ABPN 498-1798-1-PB

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Revista da ABPN v. 7, n. 15 nov. 2014 fev. 2015, p.69-91

ENSINO DE HISTRIA E CULTURA AFRO-BRASILEIRAS NAS

ESCOLAS: RUMO AO DESVINCULAMENTO EPISTMICO1

Zelinda dos Santos Barros2

Resumo: Contemporaneamente, o reconhecimento do direito educao vem se traduzindo

tanto no aumento do nmero de indivduos negros no ambiente escolar e na reflexo sobre

questes relacionadas s desigualdades raciais na educao como em um processo de

visibilizao dos/as negros/as como sujeitos, processo que culminou na criao de dispositivos

legais que visam mudana do processo de socializao ocorrido na escola. Neste artigo,

visando reconstruir o processo de incorporao de contedos relacionados s reas de Histria e

Cultura Afro-brasileiras aos currculos escolares, fao um panorama histrico do acesso da

populao negra na educao. Concluo que a garantia do direito ao conhecimento da nossa

prpria histria um passo importante rumo ao necessrio desvinculamento epistmico.

Palavras-chave: afro-brasileiros, racismo, educao, histria, cultura.

TEACHING OF AFRO-BRAZILIAN HISTORY AND CULTURE AT SCHOOLS:

TOWARDS THE EPISTEMIC DISASSOCIATION

Abstract: Currently, the recognition of the right to education has been translating both in the

increased number of black people in the school environment and reflection on issues related to

racial inequalities in education, as well as a visibilization process of blacks as subjects, a

process that culminated in the creation of legal devices that aimed to change the socialization

process occurred at school. In this article, seeking to reconstruct the incorporating process of

content related to the areas of Afro-Brazilian History and Culture to school curriculum, I do a

historical overview of the black population access to education. I conclude that the guarantee of

the right to knowledge of our own history is an important step towards the necessary epistemic

disassociation.

Key-words: Afro-Brazilian, racism, education, history, culture.

1 Este artigo uma verso do captulo 1 - Ensino de Histria e Cultura Afro-brasileiras e Africanas e

Educao a Distncia da minha tese de Doutorado em Estudos tnicos e Africanos, defendida em 2013,

na Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas da UFBA, intitulada Implicaes da formao a distncia para o ensino de Histria e Cultura Afro-brasileiras. A pesquisa que originou a tese foi apoiada pela Fundao de Amparo Pesquisa do Estado da Bahia FAPESB. O presente artigo foi escrito com apoio da Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior, no mbito do Programa Nacional de

Ps-doutorado (PNPD/CAPES) 2 Doutora em Estudos tnicos e Africanos (CEAO/UFBA), Mestra em Cincias Sociais pela

Universidade Federal da Bahia (2003), Especialista em Educao Distncia pelo Servio Nacional de

Aprendizagem Comercial (2008) e Graduada em Cincias Sociais pela Universidade Federal da Bahia

(2000). Tem experincia na rea de Antropologia, com nfase em Gnero e Relaes Raciais, atuando

principalmente nas seguintes subreas temticas: Histria e Cultura Afro-brasileiras, Educao e Relaes

tnico-raciais, Educao a Distncia, Gnero e Feminismo Negro. Professora Assistente III da

Universidade Catlica do Salvador (UCSal). Experincia em EAD em Projetos de Formao de

Professores do MEC/SECAD (UNIAFRO, UAB/Rede de Educao para a Diversidade), tendo como

parceira a Universidade Federal da Bahia (UFBA). Experincia em Design Instrucional e Tutoria Online

na plataforma Moodle. Coordenou o primeiro Curso de Formao de Professoras/es para o Ensino de

Histria e Cultura Afro-brasileiras a distncia da UFBA. Consultora em Educao a Distncia, Educao

e Diversidade.

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ENSEIGNE DE HISTOIRE ET CULTURE AFRO-BRSILIENNES DANS LES

COLES: EN DIRECTION AU DSATTACHEMENT PISTMIQUE

Rsum: Actuellement, la reconnaissance du droit l'ducation a t de traduire la fois

l'augmentation du nombre de Noirs dans l'environnement scolaire et de rflexion sur les

questions lies aux ingalits raciales dans l'enseignement comme un processus de visualisation

de noir comme sujet, un processus qui a abouti la cration de mcanismes juridiques qui visent

changer le processus de socialisation se est produite l'cole. Dans cet article, visant

reconstruire le contenu du processus de fusion lis aux domaines de l'histoire afro-brsilienne et

les programmes scolaires, faire un survol historique de l'accs de la population noire

l'ducation. Je conclus que la garantie du droit la connaissance de notre propre histoire est une

tape importante vers la dissociation pistmique ncessaire.

Mots-cls: afro-Brsiliens, racism, ducation, histoire, culture.

ENSEANZA DE HISTORIA Y CULTURA AFRO-BRASILEA EN LAS ESCUELAS

RUMBO AL CAMBIO EPISTMICO

Resumen: En la contemporaneidad, el reconocimiento del derecho a la educacin se ha

traducido tanto por el aumento del nmero de individuos negros en el ambiente escolar y en la

reflexin acerca de cuestiones relacionadas a las desigualdades raciales en la educacin como

un proceso de visibilizacin de los negros-negras como sujetos, proceso que culmin en la

creacin de dispositivos legales que visan el cambio del proceso de socializacin ocurrido en la

escuela.

Este artculo, tiene como objetivo reconstruir el proceso de incorporacin de contenidos

relacionados en las reas de Historia y Cultura Afro-Brasileas a los currculos escolares, hago

un panorama histrico del acceso de la poblacin negra en la educacin. Mi conclusin es que la

garanta del derecho al conocimiento de nuestra propia historia es muy importante rumbo al

necesario cambio epistmico.

Palabras claves: Afro-brasileos, Racismo, Educacin, Historia, Cultura

Contemporaneamente, o reconhecimento do direito educao vem se

traduzindo tanto no aumento do nmero de indivduos negros no ambiente escolar e na

reflexo sobre questes relacionadas s desigualdades raciais na educao como em um

processo de visibilizao dos/as negros/as como sujeitos, que culminou na criao de

dispositivos legais que visam mudana do processo de socializao ocorrido na escola.

Neste artigo, objetivando reconstruir o processo de incorporao de contedos

relacionados s reas de Histria e Cultura Afro-brasileiras aos currculos escolares,

trao um panorama histrico do acesso da populao negra educao3.

O sculo XIX tomado como ponto de partida desta breve digresso porque foi:

a) o perodo em que o Brasil torna-se independente de Portugal; b) o momento em que

ocorrem as primeiras tentativas de organizao de um sistema nacional de educao

3 Como um dos propsitos deste artigo traar um panorama da insero da populao negra na educao

formal, no examinarei pormenorizadamente as iniciativas educacionais promovidas por indivduos e

organizaes negros, que consistem em alternativas situao de excluso educacional.

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pblica, concretizada no sculo XX, e c) quando o poder pblico estava

...progressivamente assumindo tarefas que at ento estavam vinculadas ao mundo

privado (Fonseca, 2001, p. 139), sendo a educao da populao negra uma destas

tarefas.

DA (LENTA) INCLUSO DE INDIVDUOS NEGROS REIVINDICAO DE

SABERES INVISIBILIZADOS NA EDUCAO FORMAL

Segundo Dermeval Saviani (2010), a Lei de 15 de outubro de 18274, primeira

Lei educacional do Brasil independente, teria criado um sistema nacional de instruo

pblica, caso a disseminao de escolas elementares tivesse se concretizado. Trata-se de

um perodo em que a educao escolar era para poucos, mesmo sendo brancos. Quanto

aos negros, a Constituio de 1824 considerava ingnuos e libertos cidados

brasileiros.5 Esta cidadania, no entanto, era limitada, pois os libertos no tinham direito

ao voto.

Manuela Carneiro da Cunha (2012) aponta que, desde a Independncia, a

excluso dos negros (escravos e libertos) foi cogitada por correntes de opinio das

camadas dominantes como forma de viabilizar a criao da nao, dar a ela legitimidade

no plano territorial e ideolgico e garantir sua homogeneidade fsica e civil. A

homogeneidade civil, proporcionada pelo fim da escravido, e a fundao de um pas de

homens livres dependeria da homogeneidade fsica, garantida pela excluso dos negros.

Tal excluso ocorria no apenas na dimenso simblica, com a exaltao da

continuidade genealgica com os indgenas, ou atravs da restrio dos negros a

espaos especficos, como o trabalho. Esse projeto, parcialmente bem sucedido, tambm

pressupunha a deportao de libertos, principalmente os africanos, para a frica.

No momento em que os libertos, principalmente os africanos6, eram temidos

em virtude do aumento da ocorrncia de rebelies, proporcionar um amplo acesso

4 Esta Lei determinava a criao de escolas de primeiras letras em todas as cidades, vilas ou povoados

mais populosos. 5 O artigo 179, XIII, da Constituio do Imprio determinava: A Lei ser igual para todos, quer proteja,

quer castigue, e recompensar em proporo do merecimento de cada um. No entanto, a escravido somente foi abolida em 1888, o que indica que a igualdade mencionada no documento era assegurada a

indivduos especficos. 6 Os libertos africanos no podiam votar e muito menos ser votados, no podiam fazer parte do Exrcito,

da Marinha ou da Guarda Nacional, nem ingressar em ordens religiosas. At mesmo a circulao no

pas era fortemente controlada (Cunha, 2012).

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educao seria uma forma de potencializar a sedio e perturbar o gozo do direito de

propriedade dos senhores sobre escravizados.

Em Escravido no Brasil, Perdigo Malheiro (1866), jurisconsulto e

historiador, evidencia a preocupao com o destino educacional dos filhos de

escravizadas nascidos a partir da Lei do Ventre Livre, promulgada em 1871. Essa Lei

libertava os filhos nascidos de escravizadas e rompia com o princpio partus sequitur

ventrem (o parto deve seguir a sorte do ventre). Aqui, aparentemente ...educao e

emancipao eram vinculadas como parte do processo geral de preparao dessas

crianas para o exerccio da liberdade, mas, subjazia a esta preocupao ...a

tentativa de minimizar o impacto que o fim do trabalho escravo poderia gerar no perfil

da sociedade brasileira, que receberia um nmero significativo de indivduos

originrios do cativeiro na condio de cidados livres (Fonseca, 2001, p. 13). A

necessidade de manuteno da ordem se insinuava nesta tentativa.

A Lei do Ventre Livre no obrigou os senhores das mes dos ingnuos7 a

educarem essas crianas, pois determinava apenas a criao daquelas com quem os

senhores decidissem permanecer aps o perodo obrigatrio correspondente aos

primeiros oito anos de idade. Caberia ao poder pblico o acolhimento dos libertos

entregues pelos senhores de suas mes aps completarem 21 anos de idade.

Em 1878, os ingnuos foram admitidos nas escolas pblicas de Salvador, mas

s em 1883 esta medida foi adotada em outros pontos da provncia, por fora da

Lei do Ventre Livre. Os escravizados, entretanto, continuaram impedidos de

frequentar a escola pblica. A partir de 1879, foram criadas associaes de

recolhimento e educao de ingnuos. (Barros et. ali., 2010, p. 32)

Em virtude da predominncia de interesses contrrios ao acesso da populao

negra instituio escolar, ...essa poltica no teve impacto estrutural no modelo de

abolio que terminou por se consolidar em 1888 (Fonseca, 2001, p. 34). Ao

investigar famlias negras no sul da Bahia de 1850 a 1889, Isabel Reis (2007, p. 278)

constatou a inexistncia de encaminhamentos prticos, por parte do Estado, no

sentido de educar e garantir a profissionalizao dos ingnuos. Como argumenta

Cynthia Veiga (2007), devido ao preconceito com que as elites viam o restante da

populao, pobres e negros sequer eram considerados aptos ao desenvolvimento de

hbitos necessrios civilizao, como a Leitura.

7 Filhos de mulheres escravizadas, nascidos livres.

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Por outro lado, Veiga (2008, p. 503-504) tambm afirma que a escola pblica

elementar do sculo XIX foi essencialmente destinada a crianas pobres, negras e

mestias, enquanto que as famlias mais abastadas educavam seus filhos recorrendo a

aulas e professores particulares8. O funcionamento precrio das instituies escolares,

aliado s condies de vida da populao atendida no perodo, que resultava em

fracasso escolar, teria contribudo para o reforo da representao da populao negra e

pobre como menos educvel. Assim, observa-se a tenso entre a demanda por

homogeneizao cultural no projeto de nao e a representao da populao pobre,

mestia e negra, como refratria civilizao.

No final do sculo XIX, perodo em que se percebe nitidamente a influncia de

teorias racistas forjadas da Europa, foi produzido um discurso baseado na negao da

humanidade dos negros e no apelo a argumentos cientficos para a justificao de sua

subalternidade. Neste perodo, percebe-se que a educao dos recm-libertos ...tinha

uma conotao especfica, pois era pensada como treinamento para o trabalho. O

intuito era fazer com que a mo de obra fosse disciplinada, condicionada ao trabalho

sem que fosse necessrio o uso da fora (Barros et. ali., 2010, p. 33).

Com o advento da Primeira Repblica, mesmo com a priorizao da educao

nos discursos pblicos, o aumento do nmero de indivduos negros na escola no

implicou a reformulao do modelo educacional de matriz eurocntrica que o

fundamentava. O conceito de incluso excludente, de Jaci Menezes (2006, 2007), nos

permite entender como ocorreu a presena negra na esfera educativa formal neste

perodo.

a forma de incluso determinou a excluso. J no mais a excluso absoluta,

como no tempo da escravido, em que o escravo excludo at de sua condio

humana - coisa, mercadoria. Mas um deixar margem. Ao estabelecimento de

um critrio "cultural" para ingressar na cidadania - o critrio para a

incorporao chegar "civilizao", via Leitura - que devia ser obtido no

mercado, somaram-se as dificuldades da luta pela sobrevivncia e aos percalos

para se re-construir como grupo na sociedade mais ampla (formar famlia, criar

filhos). (Menezes, 2007, p. 152 grifo da autora)

Havia indivduos negros escolarizados ou inseridos no espao escolar mesmo

antes da abolio, como apontam Adriana Silva (2006) e Cynthia Veiga (2007, 2008),

mas isto no significa que foram includos atravs da educao. A permanncia na

8 Neste perodo, apenas a educao dos meninos era obrigatria. A obrigatoriedade do ensino de meninas

ocorreu apenas a partir de 1882 (Veiga, 2008).

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escola enfrentava obstculos de vrias ordens: a condio de pobreza da maioria dos

alunos, que dificultava o cumprimento da exigncia de fardamento e material escolar9, o

despreparo dos professores, a falta de infraestrutura adequada e o trabalho infantil, que

impediam a frequncia regular s aulas (Veiga, 2007; Abreu, 2011). Em que pesem os

obstculos, considero que o principal fator que impede que a escolarizao da

populao negra neste perodo possa ser entendida como acesso educao a ausncia

de contedos que contemplem a histria e a cultura da populao negra, recm

promovida condio de cidad.

O manual didtico Lies de Histria do Brasil, adotado nas escolas do ensino

primrio de 1861 a 1924, de autoria de Joaquim Manoel de Macedo (1905), traz um

exemplo de como, na histria oficial produzida e consumida nos estabelecimentos de

ensino, a meno s contribuies da populao negra sociedade eram invisibilizadas.

Em sessenta e trs lies, os negros so mencionados em apenas duas: a lio XXV -

Destruio dos Palmares, que tratava da destruio do quilombo dos Palmares, o

grande feito dos paulistas comandados por Domingos Jorge Velho, e a lio XLVIII

A abolio e a Repblica, que tratava da abolio da instituio maldita, a escravido,

reputada pelo autor como uma reforma social sem derramamento de sangue, entre

expanses de jbilo intenso e fraternal (Macedo, 1905, p. 428).

A atuao de homens e mulheres negros/as como docentes, tambm

identificada desde o perodo colonial, encontrou como obstculo, na Repblica, a

representao do/a negro/a como intelectualmente inferior ao branco e menos afeito/a

ao trabalho intelectual (Muller, 2000).

Em um momento crtico da construo da nacionalidade, era imprescindvel

que os professores e, particularmente, as professoras (que representavam 50% dos

profissionais do magistrio em 1906), assumissem o papel de construtores da nao e

personificassem a ptria junto aos seus alunos atravs do exemplo de rigor moral e

cvico (Ibid.). As/os negras/os poderiam ser, no mximo, moldadas/os pela educao

ministrada nas escolas, mas no teriam condies de participar como docentes da

...grande obra de redeno nacional atravs da escola (Marques, 1994, p. 112).

9 Segundo o artigo 2, pargrafo 3 do decreto 7.247, de 19 de abril de 1879 - a chamada Reforma

Lencio de Carvalho - os estudantes pobres deveriam a receber vesturio e material didtico necessrios

ao estudo, patrocinados pelo Conselho Diretor da Instruo Pblica. Por outro lado, a indigncia seria motivo de veto ao acesso escolar, assim como a inabilidade fsica ou moral (pargrafo 5).

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As poucas mulheres negras que conseguiram romper as barreiras e acessar

como docentes o espao escolar, eram identificadas com o uso de termos como parda,

escura, morena, no com os termos preta ou negra, a fim de marcar o lugar social

diferenciado ocupado por elas10

. No entanto, com a popularizao de ideias e prticas

eugnicas, a partir da dcada de 192011

, tornava-se quase impossvel o ingresso de

moas escuras ao magistrio pblico carioca (Muller, 2006, p. 9).

Em tal situao de excluso educacional, alternativas foram criadas pelos/as

prprios/as negros/as atravs da fundao de instituies pedaggicas prprias

(Menezes, 2007). Iniciativas de cunho educativo visando transformao das relaes

raciais podem ser identificadas na chamada imprensa negra, surgida no final do

sculo XIX e incio do sculo XX, assim como na Frente Negra Brasileira, partido

criado em 1931, que manteve uma escola noturna e props a criao do Liceu Zumbi

dos Palmares, voltado ao ensino primrio, ginasial, secundrio e comercial de seus

scios.

No quadro de excluso dos saberes de matriz no europeia da educao formal,

a noo de democracia racial, debatida desde o sculo XIX12

, e a ideologia da

mestiagem, fortalecida na dcada de 1930 pela teoria de Gilberto Freyre e

transformada em ideologia estatal por Getlio Vargas, no provocaram mudana

significativa13

. Baseada nos argumentos de que no h forte hostilidade entre os grupos

raciais no Brasil, de que a classe e no a raa responsvel pela atribuio de status e

oportunidades diferenciados aos indivduos e de que o grau de miscigenao no pas

impede a distino entre quem branco e quem negro, o mito da democracia racial fez

10

No Brasil, segundo Abreu (2011, p. 241), ...desde o censo demogrfico, realizado em 1872, eram trs

classificaes para identificar os tipos raciais: brancos, pretos e pardos. A partir de 1940, tornou-se

uma nova classificao a amarela para incluir os japoneses e seus descendentes. O censo de 1990/91 lembrou dos indgenas, contemplando assim cinco cores bsicas. A despeito da classificao oficial, a populao normalmente associava negro a escravo, recorrendo a termos classificatrios

alternativos como moreno/a, escuro/a, etc. de forma a expressar sua integrao sociedade. 11

Criada em 1889, a inspeo mdica escolar no Brasil consistia na verificao da higiene dos prdios

escolares e da existncia de casos de molstias contagiosas. Em So Paulo, a partir do decreto de n

2.141, de 14 de novembro de 1911, os alunos, individualmente, tambm passaram a ser examinados.

Com a Lei n 1.541, de 30 de dezembro de 1916, mdicos e professores passaram a interagir no servio

de inspeo sanitria (Marques, 1994). 12

Segundo Andrews (1997, p. 99): Escritores e intelectuais negros vinham debatendo a democracia

racial desde os anos 1880, quando o escritor mulato Lvio de Castro havia antecipado os argumentos

de Freyre afirmando o impulso democrtico natural e o esprito democrtico da interao racial brasileira. Apesar da anterioridade da ideia, a expresso democracia racial, erroneamente atribuda a Gilberto Freyre, somente surgiu nas Cincias Sociais na dcada de 1940, introduzido por Artur Ramos

(vide Guimares, doc. www, p. 1). 13

Ao tratar da ideia de democracia racial, Florestan Fernandes (2005 [1972]) argumenta que maior

miscigenao e maior visibilidade do negro no significam maior participao social.

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com que o conhecimento crtico produzido sobre as relaes tnico-raciais

permanecesse margem da escola (Fernandes, 2005 [1972]). Pelo menos at a dcada

de 1950, predominou a representao do Brasil em estudos sociolgicos clssicos como

uma sociedade racialmente harmoniosa, contraponto dos Estados Unidos (Pierson,

1971).

Desempenhando um papel ativo em nossa sociedade, a ideologia da

mestiagem e a noo de democracia racial so dispositivos ideolgicos (Matta, 1981)

cuja fora ainda pode ser sentida atravs das hierarquias que se mantm, apesar de,

contemporaneamente, serem questionadas. Mesmo tendo perdido o domnio exercido

em dcadas passadas, ...relatos de morte da ideologia so muito exagerados, uma

vez que ...a democracia racial e seu sombrio lado inferior de racismo aberto e

irrefletido permanecem em grande evidncia na sociedade brasileira, tanto nas elites

quanto nos nveis populares (Andrews, 1997, p. 105-106). A ideologia racista, seja em

sua forma aberta ou dissimulada, tem sido historicamente alimentada por segmentos

expressivos da intelectualidade brasileira, e reverbera nas instituies educacionais de

distintos nveis.

Na Bahia, a fundao da Universidade da Bahia (atual Universidade Federal da

Bahia), em 8 de abril de 1946, que congregava as faculdades de Medicina, de

Engenharia e de Direito, j existentes, e a recm criada Faculdade de Filosofia, Cincias

e Letras, poderia ter viabilizado o ingresso de negros ao ensino superior, no fosse este

um reduto das classes mdia e alta baiana, majoritariamente brancas. As principais

vocaes da Faculdade de Filosofia, fundada em 1941, eram: integrar a universidade,

promover a pesquisa e formar professores de nvel secundrio - o atual nvel mdio,

tendo nas ideias integralistas do seu fundador, o professor Isaias Alves, o fundamento

ideolgico de sua misso institucional (Passos, 1999). Seu corpo discente era

majoritariamente feminino e refletia a distribuio de mulheres no corpo docente

primrio baiano, que representavam 93,8% do total de 3.180 docentes do ensino

primrio do Estado. No que tange s desigualdades raciais e de gnero, estas

permaneceram intocadas14

.

14

Sobre as representaes de gnero na Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras da Universidade da

Bahia, das dcadas de 1940 a 1970, ver Passos, 1999. Sobre as desigualdades raciais e de gnero no

mesmo perodo, na dcada de 1970, ver Barros, 2000.

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Na Bahia, as linhas demarcatrias que impediam (e ainda impedem) a ascenso

do negro fizeram com que as mulheres negras tivessem menor participao em

instituies de ensino superior, comparativamente s mulheres de outra

raa/etnia. Entretanto, ao ingressarem na Faculdade de Filosofia, essas mulheres

no encontravam na instituio um ambiente que confirmasse a existncia de

preconceito especfico contra o negro e passavam a compartilhar a ideia de que

a diminuio do preconceito ocorreria atravs da ascenso social do negro, via

escolarizao. (Barros, 2000)

Com a consolidao da oferta educacional num sistema pblico, na dcada de

1960, a Lei de Diretrizes e Bases da Educao, em sua primeira verso, previu ...a

condenao a qualquer tratamento desigual por motivo de convico filosfica, poltica

ou religiosa, bem como a quaisquer preconceitos de classe ou de raa. (BRASIL,

1961, Ttulo I Dos fins da educao, inciso g). Segundo Lucimar Rosa Dias (2005),

este foi um recurso discursivo que no rompeu com a invisibilidade da populao negra

na escola, pois no foram promovidas polticas pblicas que contemplassem este

segmento. Como argumenta Jos Silvrio Baia Horta (1998), este tambm foi um

perodo em que a obrigatoriedade da oferta de ensino gratuito por parte do Estado foi

afirmada explicitamente num documento pblico, a Emenda Constitucional de 1969.

At ento, na prtica, o conceito de obrigatoriedade escolar nem implicava o dever do

Estado de prover a educao aos indivduos nem previa sanes em caso de no

atendimento demanda por educao.

Por outro lado, a dcada de 1960 foi um momento histrico que contribuiu, de

forma significativa, para a formao de novos discursos sobre africanos e afro-

brasileiros, pois testemunhou a emergncia das naes africanas recm-independentes e

imps, com maior vigor, a tarefa de reconstituir a histria da frica, partindo de novos

pressupostos. Os pesquisadores dedicados ao tema, a publicao de revistas

especializadas e os congressos ento realizados eram indcios do que Joildo Athayde

(1965) chamou de queda do mito do selvagem negro que implicaria o incio da

mudana representacional sobre a frica Negra. Nesse momento, ao reconhecimento de

que a frica sofrera influncias externas somou-se o fato de que ela tambm

enegreceu as influncias (expresso do historiador Mody Cissoko apud Athayde,

ibid.).

A utilizao das artes (msica, cinema) pelos movimentos negros, na dcada de

1970, como meios de expresso de demandas polticas serviu para potencializar a

disseminao de reivindicaes de base multiculturalista. Na academia, os estudos

sociolgicos passaram a enfatizar aspectos estruturais das desigualdades raciais no

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Brasil, em oposio ao conjunto de estudos que buscava entender as manifestaes de

preconceito e de discriminao raciais apenas nas relaes interpessoais (Figueiredo

& Grosfoguel, 2009, p. 224) e identificava seus efeitos na mobilidade ascendente e

casamento, indo tambm de encontro a tese formulada por Florestan Fernandes de que

as desigualdades raciais seriam resqucios do passado escravista.

Apesar dos esforos de intelectuais e do movimento social negro, na educao

bsica, o conhecimento construdo sobre o continente africano permaneceu invisvel,

pelo menos, at a dcada de 1980. A ausncia ou abordagem estereotipada da Histria e

Cultura Afro-brasileiras e Africanas nos currculos escolares foi favorecida pelo silncio

da universidade no que se refere excluso educacional das populaes negra e

indgena, fenmeno que Jos Jorge Carvalho (2003, 2006) denomina racismo

acadmico15

. Alex Ratts (2006), ao visibilizar a trajetria da intelectual negra Beatriz

Nascimento, aponta para um problema relacionado a tal racismo:

a dificuldade do reconhecimento do sujeito negro, mulher ou homem, como

produtor de pensamento por parte de setores hegemnicos da academia

brasileira, permeveis, portanto, aos mecanismos da invisibilidade negra semelhantes em outros mbitos sociais. (Ratts, op. cit., p. 31)

De acordo com ngela Figueiredo e Ramon Grosfoguel (2009), esta

dificuldade de reconhecimento de homens e mulheres negros como sujeitos de

conhecimento pode ser identificada desde o perodo inicial de estruturao do campo

dos Estudos das Relaes Raciais, cuja constituio antecede a institucionalizao da

Sociologia no Brasil. Com estudos realizados predominantemente por homens brancos

ou mestios claros, os pesquisadores negligenciaram a ausncia de pesquisadores

negros num campo que estava principalmente voltado para a compreenso da

populao afro-brasileira. (Figueiredo & Grosfoguel, op. cit., p. 227).

Na Universidade Federal da Bahia, o Centro de Estudos Afro-Orientais, criado

em 1959 pelo intelectual portugus George Agostinho da Silva, desde a fundao, vem

desenvolvendo aes educativas na rea dos Estudos tnicos e Africanos, porm,

mesmo com o advento da Lei n. 10.639/03, pelo menos at 2010, no se verificava a

15

Ao analisar o posicionamento de acadmicos/as brancos/as contra as cotas, Carvalho (2006, p. 10)

defende que o ponto comum entre o posicionamento de racistas e antirracistas universalistas a rejeio

ao protesto negro antirracista que reivindica a incluso racializada: O racismo explcito que estimulou a discriminao racial e conduziu excluso apoiou-se no patrulhamento universalista dos acadmicos

que rejeitaram a racializao categorial do espao social.

79


incluso de disciplinas obrigatrias relacionadas Histria e Cultura Afro-brasileiras e

Africanas nos currculos dos cursos de licenciatura da Universidade, o que sintomtico

do silncio referido por Carvalho (op. cit.)16

. Mesmo com o surgimento do que Alex

Ratts (2011) denomina movimento negro de base acadmica17, na dcada de 1970, e o

aumento do nmero de pesquisadores/as negros/as desenvolvendo estudos sobre

Educao e Relaes tnico-raciais, processo intensificado a partir da dcada de 1990,

ainda no foram induzidas mudanas profundas na estrutura de ensino da instituio.

Em que pese o silncio da universidade diante da demanda por mudana nos

currculos, durante muito tempo a Bahia se destacou no cenrio nacional pela promoo

de aes educativas relacionadas ao ensino de Histria e Cultura Afro-brasileiras e

Africanas. A Constituio do Estado da Bahia, promulgada em 05 de outubro de 1989,

no captulo XXIII Do Negro, determina:

Art. 288 - A rede estadual de ensino e os cursos de formao e aperfeioamento

do servidor pblico civil e militar incluiro em seus programas disciplina que

valorize a participao do negro na formao histrica da sociedade brasileira. ...

Art. 290 - O Dia 20 de novembro ser considerado, no calendrio oficial, como

Dia da Conscincia Negra. (Bahia, 1989)

Mesmo antes da promulgao da LDB de 1996, iniciativas no sentido de

incorporao da temtica aos currculos escolares podem ser identificadas, mas o

acolhimento, ainda que parcial, de propostas do movimento social negro por parte do

poder pblico relativamente recente. No final da dcada de 1970, em sua Carta de

Princpios, o Movimento Negro Unificado props a incorporao da Histria da frica

nos currculos de ensino das escolas brasileiras.

Formulada no final da dcada de 1970 pelo Departamento de Cincias Sociais

do Ncleo Cultural Afro-brasileiro de Salvador, a Pedagogia Intertnica props a

realizao de estudos e proposio de aes educativas como forma de combater o

preconceito racial. Segundo Manoel Cruz, socilogo que coordenou a pesquisa que deu

origem Pedagogia Intertnica,

16

Na universidade, a persistncia histrica da sub-representao de negras e negros entre os corpos

docentes e discentes no meio acadmico favoreceu o predomnio de teses conservadoras sobre a

incluso destes contingentes, reforadas ao longo do debate ocorrido nas dcadas de 1990 e 2000,

quando foram reivindicadas polticas de ao afirmativa. 17

Ratts (2011, p. 31) afirma que este movimento se sintoniza com as outras organizaes no enunciado

da existncia do racismo no Brasil, no repensar a nao em plena ditadura militar, e pela busca de

uma narrativa prpria, de histrias e memrias negras.

80


Ela se baseia na concepo de uma linguagem total e pretende utilizar os meios

de comunicao social, o teatro, palestras, debates nas escolas e comunidades, a

fim de explicar as causas e os efeitos negativos do preconceito racial, do

racismo e do etnocentrismo e, assim, criar uma nova escola que prestigie os

valores culturais dos grupos tnicos dominados (Cruz, 1987, p. 74)

Esta proposta foi alm da reivindicao de ampliao do nmero de indivduos

negros e indgenas na escola, pois incidiu sobre a modificao do currculo escolar,

considerado omisso no que se refere abordagem destas culturas. Apesar da

implementao em duas escolas pblicas de Salvador, na dcada de 1980, a proposta foi

descontinuada por falta de recursos.

Em 1982, o Centro de Estudos Afro-Orientais (UFBA), promoveu o curso

Introduo aos Estudos Africanos, primeiro curso voltado formao de docentes da

rede pblica de ensino na rea. Respondendo a solicitao do CEAO, feita em 1983, e

do Movimento Negro Unificado, em 1984, o Conselho Estadual de Educao aprovou

parecer que recomendava a incluso da disciplina Introduo aos Estudos Africanos

nos currculos de escolas de 1 e 2 graus, em 1 de abril de 1984, e o Secretrio de

Educao baixou portaria determinando que isso ocorresse (Santos, 1987).

Com a promulgao da Constituio de 1988, iniciou-se um processo em que,

paulatinamente, as demandas por educao realizadas h dcadas pelo movimento

social negro comearam a ser consideradas pelo Estado brasileiro, o que sinaliza para

uma mudana, em longo prazo, no entendimento do papel da frica na construo da

sociedade brasileira (Oliveira e Candau, 2010). Mrcia Lima (2010) aponta a

criminalizao do racismo, o direito de posse de terra s comunidades quilombolas e a

criao da Fundao Palmares como aes de reconhecimento histrico e cultural da

populao negra garantidas pela Constituio de 1988.

A Marcha Zumbi de Palmares contra o Racismo, pela Cidadania e a Vida, em

1995, um dos principais movimentos de luta pelo reconhecimento, por parte do Estado,

da existncia de racismo e discriminao no pas e garantia de direitos populao

negra, ganhou o reforo da Conferncia Mundial contra o Racismo, a Discriminao

Racial e a Xenofobia e Formas Correlatas de Intolerncia, ocorrida em Durban, frica

do Sul, no ano de 2001. As demandas por aes na educao e em outras reas

importantes para o enfrentamento s desigualdades raciais passaram a ter maior

destaque na agenda do Governo. Em 13 de maio de 2002, foi publicado o Decreto n.

81


4.228, que instituiu o Programa Nacional de Aes Afirmativas, coordenado pela

Secretaria de Estado dos Direitos Humanos do Ministrio da Justia.

A partir de 2003, a relao de proximidade do Movimento Negro com o

Estado, iniciada na dcada de 1990, se estreitou: ...o movimento negro passa a ser um

ator envolvido na formulao de polticas, ocupando cargos e como representante da

sociedade civil nos espaos de controle social institudos pelo governo Lula (Lima,

op. cit., p. 82). Na rea da educao, isto significou a promoo de aes voltadas ao

reconhecimento cultural e valorizao da populao negra, sendo as principais delas a

promulgao da Lei n. 10.639/0318

, que determina a obrigatoriedade do ensino de

Histria e Cultura Afro-brasileiras e Africanas no currculo oficial da rede de ensino, a

criao do Programa Universidade para Todos (Prouni) e o apoio s aes afirmativas

nas instituies pblicas de ensino superior.

Alm das lutas histricas do movimento social negro pela melhoria das

condies de vida da populao negra, as conjunturas polticas e socioeconmicas do

Brasil, aliadas presso internacional pela melhoria dos ndices sociais do pas,

verificada a partir do incio do processo de redemocratizao, propiciaram a criao de

um ambiente poltico propcio adoo, pelo Governo Federal, de aes afirmativas,

que so

....um conjunto de polticas pblicas e privadas de carter compulsrio,

facultativo ou voluntrio, concebidas com vistas ao combate discriminao

racial, de gnero, por deficincia fsica e de origem nacional, bem como para

corrigir ou mitigar os efeitos presentes da discriminao praticada no passado,

tendo por objetivo a concretizao do ideal de efetiva igualdade de acesso a

bens fundamentais como a educao e o emprego (Gomes, 2005, doc. www).

Na educao, alm das aes afirmativas, destinadas ao apoio, ingresso e

permanncia de estudantes oriundos de segmentos socialmente vulnerveis na

universidade, podemos apontar a Lei de Diretrizes e Bases da Educao (LDB),

especialmente no seu artigo 26-A, como indutora de outra poltica de diversidade19

. A

introduo do ensino de Histria e Cultura Afro-brasileiras e Africanas nos currculos

escolares, se efetivada conforme previsto na Lei, poder contribuir para a construo de

18

A Lei n. 10.639/03 acrescenta os artigos 26A e 76B Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que

estabelece as diretrizes e bases da educao nacional. 19

A mudana induzida pela Lei de Diretrizes e Bases de 1996 no pode ser considerada, stricto sensu,

como uma ao afirmativa devido ao carter permanente da mesma. As aes afirmativas tm durao

temporria.

82


um novo olhar sobre frica e africanos na dispora e para a efetivao da possibilidade

de existncia igualitria para negros, negras e outros segmentos sociais.

Depois das cotas no ensino pblico, a promulgao da Lei n. 10.639/03, que

altera a Lei n 9.394, de 20 de dezembro de 1996 (LDB), pode ser considerada ...o

mote mais importante do movimento negro por ser considerada um marco normativo

importante em termos de poltica de diversidade (Lima, op. cit., p. 85). A Lei permite

que sejam abertos ...canais profcuos de chegada Universidade de saberes

produzidos no s pelo movimento negro e pela comunidade negra em geral, mas,

sobretudo, pela juventude negra (Gomes, 2011, p. 138).

De modo anlogo disputa simblica em torno da herana cultural negra no

Brasil, abordada por Joclio Teles dos Santos (2005), a determinao legal da mudana

dos currculos escolares, no sentido de que sejam incorporados novos contedos, pode

ser interpretada como um desdobramento da luta entre classificaes em torno das

identidades, que, at ento, era marcada pela hegemonia de um modelo que operava no

sentido de manter fora do processo de produo do conhecimento produzido por

coletividades negras. Trata-se de um desafio ao que Boaventura Sousa Santos (2007, p.

25) chama de razo metonmica, tipo de racionalidade que toma a parte (a cultura

eurocentrada), como o todo, formado por distintas culturas e racionalidades.

Na luta pela narrativa do passado, so reivindicados novos significados para a

histria do Brasil (Rios, 2012). Chama-se ateno para a necessria reflexo sobre o

processo de hegemonia cultural, atentando para o fato de que a existncia de culturas

hegemnicas e no hegemnicas parte de um processo histrico em que

potencialidades culturais so impedidas de serem desenvolvidas em virtude da

emergncia e manuteno de uma determinada cultura como superior. Assim, mesmo se

consideradas potencialmente iguais, o processo histrico de construo de memria,

constitudo por relaes de poder, faz com que ocorra a emergncia de uma cultura

como superior a outras, no havendo nelas, entretanto, valor intrnseco e

inquestionvel20

.

20

A este respeito, a discusso de Boaventura de Sousa Santos (2007) acerca do epistemicdio (morte de

conhecimentos alternativos) e sua proposta de criao de uma nova concepo de dignidade humana a

partir da epistemologia do Sul particularmente interessante.

83


Com a regulamentao da Lei de Diretrizes e Bases da Educao de 199621

,

por meio das Leis n 10.639/03 e n 11.645/08, vislumbrou-se a possibilidade de reviso

dos currculos escolares, incorporando contedos at ento excludos ou pouco

explorados no processo educativo formal: Histria e Cultura Afro-brasileiras e

Africanas, Histria e Cultura Indgenas. Apesar destas determinaes legais, no se

pode dizer que as mesmas efetivaram e/ou induziram polticas pblicas, como

observou Nilma Lino Gomes (2009, p. 48). Diante da escassez de profissionais

formados nesta rea, surgiu a questo: de que forma os contedos relacionados

Histria e Cultura Afro-brasileiras e Africanas podem ser abordados?

A variedade de posies sobre histria e cultura negras, que, para muitos,

devem ser sempre entendidas no plural, somam-se a profuso semntica dos termos

utilizados e dos fundamentos terico-polticos das propostas de interveno. Assim, a

formao de docentes para a transformao de discursos e prticas que fomentam a

desigualdade tnico-racial, tanto pode ter como princpio a perspectiva multicultural,

que prope que a luta pelo direito diferena deve passar primeiro pela

desconstruo da auto-imagem negativa atribuda pelo colonizador a diferentes povos

(Moehlecke, 2009, p. 464) como a perspectiva intercultural ou multiculturalismo

interativo (Candau, 2010), que

prope novas estratgias e relao entre sujeitos e entre grupos diferentes.

Busca promover a construo de identidades sociais e o reconhecimento das

diferenas culturais. Mas, ao mesmo tempo, procura sustentar a relao crtica e

solidria entre elas (Fleuri, 2001, p. 49).

O multiculturalismo, definido por Walter Mignolo (2008, p. 316) como uma

inveno do Estado-nacional nos EUA para conceder cultura enquanto mantm

epistemologia, representa um dos desdobramentos das lutas por direitos civis da

dcada de 1960, que ampliaram o espectro dos modelos de gesto das diferenas

culturais. Carlos Gimenez Romero (2003) concebe o multiculturalismo e a

multiculturalidade como verses ou modalidades de uma mesma ideia: a pluralidade

cultural. A diferena entre multiculturalismo e multiculturalidade seria dada pelo carter

normativo do primeiro e o carter descritivo do segundo, o que nos faz inferir, do caso

21

Em 20 de dezembro de 1996, a Lei n. 9.394 (Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional - LDB)

determinava: O ensino da Histria do Brasil levar em conta as contribuies das diferentes culturas e etnias para a formao do povo brasileiro, especialmente das matrizes indgena, africana e europeia (LDB, 1996, art. 26, pargrafo 4).

84


brasileiro, ser esta uma sociedade multicultural desde a origem, mas orientada pelo

multiculturalismo apenas contemporaneamente, e de forma descontnua. Stuart Hall

(2003) amplia a compreenso do conceito de multiculturalismo ao afirmar que

...o multiculturalismo no uma nica doutrina, no caracteriza uma estratgia poltica e no representa um estado de coisas j alcanado. No

uma forma disfarada de endossar algum estado ideal ou utpico.

Descreve uma srie de processos e estratgias polticas sempre

inacabados. (Hall, op. cit., p. 52-53)

Assim, para Hall (op. cit.) a variedade de contextos multiculturais compatvel

com a variada gama de multiculturalismos: conservador, liberal, pluralista, comercial,

coorporativo, crtico etc. Segundo Luiz Alberto Gonalves e Petronilha Beatriz Silva

(2006), devido ao carter polissmico do multiculturalismo, qualquer pretenso de

preciso em relao definio do conceito arriscada, o que aponta para a necessidade

de identificarmos suas condies sciohistricas de emergncia como princpio

norteador de polticas culturais em pases onde a diversidade vista como um problema.

No caso brasileiro, o multiculturalismo nasce das lutas dos movimentos sociais, em

especial os movimentos negros.

Segundo Sabrina Moehlecke (2009, p. 466), trs grandes aspectos marcam e

diferenciam os significados oscilantes associados ao multiculturalismo: o

reconhecimento ou no das hierarquias de poder presentes nas relaes entre os

diferentes grupos culturais; uma viso mais essencializada ou mais dinmica da

identidade cultural de determinados grupos; a articulao ou no entre as

desigualdades socioeconmicas e as diferenas culturais.

Partindo de uma perspectiva multicultural, Nilma Lino Gomes (2003) defende

que a promoo de uma educao antirracista implica a recusa da abordagem da cultura

negra como extica ou folclrica22

. Integra a sua proposta educativa a desnaturalizao

das diferenas tnico-raciais e a definio de projetos e prticas multiculturais que

denotem o compromisso poltico com a transformao das relaes tnico-raciais na

sociedade brasileira.

22

Segundo Eduardo Oliveira (2009, p. 1), no caso das culturas africanas e afro-brasileiras no Brasil,

folclorizar reduzir uma cultura a um conjunto de representaes estereotipadas, via de regra, alheias ao contexto que produziu essa cultura.

85


A construo da democracia no Brasil e o respeito cidadania dos negros so

preocupaes depreendidas do multiculturalismo defendido por Kabengel Munanga

(2008), para quem a democracia exige respeito da diversidade tnica e cultural, bem

como o reconhecimento do direito de toda cultura: o de cultivar suas especificidades,

pois assim ela enriquece o prprio ethos cultural brasileiro (Munanga, op. cit., p. 23).

Por outro lado, os tericos que propem a interculturalidade (Fleuri, 2001;

Candau, 2010), sem desconsiderar a construo de identidades e o reconhecimento das

diferenas, exaltam o dilogo entre os distintos grupos culturais presentes na sociedade,

recusando tanto o que consideram a exacerbao da afirmao de diferenas culturais

como a sua negao, enfatizando os processos de hibridizao e abertura dos processos

de construo das identidades e rejeitando a suposio de culturas puras, ao mesmo

tempo em que reconhecem a existncia de mecanismos de poder nas relaes culturais

(Candau, op. cit.).

A interculturalidade tem na "Conveno sobre a proteo e a promoo da

diversidade das expresses culturais", adotada pela UNESCO em 20 de outubro de 2005

e ratificada pelo Brasil por meio do Decreto Legislativo 485/2006, um instrumento que

orienta polticas relativas multiculturalidade. Em seu artigo 3, assim descrita:

Interculturalidade refere-se existncia e interao eqitativa de diversas culturas,

assim como possibilidade de gerao de expresses culturais compartilhadas por

meio do dilogo e respeito mtuo (Unesco, 2007, p. 6).

Diante dos conflitos de base tnica atualmente observados no mundo, no

sentido dado pela Conveno da UNESCO, o conceito de interculturalidade afigura-se

mais como um ideal a ser perseguido do que como algo que descreva o relacionamento

entre os distintos grupos culturais. Ademais, como argumenta Elisa Larkin Nascimento

(2009, p. 54),

Se eu estou enfraquecida e insegura, pouco posso fazer para ajudar o outro.

medida que me defino e me reconheo, posso colaborar com o outro e contribuir

para um esforo coletivo rumo a objetivos comuns, em condies de igualdade.

Neste sentido, a concepo de interculturalidade implicada na proposta de

desobedincia epistmica formulada por Anibal Quijano e reelaborada por Walter

Mignolo (2010) nos permite romper com a ideia de negros/as como objetos de estudo e

garante a sua visibilidade como sujeitos do conhecimento, no sujeitos ao conhecimento

86


produzido pelos europeus e seus descendentes ou produzido por outros povos e

historicamente apropriados por eles.

Em que pesem as especificidades semnticas, a perspectiva intercultural e a

perspectiva multicultural assumem como pressupostos o entendimento da realidade

como construo social, a nfase subjetividade das interpretaes e o entendimento do

conhecimento como fato poltico (Semprini, 1999). O que difere a forma como lidam

com as diferenas. No multiculturalismo, a construo de identidades culturais

valorizada e o reconhecimento reivindicado como forma de garantir direitos, respeitar

a diversidade sociocultural e preservar a autoestima das/os socialmente excludas/os, o

ponto de partida a pluralidade de experincias culturais, que moldam as interaes

sociais por inteiro (Gonalves & Silva, 2006). A perspectiva intercultural se preocupa

principalmente em promover a convivncia e o dilogo entre as diferenas, em fomentar

a tolerncia, entendida como

...o respeito, a aceitao e o apreo da riqueza e da diversidade das culturas do nosso mundo [...] no concesso, condescendncia, indulgncia. A tolerncia

, antes de tudo, uma atitude ativa fundada no reconhecimento os direitos

universais da pessoa humana e das liberdades fundamentais do outro (Unesco, 1995, p. 11).

Aliada discusso sobre a fundamentao terico-poltica das propostas de

ensino de Histria e Cultura Afro-brasileiras e Africanas, surge a necessidade de

reflexo sobre os aspectos metodolgicos a ele relacionados. Ao investigar sobre os

saberes compartilhados e as prticas relativas ao ensino da temtica nas escolas de

Minas Gerais, Lorene dos Santos (2010) constatou que o esforo das/os professoras/es o

esforo em positivar a histria e cultura africanas e afro-brasileiras, frequentemente

incorre em mitificao e homogeneizao. Outro perigo envolvido na abordagem da

Histria e Cultura Afro-brasileiras e Africanas seria a simples memorizao de datas,

acontecimentos e personagens, numa transposio de novos contedos ao modelo

tradicional de ensino. Apesar de valorizar a importncia do destaque dado ao

protagonismo histrico negro, observar a histria como um processo social coletivo que

envolve relaes conflituosas e contraditrias contribuiria, segundo Santos (op. cit.),

para uma abordagem crtica da histria dos africanos e afro-brasileiros.

As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educao das Relaes tnico-

Raciais e para o Ensino de Histria e Cultura Afro-Brasileira e Africana, institudas

87


pela Resoluo n 1 do Conselho Nacional de Educao, em 17 de junho de 2004,

apresentam uma sntese das perspectivas multiculturalista e intercultural, como

podemos observar nos pargrafos abaixo descritos:

1 A Educao das Relaes tnico-Raciais tem por objetivo divulgao e

produo de conhecimentos, bem como de atitudes, posturas e valores que

eduquem cidados quanto pluralidade tnico-racial, tornando-os capazes de

interagir e de negociar objetivos comuns que garantam, a todos, respeito aos

direitos legais e valorizao de identidade, na busca da consolidao da

democracia brasileira. 2 O Ensino de Histria e Cultura Afro-Brasileira e Africana tem por objetivo

o reconhecimento e a valorizao da identidade, histria e cultura dos afro-

brasileiros, bem como a garantia de reconhecimento e igualdade de valorizao

das razes africanas da nao brasileira, ao lado das indgenas, europeias,

asiticas (Brasil, 2004).

Alm de um exame mais acurado sobre a perspectiva terico-poltica acerca da

diferena e das estratgias pedaggicas a serem adotadas na abordagem da Histria e

Cultura Afro-brasileiras e Africanas, em virtude da longa histria de omisso dos

currculos escolares no que se refere histria e cultura negras, a formao de

professores requer a ampliao do investimento pblico na formao destes

profissionais desde as licenciaturas, o que j vem sendo reivindicado h algumas

dcadas23

.

Uma profunda mudana nas formas de pensar e viver as relaes tnico-raciais,

que repercutem em diversos nveis (epistemolgico, psicolgico, poltico e social),

ainda est por acontecer, mas a garantia do direito ao conhecimento da nossa prpria

histria um passo importante rumo ao necessrio desvinculamento epistmico24

.

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os temas Histria da frica e Cultura Afro-brasileira antes da determinao oficial de sua incluso nos

currculos da rede pblica, como ocorrera em 1983, em Salvador. 24

Segundo Mignolo (2008, p. 289), desvinculamento epistmico no significa abandono ou ignorncia

do que j foi institucionalizado por todo o planeta (...). Pretendo substituir a geo- e a poltica de Estado

de conhecimento de seu fundamento na histria imperial do Ocidente dos ltimos cinco sculos, pela

geopoltica e a poltica de Estado de pessoas, lnguas, religies, conceitos polticos e econmicos,

subjetividades, etc., que foram racializadas (ou seja, sua humanidade bvia foi negada).

88


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Recebido em setembro de 2014

Aprovado em janeiro de 2015

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