11
1. INTRODUÇÃO O Traumatismo Crânio-Encefálico (TCE) cons- titui um dos maiores problemas de saúde pública nos EUA, Europa e outros países desenvolvidos. Antes dos 15 anos, metade das mortes devidas a traumas são de lesões no crânio (EUA). A inci- dência de crianças e adolescentes com trauma- tismos aumentou, e as lesões na cabeça tornaram- -se a maior causa de morte antes dos 35 anos (EUA). Entre as crianças que não moorem, existe uma percentagem significativa que apresenta di- ficuldades comportamentais e de aprendizagem. Estima-se que 80% das crianças com traumatis- mo grave 1 , tem necessidades educacionais espe- ciais ou necessitam modificações no seu ambi- ente educacional nos dois anos após o acidente (Leikman, 2001), e que 61% dessas crianças desen- volve uma nova perturbação psiquiátrica nesse espaço de tempo, apresentando, na sua maioria, comportamentos de desinibição e socialmente inadequados (Shaffer, 1995, citado por Leikman, 2001). No caso de TCE moderado a grave esti- ma-se que 20% das crianças irão necessitar de algum apoio escolar devido a défices residuais (Kraus et al., 1990, citado por Leikman, 2001), prevalecendo também problemas de comporta- mento. Nestes casos, uma boa recuperação muitas vezes não significa uma recuperação total e muitas das crianças que sofrem de TCE apresentam di- ficuldades temporárias ou permanentes ao nível da cognição, da memória ou da deficiência física. Apesar de frequentemente difíceis de quantificar, 235 Análise Psicológica (2006), 2 (XXIV): 235-245 Abordagem multidisciplinar no acompanhamento de uma criança com Traumatismo Crânio-Encefálico (*) MARIA TERESA LOBATO DE FARIA (**) (*) Artigo baseado num trabalho realizado em cola- boração com a Drª Alexandra Mendes, neuropsicóloga do Hospital de S. José (Lisboa), e a Drª Ana Isabel Dias, neuropediatra do Hospital de Dona Estefânia (Lisboa) e apresentado no III Congresso da Sociedade Portuguesa de Neuropediatria “Neurologia nas Pertur- bações do Desenvolvimento”, Lisboa, 2003. Agradecimentos: A autora agradece à Doutora Isabel Sá, Investigadora Auxiliar da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Lisboa, assim como ao Doutor Serge Gulbenkian, os seus con- selhos e dedicada disponibilidade colocados no acom- panhamento deste trabalho. (**) Psicóloga, Assistente Principal de Saúde – Con- sulta de Psicologia, Serviço 1 (Pediatria Médica), Hos- pital de Dona Estefânia, Lisboa. 1 Fletcher et al. (1990) definiram TCE Grave quando a Glasgow Coma Scale (Teasdale & Jennett, 1974) atinge um valor menor ou igual a 8, e TCE Moderado para valores entre 9 e 12 (citado por Taylor, Wade, Stancin, Yeates, Drotar, Minich, 2002).

Abordagem multidisciplinar no acompanhamento de uma ... · PDF fileDígitos e Aritmética da WISC; a Figura Complexa de Rey (cópia); a Torre de Hanoi e a Child Beha-vior Checklist

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Abordagem multidisciplinar no acompanhamento de uma ... · PDF fileDígitos e Aritmética da WISC; a Figura Complexa de Rey (cópia); a Torre de Hanoi e a Child Beha-vior Checklist

1. INTRODUÇÃO

O Traumatismo Crânio-Encefálico (TCE) cons-titui um dos maiores problemas de saúde públicanos EUA, Europa e outros países desenvolvidos.Antes dos 15 anos, metade das mortes devidas atraumas são de lesões no crânio (EUA). A inci-dência de crianças e adolescentes com trauma-tismos aumentou, e as lesões na cabeça tornaram--se a maior causa de morte antes dos 35 anos(EUA). Entre as crianças que não moorem, existeuma percentagem significativa que apresenta di-

ficuldades comportamentais e de aprendizagem.Estima-se que 80% das crianças com traumatis-mo grave1, tem necessidades educacionais espe-ciais ou necessitam modificações no seu ambi-ente educacional nos dois anos após o acidente(Leikman, 2001), e que 61% dessas crianças desen-volve uma nova perturbação psiquiátrica nesseespaço de tempo, apresentando, na sua maioria,comportamentos de desinibição e socialmenteinadequados (Shaffer, 1995, citado por Leikman,2001). No caso de TCE moderado a grave esti-ma-se que 20% das crianças irão necessitar dealgum apoio escolar devido a défices residuais(Kraus et al., 1990, citado por Leikman, 2001),prevalecendo também problemas de comporta-mento. Nestes casos, uma boa recuperação muitasvezes não significa uma recuperação total e muitasdas crianças que sofrem de TCE apresentam di-ficuldades temporárias ou permanentes ao nívelda cognição, da memória ou da deficiência física.Apesar de frequentemente difíceis de quantificar,

235

Análise Psicológica (2006), 2 (XXIV): 235-245

Abordagem multidisciplinar noacompanhamento de uma criança comTraumatismo Crânio-Encefálico (*)

MARIA TERESA LOBATO DE FARIA (**)

(*) Artigo baseado num trabalho realizado em cola-boração com a Drª Alexandra Mendes, neuropsicólogado Hospital de S. José (Lisboa), e a Drª Ana IsabelDias, neuropediatra do Hospital de Dona Estefânia(Lisboa) e apresentado no III Congresso da SociedadePortuguesa de Neuropediatria “Neurologia nas Pertur-bações do Desenvolvimento”, Lisboa, 2003.

Agradecimentos: A autora agradece à Doutora IsabelSá, Investigadora Auxiliar da Faculdade de Psicologiae de Ciências da Educação da Universidade de Lisboa,assim como ao Doutor Serge Gulbenkian, os seus con-selhos e dedicada disponibilidade colocados no acom-panhamento deste trabalho.

(**) Psicóloga, Assistente Principal de Saúde – Con-sulta de Psicologia, Serviço 1 (Pediatria Médica), Hos-pital de Dona Estefânia, Lisboa.

1 Fletcher et al. (1990) definiram TCE Grave quandoa Glasgow Coma Scale (Teasdale & Jennett, 1974) atingeum valor menor ou igual a 8, e TCE Moderado paravalores entre 9 e 12 (citado por Taylor, Wade, Stancin,Yeates, Drotar, Minich, 2002).

Page 2: Abordagem multidisciplinar no acompanhamento de uma ... · PDF fileDígitos e Aritmética da WISC; a Figura Complexa de Rey (cópia); a Torre de Hanoi e a Child Beha-vior Checklist

as sequelas psico-sociais afectam significativa-mente a qualidade de vida das crianças que so-frem de TCE. Estes problemas incluem as mu-danças na forma como a criança expressa os seussentimentos, no seu comportamento, no seu auto--conceito e nas suas interacções sociais. Os efeitospsico-sociais do TCE têm mais probabilidade dedurar e perturbar do que os seus efeitos físicos.O TCE raramente melhora os problemas ante-riores ao acidente, muitas vezes piora-os. Umacriança que era irritável antes do traumatismo,pode tornar-se mais irritável e mesmo agressivadepois do TCE.

As consequências de longo alcance de um TCEsão inúmeras e podem alterar totalmente uma vida.O TCE pediátrico apresenta um desafio maior naprova de evidência de lesão, devido aos trauma-tismos que só se tornam evidentes no comporta-mento e raciocínio da criança na adolescência.Os TCE moderados podem apresentar menos se-quelas e, embora com necessidade de mais inves-tigação, os resultados demonstram que nas crian-ças com traumatismos menos graves, muitas dasfunções podem melhorar após um ano (Taylor,Wade, Stancin, Yeates, Drotar, Minich, 2002). Noentanto, há que ter em atenção que um TCE mo-derado, pode muitas vezes ser descurado e/oudiagnosticado erradamente como sintomas de dis-funções do desenvolvimento infantil, tais comodéfice de atenção, dificuldades de aprendizageme depressão. A criança mal diagnosticada comopossuindo um problema de comportamento, nuncarecebe a ajuda de que necessita para lidar com asconsequências cognitivas do TCE. O impacto maissubtil do TCE inclui precisamente a forma comoaltera as relações entre a criança traumatizada, asua família e a comunidade onde vive. Neste con-texto, torna-se premente consciencializar todosos profissionais implicados no seguimento decasos de TCE pediátrico da importância de umestudo mais cuidado destas situações. A apresen-tação deste estudo de caso, tal como se tem vindoa verificar na literatura internacional, surge comoum alerta para esta problemática que, no nossopaís, injustificadamente, pouca ou nenhuma aten-ção tem merecido.

2. ESTUDO DE CASO

A.M. tinha 6 anos e 11 meses de idade e fre-

quentava o 1.º ano do 1.º ciclo, com 7 meses deescolaridade e rendimento na média, quando em4 de Abril de 2002, após queda de cerca de 6metros de altura, em sua casa, sofre poli trauma-tismos e TCE moderado com perda de conheci-mento. Recorreu ao Serviço de Urgência do Hos-pital de S. José apresentando à entrada uma Glas-gow Coma Scale de 11, hemiparésia direita e mu-tismo que manteve cerca de 17 dias. Os examesde imagens efectuados, revelavam múltiplos focosde contusão hemorrágicos nas regiões fronto-tem-porais bilaterais e hematoma temporo-parietalesquerdo.

A.M. vive com os pais e um irmão, 6 anos maisvelho, que se encontrava sozinho em casa com airmã na hora do acidente. Não foi possível pro-ceder a uma avaliação da situação familiar pré--mórbida2, pois o tempo ideal para a sua rea-lização estava perdido na altura em que A.M. éreferenciada para a primeira avaliação psicoló-gica. Antes do acidente, A.M. tinha um desen-volvimento normal, sem evidenciar problemas emqualquer das áreas de desenvolvimento. Entrouaos 16 meses para um infantário onde permane-ceu até aos 6 anos, ingressando seguidamente no1.º ciclo sem nunca apresentar problemas ao ní-vel da adaptação. A professora afirma que A.M.antes do acidente era uma aluna interessada, umpouco desatenta, mas nada de preocupante, acom-panhando o ritmo da aula sem ainda ter adqui-rido a técnica da leitura.

O mutismo de 17 dias após o TCE levou os pro-fissionais de saúde responsáveis por A.M. a daremprioridade ao discurso verbal, e a sua primeiraavaliação foi efectuada 1 mês após o traumatis-mo pela Terapia da Fala. Os resultados desta ava-liação apontaram para um quadro de tipo afásicocaracterizado por discurso pouco fluente, déficesde expressão, nomeadamente presença de ano-mia, parafasias semânticas e fonéticas e déficesde compreensão. Apresentava ainda perda dasaquisições básicas da escrita e leitura efectuadas

236

2 É também importante reconhecer a contribuiçãodas dificuldades familiares já vividas antes do aci-dente na adaptação da família à situação de traumatis-mo (Leikman, 2001).

Page 3: Abordagem multidisciplinar no acompanhamento de uma ... · PDF fileDígitos e Aritmética da WISC; a Figura Complexa de Rey (cópia); a Torre de Hanoi e a Child Beha-vior Checklist

até então e, na sequência desta avaliação é ini-ciado o apoio da Terapia da Fala.

Um mês e meio após o TCE regressou à es-cola (meados de Maio) sem qualquer avaliaçãoneuropsicológica e sem apoio do ensino especial,tendo a professora apontado dificuldades nas apren-dizagens da escrita e leitura com significativa re-dução do rendimento escolar, dificuldades de con-centração, memória, fadiga, lentificação, social-mente conflituosa e desmotivada em termos es-colares. Na sequência da preocupação com o ren-dimento escolar surge a primeira avaliação neu-ropsicológica efectuada no Hospital de S. José, 3meses depois do acidente. As provas aplicadasincluiram: o Token Test, as Matrizes Progressi-vas de Raven – Coloridas; o California Verbal Lear-ning Test – Children; as provas de Memória deDígitos e Aritmética da WISC; a Figura Complexade Rey (cópia); a Torre de Hanoi e a Child Beha-vior Checklist (CBCL) de Achenbach. Os resul-tados apontaram para um discurso fluente, ver-borreico, com digressões, alterações da escrita eda leitura, alteração da memória verbal com in-terferência, alteração das capacidades visuo-cons-trutivas, alteração das funções executivas (tipo“pré-frontal”), fadiga e lentificação ligeira, desi-nibição, diminuição da tolerância às contrarieda-des e aos outros, agressividade, impulsividade,egocentrismo aumentado e diminuição da capa-cidade de auto-crítica em relação ao seu própriocomportamento.3 Através destes resultados foievidente que o impacto do TCE ia muito para alémdos problemas no discurso verbal que constituí-ram a prioridade de intervenção e avaliação logoapós o TCE. Era necessário iniciar um processode reabilitação com vista à diminuição do impactoque este quadro já estava a produzir no seu ren-dimento escolar, e no seu relacionamento socio--familiar. Na opinião da neuropsicóloga, este pro-cesso de reabilitação devia incluir: consulta deNeuropsicologia, consulta de Psicologia Pediá-trica, Terapia da Fala, Psicomotricidade, e apoiodo ensino especial.

Entre Junho e Outubro de 2002, verificou-semelhoria a nível do comportamento registando--se progressivamente um padrão de maior auto--controlo com a implementação de técnicas deauto-monitorização e de auto-instrução. Segundoreavaliação da Terapia da Fala verificou-se signi-ficativa melhoria das capacidades de compreen-são e de expressão com o desaparecimento dasdificuldades de nomeação e das parafasias. EmOutubro de 2002, na sequência da avaliação neu-ropsicológica, inicia-se o apoio do ensino espe-cial na escola.

Em Novembro de 2002 (7 meses após o TCE),a criança é avaliada na consulta de psicologiapediátrica do Hospital de Dona Estefânia ondesão aplicadas as seguintes provas: Escala de In-teligência de Weschler para crianças (WISC), Provade Desenvolvimento da Percepção Visual de Ma-rianne Frostig e Desenho da Família. Os resulta-dos revelaram, a presença de um bom rendimentointelectual global (Normal Brilhante)4, no entantoa diferença entre o rendimento verbal e de reali-zação era significativa, sendo o rendimento verbalinferior (Médio) ao de realização (Normal Brilhante).Revelou também um bom desenvolvimento dapercepção visual, com algumas alterações a nívelda visuo-motricidade e da discriminação figura--fundo. Contudo, mantinha dificuldade de orga-nização temporal e sérias dificuldades na escritae leitura. O contacto com a Professora revelou queA.M. estava atrasada um período e avançava devagar.Tinham sido experimentados vários métodos deensino de leitura e escrita por A.M. não conse-guir acompanhar o método que já lhe era fami-liar e que anteriormente a colocava na média daturma (Método das 28 palavras), e encontrava-sea utilizar o método silábico. O seu comportamentotinha melhorado significativamente, e a interven-ção psicológica iniciou-se num seguimento men-sal, com o objectivo de afastar o mínimo possí-vel A.M. do seu meio escolar, enquanto se man-tinha uma supervisão da sua evolução.

Ao fim de cerca de 8 meses após o TCE, de-nota-se episódio de agravamento dos sintomas

237

3 As dificuldades nas funções executivas estão fre-quentemente presentes nas crianças com TCE (Begali,1992, citado por Savage, 1995; Lezak, 1994, citadopor Leikman, 2001).

4 As crianças dotadas e com elevados níveis de inte-ligência serão capazes de compensar em provas geraisde avaliação (Leikman, 2001).

Page 4: Abordagem multidisciplinar no acompanhamento de uma ... · PDF fileDígitos e Aritmética da WISC; a Figura Complexa de Rey (cópia); a Torre de Hanoi e a Child Beha-vior Checklist

apresentando perda de capacidades básicas comopor exemplo o desconhecimento de um alimentofavorito. Após imediata observação neurológicae subsequente realização de exames complemen-tares de diagnóstico (RNM-CE a qual revela as-pectos sequelares de focos contusionais a níveltemporal e frontal do hemisfério direito e temporo--parietal no hemisfério esquerdo e lesões axonaisdifusas; EEG dentro da normalidade), verificou--se uma remissão espontânea indicativa de umaperturbação com características ansiosas. Tendoem conta a avaliação psico-social então efectuada,esta alteração emocional foi atribuída a uma me-lhoria cognitiva, com o consequente reconheci-mento dos seus próprios défices, às dificuldadesde relacionamento com a sua família, pares eprofessora, devido aos seus comportamentosconflituosos e de imposição e às alteraçõesemocionais no seio da própria família, sobretudoa depressão reactiva da mãe ao acidente e aculpabilização injustificada do irmão, únicatestemunha do acidente (já em acompanhamentopsicológico no seu estabelecimento de ensino).A depressão da mãe revelou-se nesta fase e o seuacompanhamento por especialista foi indicadopara o Hospital de S. José.

O processo de reabilitação foi decorrendo deforma desintegrada, com grande dispersãogeográfica, e a psicomotricidade foi apenasconseguida em Dezembro de 2002/Janeiro de2003.

Um ano após o acidente, e tendo em conta asdificuldades de aprendizagem que persistiam – ométodo silábico demonstrou-se ineficaz, estandoapós 8 meses de escolaridade sem conseguiridentificar letras de forma consistente apesar doapoio do ensino especial – reavaliou-se comgrande cuidado a situação.5 Foram aplicadas uma

série de provas com o objectivo de identificar como máximo rigor as capacidades que se encontra-vam afectadas: Token Test, Matrizes Progressi-vas de Raven – Coloridas; California Verbal Lear-ning Test – Children; Figura Complexa de Rey(cópia); Torre de Hanoi; Child Behavior Checklist(CBCL) de Achenbach; Memory for Design Test;Nomeação; Discurso; Diagnóstico Informal deLinguagem Escrita (DILE); Pseudopalavras; Di-tado e Cópia; Prova de Cálculo Simples; Provade Iniciativa Verbal; Wisconsin Card Sorting Test;Prova Gráfica de Organização Perceptiva de Bender//Santucci; Bateria Piaget-Head por Galifret-Gran-jon; Prova de Ritmo (M. Stanback); The PictoralScale of Perceived Competence and Aceptancefor Young Children (Harter & Pike); Matching Fi-gures Test-20 (MFF-20) adaptado de Ed Cairns eTommy Cammock. Através dos resultados, pode-mos concluir que se assistia à manutenção das me-lhorias cognitivas, demonstrando:

- Manutenção do bom rendimento intelectual- Ausência de perturbação da memória verbal

complexa com interferência, a curto e longoprazo e da memória visual imediata

- Manutenção da capacidade de atenção- Ausência de perturbação da linguagem ao

nível das capacidades de nomeação, compre-ensão e repetição, com discurso fluente e ade-quado.

Apesar deste bom desenvolvimento intelectualgeral, persistiam as alterações na leitura e, atra-vés desta avaliação foi evidente que A.M. nãofazia a associação fonema-grafema, não lia pseudo--palavras, identificava as letras pelo tacto mashavia uma maior dificuldade na identificação fo-nológica das letras, evidenciava uma melhor lei-tura de palavras familiares, apresentava erros denormalização (lê a pseudo-palavra como se a conhe-cesse) e alterações da escrita por ditado e espon-tânea.6 Verificou-se uma melhoria das funções exe-cutivas (capacidade de planeamento e de execu-ção sequenciada da acção), uma melhoria das

238

5 Para conseguir diagnósticos com pouca margem deerro, o neuropsicólogo ou psicólogo pediátrico neces-sita passar bastante tempo com a criança pois, só apósmuito tempo de observação das suas reacções e dos seusdesempenhos em diversos tipos de tarefas, em con-junto com a aplicação de uma série de provas e testes,pode determinar os padrões desviantes e chegar a con-clusões válidas sobre o grau e profundidade do trau-matismo (Fisher, 2002).

6 Crianças com TCE demonstram dificuldades nalinguagem e leitura, cálculo aritmético, escrita, e no so-letrar (Lewin, Ewing-Cobbs, Einsenberg, 1995, citadopor Leikman, 2001).

Page 5: Abordagem multidisciplinar no acompanhamento de uma ... · PDF fileDígitos e Aritmética da WISC; a Figura Complexa de Rey (cópia); a Torre de Hanoi e a Child Beha-vior Checklist

alterações das capacidades visuo-construtivas, umalateralidade assumida à direita para a mão e pé, eesquerda para olho, graves dificuldades na estru-turação, orientação e organização temporal e umaorientação esquerda-direita, por comando verbalalterada. O seu comportamento durante a avalia-ção caracterizou-se por uma redução significativada agressividade, da impulsividade, da desinibi-ção, do discurso verborreico, da fadiga e da lenti-ficação.

Segundo a mãe e a professora, houve agrava-mento, registando-se comportamentos de oposi-ção/imaturidade, isolamento, irritabilidade e pro-blemas de relação com colegas que reagem ne-gativamente ao facto de A.M. não os acompa-nhar em termos curriculares. Denotou-se ainda umaumento da insegurança em A.M., evidenciadapela utilização da idealização da sua auto-com-petência escolar/física e da sua percepção da acei-tação pelos pares, não existindo esta necessidadequanto à aceitação pela mãe. Assiste-se a umaprogressiva desmotivação académica evidenciadapelas primeiras manifestações de desejo de absen-tismo escolar. Este quadro de alterações psico--sociais poderá ser atribuído a vários factores entreos quais: as lesões resultantes do TCE, a melho-ria dos défices cognitivos e consequente cons-ciencialização das suas limitações; o impacto dasconsequências do TCE na sua vida socio-fami-liar e escolar; o agravamento da situação emo-cional da mãe por ausência de apoio psicológico,a qual teve que ser reencaminhada para o Hos-pital da sua área de residência; a ausência de acom-panhamento psicopedagógico adequado e à reacçãonegativa dos seus pares em relação à permanên-cia dos seus défices por incapacidade de compre-ensão da sua origem.

Estando no final do ano lectivo (Abril/Maio),a professora inicia um processo de incompreen-são em relação às persistentes dificuldades deA.M., estando a criança “tão bem de saúde”.7 Éconseguida a retenção de A.M. no 2.º ano e a trans-ferência para outra escola, onde tudo poderá co-meçar de novo. O início do ano lectivo 2003/2004,

decorreu de forma muito positiva, houve melho-rias significativas no seu comportamento, comausência de queixas escolares e familiares. A mãeiniciou um seguimento regular em psicoterapiaem Maio de 2003, e afirma sentir-se mais equili-brada. A avaliação de A.M. em Outubro de 2003,através do Diagnóstico Informal de LinguagemEscrita (DILE), de pseudopalavras, de ditado ecópia, revela a identificação visual de todas asletras, dificuldades em reconhecer foneticamenteapenas 6 letras, leitura de vogal-consoante conse-guida, bem como cópia e ditado com alguns êxitosem conjuntos de sílabas Vogal/Consoante.8 A evo-lução é evidente e a sua motivação escolar é agoraexcelente.

No sentido de evitar os efeitos negativos de umtrabalho desarticulado entre os vários técnicos im-plicados, foi realizada, em Outubro de 2003, umareunião na escola de A.M., onde estiveram pre-sentes a professora do ensino regular, a professorade ensino especial, a psicóloga da escola, a neuro-psicóloga e a psicóloga pediátrica. A terapeuta dafala não pôde estar presente, mas a importância doseu contacto para coordenação do trabalho peda-gógico e curricular foi acentuada e ficou prevista.Nesta reunião, foram discutidos os problemas psico--sociais e as dificuldades cognitivas de A.M., a formade os trabalhar e todas as situações de risco a evitar.A.M. irá continuar com apoio da terapia da fala edo ensino especial, a psicomotricidade foi dispen-sada por A.M. se encontrar recuperada em termosmotores. O seguimento psicológico por ambas asprofissionais nesta área (neuropsicóloga e psicó-loga pediátrica) continuará, pois o caso está longede se considerar terminado. A sua lesão frontal levaesta criança a ser considerada um caso de risco atéà adolescência.

CONCLUSÕES

Durante muitos anos existiu, na medicina, aideia de que as crianças têm mais possibilidades

239

7 As crianças com traumatismos moderados podemter mais sorte em relação à proporção de reentrada emclasses normais, mas têm frequentemente o fardo daexpectativa irrealista de que estão já recuperadas apenasuns meses após o acidente (Deaton, 1995).

8 Os TCE moderados podem apresentar menos se-quelas e, embora com necessidade de mais investiga-ção, os resultados demonstram que nas crianças comtraumatismos menos graves muitas das funções po-dem melhorar após um ano (Taylor, Wade, Stancin,Yeates, Drotar, & Minich, 2002).

Page 6: Abordagem multidisciplinar no acompanhamento de uma ... · PDF fileDígitos e Aritmética da WISC; a Figura Complexa de Rey (cópia); a Torre de Hanoi e a Child Beha-vior Checklist

de recuperar de um TCE do que um adulto. Estaideia veio a chamar-se “Princípio de Kennard” ebaseou-se em estudos com macacos (Kennard,1940, citado por Savage, 1999). Segundo este prin-cípio, o cérebro de uma criança, enquanto em de-senvolvimento, exibia uma “neuroplasticidade”,que lhe permitia ultrapassar ou adaptar-se a se-quelas orgânicas. No entanto, recentemente, muitosestudos têm demonstrado que o “Princípio de Ken-nard” está errado, e que de facto, face ao mesmotipo de traumatismo, as consequências para as cri-anças são mais graves do que para os adultos (An-derson & Moore, 1995; Edwing-Cobbs, 1989, 1994;Roberts, 1995; Laurent-Bannier, 2000; Webb, 1996;Nybo, 1999, citados por Savage, 1999). As crian-ças podem experienciar disfunções significativase problemas cogntivos, que só se tornam eviden-tes na adolescência ou alguns anos depois do aci-dente. O facto de o resultado dos exames imagé-ticos ser normal, não invalida o facto de existiruma lesão cerebral. É comum aparecerem pro-blemas em exames radiológicos feitos muitos anosdepois do TCE, problemas esses que não apare-ceram na altura do TCE ou a curto prazo. A idadeem que o TCE ocorre tem implicações diferentesna criança. Quando mais nova pode parecer efec-tuar uma melhor recuperação do traumatismo,mas está em maior risco de desenvolver novosproblemas a longo prazo. Com a chegada à idadeescolar, a criança envolve-se no domínio das re-lações sociais, das aquisições académicas e dasactividades competitivas e cooperativas, e o con-trolo sobre estas variáveis contribui para o desen-volvimento da sua auto-estima. Assim, a criançaem idade escolar, tal como A.M., terá mais pro-babilidades de sentir frustração ao experienciar ocontraste entre as capacidades que possuía antese depois do traumatismo. Nos adolescentes, a percade independência, da auto-confiança e da sensa-ção confortável de invulnerabilidade, pode re-sultar na depressão, isolamento ou rebeldia. Al-guns destes problemas psico-sociais podem serefeito do TCE, outros reflectem uma exacerba-ção das características ou comportamentos pré--mórbidos, e ainda outros ocorrem em reacçãoao traumatismo e às modificações subsequentes.Segundo Lehr (1990, citado por Deaton, 1995)incluem-se nos efeitos psico-sociais de um TCE:actuar de forma socialmente inapropriada, irrita-bilidade, emotividade aumentada, motivação e crí-ticas reduzidas, preseveração, diminuição da resis-

tência à frustração, egocentrismo visto através dainsensibilidade aos outros, falta de noção do seuimpacto nos outros, e um aumento no comporta-mento de exigência. Deaton (1995), acrescenta ocomportar-se de forma imatura para a idade, adesinibição, a labilidade emocional, a fadiga, anegação de problemas, a impulsividade, o isola-mento, a passividade, a agressividade, a ansiedadee a depressão, a procura de atenção através decomportamentos negativos e uma interpretaçãoerrada das próprias capacidades. O comportamentode A.M. após o acidente ilustra de forma claraestes efeitos psico-sociais e o seu impacto nasrelações familiares e sociais.

A.M. apresentava, entre outras lesões, múlti-plos focos de contusão hemorrágicos nas regiõesfronto-temporais bilatetrais. Um estudo de casode uma criança com TCE devido a queda de es-cadas aos 3 anos, afirma que a presença de se-quelas e as consequências cognitivas do TCE, es-pecificamente lesão frontal, não foram diagnos-ticadas até à idade de 12 anos; isto porque os exa-mes precedentes não utilizaram uma avaliaçãosuficientemente extensiva para medir os desviospresentes, a criança era suficientemente inteli-gente para ultrapassar os défices com estratégiascompensatórias para produzir um funcionamentodentro da média, e o traumatismo afectou áreasdo cérebro, tais como o lobo frontal e as áreas asso-ciativas, que só se desenvolvem por volta dos 12anos, e cujos défices só podem ser totalmenteobservados na adolescência. Assim, foi apenas naadolescência que a diminuição no sistema de re-gulação se tornou observável no seu comporta-mento e processos cognitivos, apresentando desi-nibição, incapacidade em controlar as suas emo-ções, em tomar decisões correctas, e padrões deaprendizagem/uso da linguagem aberrantes (Fisher,2002). A maturação tardia dos lobos frontais (±12anos), em conjunto com as exigências do meio,características destas idades, apela para a impor-tância de efectuar um seguimento longitudinal euma monitorização até à adolescência/idade adulta(Kolb & Whishaw, 1990, citado por Leikman, 2001).

A.M. apresentou durante aproximadamente oprimeiro semestre após o acidente, muitas dascaracterísticas de uma lesão do lobo frontal e,um psicólogo que não esteja familiarizado comos sinais de um défice frontal terá tendência adiagnosticar a criança como possuindo um pro-blema de comportamento e/ou um Défice de Aten-

240

Page 7: Abordagem multidisciplinar no acompanhamento de uma ... · PDF fileDígitos e Aritmética da WISC; a Figura Complexa de Rey (cópia); a Torre de Hanoi e a Child Beha-vior Checklist

ção por Hiperactividade. Há que levar as pessoasque trabalham com este tipo de crianças a com-preender que, depois de um TCE, as modifica-ções comportamentais emergentes podem ser efecti-vamente uma consequência e não uma perturba-ção psicológica paralela. As crianças que sofremde consequências de um TCE, muitas vezes nãotêm controlo sobre o seu comportamento e quandosão acusadas de um determinado incidente, nãoconseguem recordar-se especificamente do seucomportamento. Como resultado, têm tendênciaa não admitir a responsabilidade do acto, ou domau comportamento, levando à falsa sensação defalta de remorso ou de amor, e ao diagnóstico deanti-social, de desafiante e Perturbação de Opo-sição. No entanto, o tratamento não deve centrar--se apenas na redução do comportamento inde-sejado, mas sim no impacto em estruturas ce-rebrais, nas sequelas neurológicas e nos déficescognitivos directamente relacionados com o TCE.Tem vindo a ser provado que a devida atençãoaos problemas cognitivos tem tendência a dimi-nuir os problemas comportamentais.

Cada vez existe mais literatura e investigaçãosugerindo que o principal predictor de um bomresultado após um TCE, pode não ser a naturezada lesão mas sim o ambiente onde a criança estáinserida depois do acidente. Sabemos que as fa-mílias atravessam estádios durante a recuperaçãoda criança ou do adolescente. Tal como na doençagrave ou crónica, no TCE a primeira preocupa-ção é a sobrevivência da criança; quando a sobre-vivência está assegurada, começam as questõessobre a eventual funcionalidade do doente; quandoa funcionalidade do paciente está significativa-mente comprometida, os membros da família passampor um processo de luto semelhante ao experi-mentado após a morte de um ente querido. Esteprocesso é também iniciado quando, normalmenteapós 6 a 12 meses, as capacidades sensorio-mo-toras são recuperadas e os défices nas capacida-des cognitivas e comportamentais começam a serevidentes. A família conclui que a criança, tal comoera, não sobreviveu. Quando a família não con-segue lidar com as dificuldades que este processoimplica, os resultados estão significativamentecomprometidos e os problemas de comportamentoaumentam. Logo na fase após o traumatismo, osmembros da família podem desvalorizar os pro-blemas da criança e pressioná-la a esforçar-se mais.Outras tornam-se demasiado protectoras e podem

evitar a participação em actividades, resultandoem menos oportunidades de aprendizagem de inter-acção social e de re-desenvolvimento da auto-estima(A. Deaton, 1995).

O nível de coesão e os padrões de comunica-ção dentro da família são um importante predictordos resultados; assim, é muito importante queexista um apoio à família por parte do pessoal desaúde e da escola, para que actuem como um todoneste processo de recuperação.

Existem pouco estudos sobre o funcionamentofamiliar antes do acidente, no entanto existem vá-rios que analisam o efeito familiar do TCE e assuas conclusões apontam para que passado um anomuitos casais estão à beira do divórcio, e surgemproblemas com os irmãos. Wade et al. (1998), de-pois de um estudo em que tentaram compreenderos factores familiares facilitadores de uma melhorrecuperação, sugerem que os pais devam receberinformação sobre as tensões e preocupações emo-cionais que surgem com este tipo de traumatismo,e que devam ser orientados no sentido de aprendera lidar com eles. Lezak (1988, citado por Leikman,2001) sugere a importância dos pais compreen-derem que o processo de recuperação não é umprocesso de “tudo ou nada”; há algumas capaci-dades que recuperam rapidamente enquanto outraspodem aparecer mais lentamente e, ainda, outraspodem nunca ser recuperadas. Além disto, os paisdevem ser levados a compreender que precisam deolhar para a sua própria saúde emocional. Os paisestão em alto risco de desenvolver problemas afecti-vos e, tal como já foi mencionado, podem ocorrerdiscussões conjugais e até divórcio. A terapia fa-miliar deve ser introduzida quando a situação fa-miliar se torna muito difícil.

É também importante reconhecer a contribui-ção das dificuldades familiares já vividas antesdo acidente na adaptação da família à situação detraumatismo (Leikman, 2001). Um estudo lon-gitudinal entre 1990 e 1995, demonstrou que ascrianças com TCE apresentavam mais frequen-temente comportamentos agressivos e de hiper-actividade antes do acidente e tinham mães comíndices mais altos de depressão (Leikman, 2001).Os resultados de um outro estudo demonstramque o funcionamento da família e da criança an-tes do acidente, em conjunto com a gravidade dotraumatismo são factores importantes na previ-são da adaptação geral da criança no período pos-terior ao TCE. Estes resultados sugerem que os

241

Page 8: Abordagem multidisciplinar no acompanhamento de uma ... · PDF fileDígitos e Aritmética da WISC; a Figura Complexa de Rey (cópia); a Torre de Hanoi e a Child Beha-vior Checklist

factores pré-mórbidos e a gravidade do trauma-tismo diferem na forma como contribuem para aprevisão dos resultados das crianças nas áreas defuncionamento académico/cognitivo e nos pro-blemas de comportamento, após um ano. A gra-vidade do traumatismo tem mais influência nosresultados académicos e cognitivos, em contraste,o funcionamento pré-mórbido da família foi iden-tificado como um melhor predictor dos proble-mas comportamentais. Assim, para o processo deidentificação de uma criança com um grau de riscopós-traumático superior, seria necessário proce-der a uma avaliação precoce do nível pré-mórbi-do de funcionalidade da família. Tal como já foidito, o facto de A.M. ter surgido tardiamente naconsulta de psicologia levou a que fosse impos-sível avaliar este nível pré-mórbido. No entanto,desde que um caso deste tipo seja seguido desdeinício, torna-se viável aceder a este tipo de infor-mação. Independentemente do facto de se possuiruma avaliação pré-mórbida, no trabalho com afamília devem ser identificados e reforçados osseus pontos fortes, encorajando os pais a utilizaractivamente as suas aptidões de confronto. Devemtambém ser ensinadas novas estratégias de reso-lução de problemas e os pais devem ser orienta-dos no desenvolvimento de novos meios eficazesde gestão de comportamentos. O objectivo prin-cipal, tanto nas famílias disfuncionais como nasque possuem uma criança com traumatismo grave,é aumentar a percepção de competência, melho-rar a auto-estima e estabelecer expectativas rea-listas congruentes com as limitações e forças dacriança (Rivana, Jaffe, Fay, Polissar, Martin, Shurt-leff, & Liao, 1993).

Tal como já vimos, o TCE pediátrico não afectaapenas a criança, mas tem um impacto em toda afamília. Começando nos pais, que se concentramnesta criança e nos cuidados a ter com todas ascrianças da família, resultando numa exclusão na-tural das suas necessidades, assim como da sua re-lação marital, tornando-se o “tempo” um privilé-gio inatingível. As consequências naturais do quefoi descrito levam à culpabilidade parental, aossentimentos de falha, a uma infelicidade gene-ralizada, e à diminuição da qualidade de vida paratodo o sistema familiar. É neste contexto que vi-mos a mãe de A.M. desenvolver uma depressãoque beneficiou de um acompanhamento psicoló-gico. Ocorrem também outro tipo de reacções noutrosmembros da família, nomeadamente nos irmãos;

estes também podem ficar confusos e sobre-pro-tectores, interagindo mais como pais do que comoirmãos. Tal como se verificou no caso do irmão deA.M., muitos sentem-se responsáveis pelo acidente,outros desejam que fossem eles os traumatizados,ainda outros podem sentir-se ressentidos, culpandoo irmão com TCE de ter alterado a vida familiar eos seus próprios sentimentos de segurança e pre-visibilidade. Também pode surgir o ciúme relati-vamente à atenção dispensada à criança aciden-tada e sentimentos ambivalentes em relação a esseirmão. Os cuidados, o tempo e a energia necessá-ria à criança com TCE, pode resultar na exclusãodas necessidades das outras crianças e estefenómeno deve ser reconhecido. O seguimento daactuação na escola dos irmãos, assim como do seudesenvolvimento em geral, constituem formas im-portantes de assegurar que o irmão com TCE nãoos impede de continuar a atingir metas no seu de-senvolvimento. Conseguir ter algum tempo de qua-lidade sem a criança traumatizada e utilizar uma es-cuta activa podem também constituir formas vá-lidas de apoio aos irmãos.

As crianças com traumatismos moderados po-dem ter mais sorte em relação à proporção dereentrada em classes normais mas, tal como ocor-reu com A.M., têm frequentemente o fardo daexpectativa irrealista de que estão já recuperadasapenas uns meses após o acidente. Nestas crian-ças, os testes de inteligência podem demonstrarpoucas dificuldades em contraste com os proble-mas que se observam na classe (Leikman, 2001).As crianças dotadas e com elevados níveis de inte-ligência, serão capazes de compensar em provasgerais de avaliação, tais como provas de inteli-gência, e parecer que se estão a desenvolver adequa-damente. Quanto mais inteligente é a criança maistempo demorará a observar-se os défices e estessó se tornam evidentes quando a escola se tornamais complexa e exigente, e quando já não é pos-sível compensar. É importante compreender queas notas obtidas nos primeiros anos de escolari-dade não nos fornecem uma medida correcta donível de afectação pelo TCE, pois durante estesanos o trabalho exigido não apela ao cérebro comoum todo.9 Partes do cérebro que podem ter ficado

242

9 Foram encontrados défices na leitura, escrita e aritmé-tica até 5 anos após TCE ligeiro/moderados (Bloom etal., 2000, citado por Leikman, 2001).

Page 9: Abordagem multidisciplinar no acompanhamento de uma ... · PDF fileDígitos e Aritmética da WISC; a Figura Complexa de Rey (cópia); a Torre de Hanoi e a Child Beha-vior Checklist

afectadas só serão necessárias mais tarde; só nofinal do 1.º ciclo do secundário início do 2.º, é quea criança tem de funcionar de forma mais inde-pendente, organizar o seu trabalho, realizar rela-tórios e escrever artigos, assim como responder aperguntas de desenvolvimento.10 Como se veri-ficou no caso de A.M., para conseguir diagnós-ticos com pouca margem de erro, o neuropsicó-logo ou psicólogo pediátrico necessita passar bas-tante tempo com a criança, pois só após muitotempo de observação das suas reacções e dos seusdesempenhos em diversos tipos de tarefas, em con-junto com a aplicação de uma série de provas etestes, pode determinar os padrões desviantes echegar a conclusões válidas sobre o grau e pro-fundidade do traumatismo.

A altura de regresso à escola é uma variável muitoimportante para o sucesso escolar. Para planeardevidamente a reentrada da criança na escola, éimperativo avaliar não apenas o seu desempenhoem provas estandardizadas (Savage, 1991); reco-menda-se que, antes de regressar à escola a cri-ança consiga funcionar num contexto escolar, es-teja preparada para seguir instruções (Clark, 1996,citado por Leikman, 2001), tenha capacidade paradar assistência a estímulos simultâneos em vá-rios sentidos (táctil, visão, audição, etc.), consigatrabalhar autonomamente durante períodos supe-riores a 30 minutos (Mira & Tyler, 1991, citadopor Leikman, 2001), possua capacidades para rea-lizar as tarefas da classe, para compreender e reterinformação, capacidade de raciocínio e expressãode ideias, de resolução de problemas, de planea-mento e de auto-controlo (Cohen, 1996, citado porLeikman, 2001). Em muitos casos, devido à fadiga,a criança terá necessidade de uma transição gra-dual para a escola, começando possivelmente poruma permanência de metade do dia, aumentandoposteriormente este período de acordo com a suasituação e evolução. As sequelas obtidas num pla-neamento desajustado da reentrada na escola sãoincalculáveis; os falhanços precoces depois de voltarpara a escola, podem levar a criança a tornar-se

cada vez mais relutante a persistir no esforço paraatingir o sucesso. Mais tarde, quando as capa-cidades cognitivas melhoram e a criança já po-deria atingir o sucesso escolar, ela pode não quererarriscar a sua auto-estima ao tentar. Uma das queixasmais frequentes das crianças com TCE e das suasfamílias é que os pares não parecem saber comointeragir com a criança e, em consequência, mo-vem-se gradualmente para novos amigos. Se aentrada de A.M. na escola tivesse sido realizadatendo em conta estes princípios, ter-se-iam evitadoalgumas situações problemáticas que foram difi-cultando o processo de recuperação.

É importante não esquecer a extrema relevân-cia de, no regresso à escola, realizar uma par-ceria entre os pais e o pessoal escolar. É impor-tante que o pessoal escolar tenha consciência queum programa de intervenção com uma criançacom TCE muda com frequência de acordo comos progressos da criança e com as respectivas ne-cessidades. Os factores escolares que mais influen-ciam os resultados da integração são a qualidadedos professores, a interacção com os pares e oambiente da própria escola. Fornecer aos paresuma forma estruturada de interagir com a criançatornando a interacção mais confortável, e algu-mas oportunidades para reconhecerem as capaci-dades da criança, assim como aquelas que foramalteradas, tem provado ser de extrema utilidade.O professor deve ser informado de que constituiuma das peças fundamentais na recuperação dacriança; para assegurar um bom ajustamento dacriança, é importante dar assistência ao professorno planeamento de acções e na organização doapoio de outros profissionais. O professor podeajudar a criança a melhorar a sua auto-estima,conseguindo que esta avalie os seus progressosno tempo e fornecendo o encorajamento para quetente novas tarefas que, apesar de desafios, po-dem ser atingidas. Para os estudantes que neces-sitam de várias terapias, o tempo na aula podeser substancialmente reduzido, tornando o pro-gresso mais difícil. Por esta razão, os terapeutasdevem consultar os professores e os técnicos paradeterminar a altura ideal para a sua intervenção,podendo sempre que possível, ser considerada ahipótese de esta ocorrer dentro da sala de aula.Foi com o objectivo de efectuar um seguimentoarticulado a nível escolar que se realizou, no iní-cio do ano lectivo de 2003/04, uma reunião naescola de A.M. onde estiveram presentes a maio-

243

10 A maturação tardia dos lobos frontais (±12 anos),em conjunto com as exigências do meio, caracterís-ticas destas idades, apelam para a importância de efec-tuar um seguimento longitudinal e uma monitorizaçãoaté à adolescência/idade adulta (Kolb & Whishaw,1990, citado por Leikman, 2001).

Page 10: Abordagem multidisciplinar no acompanhamento de uma ... · PDF fileDígitos e Aritmética da WISC; a Figura Complexa de Rey (cópia); a Torre de Hanoi e a Child Beha-vior Checklist

ria dos técnicos implicados no seu plano de recu-peração.

Podemos então concluir que mesmo um TCEmoderado produz alterações no desenvolvimentocognitivo e neurocomportamental que levam aproblemas escolares e de integração socio-fami-liar. As crianças e adolescentes que sofreram umTCE moderado a grave, deverão ser submetidasa uma avaliação neuropsicológica, tão precoce quantopossível, para a obtenção de uma caracterizaçãoinicial do quadro e estabelecimento de uma linhade base, de forma a dar resposta e a prevenir riscosde problemas futuros. Essas avaliações deverãoser detalhadas, específicas, abrangentes e perió-dicas até à idade de jovem adulto. A avaliaçãopadronizada de uma criança com TCE só com re-curso à WISC é insuficiente e pode levar a falsosdiagnósticos. Nesta avaliação, não deve ser dadademasiada ênfase aos problemas comportamen-tais em detrimento dos cognitivos. É de extremaimportância realizar o diagnóstico diferencial entreos problemas de comportamento e cognitivos sub-sequentes a lesões do TCE e outros quadros neu-rológicos como, por exemplo, o Distúrbio Hiper-activo de Défice de Atenção e a Perturbação deOposição.

A família constitui um poderoso mediador daestabilidade emocional, e é fundamental para umbom desempenho/crescimento social, cognitivo epessoal da criança. É de salientar o meio familiarcomo primordial numa boa evolução do caso, sendoo seu funcionamento pré-mórbido um elementopreditor dos problemas comportamentais da cri-ança. A reentrada na escola deverá obedecer acertos critérios e não deve ser efectuada antes dacriança ser devidamente avaliada por especialis-tas. A escola no seu todo (professores, colegas,etc.) necessita de informação/formação sobre comolidar com esta problemática e os pais devem serincluídos neste processo. Uma boa evolução passapor um processo de reabilitação cognitiva, com-portamental e social, com recurso a uma equipamulti e interdisciplinar, com vista à integraçãosocial, escolar e familiar, de forma a prevenir//minorar possíveis consequências no rendimentoescolar e no desenvolvimento geral.

Muitas vezes, as crianças com TCE sofremem silêncio, sem consciência das profundas mo-dificações que ocorreram no seu pensamento ecomportamento; a sua vida torna-se numa tenta-tiva infinita para manter o ritmo dos seus pares e

evitar envolver-se em situações problemáticas comadultos significativos. O TCE pode frequente-mente ser invisível a olho nu, o que não o tornaausente. Pode ser subtil, embora poderoso, re-sultando em grandes e profundas consequênciaspara as crianças e adolescentes. O seu poder nãodeve nunca ser subestimado.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Deaton, A. (1995). Psychological Effects of TBI: Whatto Expect and What to Do. Spring Edition of TBIChallenge.

Fisher, B. C. (2002). Traumatic Brain Injury in Childrenand Adolescents. In Current Trends in TraumaticBrain Injury, 11th Annual Seminar. Detroit, MI: Char-les N. Simkins.

Laroi, F. (2000). Treating Families of Individuals withTraumatic Brain Injury: Presentation of CasesApproch from a Structural Therapy Perspective.Journal of Family Psychotherapy, 11 (4), 69-78.

Leikman, M. (2001). Traumatic Brain Injury in Chil-dren and Adolescents. New York: Guilford Press.

Max, J. E., Castillo, S., Bokura, H., Robin, D., Lindgren,S., Smith, W., Jr., Sato, Y., & Mattheis, P. (1998).Oppositional Defiant Disorder Symptology AfterTraumatic Brain Injury: A Prospective Study. TheJournal of Nervous and Mental Disease, 186 (6),325-332.

Rivana, J., Jaffe, K., Fay, G., Polissar, N., Martin, K.,Shurtleff, H., & Liao, S. (1993). Family Functio-ning and Injury Severity as Predictors of ChildFunctioning One Year Following Traumatic BrainInjury. Archives of Physical Medicine and Rehabi-litation, 74, 1047-1055.

Rivana, J., Jaffe, K., Fay, G., Polissar, N., Martin, K.,Shurtleff, H., & Liao, S. (1993). Family Functio-ning and Children’s Academic Performance andBehavior Problems in the year Following TraumaticBrain Injury. Archives of Physical Medicine andRehabilitation, 74, 369-379.

Savage, C. R. (1991). Identification, Classification, andPlacement Issues for Students with Traumatic BrainInjuries. Journal of Head Trauma Rehabilitation, 6(1), 1-9.

Savage, C. R. (1999). The Child’s Brain: Injury and De-velopment. Wake Forest, NC: L&A Publishing/Training.

Taylor, H., Wade, S., Stancin, T., Yeates, K., Drotar,D., & Minich, N. (2002). A Prospective Study ofShort- and Long-Term Outcomes After TraumaticBrain Injury in Children: Behavior and Achieve-ment. Neuropsychology, 16 (1), 15-27.

244

Page 11: Abordagem multidisciplinar no acompanhamento de uma ... · PDF fileDígitos e Aritmética da WISC; a Figura Complexa de Rey (cópia); a Torre de Hanoi e a Child Beha-vior Checklist

Wade, S., Taylor, H., Drotar, D., Stancin, T., & Yeates,K. (1998). Family Burden and Adaptation Duringthe initial Year After Traumatic Brain Injury in Chil-dren. Pediatrics, 102 (1), 110-116.

RESUMO

Quer pela mortalidade, quer pelo número de indiví-duos que resulta de alguma forma incapacitado, o Trau-matismo Crânio-Encefálico (TCE) constitui um dosmaiores problemas de saúde pública nos EUA, Europae outros países desenvolvidos. As alterações cogniti-vas, comportamentais e emocionais são, entre as con-sequências das lesões focais ou difusas do TCE, as quecausam maior incapacidade na criança, maior desta-bilização nas suas famílias e maior dificuldade no seumeio social e escolar. Mais persistentes no tempo queos défices físicos, estas alterações interferem no desen-volvimento global, podendo condicionar a capacidadeda criança na realização das suas aprendizagens es-colares, limitar a prossecução de actividades prévias econstituir um obstáculo às relações interpessoais. Estequadro requer um longo processo de reabilitação e umacompanhamento profissional tão diversificado quantonecessário. Apresenta-se o caso A.M. com 8 anos deidade, frequentando o 2.º ano de escolaridade que, emAbril de 2002, aos 6 anos, após queda de cerca de 6 me-tros de altura, sofreu um Traumatismo Crânio-Encefá-lico (TCE) moderado. Em consequência, apresentou al-terações motoras, da linguagem, cognitivas, comporta-mentais e emocionais, que obrigaram a uma interven-ção terapêutica multidisciplinar. Durante um ano e meioforam efectuadas várias avaliações neuropsicológicase de desenvolvimento que nos permitiram descrever aprogressão do quadro clínico, incluindo as repercussõesao nível da reintegração familiar, escolar e socio-emo-cional.

Palavras-chave: Traumatismo Crânio-Encefálico (TCE),lobo frontal, alterações psico-sociais, défice de atençãopor hiperactividade, perturbação de oposição, interven-ção multi e interdisciplinar.

ABSTRACT

Traumatic Brain Injury (TBI) leads to death, long-term disabilities and constitutes a major public healthproblem in Europe, United States and other countries.Cognitive, behaviour and emotional changes as possibleconsequences of TBI are responsible for main impair-ments in children’s lives, including family disfunctions,social disabilities and school unachievement. These la-ter problems are more persistent than physical inca-pacities and influence children’s development by con-ditioning their ability to learn, to perform behavioursprevious to TBI and to develop socially adequate rela-tionships. Thus, these TBI sequels require a long rehabi-litation process, which has to include all the professio-nal help needed. A.M. is an 8 years-old child attendinda 2nd grade class who in April 2002, aged 6 years old,suffered a moderate TBI following a 6 meters heightfall. Consequently, A.M. presented motor, linguistic,cognitive, behavioural and emotional disabilities, whichrequired a multi professional intervention. During oneyear and a half, numerous neuropsychological and de-velopmental evaluations were performed allowing thedescription of the child’s clinical progression, inclu-ding the effects in family functioning, school perfor-mance, social behaviour and emotional adaptation.

Key words: Traumatic Brain Injury (TBI), psycho-social effects of TBI, Attention Deficit and Hyperacti-vity Disorder (ADHD), Oppositional Defiant Disorder(ODD), multi professional team intervention.

245