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LITERAFRO - www.letras.ufmg.br/literafro Abdias do Nascimento Dados biográficos Abdias do Nascimento nasceu em Franca, no interior do Estado de São Paulo, em 14 de março da 1914, neto de africanos escravizados e filho de pai sapateiro e mãe doceira. Estudou no Ateneu Francano, formou-se como Contador, e, entrando no Exército, participou das Revoluções de 1930 e 1932. Formou-se em Economia pela Universidade do Rio de Janeiro, em 1938. Participou da Frente Negra Brasileira, cujas atividades foram encerradas pela ditadura do Estado Novo (1937-1945). Foi preso pelo Tribunal de Segurança Nacional por protestar contra as arbitrariedades do governo de Vargas. Em 1944, fundou o TEN – Teatro Experimental do Negro, do qual participaram Solano Trindade e outros intelectuais e artistas afro-descendentes. O objetivo maior do TEN era criar um espaço criativo nos palcos brasileiros para o negro, excluído, à época, do meio teatral. No ano seguinte, organizou, no Rio de Janeiro e em São Paulo, a Convenção Nacional do Negro, com o objetivo de chamar a atenção da sociedade para a criminalização do racismo, no momento em que a Assembléia Nacional Constituinte implantava um novo ordenamento jurídico no país. Em 1950, organizou, no Rio de Janeiro, o

Abdias

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Abdias do Nascimento

Dados biográficos

Abdias do Nascimento nasceu em Franca, no interior do Estado de São Paulo, em 14 de março da 1914, neto de africanos escravizados e filho de pai sapateiro e mãe doceira. Estudou no Ateneu Francano, formou-se como Contador, e, entrando no Exército, participou das Revoluções de 1930 e 1932. Formou-se em Economia pela Universidade do Rio de Janeiro, em 1938. Participou da Frente Negra Brasileira, cujas atividades foram encerradas pela ditadura do Estado Novo (1937-1945). Foi preso pelo Tribunal de Segurança Nacional por protestar contra as arbitrariedades do governo de Vargas. Em 1944, fundou o TEN – Teatro Experimental do Negro, do qual participaram Solano Trindade e outros intelectuais e artistas afro-descendentes. O objetivo maior do TEN era criar um espaço criativo nos palcos brasileiros para o negro, excluído, à época, do meio teatral. No ano seguinte, organizou, no Rio de Janeiro e em São Paulo, a Convenção Nacional do Negro, com o objetivo de chamar a atenção da sociedade para a criminalização do racismo, no momento em que a Assembléia Nacional Constituinte implantava um novo ordenamento jurídico no país. Em 1950, organizou, no Rio de Janeiro, o

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Primeiro Congresso do Negro Brasileiro. Formado na primeira turma do ISEB – Instituto Superior de Estudos Brasileiros, fundou, em 1968, o Museu da Arte Negra.

No ano seguinte, perseguido pela ditadura militar, exilou-se nos EUA, tendo lecionado nas universidades de Yale, Wesleyan, New York e Temple. Atuou ainda na Universidade de Ifé, na Nigéria. Nesse período, participou de significativos eventos internacionais sobre a cultura negra realizados no Brasil e no Exterior. A África, a América Latina e os EUA testemunharam a sua forte atuação, lutando sempre com o objetivo de colocar o negro no seu patamar de dignidade e evidência. Com a abertura do regime militar, põe fim ao exílio e retorna ao Brasil.

Abdias do Nascimento participou ativamente da vida política do país, tendo sido eleito Vice-Presidente Nacional do PDT, que ajudou a fundar. Foi responsável ainda pela fundação do Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros, na PUC de São Paulo, e pela organização do Terceiro Congresso de Cultura Negra das Américas. Em 1983, criou a Revista Afrodiáspora, um órgão de divulgação das atividades, dos problemas e das aspirações do mundo africano, especialmente nas Américas. O escritor foi protagonista de inúmeros fatos históricos relevantes, entre eles, a criação do Movimento Negro Unificado, em São Paulo. Ouçamo-lo:

Eu estava lá, em 1978, nas escadarias do Teatro Municipal, no momento em que foi fundado o MNU. Depois, fizemos várias viagens por todo o país criando núcleos do movimento negro na Bahia, em Minas Gerais e na Paraíba, por exemplo.

Em 1980, auxilia a criação do Memorial Zumbi; em 1982, elege-se Deputado Federal pelo PDT do Rio de Janeiro; na década seguinte, ocupa a cadeira de Senador da República. Foi também titular da Secretaria de Direitos Humanos e Cidadania do Governo do Estado do Rio de Janeiro.

Além de teatrólogo e artista plástico, Abdias do Nascimento destaca-se como cientista social e como autor de importantes trabalhos que tratam da temática afro-brasileira, considerados referência obrigatória nesse campo de estudos. É Professor Emérito da Universidade do Estado de Nova York em Buffalo, EUA, e Doutor Honoris Causa pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (1990) e pela Universidade Federal da Bahia (2000). Em 2001, recebeu o prêmio “Herança Africana”, oferecido pelo Schomburg Center for Research in Black Culture, o prêmio UNESCO, categoria direitos Humanos e Cultura da Paz e o prêmio “Cidadania Mundial”, oferecido pela Comunidade Baha’i do Brasil.

Em 2003, lançou edição fac-similada do jornal Quilombo, do Teatro Experimental do Negro, contendo a reprodução dos números 01 a 10, que circularam entre dezembro de 1948 e julho de 1950.

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Comentário Crítico

Abdias do Nascimento: política, poesia e teatro

Soraya Martins Patrocínio*

A história de Abdias do Nascimento, ativista e ícone da luta contra a discriminação racial, confunde-se com as raízes do movimento negro no Brasil e no mundo. Dramaturgo, pintor, escritor, pensador, ator e, acima de tudo, militante ferrenho contra a exclusão do negro, o ex-senador da República é um herói vivo e sua trajetória contribui incisivamente para o contexto afro-descendente no Brasil. Em um momento de reflexão sobre si mesmo, Abdias afirma:

Tenho uma alma libertária e acho que herdei a força para brigar pelos direitos humanos e contra o racismo de minha mãe, que era brigona. O orgulho de ser afro-descendente vem inspirado do meu pai, mais tranqüilo e de uma dignidade enorme. (www.portalafro.com.br)

O engajamento com a causa negra não é somente retratado em sua obra, perpassa toda a sua vida que é dedicada a defender o povo negro, a propor a integração racial e a continuar a grande luta de libertação cujo maior líder é Zumbi dos Palmares.

O teatrólogo e dramaturgo

Abdias, como homem de teatro, formou e lançou os primeiros interpretes dramáticos negros do teatro brasileiro, entre eles: Aguinaldo Camargo, Ruth de Sousa, Claudiano Filho, Léa Garcia e Haroldo Costa. Dirigiu e representou peças de Eugene Ó Neill, Lúcio Cardoso, Shakespeare, Nelson Rodrigues, Albert Camus, Joaquim Ribeiro.

A idéia de criar um teatro negro no Brasil surgiu quando Abdias viajava com um grupo de poetas brasileiros e argentinos para uma série de palestras pela América do Sul. Em Lima, no Peru, assistiu a uma peça chamada “Imperador Jones”, interpretado por um ator branco, argentino, pintado de preto. Segundo Abdias, naquele momento refletiu sobre o teatro e o negro no Brasil e decidiu usar o palco como instrumento de luta anti-racista: “Eu já conhecia a fama que os nossos teatros tinham de excluir o negro. Nos teatros municipais do Rio e de São Paulo, negros entravam apenas para limpar o chão que os brancos sujavam”. (www.portalafro.com.br)

Assim nasce o Teatro Experimental do Negro (TEN), criado para fortalecer os valores da cultura tradicional africana, para combater o racismo e para que os valores da personalidade do negro fossem respeitados no Brasil. Nacionalmente,

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a negritude foi empunhada pelo TEN desde sua fundação em 1944. Quer no plano artístico, quer no campo social, o TEN procurou restaurar, valorizar e exaltar a contribuição dos africanos à formação brasileira, desmascarando a ideologia da brancura que implantou entre nós.

A primeira denúncia do TEN teve como alvo a impostura dos chamados estudos sobre o negro. O sociólogo Guerreiro Ramos afirmava que o Teatro de Abdias foi, no Brasil, o primeiro a denunciar a alienação da antropologia e sociologia nacional, focalizando a gente de cor à luz do pitoresco ou do histórico puramente, como se tratasse de elemento estático ou mumificado. Esta denúncia é uma marca de todas as realizações do TEN, entre as quais o seu jornal Quilombo, a “Conferência Nacional do Negro” (1949), e o “I Congresso do Negro Brasileiro”, realizado em 1950.

Segundo Abdias, o TEN não nasceu para ser apenas uma reação contra a exclusão do negro no teatro. Ele foi imaginado como frente de luta, por isso tinha várias ramificações , vários setores a serem atingidos por uma ação transformadora de nossa realidade. Por isso, ele foi também uma luta da Frente Negra, mesmo tendo uma ideologia própria. Desse modo, “visava resgatar os valores perdidos no transcorrer da nossa história, para que os negros não continuassem apenas representando para a diversão dos brancos”. (www.portalafro.com.br). A importância do TEN é assim definida por Abdias:

Não queríamos que toda a história do negro no Brasil, todo seu sofrimento, suas alegrias e tudo o que ele construiu continuasse figurando de forma acidental na cultura brasileira. Queríamos uma participação organizada, viva, dinâmica e criativa, com olhos para o futuro. (www.portalafro.com.br)

Dramas para negros e prólogo para brancos propõe-se a cumprir o objetivo fundamental do TEN já exposto anteriormente. O livro é uma antologia que contém 7 peças: O Filho Pródigo, de Lúcio Cardoso; O Castigo de Oxalá, de Romeu Crusoé; Auto da Noiva, de Rosário Fusco; Além do Rio (Medea), de Agostinho Olavo; Filhos de Santo, de José de Morais Pinho; Aruanda, de Joaquim Ribeiro; Anjo Negro, de Nelson Rodrigues; O Emparedado, de Tasso da Silva e Sortilégio, de Abdias do Nascimento.

Sortilégio foi encenada, pela primeira vez, no dia 21 de agosto de 1957, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, e contou com a atuação do próprio Abdias no papel principal. A peça denuncia a hipocrisia do mundo branco e a opressão que o negro sofre nesse mundo que o marginaliza. Isso porque, para uma sociedade racista por essência, o preto serve só para carregar saco no cais, quebrar pedra debaixo de sol e dizer: “Não sinhô... sim sinhô...”. (1983, p.153). O drama do herói de Sortilégio tem suas raízes na infância, época em que era chamado de “tição” e apedrejado por seus “coleginhas” brancos. Assim, nasce a história do preto Emanuel que, formado em direito, renegou Exu, esqueceu os orixás, desonrou a Obatalá e se tornou um “preto de alma branca”. Mascarou as próprias raízes na

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tentativa de sobreviver e ser respeitado numa sociedade marcada pelo preconceito.

Ambientada numa espécie de “terreiro”, a peça tem uma atmosfera de fantasia e mistério, que é acentuada por alguns elementos que compõem o ritual de despacho do candomblé: defumador, charutos, cachaças, farofa e azeite de dendê. Contudo, a peça não leva para o palco a fotografia etnográfica do candomblé ou da macumba, nem a simples reprodução folclórica dos rituais negros. Os “pontos”, músicas para evocar uma entidade, por exemplo, são “puxados” com fervor e aparecem bem contextualizados e necessários, nos momentos fundamentais da cena.

Ponto de Jubiabá Bis- ô-ô-ô-ô Jubiaba Ô-ô-ô-ô Jubiaba

Bis- Não vem mais aqui no terreno Pai de santo que foi guerreiro Bis- Para o reino de Olorum Ele foi junto com Oxum (1983, p. 196).

O momento em que esse ponto é “puxado” representa o ápice da peça: Dr. Emanuel aceita ser sacrificado por ter desprezado a religião do seu próprio sangue. É o momento que o coro evoca Oxum e o reino de Olorum, que é um lugar dos sonhos, uma Pasárgada, onde o negro não escuta atrocidades e encontra-se livre do preconceito.

Abdias poeta:Sempre fomentando a discussão em torno do racismo e do preconceito, o

líder negro escreveu, entre outros títulos, Sortilégio (mistério negro) (1979), Dramas para negros e prólogo para brancos (1961), O negro revoltado (1982), Axés do sangue e da esperança (1983), O genocídio do negro brasileiro (1978), Sitiado em Lagos (1981), Orixás: os deuses vivos da África (1995), e O Brasil na mira do pan-africanismo (2002).

Em Axés do sangue e da esperança, por exemplo, o eu poético suplica a libertação do negro, denuncia a “terra que rouba o suor, a carne e os ossos, a humilhação, as mãos calosas vazias da justa retribuição”. (1983, p.9). Também expõe, de maneira realista, a perpétua (equivocada) posição social do negro — o

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negrinho menos digno e a negrinha à disposição do prazer do branco —, que revela uma dolorida inferioridade. Em seus versos há sempre um clamor por justiça: o sujeito-lírico deixa transparecer o seu desejo de que todos escutem as vozes sufocadas das senzalas e os batimentos de cada coração de negro, ao lembrar dos grandes nomes que lutaram contra a opressão e a injustiça, como Zumbi, João Cândido, Luiz Gama, entre tantos outros. Em “Padê de Exu Libertador”, poema de abertura, o eu lírico invoca Exu, que é o princípio da existência individualizada e também o princípio dinâmico da comunicação. “(...) imploro-te Exu / plantares na minha boca/ o teu axé verbal / restituindo-me a língua / que era minha / e ma roubaram” (1983, p.10). Em seguida, pede o hálito de Exu, denunciando a urgência de oxigênio (de vida) para que “os negros possam estar vivos, morrendo”.(1983, p.10). É importante ressaltar que esse poema de abertura do livro não ocupa tal lugar por acaso. Ele está como elemento indispensável à inauguração do ritual que cerimonializa as atividades da comunidade-terreiro, pois falar de ritualidade é dizer de uma das marcas típicas da cultura negra. E é fazendo o seu padê de Exu que o poeta “abre os trabalhos”, rituais para que a sua negra verdade de homem negro possa surgir no xirê de sua vida de andanças, “feito de terra incerta e perigosa” (1983, p.2).

Em “Mãe”, relata a força da mulher negra, que não se entrega às lamentações e tem força para lutar contra a indiferença e a discriminação. O poema, de uma grande riqueza metafórica, exalta a beleza, os seios grandes, a cor e o perfume da pele negra, e a textura dos braços que abraçam com ternura. Também relata os soluços de sensibilidade ferida, as denúncias de um negro revoltado e o amor generoso pelos seus iguais. No final, o poeta parece mergulhar no ventre da vida e no sonho de liberdade e esperança.

Já em “Autobiografia”, o eu poético derrama seu inconformismo e sua revolta perante a discriminação racial, ao relembrar seus antepassados: “Eito que ressoa meu sangue / sangue do meu bisavô pinga de tua foice / foice da tua violação / ainda corta o grito de minha avó” (1983, p.26). Logo afirma que, na cidade de Franca, sua esperança foi engendrada, a adolescência interrompida e que sua indignação só aumentou. Essa afirmação é um ato de desabafo de um negro cansado, “sem pleito/ eleito ao peito/da teimosa esperança/em que me deito” (Idem).

No poema “Luciana” se delineia o amor à mulher amada. Uma sensualidade tépida, que perpassa pelo poema, desvela a sensibilidade do amante em seus doces apelos à amada: “Vem Luciana pálida / que ao teu luar/beijarei teu lunar” ou, então, “Vem Luciana pálida / genuflexo beijarei teu sexo” (1983, p. 37) Nesse poema de amor, em que o poeta fala de sexo, as rimas se sucedem prazerosas nos volteios de danças e contra-danças do ato de amor... Amplexo. Afinal, já nos primeiros versos, o poeta fala de um escafandrista que mergulha em profundas águas enluaradas... .

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Em “Prece a Oxum”, o eu poético pede perdão por ter sido obrigado a falar a língua imposta pelos europeus “civilizados”, por evocar nomes profanos e não o nome da divindade de sua verdade e crença. Num relato indignado, denuncia os senhores da acumulação que em sua blasfêmia selvagem sacrificaram milhões de crianças negras, ignoraram sua cultura, seus costumes e, sob a hipocrisia do que chamam de “sincretismo”, obrigaram-no a se transformar num indivíduo diferente (“preto de alma branca”).

Assim, nos versos de Axés do Sangue e da Esperança, há uma revalorização da condição afro-descendente, na medida em que se exorciza a raça negra de todos os estereótipos que foram introduzidos desde a colonização, os quais fixaram no imaginário coletivo a idéia de que o negro representava tudo o que havia de ruim e negativo, de feio e mau. Logo, há uma reinvenção do discurso sobre o negro: o engajamento de Abdias do Nascimento vive e agita-se pelo poder de suas palavras, invenções, explosões com que compõe seus poemas e cantigas.O mais longevo líder negro do século XX é, sem dúvida, um fundamental militante no combate à discriminação racial no Brasil. Sua história se confunde com as conquistas sociais dos negros nos últimos 60 anos. Pois, através da política, do teatro e dos seus versos, conseguiu promover uma auto-conscientização do negro a respeito do seu valor e da sua importância, para que assim pudesse conquistar novos espaços sociais que lhe eram negados pela cultura dominante.

* Graduanda em Letras pela UFMG

Referências Bibliográficas:

NASCIMENTO, Abdias. Axés do Sangre e da Esperança. Rio de Janeiro: Rioarte, 1983.NASCIMENTO, Abdias. Sortilégio. In_______: Dramas para negros e Prólogo para brancos. Rio de Janeiro: Editora do Teatro Experimental do Negro, 1961.Entrevista com Abdias do Nascimento em www.portalafro.com.br.

Bibliografia do autor

Obra individualDramas para negros e prólogo para brancos. Rio de Janeiro: Teatro Experimental do Negro.Sortilégio II: mistério negro de Zumbi redivivo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.Axés do sangue e da esperança, (Orikis). Rio de Janeiro: Achiamé; Rio Arte, 1986.

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Não-ficçãoO genocídio do negro Brasileiro, 1 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.O quilombismo: documentos de uma militância. Petrópolis: Vozes, 1980.Sitiado em Lagos: autodefesa de um negro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981.O negro revoltado. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982. (com trabalhos apresentados no Primeiro Congresso do Negro Brasileiro, Rio de Janeiro, 26/08/1950 a 04/09/1950).Combate ao racismo: discursos e projetos, 6v. Brasília: Câmara dos deputados,1983.Orixás: os deuses vivos da África. Rio de Janeiro: IPEAFRO, 1995. Edição bilíngüe. “O quilombismo: uma alternativa política afro-brasileira”. In Afrodiásporas. Revista de Estudos do Mundo Negro.Ano 3, nº 6 e 7, abril/dez. de 1985.O Brasil na mira do pan-africanismo. Salvador: EDUFBA; CEAO, 2002. (inclui novas edições de O genocídio do negro brasileiro e Sitiado em Lagos).

Fontes de consulta

OLIVEIRA, Eduardo (Org.). Quem é quem na negritude brasileira. São Paulo: Congresso Nacional Afro – Brasileiro; Brasília: Secretaria Nacional de Direitos Humanos do Ministério da Justiça, 1998. CAMARGO, Oswaldo de. O negro escrito. São Paulo: Imprensa Oficial, 1987.BROOKSHAW, David. Raça e cor na literatura brasileira. Porto Alegre: Editora Mercado Aberto, Trad. Marta Kirst, 1983.

Links do autor

www.portalafro.com.br/entrevistas/abdias/internet/abdias.htmwww.portalafro.com.br/entidades/falapreta6/abdias.htmwww.afirma.inf.br/htm/politica/biografia_abdias.htmwww.verinhaottoni.com/abdiasdonascimento/

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Textos selecionados

Autobiografia

EITO que ressoa no meu sanguesangue de meu bisavô pinga de tua foicefoice de tua violaçãoainda corta o grito de minha avó

LEITO de sangue negroemudecido no espantoclamor de tragédia não esquecidacrime não punido nem perdoadoqueimam minhas entranhas

PEITO pesado ao peso da madrugada de chumbo

orvalho de fel amargoorvalhando os passos de minha mãena oferta compulsória do seu peito

PLEITO perdidonos desvãos de um mundo estrangeirolibra... escudo... dólar... mil-réisFranca adormecida às serenatas de meu pai.sob cujo céu minha esperança teceuminha adolescência feneceue minha revolta cresceu

CONCEITO amadurecido e assumidoemancipado coração ao ventonão é o mesmo crescer lentoque ascende das raízesao fruto violento

PRECONCEITO esmagado no feitodestruído no conceitoeito ardente desfeitoao leite do amor perfeitosem pleitoeleito ao peitoda teimosa esperançaem que me deito

(In: Búfalo, 25 de janeiro de 1979)

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Olhando no Espelho(Para meus netos Samora, Alan e Henrique Alberto)

Ao espelho te vejo negrinhote reconheço garoto negrovivemos a mesma infânciaa melancolia partilhada do teu profundo olharera a senha e a contra-senhaidentificando nosso destinoconfraria dos humilhadosa povoar a terna lembrançaesta minha evocação de Franca

Éramos um só olharnos papagaios empinadosao sopro fresco do entardecer

Negrinho garota negravivemos a mesma infâncianos cafezais brincamosnas jabuticabeiras trepamoschupamos a mesma manga e melancia

Éramos uma única ansiedadeà subida multicor dos balõespejados de nossos sonhos e ilusõesNegrinho meu irmãocomo te chamavas tu?Felisbino Sebastião Geraldo?

Serias menina: RosaNegra Alice Tarsila?Ou te chamarias Aguinaldo?

Lembro nosso emprego:lavar vidrosentregar remédiosfazer limonada purgativalimpar as sujeiras de uma farmácia

E aquele grito em nosso ouvido “– Acorda preguiçoso”? era o patrãooutra vez cochilaste reclinado ao chãoAssustados teus olhos dançaram

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desgovernados pelas lágrimassaltaste inutilmente lépido

Um dedo irrevogávelte apontou a porta do desempregoassim regressasteà casa que já não tinhasna noite anterior morreratua pobre mãe que a mantinha

Negrinha garoto negrosei que somos umaprosseguimos os mesmosao abandono de nossa orfandade

Assim juntos e sem nomedevemos continuar nosso sonhonosso trabalhoreinventando as nossas letrasrecompondo nossos nomes própriostecendo os laços firmesnos quaisao riso alegre do novo diaenforcaremos os usurpadores de nossa infância

Para a infância negraconstruiremos um mundo diferentenutrido ao axé de Exu

ao amor infinito de Oxumà compaixão de Obataláà espada justiceira de Ogum

Nesse mundo não haverátrombadinhaspivetespixotese capitães-de-areia

(In: Búfalo, 1980)

Contraponto de um negro eUm paternalista branco

(Para Ironides Rodrigues, esteta da Negritude)

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Irmão negro meu irmãonão amargue tua boca em vãoevoque a memória do senhor bom reza ladainha procissão

– A lembrança esta indelévelna roleta da opçãorisquei ponto laroiêave o Exu da libertação

Irmão negro meu irmãoesqueceu nossa bonita relaçãocontada até no folclore demamãe preta e pai João?

– Está tudo registradocom cuidado e devoçãotambor do sangue martirizadobatendo toque de rebelião

Irmão negro meu irmãopor que morder no ódio a hóstia do perdãoperder a ressurreição?

– Ressuscitarei gritando nãoao cristo da consolaçãodo meu caminho quero a paixãodo humano amor expresso em ação

(Rio de Janeiro, 13 de agosto de 1980)

O sangue e a esperança

Corre corre o sangue nas veiasRola rola o grão das areiasSó não corre só não rola a esperançaDo negro órfão que só corre e cansa

Cansa do eito corre das correntesCorre e cansa do bote das serpentesSó não corre só não cansa de amarO amor da Mãe-África no além-mar

Além-mar das águas e da alegria

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Mar-além do axé nativo que procriaAqui é o mar-aquém do desamor frioAquém-mar do ódio do destino sombrio

Sombrio corre o sangue derramadoNo mar-aquém de tanta luta devotadoMas o sangue continua rubro a ferverInspirado nos Orixá que nos faz crescer

Crescer na esperança do aquém e do alémDo continente e da pele de alguémLutar é crescer no além e no aquémAfirmando a liberdade da raça amém

(Rio de Janeiro, 14 de março de 1982)

Mãe

(Em memória de minha mãe Josina Georgina Ferreira do Nascimento)

Quero navegar Franca tuas Campinasonde ao roçar teu capim mimosoas siriemas de alongadas pernasme devolvem aos ouvidoscansados de tanto ouviro eco do seu canto metálicomartelando espasmódico teushorizontes de fugitivas miragens

Navego teus cafezais(outros navegaram canaviais)à fresca lima transparenterefresco a febre ressecanteda minha ânsia adolescente

Não navego ainda(conforme deveria)as águas primordiais de Olokumpoistemerário navegador das águas secasremando vou a terra roxada qual o joão-de-barroincessante

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constrói sua morada

Nado braçadas de léguasléguas dos teus cafezaisque infinitam em verdeeste escuro olhargerado ao tempero cheiroso do marmeloao caldo suculento do mocotóà pasta fervente da goiabaescarificando nosreluzentes braços de minha mãebuquês de queimaduras e cicatrizes

Navego o sangue de tua terraarroxeada ao sangue pisadono plantio das árvoresna colheita rubro-negra do"melhor café do mundo"

Mergulhador do sangue nascide nascença sei que pouco importaao sangue aperipécia sofridaquando o próprio sangueo teu mãenos ensina ao coraçãoque desfalece e renascede tua bondade humanade teu amor valentejamais enfraquecidona queixa ou na lágrima

Navego teu leiteperfume da flor de laranjeiramergulho teu seio maternoque me devolve à bocao leite primai de IsisirmãeamantesposaIsis que me pariuem seus negros seiosleite negro me nutriu

Navegador do sanguenavegador do leitesei dos que vieram

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e se foram antes de mimpois no sangue deles flutuo

Navego a santificaçãodo seu martírio de escravoscelebro seus quilombos levantadossuas Áfricasenfurecidas em minhas veiasplenas de eguns antepassados

Navegador de auroras e desastresum sabiá canta no meu sangueesta gota rubra trazida pela manhãao gotejar dos meus crispados olhos

O bisturi da madrugadarevolve as feridas enquantoo sonho mal sonhadointensifica a pulsação doridadeste navegar de morte e vidaprotoplasma do meu leite do meu sangue viagem sem volta só de ida

Piloto das tempestadescom Efrain e Gerardonavego o absurdoas piranhas da peripécianeste navegar aos pegos e pagosa caminho em Villaguay descereino sorriso angélicodel hombre verdeuma ardente orquídea plantareiem Ipueiras um presentedo africano Apolo(disfarçado em grego)entregareibacamarte chapéu de couroalpercata de rastreador aopoeta do rastro dos Mourõestripulantes da irmandadeRaul Bó Godo Napoleãono rastro da liberdadedesde o prata ao solimõesnavegamos a maldiçãodeste navegar de solidões

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Mergulho a doçura da mãeadoçada no amargo doceígneo algoz queimador dabeleza dos teus braços

Braços vigorosos nos quaisnavego teus abraçosnesses braços que são teus traço a ternura dos lábios meus à flor borbulhante do sangue que chamusca tua pele escura no tacho da tua existênciatão curta de alegria tão sofrida de vivência raiz fincada na terra ao infinito de tua compaixão unicamente partilhada à graça pura da doação

Navego os que virãoe nem semente ainda sãono espelho refletidaesta rubra gota tuame vejo e me reconheçomembro da raça daquelesesculpidos de rochas e troncosde cujo vinho junto aOgum nos embebedaremos eà direita e à esquerdaà frente e atrásdeceparemos cabeçasneste atlântico sangüinolentoaos gemidos do sangue malditonavegaremosdo mar de orelhas cortadasao mar do sangue vindicadonavegando nossas armas da liberdade

Navego o pus e o lutoque rutilam a gota do teu sangueprofanadojorrando em mimséculos de gritosmilénios de ritos

Esta terra roxa

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terra francanaprincipio da navegaçãonão te enterroumãenão foi tua amarraçãoesta terra se alimentou do teu suor dos teus ossos da tua carnegolpeada pela necessidade masa verdade de ti mesma escapou da cova aberta neste chão

Soluçando meu prantonavego minha alegriana gota infinita da tua presençanutrindo os bagos vermelhos da romãinfundindo delicadeza ao ramo da avencaafinando o gorgeio dos pássarosNavego tua gota em mimespessa gota nosbagos do meu pai Josénão o carpinteiromas o sapateiroJosé Ferreira do Nascimentoem tua gota navegantenos bagos de Josévieram o Benedito e o Rubenstambém chamado coronel Caféo José Filho alcunhado Dedédepois o Oliveira metalúrgicoAntónio o doador de coragem e alegriailuminado dos Orixás

e da materna valentiaperdido vim eu o navegador sem bússola da mesma gota tua fertilizante dos óvulos da maninha Ismênia frágil mãe adolescendo nos doces olhos contritos protegendo a criança fundida a seu corpo num corpo único sem costura nem conflito

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lentamente submergindo a juventude dos seus gritos no inocente silêncio da correnteza dos aflitos

Gotejando vermelha gotaarroxeando a terra dos espaçosarrochando os espaços do tempodo Egito antigo a Oshogbo a Francatua é a gota miraculosaa gotejar as águas prístinasdos mares e oceanos de Olokumnestas águas escurastodos nósà proteção dos girassóis de Xangôos que vieram ontemos de hojeos que virão amanhãenia dudu de sangue imperecívelnadaremos nosso mar de sanguemergulharemos nosso oceano de leitevarando os cabos de tormentasnáufragos do sonho bêbedos da esperança bebedores do sangue edas águas daliberdade na fonte doteu ventre mãe

(In: Búfalo,1977.)

Teatro

Sortilégio II (mistério negro de Zumbi redivivo) é uma peça de teatro, cujo cenário é um bosque no alto do morro, onde são realizados rituais afro-brasileiros. O recorte de tempo se passa numa noite em que Emanuel, um negro, assassina sua mulher, que era branca. Atormentado pela idéia de ser encontrado pela polícia, ele foge para o morro e, sem desconfiar, é atraído para o local onde seu destino seria cumprido por intervenção de divindades do culto. A cena retirada é o ápice da peça; quando o trabalho é realizado e Emanuel se dá conta da realidade que criara para si a partir dos moldes de civilização do branco:

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EMANUEL

São eles. Vêm subindo. Me levaram as duas: a esposa e a mulher amada. Me roubaram tudo. Melhor. Muito melhor assim. (gritos de triunfo, intercalados com riso alto até o momento em que entra no pegi) Agora me libertei. Para sempre. Sou negro liberto da bondade. Liberto do medo. Liberto da caridade e da compaixão de vocês. Levem também esses molambos civilizados, brancos. (enquanto fala, tira a camisa, as calças, fica só de tanga. Vai atirando tudo pela ribanceira abaixo). Tomem seus troços! Com estas e outras malícias vocês abaixam a cabeça dos negros... Esmagam o orgulho deles. Lincham os coitados por dentro. E eles ficam domésticos... castrados... bonzinhos... de alma branca... Comigo se enganaram. Nada de mordaça na minha boca. Imitando vocês que nem macacos amestrados. Até hoje fingi que respeitava vocês... que acreditava em vocês. Margarida muito convencida que eu estava fascinado pela brancura dela! Uma honra para mim ser chifrado por uma loura. Branca azeda idiota. Tanta presunção e nem percebia que eu simulava... procedia como pessoa educada, ouviu? Como mulher você nunca significou nada para mim. Olha: que, tinha nojo era eu. Aquelas coxas amarelecidas que nem círio de velório me reviravam o estômago. Seu cheiro? Horrível! O pior: teus seios mortos de carne de peixe. E o nosso filho... lembra-se? Outro equívoco... novo engano de sua parte. Você o matou para se desforrar da minha cor, não foi? Mas ele era também seu sangue. Isto você deixou de levar em conta. Que eu não poderia amar uma criatura que tinha a marca de tudo aquilo que me humilhou... me renegou. Desejei um filho de face bem negra. Escuridão de noite profunda... olhos parecendo um universo sem estrelas... Cabelos duros, indomáveis... Pernas talhadas em bronze... punhos de aço... para esmagar a hipocrisia do mundo branco...

FILHA I

Aniquilar os falsos sonhos da brancura.

EMANUEL

Brancura que nunca mais há de me oprimir, estão ouvindo?

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FILHA II

Erradicar o ódio do mundo branco.

EMANUEL

Está ouvindo, Deus do céu?

FILHA III

Obliterar o poder destrutivo do mundo branco.

EMANUEL

Eu quero que todos ouçam!

FILHA II

Apagar o ódio do mundo branco!

EMANUEL

Venham todos, venham!

FILHA I

Da terra.

FILHA II

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Do céu.

FILHA III

Do inferno.

(Sortilégio II: mistério negro de Zumbi redivivo, p. 121-123)

(In: Alegre: Mercado Aberto, 1983.)