fios develhas meias, como as de Maria Guavaira. Todo futuro es fabuloso, dizCarpentier. To maravilhoso, diramos, que permite uma efabulao - fabulaficcional de ao poltica - que, num direcionamento temporal inverso, per-mite a atualizao, na jangada de Saramago, de matria sonhada para ama-nh ou depois.

    Esse deslocamento temporal operado pelo jogo artstico do sonho do es-critor no nos traz imagens literrias deriva, mas imagens-ao que aportamno presente da escrita literria, impulsionando-a por mares nunca dantesnavegados. So imagens-ao polticas que motivam uma nova pica, ago-ra social, num movimento recursivo que , ao mesmo tempo, partida e en-contro. Desprende-se a pennsula de uma situao convencional de apndi-ce europeu para, no faz-de-conta ficcional, encontrar-se consigo mesma.Quando se encontra em sua identidade, a jangada ibrica capaz de movi-mentos surpreendentes, j que no se (con)forma ao cais europeu, para elactico e rotineiro, onde aportou h muito tempo. Mudam-se os tem-

  • 37FLUXOS COMUNITRIOS...

    pos e a vontade (Cames) aponta para outras perspectivas, para driblar,pelas laterais do jogo ficcional, um outro jogo, geopoltico, que acaba pornos enredar a todos.

    O movimento da Ibria em sua viagem atlntica sempre surpreendente.Principia em linha reta, depois essa linha se quebra, sempre em ngulo reto. Asubverso maior quando pe-se a girar sobre si mesma, embaralhando pon-tos de referncia. Esse movimento, na seqncia combinado com o desloca-mento para o sul, at estacionar em posio invertida num ponto medial entreas Amricas e a frica. Seguramente, bastante prxima da foz do rio Amazo-nas. O movimento, invertido, aponta para ruptura e reencontro, para que otempo rotineiro no prossiga em suas mesmices. A concentrao fantstica dotempo - prpria das concretizaes utpicas - provoca novas ondas internascompelindo a viagem de Dois Cavalos, automvel e parelha, e seus ocupantes.So eles levados pelas vagas invisveis do s(c)isma da terra a uma estranhaviagem de autoconhecimento e de reconhecimento da pennsula.

    Em nvel de pressupostos virtuais, as vagas exteriores que o movimentode deslocamento peninsular ocasionam nas guas do Atlntico, devem sen-sibilizar os novos mundos ibero-americanos, mundos que tambm emergemdas regies abissais. Talvez o mensageiro dessas regies infernais, o misteri-oso co Crbero, ao no explicitar suas intenes, queira enredar, na verda-de, o leitor, tal como escolheu as personagens do romance. A perspectiva denova unidade que ele procura trazer como expresso do vir-a-ser imaginado,no se circunscreve apenas Ibria, abrange tambm a Amrica Latina e asnaes africanas de lngua oficial portuguesa. Dado o recado, a pennsulaestaciona, aguardando a contrapartida dessas naes atlnticas.

    Numa espcie de tero aqutico, o conjunto comunitrio ibrico estacionanuma regio geopoltica que no de calmarias, s para contrariar naeshegemnicas: o presidente norte-americano d um murro na mesa. Preserva-se assim a especificidade ibrica, como se ela fosse uma ilha. Envolvida notero aqutico, a Ibria, como uma criana, presume-se ou espera onde aportar,sem calosidades como as das regies pirenaicas, ou fica num ponto intermedi-rio para dialogar com a Amrica Latina e a Europa. Este ltimo parece ser osentido das articulaes comunitrias na atualidade. H articulaesdirecionadas para o conjunto europeu e outras para os pases que j foram suasex-colnias e que tm rostos diferenciados. Num mundo de fronteiras mlti-

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    plas, relevar o comunitarismo cultural uma forma compartilhada de fazerface ao processo de estandardizao que move as estratgias globalizadoras.

    Um mundo de espelhos quebrados

    A biodiversidade das margens do Amazonas ou do serto mineiro confi-gura-se no conto de Guimares Rosa como de Milton Hatoum, como ima-gens quebradas. No deixam, entretanto, de se mostrarem comopotencialidades abertas ao olharem recursivamente para outras margens.Afinal, trazem personagens que desenvolvem suas prxis a partir de umaexperincia social compartilhada. No so mundos que se esgotam num pre-sente, que o individualismo contemporneo compele a uma atuao solit-ria. A grande mediadora, que no permite a solido, vem da arte. Sem essamediao, persiste o mau-hlito da realidade, como se explicita no conto deGuimares Rosa. Podemos citar, nesse sentido, Manuel Castells, quando dis-cute as redes sociais do individualismo contemporneo:

    Num mundo de espelhos quebrados, feito de textos no-comunicveis, a artepoderia ser (...) um protocolo de comunicao e uma ferramenta de constru-o social. Por sugerir, atravs de uma ironia que desarma ou de pura beleza,que ainda somos capazes de estar juntos, e ter prazer nisso. A arte, cada vezmais, uma expresso hbrida de materiais virtuais e fsicos, pode ser uma pontecultural fundamental entre a Net e o eu.40

    O horizonte da arte, como em Maritegui em relao poltica, uma mticae utpica linguagem comum, capaz de levar ao compartilhamento (hbrido),de cdigos culturais. Como indicamos, o socilogo peruano via o presente deforma pessimista, mas procurava metamorfosear essas tenses, de forma aimpulsionar essa situao de carncia para o chamado reino da liberdade. Atravessia pode se fazer, como na imagem da atuao simblica do jovem Che,

    40 CASTELLS, Manuel. A galxia da Internet. Reflexes sobre Internet, os negcios e a sociedade. Rio de Janeiro:Jorge Zahar Ed., 2003. p. 168.

  • 39FLUXOS COMUNITRIOS...

    atravs do mergulho nas guas do rio, quando se direciona para a superao(romanticamente, diramos) de limitaes de toda ordem. Seu impulso moti-vado pelas potencialidades polticas das formas hbridas, que apontam paraprojetos (coloquemos no plural) de integraes latino-americanas. Nessa tra-vessia a nado, Guevara deixa uma festa de despedida para ser recepcionado naoutra margem pela populao ainda mais marginalizada.

    Nesse mundo do rio, entretanto, nem tudo festa, como se verificou poste-riormente, no plano da vida concreta dessa personagem: as inexatides doconcreto imediato, diria Guimares Rosa. H outras formas de travessia, comovimos; algumas delas se descortinam no serto-mundo desse escritor. H tra-vessias mais tranqilas ou mais problemticas. No imaginrio, h travessiasetnocntricas, como na jangada de madeira de Jlio Verne. Seu pensamento,no obstante, seguia os preceitos de seu campo intelectual. H travessias denfase comunitria como na jangada de pedra de Saramago. Aqui no umafamlia senhorial e seus agregados que se deslocam na ilha-mundo de valorespr-estabelecidos encarnados numa nica personagem, mas todo o conjuntoibrico que se expressa atravs de personagens populares cujos gestos tmsimbolizao mgica. H travessias de imaginrios mticos e travessias histri-cas, pautadas pela cultura do dinheiro. So modos de ser e de estar no mundobastante diferenciados, comutveis, intercambiveis, recursivos. Importa sa-ber, do ponto de vista social, quais seriam os caracteres dominantes Como elesse associam ao lcus de enunciao do escritor. Importa saber ainda qual a suaposio intelectual. De onde ele fala e por onde circula a cabea.

    A viagem, do ponto de vista intelectual, no se conforma a uma apreen-so turstica da cor local e nem a observar o que se acostumou a ver. Viajarintelectualmente, como indica Edward Said,41 pressupe conhecer culturas eadotar um distanciamento crtico participante, intervencionista, em relaoa elas. Diramos, em sua esteira, que isso implica no se submeter aos estere-tipos, que trazem vises simplificadas, pontes significativas afins damesmice. Essa uma forma de se colocar na contra-mo dos fabricadores denotcias, dos aparelhos da globalizao. Uma viso crtica, que seja poltica,no dizer de Said:

    41 SAID. Edward. Reflexes sobre o exlio e outros ensaios. So Paulo: Companhia das Letras, 2003.

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    De um lado, uma meia dzia de enormes multinacionais presididas por umpunhado de homens controlam a maior parte do suprimento mundial de ima-gens e notcias. Em contrapartida, h os intelectuais independentes que de fatoformam uma comunidade incipiente, fisicamente separados uns dos outros,mas conectados de vrias formas a comunidades de ativistas relegados pelamdia principal (...).42

    Fiquemos aqui, para terminar, com o registro problemtico das travessias,que so recursivas. Embalam-se quando tm horizontes, mas cada prxis,seja ela individual ou coletiva, precisa concretizar facetas desse amanh,deixando rastros que no se repetiro, para nos valer da imagem de um co-nhecido poema de Antonio Machado. Nos fluxos das guas, como nos fluxosda vida social, nada estvel e o futuro nunca certo. A reduosimplificadora conduz apenas a descaminhos, uma ponte que no conduz anada. Ou para nos valer da observao do narrador do conto Orientao,de Guimares Rosa: O mundo do rio no o mundo da ponte. A travessiase faz na prpria dinmica das guas, com seus fluxos, refluxos, no reinoflutuante do provisrio, onde o sujeito, no obstante, descortina margensporque no se satisfaz narcisicamente com o movimento embaralhado degestos repetitivos, apenas pelo prazer de os pastichizar:

    Cravo meu remo na guaLevo o teu remo no meuCreio ter visto uma luz no outro lado do rio.

    Referncias bibliogrficas:

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    42 SAID, Edward W. Cultura e poltica. So Paulo: Boitempo Editorial, 2003. p. 33. Seleo de EmirSader.

  • 41FLUXOS COMUNITRIOS...

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  • 42 VIA ATLNTICA N 8 DEZ/2005

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