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Documentário "O Abraço Corporativo": o jornalismo está nu Por Wilson Ferreira Uma das maiores barrigas da grande mídia passou despercebida para o grande público e na época sua repercussão acabou restrita a veículos especializados em jornalismo e revistas acadêmicas. O documentário “O Abraço Corporativo” (2009) do jornalista Ricardo Kauffman descreve o passo a passo da criação de uma “pegadinha” sobre um suposto executivo de Recursos Humanos que estaria introduzindo no Brasil uma revolucionária terapia motivacional baseada nos poderes curativos de um simples abraço. Explorando os vícios de uma imprensa baseada no jornalismo declaratório que está sempre em busca de bons personagens, o suposto representante da chamada “Confraria Britânica do Abraço Corporativo” expôs as mazelas de um jornalismo onde a ambição de ascensão na carreira de jornalistas está na relação direta com a sua precarização profissional. O filósofo Louis Althusser dizia que ideologia é quando as respostas precedem as questões. Se isso for verdade, então a prática jornalística se tornou a maior indústria de produção ideológica, mais perigosa que o entretenimento porque opera sob a chancela da informação e da realidade. Raramente o jornalista “descobre”. Na maioria dos casos ele sempre encontra o que procura: tenta confirmar uma ideia, uma hipótese ou, então, encaixar acontecimentos a um certo script que já tem em mente. E para mostrar que não está enganado, a melhor forma é produzindo um personagem por meio de uma calculada busca de “desconhecidos”. Seus rostos na tela podem ser desconhecidos, mas seus personagens são familiares. Um atentado? Procure um bombeiro heroico e uma pessoa que por um lapso do destino não estava no local da explosão porque acordou naquela manhã cinco minutos mais tarde. Uma manifestação? Procure o líder (mesmo que ele não exista) ou aquele manifestante que saiu às ruas pela primeira vez. Greve de ônibus? Procure

Abraço Coorporativo

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  • Documentrio "O Abrao Corporativo": o jornalismo est nuPor Wilson Ferreira

    Uma das maiores barrigas da grande mdia passou despercebida

    para o grande pblico e na poca sua repercusso acabou restrita a

    veculos especializados em jornalismo e revistas acadmicas. O

    documentrio O Abrao Corporativo (2009) do jornalista Ricardo

    Kauffman descreve o passo a passo da criao de uma pegadinha sobre

    um suposto executivo de Recursos Humanos que estaria introduzindo no

    Brasil uma revolucionria terapia motivacional baseada nos poderes

    curativos de um simples abrao. Explorando os vcios de uma imprensa

    baseada no jornalismo declaratrio que est sempre em busca de bons

    personagens, o suposto representante da chamada Confraria Britnica do

    Abrao Corporativo exps as mazelas de um jornalismo onde a ambio

    de ascenso na carreira de jornalistas est na relao direta com a sua

    precarizao profissional.

    O filsofo Louis Althusser dizia que ideologia quando as respostas

    precedem as questes. Se isso for verdade, ento a prtica jornalstica se

    tornou a maior indstria de produo ideolgica, mais perigosa que o

    entretenimento porque opera sob a chancela da informao e da realidade.

    Raramente o jornalista descobre. Na maioria dos casos ele sempre

    encontra o que procura: tenta confirmar uma ideia, uma hiptese ou,

    ento, encaixar acontecimentos a um certo script que j tem em mente.

    E para mostrar que no est enganado, a melhor forma

    produzindo um personagem por meio de uma calculada busca de

    desconhecidos. Seus rostos na tela podem ser desconhecidos, mas seus

    personagens so familiares. Um atentado? Procure um bombeiro heroico e

    uma pessoa que por um lapso do destino no estava no local da exploso

    porque acordou naquela manh cinco minutos mais tarde. Uma

    manifestao? Procure o lder (mesmo que ele no exista) ou aquele

    manifestante que saiu s ruas pela primeira vez. Greve de nibus? Procure

  • uma mulher simples e ofegante, desesperada porque seu patro pode

    despedi-la caso no chegue ao trabalho.

    Foi pensando nisso que o jornalista Ricardo Kauffman investiu cinco

    anos na produo de um documentrio que provocou uma das maiores

    barrigas (gria jornalstica para designar uma grave bobeada de um

    jornalista que pensa estar publicando um furo quando no passa de

    engano ou m f do prprio reprter) da imprensa brasileira. Convidou o

    ator Leonardo Camillo e criou um personagem que seria irresistvel para os

    jornalistas: Ary Itnem Whitaker (um anagrama para a palavra mentira)

    que desempenharia o papel de um executivo de Relaes Humanas que

    estaria no Brasil representando uma suposta Confraria Britnica do Abrao

    Corporativo (CBAC).

    Kauffman montou esse personagem a partir de um pastiche de

    ideias da bibliografia motivacional corporativa (criou uma tal de Teoria do

    Abrao como tcnica de cura para a inrcia do afastamento provocado

    pelas novas tecnologias) e de vdeos que anos antes circularam na Internet

    mostrando pessoas que ofereciam abraos grtis em cidades americanas

    e europeias como terapia para humanizar as metrpoles aproximando as

    pessoas.

    Criou um evento pblico para divulgar a Teoria do Abrao

    Corporativo e postou o ator na Avenida Paulista em So Paulo com um

    cartaz no qual pedia abraos e fornecia o endereo na Internet do site da

    CBAC.

    No sem antes registrar em um cartrio em Barueri/SP um

    documento no qual descreve a CBAC como uma inveno que visa

    demonstrar sociedade que, muitas vezes, ideias inconsistentes e/ou

    inverdicas ganham espao na mdia. (...) criamos o personagem Ary Itnem,

    a Teoria do Abrao Corporativo, a CBAC e o documentrio O Abrao

    Corporativo. Ou seja, a ironia dessa barriga que a verdade da razo

    social da CBAC estava disponvel para consulta pblica, assim como o

    prprio anagrama do nome do personagem. E nenhum reprter pensou em

  • checar a procedncia da tal Confraria e sequer da prpria teoria.

    Atravs do marketing viral, o vdeo de Itnem transformou-se em

    grande sucesso, fazendo o factoide chegar nas redaes da grande mdia.

    Com o sucesso viral no Youtube, Ary Itnem se transformou em um

    personagem, uma isca perfeita para o jornalismo declaratrio sempre em

    busca de tipos perfeitos que se encaixem nos scripts preestabelecidos pelas

    editorias.

    O documentrio mostra passo a passo como Ary Itnem e sua Teoria

    do Abrao Corporativo chegaram a programas de rdio e TV e nas

    entrevistas concedidas a jornais, revistas e portais de Internet. Depois disso

    o prximo passo: a teoria inventada passou a ser aplicada como prtica

    motivacional por departamentos de recursos humanos e Ary Itnem passou

    a ser convidado a dar palestras em empresas que terminavam com todos

    trocando abraos, sempre ovacionado pelas plateias.

    O Abrao Corporativo foi apresentado na Mostra Internacional de

    Cinema de So Paulo em 2010. As imagens do efeito domin miditico

    produzido pelo personagem foi um vexame geral. Por razes bvias, a

    imprensa fez pouco alarde, mantendo a discusso sobre o documentrio

    em veculos especializados consumidos apenas por profissionais do

    Jornalismo e publicaes acadmicas.

    Precarizao do Jornalismo

    No documentrio vemos entrevistas com profissionais e acadmicos

    que se dividem em duas posies opostas: de um lado nomes como o

    jornalista Bob Fernandes e o consultor de empresas Thomas Wood que

    denunciam a barrigada como o resultado de uma evoluo perversa das

    empresas jornalsticas e as relaes promiscuas entre mdia e ambiente

    corporativo; e do outro lado nomes como os professores da ECA-USP

    Manuel Chaparro e Eugnio Bucci e o jornalista Herdoto Barbeiro (uma

    das vtimas da pegadinha) que tentam recolher os pedaos e salvar a

    dignidade da grande mdia.

    Para Bob Fernandes as razes da barrigada do Abrao Corporativo

  • estariam na dcada de 1990: a mdia estranhamente acreditava no que

    escrevia nos anos 1990, nos anos Fernando Henrique Cardoso. Por isso, se

    endividaram para se lanarem em aventuras como TV a cabo, companhias

    telefnicas e satlites. Quando se caiu na real com a maxidesvalorizao da

    moeda, a mdia se viu quebrada. Resultado: perda de qualidade nas

    redaes jornalsticas convivendo com as novas tecnologias em tempo real,

    acelerao dos processos de produo de notcia, precarizao profissional

    e afrouxamento dos controles dos critrios jornalsticos.

    Ao contrrio, Chaparro e Bucci tentam justificar que a barriga do

    abrao corporativo se deve a um jornalismo ainda em crescimento em uma

    democracia que ainda se desenvolve aps um longo perodo de regimes

    autoritrios.

    O personagem em cena

    O que impressiona nos primeiros contatos dos reprteres e

    produtores com Ary Itnem a forma como tentam moldar seu personagem

    atravs de recursos ficcionais nas captaes de imagens para as matrias

    jornalsticas. Reprteres se transformam em diretores de cena orientando

    gestos, simulando exerccios de relaxamento em um parque, repetindo

    tomadas at que vdeos e fotografias ficassem perfeitos e encaixassem na

    pauta preestabelecida pelos editores etc.

    H momentos impagveis em que Ary Itnem posa abraado em

    rvores para fotgrafos, fazendo pseudoposes de Yoga, meditando e

    olhando para o cu ao som dos cliques da mquina fotogrfica. Alm do

    desaparecimento do conceito de fotojornalismo (cada vez mais as fotos so

    posadas e produzidas) h uma bizarra situao nesses momentos do

    documentrio. Uma estranha metafico: a fico do abrao corporativo

    sendo encaixando em narrativas ficcionais inventadas pelas redaes dos

    jornais e revistas.

    O jornalista Ricardo Kaufmann ofereceu ao jornalismo declaratrio

  • um personagem estereotipado perfeito, pronto para ser encaixado nas

    metanarrativas do clich do executivo estressado que descobre os valores

    zen da filosofia oriental e do empreendedorismo ocidental ao

    supostamente criar um servio para os RHs de empresas. O abrao zen

    corporativo.

    Aps ter uma conversa pelo telefone com uma jornalista

    representando o personagem Ary Itnem, a certa altura o ator Leonardo

    Camillo desabafa: sabe o que eu senti nas perguntas dela? Ela queria uma

    reposta minha pra ver se encaixava na matria dela!.

    O Jornalismo est perdendo a credibilidade?

    Aps assistirmos ao documentrio, podemos chegar a seguinte

    projeo em relao ao futuro: a grande mdia est perdendo

    progressivamente o capital da credibilidade acumulado em tempos

    heroicos do chamado jornalismo literrio, gnero de resistncia censura

    dos governos militares de veculos como Realidade, O Pasquim e Jornal da

    Tarde.

    O jornalismo literrio brasileiro foi inspirado no chamado New

    Journalism dos EUA surgido na dcada de 1960 que misturava a narrativa

    jornalstica com a literria como em publicaes como a New Yorker Tom

    Wolfe, Norman Mailer, Truman Capote foram os principais expoentes.

    Narrativas imaginativas onde eram privilegiados personagens utilizando

    citaes e o ponto de vista subjetivo desses protagonistas dos fatos.

    Matrias eram lidas como fico, mas no eram fico: as vezes a

    apurao das fontes e pesquisas duravam cinco anos, como no caso de A

    Sangue Frio de Truman Capote.

  • exatamente isso que entra em declnio com as novas tecnologias

    que comprimem o tempo entre a coleta dos dados, redao, edio e

    publicao: no h tempo para apuraes como destaca o jornalista Juca

    Kfouri no documentrio.

    As experincias inspiradas no New Journalism fizeram a imprensa

    brasileira acumular um capital de credibilidade com matrias crticas e

    algumas de importncia histrica, textos que procuravam colocar

    personagens importantes em destaque como contraponto a um perodo de

    censura. A busca de personagens acabou se transformando em clich e se

    deteriorou em jornalismo declaratrio sem checagem de fontes ou

    pesquisa.

    Alm do mais h um fator subjetivo do jornalista em meio a um

    ambiente de trabalho cada vez mais precarizado: a ambio do jornalista

    parece estabelecer relao direta com a sua insegurana profissional. A

    busca de um bom personagem (e no mais de uma boa histria) muitas

    vezes vista como um veculo para a projeo profissional.

    Mais do que isso, muitas vezes os jornalistas ficam fascinados pelos

    personagens, principalmente por aqueles poderosos e bem sucedidos.

    Admirao e at inveja pelo personagem corri qualquer tipo de iseno

    resultando em perigosas relaes turbinadas ainda pela falta de malcia e

    m formao de jovens profissionais.

    Documentrio "O Abrao Corporativo": o jornalismo est nuPrecarizao do JornalismoO personagem em cenaO Jornalismo est perdendo a credibilidade?