Abrasco_25_anos Saude Coletiva Como Compromisso

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SADE COLETIVACOMO

C OMPROMISSOA TRAJETRIA DA ABRASCO

FUNDAO OSWALDO CRUZ Presidente Paulo Marchiori Buss Vice-Presidente de Ensino, Informao e Comunicao Maria do Carmo Leal EDITORA FIOCRUZ Diretora Maria do Carmo Leal Editor Executivo Joo Carlos Canossa Mendes Editores Cientficos Nsia Trindade Lima Ricardo Ventura Santos Conselho Editorial Carlos E. A. Coimbra Jr. Gerson Oliveira Penna Gilberto Hochman Lgia Vieira da Silva Maria Ceclia de Souza Minayo Maria Elizabeth Lopes Moreira Pedro Lagerblad de Oliveira Ricardo Loureno de Oliveira

SADE COLETIVACOMO

C OMPROMISSOA TRAJETRIA DA ABRASCO

Nsia Trindade Lima Jos Paranagu de SantanaOrganizadores

Copyright 2006 dos autores Todos os direitos desta edio reservados FUNDAO OSWALDO CRUZ / EDITORA

ISBN: 85-7541-087-3

Capa, projeto grfico e editorao eletrnica Carlota Rios Copidesque e reviso Jorge Moutinho Assistentes Editoriais: Claudio Arcoverde e Renata Maus Mesquita

Catalogao-na-fonte Centro de Informao Cientfica e Tecnolgica Biblioteca da Escola Nacional de Sade Pblica Sergio Arouca

R786r

Roquette-Pinto, Edgard Rondonia: anthropologia - ethnographia. / Edgard Roquette-Pinto. Rio de Janeiro : Editora FIOCRUZ, 2005. 384 p.

1.Antropologia cultural-Rondnia. 2.ndios sulamericanos. I.Ttulo. CDD - 20.ed. 980.41098175

2006 EDITORA FIOCRUZ Av. Brasil, 4036 Trreo sala 112 Manguinhos 21040-361 Rio de Janeiro RJ Tels: (21) 3882-9039 / 3882-9041 Telefax: (21) 3882-9006 e-mail: [email protected] http://www.fiocruz.br

SUMRIO

Apresentao

1. A Histria da Abrasco: poltica, ensino e sade no BrasilCristina M. O. Fonseca

2. Congressos da Abrasco: a expresso de um espao construdoSoraya Almeida Belisrio

3. O Feito por FazerMoiss Goldbaum e Rita Barradas Barata

4. Atuao da Abrasco em Relao ao Ensino de Ps-Graduao na rea de Sade ColetivaMaria Ceclia de Souza Minayo

5. Perfil Histrico e outras Informaes sobre a revista Cincia & Sade ColetivaMaria Ceclia de Souza Minayo

6. Revista Brasileira de Epidemiologia: uma histria narrada com base em seus editoriaisJos da Rocha Carvalheiro, Marilisa Berti de Azevedo Barros e Marina Frana Lopes

7. Comisses e Grupos TemticosEverardo Duarte Nunes

Cronologia da Abrasco Diretorias da Abrasco

AUTORES

Cristina M. O. FonsecaHistoriadora, doutora em cincia poltica pelo Instituto Universitrio de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj) e pesquisadora da Casa de Oswaldo Cruz da Fundao Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz).

Marina Frana LopesSecretria executiva da Revista Brasileira de Epidemiologia, assistente de pesquisa na rea de epidemiologia ambiental do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da Universidade de So Paulo (DMP/FMUSP), assessora em geoprocessamento do LIM-39 (Laboratrio de Investigao Mdica) do DMP/FMUSP, graduanda do curso de geografia da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo (FFLCH/USP).

Everardo Duarte NunesSocilogo, doutor em cincias mdicas pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), professor associado do Departamento de Medicina Preventiva e Social (DMPS)/Faculdade de Cincias Mdicas (FCM)/Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

Soraya Almeida BelisrioMdica, professora adjunta do Departamento de Medicina Preventiva e Social da Faculdade de Medicina da UFMG, pesquisadora do Ncleo de Estudos em Sade Coletiva da Universidade Federal de Minas Gerais (Nescon/UFMG).

Jos da Rocha CarvalheiroMdico, doutor em medicina, livre-docente e professor titular de Medicina Social da USP (Ribeiro Preto), editor da Revista Brasileira de Epidemiologia (Abrasco) e coordenador do Projeto Inovao em Sade da Presidncia da Fiocruz.

ORGANIZADORESNsia Trindade LimaSociloga, doutora em sociologia pelo Instituto Universitrio de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj), pesquisadora titular da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz) e editora cientfica da Editora Fiocruz.

Maria Ceclia de Souza MinayoSociloga, professora titular da Fundao Oswaldo Cruz, pesquisadora de carreira do CNPq, coordenadora cientfica do Centro Latino-Americano de Estudos sobre Violncia e Sade e editora cientfica da revista Cincia & Sade Coletiva, da Abrasco.

Marilisa Berti de Azevedo BarrosMdica, doutora em medicina preventiva pela Faculdade de Medicina de Ribeiro Preto (USP), professora associada de epidemiologia do Departamento de Medicina Preventiva e Social da Faculdade de Cincias Mdicas (Unicamp).

Jos Paranagu de SantanaMdico e mestre em medicina tropical pela Universidade de Braslia, servidor da Fundao Oswaldo Cruz e consultor da Organizao Pan-Americana da Sade (Opas) na representao do Brasil.

APRESENTAOApresentao

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Inveno brasileira, o termo Sade Coletiva est hoje presentena agenda acadmica e poltica de pases da Amrica Latina, do Caribe e da frica. Trata-se, mais que tudo, de uma forma de abordar as relaes entre conhecimentos, prticas e direitos referentes qualidade de vida. Em lugar das tradicionais dicotomias sade pblica/assistncia mdica, medicina curativa/medicina preventiva, e mesmo indivduo/sociedade busca-se uma nova compreenso na qual a perspectiva interdisciplinar e o debate poltico em torno de temas como universalidade, eqidade, democracia, cidadania e, mais recentemente, subjetividade emergem como questes principais. Foi em torno desses temas e do desafio de formar profissionais atentos corrente de novas idias sobre os problemas de sade, alguns antigos, outros produtos de mudanas recentes nos campos biomdico, poltico e social, que se organizou, em 1979, a Associao Brasileira de Ps-Graduao em Sade Coletiva (Abrasco). Muitos comeos poderiam ser pensados para se iniciar a narrativa de uma histria to recente quanto rica e complexa. No momento de criao, sem dvida, imps-se a fora do movimento sanitarista da dcada de 1970, para o qual contriburam diversos fatores, tanto os relacionados a correntes de pensamento que se organizavam nos centros de pesquisa e ensino como os relativos s polticas nacionais de sade e de cincia e tecnologia. Em um contexto de regime autoritrio e luta pela democracia, o Brasil foi palco de intensos debates sobre o rumo das polticas sociais e o papel a ser desempenhado pelo Estado. Entre as expresses desse movimento de idias,

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destaca-se a criao do Centro Brasileiro de Estudos de Sade (Cebes), em 1976, e de sua revista Sade em Debate. Essa e outras iniciativas devem ser lembradas como marcos de um processo que culminou com a constituio formal da Abrasco durante a I Reunio sobre Formao e Utilizao de Pessoal de Nvel Superior na rea de Sade Coletiva, em setembro de 1979 (Belisrio, 2002; Escorel, 1998; Escorel, Nascimento & Edler, 2005; Teixeira, 1985). Ao se considerar o contexto latino-americano, pode-se tambm relacionar a gnese da Abrasco ao desenvolvimento de perspectivas crticas abordagem mdica tradicional dos problemas de sade no continente (Arouca, 2003). Alguns anos antes, em fins da dcada de 1960, fora realizada ampla pesquisa sobre educao mdica na Amrica Latina, coordenada pelo mdico e socilogo Juan Csar Garcia, com o apoio da Organizao Pan-Americana da Sade (Opas) e da Fundao Milbank. O trabalho estimulou, em diferentes pases, a criao de cursos de psgraduao em medicina social e a reviso das abordagens predominantes em centros universitrios e institutos de Sade Pblica. Em 1973, criou-se, sob o impulso dessas novas orientaes, o primeiro curso de medicina social no continente o Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) , com apoio da Opas, da Fundao Kellog e da principal agncia de fomento pesquisa no Brasil daquele perodo: a Financiadora de Estudos e Projetos Finep (Escorel, 1998; Garcia, 1972; Nunes, 1985, 1994). No plano internacional, o estabelecimento de um conjunto de diretrizes apoiadas em forte crtica a concepes tradicionais que acentuavam a prtica mdica curativa teve como marco a realizao da Conferncia Internacional sobre a Ateno Primria Sade, em Alma-Ata (Cazaquisto), em 1978. Na Declarao de Alma-Ata firmou-se um conjunto de princpios, mencionados com freqncia nos textos da rea de Sade Coletiva, mas que sempre oportuno lembrar: a sade como direito essencial dos indivduos e das coletividades; a obrigao do Estado em assegurar esse direito a todos; a responsabilidade e o direito das comunidades em participar na proteo e recuperao da sade e na gesto dos servios destinados sua ateno; a precedncia da promoo e da preveno, estabelecendo-se o princpio da ateno integrada; a eqidade e universalidade do acesso aos servios de sade. No que se refere a iniciativas relacionadas s polticas nacionais adotadas durante a dcada de 1970 no Brasil, pode-se apontar, como observa Sarah Escorel, aquelas vinculadas ao II Plano Nacional de Desenvolvimento (II PND), implementado durante o Governo Geisel (1974-1978). Segundo

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a autora, surgiram na conjuntura em pauta trs espaos institucionais que favoreceram a estruturao do movimento sanitarista: o setor sade do Centro Nacional de Recursos Humanos do Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada (CNRH/Ipea), a Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) e o Programa de Preparao Estratgica de Pessoal de Sade da Opas (PPREPS/ Opas) (Escorel, 1998). No final da dcada de 1970, momento de criao da Abrasco, verificava-se o incio do processo de institucionalizao no Brasil da abordagem da Sade Coletiva, ainda que sob essa rubrica possam ser identificadas perspectivas diferentes tanto no plano terico como no poltico. A base acadmica desse processo comeava tambm a se consolidar, ainda que de modo incipiente, com os cursos de ps-graduao em Sade Coletiva que, naquele momento, encontravam-se nos campi de So Paulo e Ribeiro Preto da Universidade de So Paulo (USP), no Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IMS/Uerj), na Escola Nacional de Sade Pblica da Fundao Oswaldo Cruz (ENSP/Fiocruz), na Universidade Federal da Bahia (UFBA) e na Universidade Federal da Paraba (UFPB). No se poderia, contudo, compreender as origens acadmicas da Abrasco sem mencionar as experincias do Departamento de Medicina Preventiva e Social da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e da Faculdade de Cincias da Sade da Universidade de Braslia (UnB). Tais espaos constituram-se tambm em fruns de debates para os projetos e teses que viriam mais tarde a ganhar notvel visibilidade durante a VIII Conferncia Nacional de Sade. Realizada no perodo de redemocratizao, a conferncia incluiu em seu temrio trs questes principais: a sade como dever do Estado e direito do cidado; a reformulao do Sistema Nacional de Sade e o financiamento setorial, dando relevo s relaes entre sade e democracia. Mas tambm se poderia traar uma histria da Abrasco cujas origens remontariam s dcadas de 1950 e 1960. No mbito latinoamericano, seria possvel recuar queles anos, nos quais se realizaram importantes reunies no Mxico e no Chile tendo como tema central um projeto pedaggico alternativo biologizao do ensino em sade e s prticas de assistncia individual e centrada no hospital (Nunes, 1994). No Brasil, no curto perodo de experincia democrtica que antecedeu ao regime autoritrio implantado em 1964, surgiram importantes propostas de descentralizao administrativa e de seguridade social, que buscavam romper a viso dicotmica entre Sade Pblica e assistncia mdica. Foi o que se viu, por exemplo, nos debates parlamentares durante o processo de criao do Ministrio da Sade (Hamilton & Fonseca, 2003).

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Apresentao

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Teses na direo da integrao das aes de sade e de sua articulao com reformas sociais foram, do mesmo modo, intensamente discutidas em fruns como a III Conferncia Nacional de Sade, realizada em dezembro de 1963. Idias dentro do lugar e de seu tempo, mas que no puderam se transformar efetivamente em prticas e instituies sociais (Lima, Fonseca & Hochman, 2005). Em qualquer percurso e ponto de partida escolhido, cincia e poltica aparecem como as bases da constituio da sade como rea de conhecimento e de prtica social no Brasil. Trao histrico que pode ser identificado desde os primeiros anos da Repblica, o encontro das duas vocaes esteve presente na origem do movimento sanitarista dos anos 1970 e 1980, alcanou acentuada visibilidade no processo de criao do Sistema nico de Sade (SUS), em 1988, e permanece como fundamento da atuao da Abrasco. em torno dessas duas faces indissociveis da vida associativa e da nfase no seu compromisso com a sociedade brasileira que se apresenta este livro. A comemorao dos 25 anos de atividades da Abrasco foi realizada em Braslia, em novembro de 2004, na sede da representao da Opas no Brasil, mesmo espao institucional em que foi criada a entidade. A proposta de publicao foi inicialmente apresentada e discutida nesse evento, que ensejou oportunidade para reunir informaes relevantes e anlises sobre a histria da instituio. As contribuies resultantes dos debates ento realizados consistiram no ponto de partida para o desenvolvimento do projeto editorial que foi tomando forma progressivamente, elaborado, definido e redefinido em encontros e muitas conversas com lvaro Hideyoshi Matida, Cristina M. O. Fonseca, Joo Carlos Canossa, Maria Ceclia de Souza Minayo, Moiss Goldbaum, Mnia Mariani, Rita Barradas Barata e Pricles Silveira da Costa. Sua realizao contou com o apoio decisivo da Opas e da Secretaria de Gesto do Trabalho e Educao em Sade (SGTES/Ministrio da Sade) e, muito especialmente, de Francisco Eduardo de Campos. A pesquisa realizada para a edio permitiu tambm a sistematizao de informaes dos boletins da Abrasco, dos quais reproduzimos ao longo do texto alguns documentos de referncia e charges publicados nesse importante meio de divulgao e, ao mesmo tempo, fonte para o conhecimento da histria da associao. Foi tambm possvel a organizao do Fundo Frederico Simes Barbosa, hoje sob guarda da Casa de Oswaldo Cruz, graas compreenso de sua filha Constana Clara Gayoso Simes Barbosa, da iniciativa de Carlos Coimbra Jr. e tambm do apoio de Rmulo Maciel Filho, diretor do Centro de Pesquisas Aggeu

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Magalhes, unidade da Fundao Oswaldo Cruz em Recife (PE). Importante inteno, no entanto, no pde ser efetivada: a identificao e classificao de documentao primria da Abrasco, inclusive de material iconogrfico. No projeto inicial estava prevista uma edio com muitas fotografias, o que teve de ser abandonado devido impossibilidade de se reunir material de todas as gestes, eventos e momentos significativos. Um agradecimento deve ser feito aos que tentaram contribuir para tal intento, em especial a Tnia Celeste Nunes, e fica registrada a expectativa de que se possa brevemente realizar o idealizado. Neste livro, busca-se combinar a construo da identidade da rea com o respeito diversidade de disciplinas, abordagens e temas. O fio condutor a Abrasco como espao de institucionalizao da Sade Coletiva, concebida como campo mltiplo de saberes e prticas sociais. A nfase no plano institucional justifica as escolhas feitas pelos autores dos sete captulos aqui reunidos. O primeiro, elaborado por Cristina M. O. Fonseca, relaciona as origens e o processo de institucionalizao da Abrasco ao contexto poltico nacional e s propostas de alterao na especializao e profissionalizao em Sade Pblica, no mbito da rea de recursos humanos em sade. Para a autora, a Abrasco surge, se constitui e se consolida institucionalmente promovendo a interao de formao profissional e atuao poltica. A histria dos congressos da Abrasco constitui o tema do segundo captulo. Nele, Soraya Almeida Belisrio descreve o histrico desses eventos, apontando suas principais caractersticas e mudanas no tempo. Note-se que a associao organizou, em 2006, o VIII Congresso Brasileiro de Sade Coletiva e o XI Congresso Mundial de Sade, em parceria com a Federao Mundial das Associaes de Sade Pblica, reunindo 12 mil participantes de diferentes pases.1 Em cada edio, esse formato de evento amplia-se e diversifica-se, com a incluso de novas regies, representaes institucionais e temas em debate. Talvez merecesse mesmo mais de um captulo o Congresso Brasileiro de Sade Coletiva, apelidado, com afetividade e indiscutvel fora expressiva, de Abrasco. Os dados sobre o evento indicam uma das mais fortes marcas da rea de Sade Coletiva: seu extremo potencial mobilizador. A autora inclui ainda nesse captulo a descrio e anlise dos congressos por reas especficas: epidemiologia e cincias humanas e sociais.

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No foi possvel realizar a anlise desse importante congresso neste livro, o que certamente ser feito em trabalhos posteriores.

Apresentao

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O balano das realizaes de cada gesto que dirigiu a entidade, a identificao dos desafios do presente e das perspectivas so tema do terceiro captulo, elaborado por Moiss Goldbaum e Rita Barradas Barata. Os autores realizam detalhada retrospectiva dos 25 anos de atividades da Abrasco, referindo-se ao papel de cada uma das dez diretorias que conduziram essa imensa tarefa de institucionalizao da Sade Coletiva. No que se refere ao por fazer, apresentam relevante agenda que j vem sendo discutida e certamente contribuir para a definio dos rumos futuros da vida institucional. Elaborado por Maria Ceclia de Souza Minayo, o quarto captulo dedica-se ao papel da Abrasco na formao de recursos humanos para a sade, com nfase no ensino de ps-graduao stricto sensu. As razes para a escolha, como explica a autora, no decorrem de um juzo de valor sobre os diferentes graus de ensino, mas da regularidade das avaliaes sistemticas nesse mbito da ps-graduao. Como observa, a Abrasco tem contribudo para o aprimoramento da ps-graduao em Sade Coletiva ao participar dos processos de avaliao da Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior (Capes), bem como ao orientar os contedos da cincia e tecnologia adotados nessa rea. Os dois captulos que se seguem abordam o papel dos peridicos cientficos editados pela associao. O histrico e o perfil de Cincia & Sade Coletiva so analisados em texto de sua editora cientfica, Maria Ceclia de Souza Minayo, que apresenta e avalia dados sobre os artigos publicados, o processo de submisso e aceitao de manuscritos, a diversidade temtica e o perfil do pblico leitor e dos assinantes, no perodo de 1996 a 2005. O captulo sobre a Revista Brasileira de Epidemiologia, elaborado por Jos da Rocha Carvalheiro, Marilisa Berti de Azevedo Barros e Marina Frana Lopes, narra a trajetria desse peridico, transcrevendo uma seleo de trechos de editoriais que levam o leitor a acompanhar os momentos mais significativos: suas origens, o perodo de crise e o processo de recuperao e consolidao da revista entre 2001 e 2004, quando ela ingressa na base SciELO (Scientific Electronic Library Online).2 No ltimo captulo, elaborado por Everardo Duarte Nunes, apresentam-se e discutem-se informaes sobre um aspecto crucial, em

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SciELO um modelo de publicao eletrnica cooperativa de peridicos cientficos na Internet, resultado da cooperao entre a Fundao de Amparo Pesquisa do Estado de So Paulo (Fapesp), do Centro Latino-Americano de Informao em Cincias da Sade (Bireme/Opas) e de um conjunto de instituies nacionais e internacionais voltadas para a comunicao cientfica. Ver: .

particular no que se refere a uma associao com as caractersticas da Abrasco: a diferenciao em estruturas internas, no obstante a identidade comum que anima a vida associativa. Apresentam-se no texto o histrico das quatro comisses e dos 12 grupos temticos atualmente em atividade, com base em fontes secundrias, relatrios e informaes prestadas pelos seus respectivos coordenadores. A anlise desse processo de diferenciao pode tambm contribuir para maior compreenso sobre os campos disciplinares e as temticas que vo surgindo na dinmica da Sade Coletiva. Resultado de um esforo coletivo em um momento de intensa atividade pblica, por vezes exercendo funes governamentais, das lideranas que nas vrias gestes dirigiram a Abrasco, este livro seria de todo impossvel sem o trabalho de construo desses mais de 25 anos de histria institucional de que participaram tantos profissionais. Uma homenagem muito especial deve ser prestada a Ernani Braga, Frederico Simes Barbosa e Guilherme Rodrigues da Silva por seu papel na histria da Abrasco, seu compromisso com a teoria e com a prtica da Sade Coletiva e seu exemplo para as novas geraes que continuaro a fazer essa histria. Agradecemos, sobretudo, aos responsveis pelos captulos por sua importante colaborao. A Maria Ceclia de Souza Minayo, agradecemos tambm pela proposta e pelo convite inicial aos autores dos textos sobre a Revista Brasileira de Epidemiologia e sobre as comisses e os grupos temticos. No poderamos deixar de registrar o empenho de todos os profissionais envolvidos nas mais diferentes atividades editoriais e que tiveram de lidar com um problema adicional a escassez de tempo dos responsveis pela publicao. Convidamos os leitores a tomarem parte de algo que s pode ser concebido como um dilogo e um texto aberto a novas contribuies. Em parte histria institucional, em parte um resultado que ultrapassa tal delimitao, pois tambm encontramos nas contribuies aqui reunidas elementos para a abordagem histrica do conhecimento em Sade Coletiva e de seus meios de institucionalizao e difuso e, sobretudo, das interfaces da academia com todos aqueles que participam da construo da Sade Coletiva no pas. Os Organizadores

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Apresentao

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REFERNCIAS BIBLIOGRFICASAROUCA, S. O Dilema Preventivista: contribuio para a compreenso e crtica da medicina preventiva. So Paulo/Rio de Janeiro: Unesp/Editora Fiocruz, 2003. BELISRIO, S. A. Associativismo em Sade Coletiva: um estudo da Associao Brasileira de Ps-Graduao em Sade Coletiva Abrasco, 2002. Tese de Doutorado, Campinas: Ps-Graduao da Faculdade de Cincias Mdicas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). (Mimeo.) ESCOREL, S. Reviravolta na Sade: origem e articulao do movimento sanitrio. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 1998. ESCOREL, S.; NASCIMENTO, D. R. & EDLER, F. C. As origens da Reforma Sanitria e do SUS. In: LIMA, N. T. et al. Sade e Democracia: histria e perspectivas do SUS. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz/Opas, 2005. GARCIA, J. C. La Educacin Mdica em Amrica Latina. Washington, D.C.: Opas, 1972. HAMILTON, W. & FONSECA, C. M. O. Polticas, atores e interesses no processo de mudana institucional: a criao do Ministrio da Sade em 1953. Histria, Cincias, Sade Manguinhos, 10(3):791-826, 2003. LIMA, N. T.; FONSECA, C. M. O. & HOCHMAN, G. A sade na construo do Estado Nacional no Brasil: reforma sanitria em perspectiva histrica. In: LIMA, N. T. et al. Sade e Democracia: histria e perspectivas do SUS. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz/Opas, 2005. NUNES, E. D. As Cincias Sociais em Sade na Amrica Latina: tendncias e perspectivas. Braslia: Opas, 1985. NUNES, E. D. Sade Coletiva: histria de uma idia e de um conceito. Sade e Sociedade, 3(2):5-21, 1994. TEIXEIRA, S. M. F. As Cincias Sociais em Sade no Brasil. In: NUNES, E. D. As Cincias Sociais em Sade na Amrica Latina: tendncias e perspectivas. Braslia: Opas, 1985.

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Imagem 1 Ata da reunio de fundao da Abrasco, realizada em 27/9/1979. Imagem 2 Assinaturas dos que participaram da criao da Abrasco. Imagem 3 Ata da assemblia-geral da Abrasco realizada em 29/4/1981.

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Imagem 1

Apresentao

Imagem 2

Imagem 2 (continuao)

Imagem 3

1.

A HISTRIA DA ABRASCO: POLTICA, ENSINO E SADE NO BRASILCristina M. O. Fonseca

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surgimento de uma instituio est sempre vinculado a um conjunto de fatores que nos remetem ao campo poltico, articulao entre atores, construo de lideranas em torno de afinidades e interesses comuns e adoo de estratgias eficientes que justifiquem e valorizem a existncia dessa instituio, sua manuteno, crescimento e consolidao. No exceo a histria da Associao Brasileira de PsGraduao em Sade Coletiva (Abrasco). Criada em 27 de setembro de 1979, exatamente um ms aps a assinatura da lei de anistia que representava o incio de um novo perodo da vida poltica brasileira, a Abrasco reflete ao longo de sua trajetria uma ntima ligao com as transformaes que ocorreram no s no mbito da Sade Pblica mas tambm no contexto poltico institucional brasileiro, resultando da ativa participao de um conjunto de atores nesse cenrio.1 Refletir sobre essa histria pressupe necessariamente uma compreenso a respeito das principais caractersticas e diretrizes que nortearam as mudanas na Sade Pblica brasileira no decorrer desse perodo e seus vnculos com as transformaes polticas em curso. Em particular, dois aspectos merecero ateno mais cuidadosa na anlise que aqui se inicia. O primeiro deles, fundamental para a compreenso de uma associao com o perfil de atuao que a Abrasco desempenha, diz respeito ao contexto poltico, s alteraes no quadro da1

O

A lei de anistia, de no 6.683, foi assinada no dia 28 de agosto de 1979 e posteriormente regulamentada pelo decreto no 84.143, de 31 de outubro de 1979 (Evandro Lins e Silva, in Abreu, 2001).

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poltica de sade nacional, ao redesenho das foras polticas, ao surgimento de novos atores e lideranas acompanhado de um novo contexto de alianas e atuao profissional. Nesse sentido, procuro situar a trajetria institucional da Abrasco em sua relao com as transformaes polticas em curso no pas. O segundo aspecto trata das alteraes na especializao e profissionalizao em Sade Pblica, no mbito da rea de recursos humanos em sade, com apoio e influncia direta da Organizao Pan-Americana da Sade (Opas) e da Fundao Kellog. Esse recorte analtico acompanha a literatura institucionalista, que dedica ateno aos atores, seus interesses e s idias que permearam os debates nessa rea, observando o desenho institucional no qual processos polticos de deciso se desenvolvem (Hall & Taylor, 1996; Immergut, 1992; Steinmo, Thelen & Longstreth, 1992). Nesse cruzamento entre atores, idias e instituies, a histria da Abrasco espelha a inter-relao entre trs campos. O primeiro diz respeito ao conjunto de interesses polticos divergentes que vigoravam naquele contexto da histria brasileira. O segundo trata das novas concepes que orientaram reformulaes na rea da sade condensadas na proposta de um novo campo denominado de Sade Coletiva. E, por fim, o terceiro preocupase com a formao de novos quadros, por meio da diversificao e da especializao profissional na sade, responsvel pelo ingresso de novos atores no cenrio institucional da sade. Dentro desse cenrio, cabe indagar: qual foi o papel de uma associao de Sade Coletiva, naquele contexto de transio poltica? Uma primeira aproximao indica que a Abrasco contribuiu para vincular a rea de recursos humanos ao poltica. Ela atuou nesse processo intermediando a relao entre as proposies e as diretrizes adotadas para a formao em Sade Pblica e as necessidades e articulaes polticas estabelecidas. Ou seja, a Abrasco surgiu, se constituiu e se consolidou institucionalmente nesse eixo de interligao entre formao profissional e atuao poltica.

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A CRIAO DA ABRASCO E O CONTEXTO POLTICO NO BRASIL DOS ANOS 1970 E 1980O pas quer as eleies diretas em todos os nveis. Abandonando tradicional desengajamento, milhes de pessoas foram s ruas, em todos os estados, para exigir respeito a seu direito de eleger o Presidente da Repblica. A Abrasco, entidade com finalidades que excluem a militncia polticopartidria, no hesitou em se pronunciar pelas eleies diretas. Incorpora-se,

oficialmente, ao movimento que envolve a nao como um todo e que est acima dos prprios partidos polticos. Mas no apenas por ser um movimento suprapartidrio que a luta pelas diretas exige a presena da Abrasco: do sucesso desta luta dependem os rumos do pas e, portanto, das polticas relacionadas rea social, a includas a de sade e a de educao. (Editorial, Boletim da Abrasco, 9, nov.1983-fev.1984)

Apesar de sua criao ter-se dado no final da dcada de 1970, o surgimento da Abrasco deve ser observado como um dos frutos das transformaes que j vinham ocorrendo em particular a partir da segunda metade dos anos 1970. Esta uma dcada que se inicia com o pas ainda sob o comando militar, marcada pelo pice da represso poltica, principalmente em seus primeiros anos at 1974, quando tem incio um lento processo de liberalizao do sistema de governo, que nessa dcada culmina com a decretao da anistia em 1979. Neste ano foi extinto o bipartidarismo forado institudo pelos militares entre a Arena e o MDB, entrando na cena poltica seis novos partidos.2 Esse portanto um momento de redefinio de alianas, de rearranjo no quadro poltico nacional, em que as foras polticas organizadas procuravam se fortalecer para constituir, defender e assegurar um regime democrtico no pas, que teria incio em 1985 com a eleio indireta de Tancredo Neves, marcando o fim dos governos militares. Na rea econmica, no decorrer dos anos 1970 verificou-se um aumento na taxa de crescimento, que apesar de ter comeado a cair a partir de 1977, contribuiu para que esse perodo ficasse associado idia de milagre econmico. Essas mudanas estiveram associadas ao aumento da populao urbana, com queda das atividades rurais e crescimento do emprego nas cidades em atividades vinculadas principalmente ao setor secundrio e tercirio. O fenmeno social da urbanizao e da migrao rural deve ser observado com ateno, pois traria implicaes diretas para a poltica de sade. Outro fator importante foi o aumento do preo do petrleo, que em 1973 triplicou, e afetaria diretamente a economia brasileira, que importava 80% do petrleo consumido. Na rea social, mudanas importantes comearam a ocorrer durante os anos 1970. A expanso da atividade partidria foi acompanhada pelo crescimento do movimento sindical, que protagonizou a reintroduo no cenrio poltico brasileiro das greves de grande impacto, com participao significativa das categorias profissionais envolvidas. Em paralelo, crescia a participao popular conduzida pela Igreja, que por meio das2

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Os novos partidos foram: PT, PMDB, PDT, PTB, PDS e PP (Carvalho, 2005).

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Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) fortaleceu o trabalho de mobilizao e conscientizao das populaes mais pobres em diferentes regies do pas. Nos grandes centros urbanos, cresceram os movimentos sociais que interligavam as organizaes existentes em comunidades carentes, como os movimentos de favelas e as associaes de moradores conduzidas pela classe mdia. Nessa mesma direo, cresceram as associaes profissionais vinculadas classe mdia (professores, mdicos, engenheiros, funcionrios pblicos). Em particular, merecem ser lembradas trs instituies que desempenharam papel importante a partir da dcada de 1970 no processo de luta pela democracia no pas: a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), a Associao Brasileira de Imprensa (ABI) e a Sociedade Brasileira para o Progresso da Cincia (SBPC). Esta ltima consagrou-se como um dos fruns privilegiados pelo mundo acadmico para articular a oposio ao regime poltico militar existente, sofrendo inclusive presso do governo contra a realizao de seus congressos anuais. Entretanto, apesar da oposio do governo, em 1977 a reunio anual da SBPC contou com a participao de seis mil congressistas (Carvalho, 2005). Na histria da Abrasco, a SBPC representou um espao de fortalecimento institucional, pois seria por meio dessas reunies da comunidade cientfica que a associao definiria sua participao nos movimentos de oposio poltica existentes naquele momento. Nesse frum, credenciada como representante da rea de Sade Coletiva, a Abrasco assegurou sua insero nos movimentos sociais em constituio. Em reunio da diretoria realizada em agosto de 1983, consta entre as resolues aprovadas a participao intensa e especial da Abrasco na Reunio anual da SBPC. Essa atuao se consolidaria nos anos seguintes, quando a Abrasco passou a ter assento nas reunies do Conselho Nacional de Sade, como representante da SBPC (Boletim da Abrasco, jul.1993). Todo esse processo gradativo de fortalecimento da organizao social em torno de um projeto de construo e implementao de uma sociedade democrtica no pas desembocaria, j na dcada de 1980, na campanha pelas eleies diretas que marcou o ano de 1984. Segundo Carvalho (2005:192), O movimento pelas eleies diretas em 1984 foi o ponto culminante de um movimento de mobilizao poltica de dimenses inditas na histria do pas. Apesar de no ter sido aprovada a emenda das diretas, iniciou-se em 1985 um novo momento da histria poltica do pas, que passaria ento a ser conduzido por presidentes civis. A segunda metade da dcada de 1980 foi marcada assim pela Campanha das Diretas, pelas eleies para a formao de uma nova Assemblia Nacional Constituinte em 1986 e pela promulgao de uma

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nova Constituio em 1988. Estes eventos polticos de forte impacto sobre a sociedade, e demandando dela participao direta, estiveram diretamente relacionados aos debates, s proposies e transformaes que permearam o campo da Sade Pblica ao longo desses anos. Numa perspectiva abrangente, podemos ento identificar dois grandes perodos nesse momento da histria brasileira. O primeiro, compreendido entre o ano da assinatura da anistia e o fim dos governos militares (1979-85), caracteriza-se como uma fase de transio entre o regime militar autoritrio e a implantao de uma sociedade democrtica no pas. Na histria da Abrasco, essa fase corresponde a sua constituio como uma associao, a partir de sua criao em setembro de 1979, seguida das iniciativas adotadas para se consolidar nacionalmente. Nesse primeiro momento, sua organizao e sua articulao se deram entre um conjunto de profissionais da rea da sade vinculados principalmente rea acadmica. No foi por acaso que sua constituio formal ocorreu durante a realizao da I Reunio sobre Formao e Utilizao de Pessoal de Nvel Superior na rea de Sade Coletiva, realizada em Braslia. Essa reunio havia sido promovida pelo Ministrio da Educao, pelo Ministrio da Sade, pelo Ministrio da Previdncia Social e pela Organizao Pan-Americana da Sade, para debater questes relacionadas rea de recursos humanos em sade (Belisrio, 2002). Um de seus principais articuladores foi Carlyle Guerra de Macedo. A primeira diretoria foi composta por Frederico Simes Barbosa, Guilherme Rodrigues da Silva e Ernani Braga, mdicos sanitaristas amplamente reconhecidos e respeitados na rea da Sade Pblica. Nesse contexto, a rea de recursos humanos foi destacada como estratgica, e a sade se configurou como instrumento de consolidao da democracia. Por meio do investimento na formao de novos profissionais, com perspectiva de transformao nas relaes de trabalho existentes, a rea da sade passou a se conformar como um campo de articulao de atores polticos e de formao de novas lideranas nessa rea. Nos anos seguintes, a associao procurou se fortalecer no contato com as agncias financiadoras, como o Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico (CNPq) e a Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), ao mesmo tempo que buscou estimular e apoiar os programas de ps-graduao neles investindo naquela rea que ia se configurando como de Sade Coletiva. De certa forma, do ponto de vista poltico, medida que o pas caminhava para um regime democrtico, a Abrasco crescia orientada pelo debate em torno da constituio de um novo campo na rea da sade, denominado de Sade Coletiva, e em torno dele se definia, se conformava como um ator poltico.

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A partir de 1985, com o governo civil, iniciou-se um novo perodo, marcado pelo processo de institucionalizao da democracia com as eleies para a Assemblia Nacional Constituinte e a elaborao de uma nova Constituio para o pas, consagrada em 1988. Para a Abrasco, esse contexto representou a expanso de sua participao e consagrou seu papel como ator poltico, quando contribuiu diretamente para as transformaes sociais em curso no pas. Esse perodo coincidiu com alteraes na gesto da Abrasco. Uma nova diretoria tomou posse tambm em 1985, ressaltando suas responsabilidades diante do novo quadro poltico nacional.Nestes seis anos de existncia a Abrasco vem cumprindo de modo bastante satisfatrio seus objetivos, talvez com maior nfase em alguns deles. Entretanto, para ns que participamos na construo de um projeto de sade coletiva, torna-se clara a necessidade de repensar a prtica de nossa entidade. Esta necessidade surge em funo da nova conjuntura poltica decorrente da queda do regime antidemocrtico. Nesta conjuntura complexa, onde o ordenamento poltico para o apoio e sustentao do novo regime resultou numa torre de babel ideolgica, imperioso se ter uma clara viso dos desafios para fazer avanar um projeto poltico para o setor sade que atenda os interesses dos segmentos sociais marginalizados do poder poltico e dominados pelo poder econmico. (Discurso de posse de Sebastio Loureiro, ento novo presidente da Abrasco, Boletim 15, maio-ago.1985)

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Com essa diretriz em estreita relao com as transformaes em curso na esfera social e poltica, teve incio um novo momento na trajetria institucional da Abrasco, acompanhando tambm as aspiraes para a rea da Sade Pblica no Brasil.

SAUDVEIS VOTOS: A CONSOLIDAO DA ABRASCO E A POLTICA DE SADE NA TRANSIO PARA A DEMOCRACIA (1980/90)O momento da eleio mostrou que apesar de poucos partidos explicitarem a sade como uma diretriz de programa partidrio, os candidatos cedo descobriram que esta era uma questo a ser politizada e que poderia ter uma resposta da populao em termos de saudveis votos. A populao espera que a sade seja tratada como uma questo sria e prioritria. (Editorial, Boletim da Abrasco, 20, ano V, out.-nov.-dez.1986)

Os anos 1980 foram marcados na rea da sade por um processo de mudanas que culminou em uma ruptura institucional consagrada com a aprovao da Reforma Sanitria. Acompanhando o contexto de abertura poltica, essas mudanas estavam vinculadas nova configurao de interesses polticos e movimentao de novos atores nesse jogo e se

associaram s transformaes na rea acadmica e no campo profissional, quando o redesenho das relaes de trabalho e do processo de trabalho na rea da sade demandava novas especializaes. Por um lado, implementaram-se mudanas de mbito institucional, como a criao do Conselho Consultivo de Administrao da Sade Previdenciria (Conasp), em 1981, e a adoo de um plano de reorientao da assistncia sade no mbito da Previdncia Social. O principal objetivo dessas medidas era integrar as diversas esferas de prestao de servios de sade (Ministrio da Previdncia e Assistncia Social (MPAS)/Ministrio da Sade (MS)/Secretarias de Estado de Sade), propsito que levou implementao das Aes Integradas de Sade (AIS) nos anos seguintes. A Abrasco participou diretamente desse processo de mudanas, assumindo, conforme editorial em seu boletim, compromisso pblico nesse sentido:A Abrasco considera que as possveis modificaes precisam ser cuidadosamente analisadas. A atual diretoria decidiu examinar criticamente o referido plano e apresentar sugestes ao Conasp. O estudo das polticas de sade no Brasil tem revelado inmeros planos malogrados, quer por privilegiarem a ampliao de servios preservando os interesses de um complexo mdico-empresarial, quer por assumirem estratgias autoritrias e tecnocrticas. No entanto, a sade como responsabilidade social e como direito conquistado requer a participao organizada da populao, do mesmo modo que os servios de sade para serem modificados necessitam de uma participao dos profissionais de sade e demais trabalhadores do setor nesse processo de redefinio. (Boletim da Abrasco, 3, jul.-set.1982)

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Por outro lado, as estratgias para fortalecer as propostas de mudanas no mbito das esferas decisrias de poder foram diversificadas, com o intuito de garantir a universalizao e a gratuidade do acesso assistncia sade. A realizao da VIII Conferncia Nacional de Sade (CNS), em 1986, e a convocao da Assemblia Nacional Constituinte, em 1987, esto entre os principais eventos que favoreceram articulaes polticas e procuraram ampliar a participao popular no processo de deciso. Com isso, assistiu-se durante toda a dcada ao fortalecimento dos grupos compro-metidos com a transio poltica e a consolidao de um sistema de governo democrtico. A Abrasco participou tambm diretamente desse esforo de mobilizao, acompanhamento e discusso das propostas em debate nesses fruns. Uma das atividades empreendidas com esse intuito foi a realizao,

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no mesmo ano de 1986, do I Congresso Brasileiro de Sade Coletiva.3 O discurso do presidente da Abrasco no evento expressava esses objetivos: neste momento, com a convocao de eleies para um congresso constituinte, que precisamos nos juntar para influenciar as decises polticas que venham resgatar o compromisso social na rea da sade, que se torna mais urgente e imperativo. A recente convocao da VIII CNS trouxe-nos a grande responsabilidade de dar continuidade a este processo e de contribuir tanto com o conhecimento tcnico e cientfico produzido na rea da sade coletiva, como na competncia poltica de analisar criticamente certas conjunturas, mobilizar vontades, articular aes e iniciativas que levem adiante um projeto de transformaes profundas e radicais para o setor sade. esta responsabilidade, este compromisso que a Abrasco, ao organizar este congresso, quer dividir com todos os participantes. este, ao nosso ver, o perfil de atuao da Abrasco. (Sebastio Loureiro, Boletim da Abrasco, 19, jul.-set.1986)

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No incio do ano seguinte, a associao, em parceria com as demais entidades que compunham a Plenria Nacional pela Sade na Constituinte, divulgaria manifesto conclamando os constituintes, entidades e movimentos populares a se unirem na reivindicao pela incluso das propostas da VIII Conferncia Nacional de Sade no novo texto constitucional que seria votado. Um ano depois, em janeiro de 1988, estando em negociao no Congresso Nacional substitutivos divergentes para o projeto de Constituio, a Abrasco reiterava seu papel nas aes destinadas mobilizao, ao acompanhamento e interveno no processo de deciso das questes polticas destinadas rea da sade.Ainda que no tenha incorporado muitas das propostas da emenda popular que encaminhamos como co-signatrios da Plenria da Sade, e que representavam as reais necessidades e aspiraes da sociedade brasileira no campo da sade (...). Ainda que lamentemos todos os vcios desta Constituinte, tantas vezes denunciados pela Abrasco, preciso que passemos a defender o mnimo que conquistamos. (...) Est claro, hoje, que o processo de entendimento e negociao parlamentar no interior da Assemblia Nacional Constituinte definir o texto que vai figurar na nova Constituio. Entretanto, no podemos afrouxar a mobilizao e presso da sociedade civil e da Plenria da Sade. (Editorial, Boletim da Abrasco, 26, jan.-fev.1988)3

Na realidade, esse seria o segundo congresso de mbito nacional realizado pela Abrasco. O primeiro evento promovido pela associao I Congresso Nacional da Abrasco foi realizado juntamente com o II Congresso Paulista de Sade Pblica, em parceria com a Associao Paulista de Sade Pblica, no perodo de 17 a 21 de abril de 1983 (Boletim da Abrasco, 3, jul.-set.1982).

Foi, portanto, nesse cenrio marcado ainda pela instabilidade poltica inerente quela fase de transio e pelas propostas de amplas mudanas e fortalecimento da participao popular que a Abrasco se consolidaria institucionalmente. Ao desempenhar um papel ativo no processo de deciso poltica na sade, paralelamente a seu forte vnculo com a rea acadmica, a associao assumia um perfil peculiar no mbito da sade, compatibilizando ao poltica e conhecimento cientfico. Como foi explicitado seis anos aps sua criao, em editorial de seu boletim:Entidade supra partidria [sic], a Abrasco muito contribuiu no grande projeto democrtico da Reforma Sanitria e foi capaz, juntamente com outras entidades, de transformar conhecimento tcnico em propostas polticas. (Editorial, Boletim da Abrasco, 25, ano VI, out.-nov.-dez.1987)

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A Abrasco chegou assim ao final dos anos 1980 avaliando que havia apresentado um bom desempenho diante dos desafios estabelecidos para aquela dcada. Em balano sobre esse perodo, ressaltou sua atuao poltica e de vanguarda, mais uma vez apontando para seu papel de articulao entre vida acadmica e ao poltica:Nestes momentos o desafio da Associao seria manter um elevado grau de coerncia e harmonia entre seus papis de ator poltico e de vanguarda e coordenao do debate tcnico cientfico. Na medida do possvel, a tarefa foi bem sucedida. (Editorial, Boletim da Abrasco, jan.1989)

A partir da teria incio um novo perodo na vida poltica do pas, que se refletiria no mbito da sade em medidas adotadas com o intuito de fortalecer as articulaes polticas e as orientaes almejadas para esse campo social. Com as vitrias consagradas no novo texto constitucional, seguiam-se novos desafios, agora voltados para assegurar a implementao das medidas aprovadas na Constituio. Esta seria uma das diretrizes que caracterizariam o debate e as aes polticas ao longo da dcada de 1990.

PENSAR, FAZER, CORRIGIR: A ABRASCO E A IMPLEMENTAO DO SUS NOS ANOS 1990A promulgao da nova Carta, em outubro de 1988, trouxe implicaes sobre o cenrio dos anos 1990, impondo no campo poltico novos realinhamentos decorrentes, entre outros fatores, da aprovao de eleio direta para presidente da Repblica em 1989. Nesse quadro poltico, no qual desaguaram os debates ocorridos no transcorrer da Assemblia Nacional Constituinte, acirravam-se as divergncias polticas e ideolgicas. A sociedade comeava a viver sob as

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coordenadas ditadas pela nova Carta, que apresentava nfase na ampliao dos direitos sociais e procurava direcionar a atividade econmica para suas funes sociais. Com um perfil ambguo e contraditrio em alguns aspectos, a nova Constituio causava polmica, configurando assim, ora um patrimnio a ser defendido e regulamentado, ora um conjunto de entraves e obstculos a serem removidos (Lattman-Weltman, 2004:321). Essas divergncias se refletiram na rea da sade, que elegeu como uma de suas prioridades assegurar a implementao da reforma sanitria, garantida formalmente no texto constitucional recm-aprovado. Entretanto, como o momento poltico estava marcado pelo confronto ideolgico, as divergncias em torno do desenho institucional adotado para o Sistema nico de Sade (SUS) persistiriam, provocando novos tipos de embates polticos e novas estratgias que permitissem alteraes no momento em que as medidas aprovadas comeassem a ser postas em prtica. Ou seja, a disputa poltica, os interesses conflitantes, conformados em grupos de interesses especficos, permaneceriam presentes nesse novo momento poltico da histria brasileira. O que se observa ao longo de toda a dcada de 1990, na rea da sade, uma preocupao em garantir as conquistas obtidas com a nova Carta e assegurar a implementao do modelo de gesto em sade definido pelo SUS. Essa deciso implicava um compromisso e entendimento entre as diferentes instncias do Executivo federal, estadual e municipal para viabilizar a proposta de descentralizao dos servios. Para isso, era necessrio garantir o funcionamento das instncias democrticas de gesto e deciso, como os Conselhos Comunitrios de Sade, que deveriam ser institudos pelas prefeituras acompanhando o princpio da municipalizao. Era necessrio comear a pr em prtica as idias e propostas elaboradas ao longo da dcada anterior. Essas proposies terminavam por vincular diretamente o modelo de gesto definido para o SUS vigncia de um regime democrtico no pas. De acordo com essa lgica, defender o SUS significava consolidar os mecanismos democrticos e defender a democracia brasileira. Para isso, outros fruns fortalecidos no processo de transio democrtica ampliavam sua participao e influncia no cenrio poltico nacional, garantindo o debate e a mobilizao necessria para acompanhar as mudanas propostas para a sade. Esse foi o caso, entre outros, da IX e da X Conferncias Nacionais de Sade e dos congressos da Abrasco. A Abrasco, ao abordar a futura realizao da IX CNS em abril de 1991, acentuava essa posio:

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O temrio da Conferncia atual e pertinente. Entretanto, necessrio que se tome cuidado para no tecnific-la, dando-lhe a feio de um congresso cientfico ou de uma cmara tcnica. A Conferncia um frum poltico. Assim devem ser levados a ela os assuntos e os pontos que esto a merecer posicionamento da sociedade, para que sejam pauta de atuao do Governo. As Conferncias e os Conselhos de Sade so instncias incomuns na nossa organizao social e uma conquista importante do setor sade. Os seus fundamentos devem ser acompanhados pela sociedade, no s naquilo que diz respeito ao setor, mas pela sua natureza, que pode se transformar em estratgia para outros setores da vida nacional. (Eleutrio R. Neto, Editorial, Boletim da Abrasco, abr.-jun.1991)

Essas pretenses polticas encontrariam resistncias por parte do Executivo nacional, que implicaram um adiamento na realizao da IX CNS. A mudana no calendrio foi interpretada como um entrave ao processo democrtico no pas, expressando os embates polticos existentes naquele momento e a adoo de mecanismos de resistncia s propostas aprovadas na Constituio. Essa situao foi descrita no editorial da Abrasco de julho de 1991, no qual os vnculos entre as propostas de mudanas para a sade associavam-se diretamente consolidao da democracia no pas.Nos ltimos meses a sociedade brasileira desenvolveu um dos mais democrticos e participativos processos de discusso, quando realizou na grande maioria dos municpios e em todos os Estados e Distrito Federal as etapas municipal e estadual da 9 Conferncia Nacional de Sade. O processo da 9 conferncia teria seu coroamento com a realizao da etapa nacional em Braslia (...). O Ministrio da Sade, sob a alegao no convincente da falta de recursos financeiros, props ao Conselho Nacional de Sade seu adiamento para 1992. (...) Ficou evidente ento o que j vinha se configurando durante todo o processo. O Ministrio da Sade no tinha e continua a no ter interesse na realizao da etapa nacional da 9 Conferncia Nacional de Sade. E as razes no so as alegadas, de falta de recursos financeiros. O que est em jogo, na verdade, o conceito de democracia do atual governo (...). A atitude protelatria do governo oculta razes muito srias: o projeto de privatizao da seguridade social (...) que altera radicalmente a estrutura de seguridade social previdncia e sade abordada na Constituio Brasileira. Certamente o governo no quis expor-se ao inevitvel debate que eclodiria durante a conferncia (...). A Abrasco mantm firme seu propsito de apoiar a implantao da Reforma Sanitria Brasileira, tanto em sua dimenso tcnica quanto poltica (...). Afinal a Abrasco tem um s compromisso: o de trabalhar junto com a sociedade brasileira na busca de melhores condies de sade para nosso povo (...). Pelo estado da democracia na sade, pode-se avaliar o estado de sade da democracia brasileira. (destaques da autora)

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Esse, portanto, seria o grande desafio a ser enfrentado e vencido no decorrer da dcada de 1990. Foi nessa direo que a Abrasco canalizou sua atuao poltica, voltada para assegurar a implantao e a consolidao do SUS, opondo-se s iniciativas de reviso constitucional e participando do processo poltico eleitoral. Em junho de 1994, durante a realizao do IV Congresso Brasileiro de Sade Coletiva e diante de um processo eleitoral indito, no qual seriam renovados os mandatos do presidente da Repblica, dos governadores de Estado, de 2/3 do Senado, de toda a Cmara dos Deputados e das Assemblias Legislativas, a Abrasco convocaria todos os seus associados e participantes do Congresso a contriburem para a elaborao de um Programa de Governo, que seria entregue em mos a cada candidato Presidncia da Repblica e ao governo de estado. Assumia assim o papel de articulador e porta-voz de um segmento da sociedade. Este o nosso por fazer. No se trata de um chamamento da Abrasco. Quem nos convoca a elaborar este programa a sociedade brasileira (Editorial, Boletim da Abrasco, jun.1994). Dois anos depois, a associao se envolveria na defesa da realizao da X Conferncia Nacional de Sade, acentuando a importncia do trabalho em prol da consolidao do SUS, da necessidade de debater e propor solues para os problemas enfrentados. preciso ter conscincia de que o cenrio (...) mudou em relao ao momento em que foi realizada a VIII Conferncia. (...) a X Conferncia tem que jogar luz sobre a implementao, etapa muito mais complexa, de menos retrica e maior desafio: pensar, fazer, corrigir, propor, tudo ao mesmo tempo. E mais: enfrentar o movimento hegemnico e quase monoltico de reformas neoliberais do Estado, que aposta menos na solidariedade social e muito mais no mercado (...). (Editorial, Boletim da Abrasco, jan.1996)

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A nfase sobre uma atuao marcada por vigilncia, acompanhamento e crtica da poltica de sade adotada e das medidas necessrias para aprimorar e fortalecer as orientaes preconizadas pelo SUS continuaria caracterizando a atuao da Abrasco nos anos seguintes. Em 2000, a associao estaria frente da realizao da XI Conferncia Nacional de Sade, quando sua presidente, Rita Barata, assumiu a coordenao do Comit Executivo e Elizabeth Barros, vice-presidente da Abrasco, foi a relatora-geral do evento, cujo tema coerentemente foi Efetivando o SUS: acesso, qualidade e humanizao na ateno sade, com controle social (Belisrio, 2002). J em 2002, diante de uma medida provisria que ressuscitou uma lei de 1975, instituindo um Sistema Nacional de Vigilncia

Epidemiolgica o qual, na interpretao da Abrasco, ignorava o papel do municpio e as conquistas asseguradas em 1988 , a associao iniciou uma ampla mobilizao para barrar as intenes do Executivo, intento que alcanou com sucesso. 4 Ao analisar essa situao, a Abrasco reafirmou em seu discurso o perfil que a definira em sua criao, bem como seu papel na histria da sade brasileira, demonstrando que atravessava o milnio mantendo os mesmos propsitos e princpios.A Abrasco sente-se mais uma vez, recompensada pela defesa do Sus, da democracia, da cidadania e da Reforma Sanitria Brasileira [sic]. A surpresa e indignao manifestadas diante dessa Medida Provisria puderam ser traduzidas em ao poltica conseqente nas instncias de controle pblico sobre o Executivo e sua burocracia, tais como o Conselho Nacional de Sade e o parlamento. O sentimento do dever cumprido perante a sociedade e seus associados estimula a identificar novas aes para a construo de um sistema de sade digno, competente e democrtico. (Editorial, Boletim da Abrasco, jan.2002)

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Como mencionado no incio deste artigo, a Abrasco, diante desses desafios polticos, desempenhou um importante papel na intermediao entre a rea de formao de recursos humanos e as proposies polticas definidas para a Sade Pblica no Brasil. Em consonncia com sua atuao poltica, participou tambm ativamente na rea acadmica, aglutinando perfis profissionais diferenciados em torno das atividades contempladas pela rea da sade. O fortalecimento desse campo de formao profissional e especializao em todo o pas contou com a atuao direta da associao, que se consolidou como frum catalisador dos debates e de gestao de novas proposies polticas para o setor.

A ABRASCO E O DESENVOLVIMENTO DA REA DE RECURSOS HUMANOS EM SADE: CONSTRUINDO IDENTIDADE NAINTERDISCIPLINARIDADE

Se por um lado importante resgatar a autoridade na administrao pblica, por outro irreal imaginar que a construo do SUS dar-se- sem a participao efetiva do corpo de funcionrios nesse processo. necessrio4

Aps discusses no V Congresso Brasileiro de Epidemiologia, o presidente da Abrasco, com o apoio da diretoria da associao, props em reunio do Conselho Nacional de Sade transformar a MP em projeto de lei, para que fosse amplamente debatido pela sociedade. Essa proposta foi aprovada e encaminhada ao Plenrio da Cmara, que a acatou e, por conseguinte, rejeitou a MP 33 (Boletim da Abrasco, jan.2002).

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conjugar a clara definio de normas e responsabilidades com a conquista dos funcionrios para um projeto coletivo de transformao (...). (Editorial, Boletim da Abrasco, 38, abr.-jun.1990)

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O projeto de Reforma Sanitria, j mencionado, representou uma ruptura institucional na tradicional estrutura relativa organizao da sade brasileira. As demandas que essa ampla mudana requeria dependiam diretamente do desempenho desses profissionais envolvidos nas atividades cotidianas dos servios. Para alm das diferentes esferas do Executivo e de suas lideranas comprometidas com o projeto de reforma ministros, governadores e prefeitos , seria no dia-a-dia, nas novas configuraes das relaes institucionais estabelecidas, com instncias que asseguravam a participao da populao, que esse projeto obteria sucesso. Portanto, ao comprometer diretamente os trabalhadores da sade no processo de implementao e consolidao do SUS, a Abrasco chamava a ateno para a questo da formao de recursos humanos em sade, campo no qual desempenhou importante papel desde o momento de sua criao. At aqui foi possvel observar, no processo de constituio e desenvolvimento institucional da Abrasco, as dimenses polticas dessa trajetria e o papel desempenhado pela associao no decorrer das transformaes sociais e polticas ocorridas no pas, principalmente a partir da segunda metade da dcada de 1970. Entretanto, paralelamente a esses eventos, a Abrasco apresentou uma importante dimenso acadmica. Na realidade, o prprio surgimento da instituio tambm reflexo das transformaes no processo de formao e especializao em Sade Pblica que se desencadeou principalmente a partir dos anos 1970. Por um lado, essa atuao acadmica se refletiu nas aes destinadas a aglutinar instituies responsveis pela formao de recursos humanos em sade, quando a associao passou a constituir uma rede de intercmbio interinstitucional no campo da educao em Sade Coletiva. A prpria conformao de um novo campo conceitual Sade Coletiva surgiu na viso de um de seus dirigentes como uma tentativa de conciliar a Sade Pblica com a medicina social e com a medicina preventiva, todas as trs reas responsveis pela formao e especializao em sade.5 Por outro lado, a atuao acadmica da Abrasco procurou fortalecer os vnculos entre esse campo de formao profissional e as5

Paulo M. Buss, em entrevista realizada por Cristina M. O. Fonseca e Eduardo Stotz no Rio de Janeiro, em 1999, informou que o Programa de Apoio s Residncias (PAR) criado em 1977 j indicava essa distino. Foi denominado Programa de Apoio s Residncias em Medicina Social, Medicina Preventiva e Sade Pblica. O termo Sade Coletiva viria com a criao da Abrasco, em 1979.

mudanas polticas e institucionais em curso na rea da Sade Pblica. A adeso dos funcionrios da sade ao projeto de reforma sanitria em curso pressupunha a articulao entre as diferentes categorias profissionais e a construo de competncias especficas nas diferentes carreiras da sade, como tambm o conhecimento do modelo gerencial proposto e aprovado. Ou seja, era necessrio compatibilizar o ambicioso projeto de mudanas institucionais na sade com as estruturas curriculares, com as escolas e universidades envolvidas na formao em sade. A formao de recursos humanos em sade nesse contexto ganharia, assim, conotaes peculiares a esse momento poltico. Ao mesmo tempo que capacitava novos profissionais em sade para atuarem nesse novo modelo gerencial, formando assim novos atores polticos, o ambiente acadmico vinha passando por importantes mudanas. Influenciada por novos atores e novos contedos programticos, a rea acadmica gerava novos conhecimentos, que dariam suporte ao debate cientfico e a propostas de formao interdisciplinares, que por sua vez haviam fortalecido o projeto de reforma sanitria. H, portanto, uma inter-relao direta entre projeto poltico institucional e formao acadmica na sade. Por isso importante compreender o surgimento da Abrasco no panorama do mundo acadmico que vigorava no Brasil naquele momento. Determinadas mudanas que podemos constatar na rea da sade esto ocorrendo, na realidade, em outros campos de conhecimento, acompanhando um movimento mais amplo de transformaes na sociedade brasileira em decorrncia das caractersticas do quadro poltico nacional. Angela Castro Gomes (2005), em anlise sobre a historiografia brasileira, destaca que ao longo da dcada de 1970 os cursos e programas de ps-graduao expandiram-se em diversas universidades brasileiras, segundo ela em virtude das polticas do governo Geisel, lembrando que em 1975 havia sido institudo o I Plano Nacional de Ps-Graduao. Especificamente na rea de histria e cincias sociais, ganharam relevncia, no mbito desses programas, anlises que se dedicavam ao tema dos movimentos sociais urbanos e rurais, histria social do trabalho e da cidadania todas de certa forma vinculadas ao tema da questo social. Esse contedo temtico no era, entretanto, exclusivo desse campo de conhecimento, sendo observado em outras reas de investigao, indicando proximidades temticas dentro do universo mais geral da academia brasileira. No mbito da sade, observam-se preocupaes semelhantes. Temas vinculados questo social tambm ganharam relevncia no debate poltico da rea e no processo de formao acadmica e especializao profissional, quando as disciplinas de cincias humanas foram incorporadas

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aos cursos da rea da sade. Congressos e seminrios internacionais estimularam a incorporao de temas sociais no debate e na definio de diretrizes polticas para a rea, como foi o caso da Conferncia de AlmaAta realizada em 1978. Ainda no decorrer do governo Geisel, iniciativas previstas no II Plano Nacional de Desenvolvimento (II PND) tambm apresentaram impacto direto sobre a rea da sade, atravs do Centro Nacional de Recursos Humanos do Instituto de Pesquisa Econmica e Aplicada (CNRH/ Ipea), da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) e do Programa de Preparao Estratgica de Pessoal de Sade da Opas (PPREPS). Em particular o PPREPS, criado em 1975 por meio de um convnio que envolvia o Ministrio da Sade, o Ministrio da Educao e Cultura e a Organizao Pan-Americana da Sade/Organizao Mundial da Sade (Opas/OMS), em associao com o Programa de Interiorizao das Aes de Sade e Saneamento (PIASS), criado em 1976, influenciou de forma expressiva os executivos estaduais, especialmente as secretarias de Sade do Nordeste, com a constituio de um novo conjunto de profissionais que por sua vez contriburam para a formao de novos especialistas nessa rea (Escorel, 1999). Associados s transformaes que vinham ocorrendo no ambiente universitrio com a criao dos Departamentos de Medicina Preventiva na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e na Universidade de So Paulo (USP), do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e com a implementao dos cursos descentralizados de sade na Escola Nacional de Sade Pblica no Rio de Janeiro , esses eventos expressavam a importncia que vinha sendo atribuda rea de recursos humanos em sade e seu papel estratgico no processo de mudanas almejadas para a Sade Pblica. Foi, portanto, no percurso de construo desse cenrio institucional voltado para a formao e especializao profissional na sade que se criou a Abrasco, instituio que congregaria os profissionais envolvidos e partcipes desse processo, uma associao de instituies docentes, de profissionais de ensino e pesquisa. Tal perfil explica a incluso do termo ps-graduao em sua sigla.66

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Nos estatutos da associao, constam entre seus objetivos: I O aprimoramento do ensino e da pesquisa em sade coletiva; II A intensificao do intercmbio entre os rgos que desenvolvem suas atividades voltadas para o treinamento, ensino e pesquisa em sade coletiva; III A obteno de apoio financeiro e tcnico para o desenvolvimento de programas de ps-graduao e pesquisa em sade coletiva; IV A cooperao entre as instituies de ensino, pesquisa e de prestao de servios de sade (Estatutos da Abrasco, cap.II, art.4, 1981).

Esse movimento provocou debates em torno da delimitao do campo da Sade Pblica e da necessidade de se definirem as especificidades da medicina social, da medicina preventiva e da Sade Pblica, levando como referido anteriormente constituio do que passou a se denominar de Sade Coletiva. Na realidade, essa nova nomenclatura sintetizava em parte as preocupaes polticas da poca, a necessidade de buscar estratgias de interveno no quadro poltico nacional e a incorporao de novas categorias de anlise nesse processo de formao profissional. Ou seja, a incorporao das questes sociais associadas aos movimentos de crtica ao sistema poltico existente e a necessidade de transformar a realidade social do pas se concretizaram, na esfera acadmica, na figura da Sade Coletiva, como smbolo e sntese das aspiraes e inquietaes polticas da poca.7 O papel da Abrasco nesse processo foi explicitado no discurso de posse de Sebastio Loureiro na presidncia da associao, j em 1985:Iremos propor uma reunio entre programas de residncia em medicina social e geral e comunitria para que, juntamente com as instituies financiadoras e potenciais utilizadores, definam o perfil mais adequado do profissional e uma poltica que estabelea o papel do residente, do sanitarista ou do especialista, inclusive com a abertura de concurso pblico para a sua absoro. impossvel a continuao dessa dissociao onde a universidade no sabe para que forma residentes e os servios de sade no se decidem sobre que residentes e se os querem afinal. Creio ser este o momento adequado para avanar com modelos de formao de recursos humanos que no somente revisse os contedos, mas se libertasse da rigidez dos regulamentos acadmicos, experimentando novas formas de qualificao de pessoal que leve em considerao as peculiaridades das instituies e as suas necessidades. (Boletim da Abrasco, maio-ago.1985)

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Nessa tarefa, a Abrasco instituiu parcerias, em particular com a Escola Nacional de Sade Pblica (ENSP), local onde estabeleceria sua secretaria executiva. 8 A Fundao Kellog, na pessoa do doutor Mario Chaves, tambm deteve papel significativo na consolidao da associao e no desempenho de suas expectativas na rea do ensino em Sade Pblica, com significativo apoio financeiro para viabilizar sua instalao na Fundao Oswaldo Cruz e a realizao de publicaes.9 Nessa direo, a associao7

H um grande nmero de trabalhos dedicados anlise da constituio do campo da Sade Coletiva. Entre eles, destacam-se Canesqui (1997), Costa (1992) e Nunes (1994). 8 At o ano de 1987 a Abrasco estava formalmente sediada na Asa Norte, em Braslia. Esse forte vnculo com a Escola Nacional de Sade Pblica, da Fundao Oswaldo Cruz, se deve entre outros fatores a seus profissionais. Frederico Simes Barbosa, Ernani Braga e Paulo Buss foram membros da diretoria da Abrasco e, em diferentes momentos, tambm diretores da ENSP. 9 Cabe lembrar que, em 1985, o professor Mrio Chaves recebeu o ttulo de scio honorrio da associao (Ata da Assemblia Ordinria da Abrasco, 12 de julho de 1985).

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promoveu em julho de 1985 um seminrio sobre o seguinte tema: desafios em ensino e pesquisa na rea de Sade Coletiva na conjuntura de transio. No decorrer dos anos seguintes, a Abrasco fortaleceu seu papel nesse campo profissional, consolidando-se como um ncleo articulador entre o ambiente acadmico e a esfera de deciso poltica. Os investimentos realizados nesse campo de atuao demonstrariam, entretanto, com o passar dos anos, que no seriam suficientes as articulaes polticas e as medidas adotadas com o intuito de integrar as instituies de pesquisa e ensino na rea de Sade Coletiva. Novos desafios se apresentariam, principalmente a partir dos anos 1990, levando novos questionamentos ao processo de formao nessa rea. A necessidade de formar quadros comprometidos com a implantao do SUS se confrontava com a maior complexidade da rea acadmica, demonstrando a necessidade de adequao entre academia e servios. Ou seja: como conciliar as exigncias do mundo acadmico e da excessiva especializao com as necessidades identificadas nos servios pblicos de sade? Uma vez que a rea de Sade Coletiva se constitua como uma nova rea de conhecimento nas instncias tradicionais de avaliao e fomento acadmico, como a Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior (Capes) e o CNPq, outras iniciativas teriam de ser adotadas para que fossem assegurados a qualidade e o reconhecimento institucional necessrios s escolas de ps-graduao em Sade Coletiva. Para isso foi necessrio investir na profissionalizao da associao por meio da constituio de um comit prprio no CNPq, que procurasse discutir e implementar indicadores compatveis com as especificidades da rea de Sade Coletiva. Esse processo se desencadeou a partir de uma avaliao dos cursos de mestrado e doutorado com a participao de pares externos instituio, realizada no decorrer dos anos de 1995 e 1996 (Belisrio, 2002). Segundo relato de Ceclia Minayo, Assim, nesse necessrio e conflituoso caminhar, o direcionamento tcnico da Associao se volta para o cumprimento dessa meta: adquirir vez, voz e demonstrar especificidade perante a comunidade cientfica (apud Belisrio, 2002:333). Alm das implicaes decorrentes da gradativa especializao do campo da sade, ao longo da dcada de 1990 foram implementadas iniciativas destinadas a aproximar a rea da sade da rea de cincia e tecnologia. Com isso vem se fortalecendo o dilogo entre esses dois campos de ao, fato que resultou na criao de um grupo de trabalho dentro da Abrasco. Essa integrao implicou tambm novos debates e iniciativas que delimitassem as especificidades de cada campo de ao, com o cuidado de no prejudicar esse movimento de aproximao e cooperao.

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A outra dimenso de ao no campo de formao profissional levou ao questionamento dos rumos que vinha tomando essa rea de atuao. Com o desenvolvimento da ps-graduao e a expanso dos cursos de formao stricto sensu, paulatinamente as residncias na rea de medicina preventiva e social foram deixando de ser foco de interesse por parte dos profissionais da sade, que passaram a privilegiar os mestrados e doutorados. Como conseqncia e paradoxalmente, em virtude de sua histria de origem, a prpria Abrasco deixou de ter esse campo como foco de prioridade. Chamando a ateno para as implicaes dessa trajetria, Campos (2000:4) argumenta:Certamente isso no se constituiria em problema maior caso houvessem permanecido permeveis outros canais de recrutamento de quadros para a sade coletiva como foram tambm no passado os cursos de especializao em sade pblica.

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Diante desse cenrio, continua o autor, a prioridade na rea de formao profissional em Sade Coletiva deveria estar direcionada para a renovao de profissionais que tivessem uma viso geral desse campo de ao. Caso contrrio, corre-se o risco de que, dentro de muito pouco tempo, quando se aposente o ltimo sanitarista generalista, ningum haver para contar o que sade coletiva e como foi construdo o SUS (Campos, 2000:5). Essas questes remetem a uma caracterstica inerente prpria Abrasco e, por conseguinte, ao campo da Sade Coletiva, que sua interdisciplinaridade, aspecto constitutivo desse campo de ao da sade. Para pensar novas estratgias de ao e aprimoramento de recursos humanos, com prioridades que traduzam as demandas apresentadas pela sociedade, necessrio, como afirma o presidente da Abrasco na gesto que se iniciou em 2003, ter clareza de nossos limites dentro desse universo interdisciplinar que impede muitas vezes de marcar nossas especificidades dentro da comunidade cientfica (Goldbaum, 2003:10). necessrio, portanto, na atual conjuntura, reafirmar a identidade da Sade Coletiva dentro de sua ampla interdisciplinaridade.

CONSIDERAES FINAISAcompanhando a histria da Abrasco, possvel afirmar que ela conjugou em torno de um projeto de transformao e mudana para a Sade Pblica com idias que podem ser sintetizadas no conceito de Sade Coletiva um conjunto de atores que trabalharam para constituir esse campo no mbito acadmico, ao mesmo tempo que

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contriburam para fortalecer as idias e propostas no mbito dos canais formais e institucionalizados do sistema democrtico que ajudaram a consolidar no pas. A Abrasco se caracteriza, portanto, como uma instituio profissional e acadmica, com forte atuao poltica, que congrega diversas categorias profissionais, mas que no deve ser vista como um ncleo corporativo. Em parte isso se deve ao campo da Sade Coletiva, que abarca uma ampla gama de profisses envolvidas com as atividades de sade. Essa interdependncia profissional especifica assim esse campo de ao. Nesse processo novas instituies surgiram e se fortaleceram, tornando o campo de ao da Sade Coletiva mais diverso e complexo. Contudo, ele mantm sua identidade em torno de ideais vinculados a um projeto poltico de nao mais igualitria, com servios de sade que efetivamente atendam s necessidades da populao. Talvez a principal identidade da Abrasco resida a, na fora das idias que orientam sua ao e seus projetos para a Sade Pblica brasileira.

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REFERNCIAS BIBLIOGRFICASABREU, A. et al. (Coords.) Dicionrio Histrico-Biogrfico Brasileiro. Rio de Janeiro: Editora FGV/CPDOC, 2001. BELISRIO, S. A. Associativismo em Sade Coletiva: um estudo da Associao Brasileira de Ps-Graduao em Sade Coletiva Abrasco, 2002. Tese de Doutorado, Campinas: Ps-Graduao da Faculdade de Cincias Mdicas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). (Mimeo.) CAMPOS, F. E. Consideraes sobre a residncia de medicina preventiva e social na atual conjuntura brasileira. Boletim da Abrasco, 76:3-5, jan.-mar.2000. CANESQUI, A. M. (Org.) Cincias Sociais e Sade. So Paulo: Hucitec/Abrasco, 1997. CARVALHO, J. M. de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. 7.ed. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2005. COSTA, N. R. Cincias sociais e sade: consideraes sobre o nascimento do campo da Sade Coletiva no Brasil. Sade em Debate, 36:58-65. Centro Brasileiro de Estudos de Sade (Cebes), out.1992. ESCOREL, S. Reviravolta na Sade: origem e articulao do movimento sanitrio. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 1999. GOLDBAUM, M. Reflexes sobre a ps-graduao em Sade Coletiva no Brasil. Boletim da Abrasco, 87:9-10, nov.2002-abr.2003. GOMES, A. M. de C. Histria, historiografia e cultura poltica no Brasil: algumas reflexes. In: SOIHET, R.; BICALHO, M. F. B. & GOUVA, M. de F. S. (Orgs.) Culturas Polticas: ensaios de histria cultural, histria poltica e ensino de histria. Rio de Janeiro: Mauad, 2005. p.21-44.

HALL, P. & TAYLOR, R. Political Science and the Three New Institutionalisms. Cambridge: Political Studies Association/Blackwell Publishers, 1996. IMMERGUT, E. M. Health Politics: interests and institutions in Western Europe. Cambridge: Cambridge University Press, 1992. LATTMAN-WELTMAN, F. Economia Simblica, Aprendizado Poltico e Institucionalizao da Mdia no Brasil. Bordeaux: Lusotopie, 2004. p.315-333. NUNES, E. D. Sade Coletiva: histria de uma idia e de um conceito. Sade e Sociedade, 3(2):5-21. So Paulo: Faculdade de Sade Pblica da USP/ Associao Paulista de Sade Pblica, 1994. STEINMO, S.; THELEN, K. & LONGSTRETH, F. Structuring Politics: historical institucionalism in comparative analysis. Nova York: Cambridge University Press, 1992.

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FONTES CONSULTADASBoletins da Abrasco. Atas de Reunies das Diretorias da Abrasco. Congressos da Abrasco Anais e documentos.

Imagem 4 Boletim Abrasco, 17, jan.-mar.1986. p.4. Imagem 5 Boletim Abrasco, 14, jan.-abr.1985. p.7. Imagem 6 Boletim Abrasco, 14, jan.-abr.1985. p.2.

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2.

CONGRESSOS DA ABRASCO: A EXPRESSO DEUM ESPAO CONSTRUDO1

Soraya Almeida Belisrio

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ode-se definir congresso como reunio, encontro, ligao, ajuntamento, conferncia, assemblia de delegados para discutirem assuntos de importncia (Ferreira, 1986). Nesses encontros, uma associao cientfica tem, por sua vez, a possibilidade de divulgao de sua produo cientfica, de difuso de conhecimentos e de troca de experincias. Uma instituio com as caractersticas da Associao Brasileira de Ps-Graduao em Sade Coletiva (Abrasco) tem nesses momentos, alm dos componentes apontados, momentos de tenses, de demonstrao de especificidades, de proposies polticas, pelo fato de seus congressos se constiturem como fruns de dimenso nacional e at mesmo internacional de discusso e de formulao de polticas de sade (Belisrio, 2002). Com uma surpreendente capacidade convocatria e mobilizadora, alm de uma vocalizao de dimenses extraordinrias, os congressos promovidos pela Abrasco, ao longo de seus 25 anos, vm surpreendendo at os mais pessimistas. Desde o primeiro evento patrocinado por ela, observa-se no s a crescente participao dos profissionais do setor como tambm a diversidade de temas e objetos de discusso e anlise. O grande papel desempenhado pelos congressos da Abrasco na rea cientfica assim como sua vocao de disseminao de conhecimentos1

P

Este texto uma verso revista e atualizada de captulo integrante da tese de doutorado Associativismo em Sade Coletiva: um estudo da Associao Brasileira de Sade Coletiva Abrasco, defendida na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), em 2002, pela autora (Belisrio, 2002).

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e estmulo para que se produzam trabalhos cientficos tambm com base em experincias prticas dos servios de sade constatado por meio do crescente nmero de trabalhos apresentados, detentores dos mais diversos matizes (Belisrio, 2002). So eventos de inegvel fora e notria importncia, j que, a despeito de conjunturas mais ou menos favorveis, a Abrasco mantm sua capacidade de convocao e sua legitimidade, representadas tanto pelo crescente nmero de participantes como pela presena em seus congressos das mais diversas autoridades, como ministros de Estado, prefeitos, secretrios e gestores, dentre outros. A anlise desses eventos constitui importante fonte de entendimento da dinmica da associao, de sua crescente legitimidade, do crescimento de suas diversas reas cientficas e de seu poder de representao. Em sua trajetria como instituio cientfica, a especificidade e a densidade do conhecimento, aliadas ao crescimento e afirmao de certas reas da Sade Coletiva crescimento esse decorrente da complexidade e da diversidade do campo , vo impor mudanas na sistemtica de realizao dos congressos da associao, levando promoo de eventos especficos por reas. Observa-se que, desde seus primeiros momentos, a Abrasco inaugurou a prtica de realizar reunies temticas, parciais, no intuito de discutir as questes mais prementes do campo que ento se constitua. Contudo, a crescente diversidade e a complexidade de reas e temticas, a serem abordadas no campo da Sade Coletiva (SC), mostraram logo a necessidade de se pensar uma frmula mais abrangente e participativa. Impulsionada por essa necessidade, a Abrasco inaugurou sua nova frmula de encontro, de interlocuo com seus representados, o Abrasco. Em seu percurso cientfico-poltico, no qual se destaca sua capacidade convocatria, a Abrasco vem, ao longo dos anos, desenvolvendo seu prprio know-how na organizao no s de congressos, seus eventos maiores, como tambm de uma srie de encontros e seminrios, chegando a ter uma importante atuao como grupo organizado nos mais variados eventos da vida nacional. Constituindo-se efetivo espao de representao da comunidade da SC, as mudanas de enfoque e amplitude sofridas pelo Abrasco, ao longo dos anos, tm na conjuntura social, poltica e cientfica as provveis razes de sua existncia, reflexo tambm dos diversos momentos vivenciados pela prpria associao. Na anlise do tema central escolhido para nortear cada Abrasco, observa-se que ele parte de uma aguerrida postura poltica, em consonncia com a conjuntura poltico-social do pas, e caminha em direo a temas

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mais abrangentes, referenciados em conjunturas mais ampliadas da vida societria, chegando mesmo a atingir o nvel da subjetividade, o sujeito, em um desses eventos. No progressivo ampliar das parcerias estabelecidas, tanto em mbito nacional como internacional, observa-se tambm uma ampliao de fronteiras que est presente no que concerne tanto ao Abrasco como aos congressos especficos organizados pela associao. importante ainda ressaltar a diversidade de documentos produzidos nesses eventos, com destaque para as cartas aprovadas em suas plenrias finais, as quais sintetizam, dentre outras questes, a posio e os encaminhamentos relativos formulao das polticas de sade no pas (Belisrio, 2002). Aqui, procurar-se- traar um panorama desses importantes eventos promovidos pela Abrasco, com destaque para o Congresso Brasileiro de Sade Coletiva o Abrasco. Far-se- tambm um apanhado dos dois principais congressos por reas especficas: os congressos de epidemiologia e os de cincias sociais. Ressalta-se que, devido aos limites deste texto, no ser possvel abordar todos os eventos em que a Abrasco foi co-partcipe com outras associaes e/ou instituies. Quando as informaes assim o permitirem, apresentar-se- um resumo das dimenses e caractersticas de cada um dos congressos realizados pela Abrasco, desde sua fundao at os dias atuais. Para a construo e organizao deste texto, utilizaram-se, como fontes preferenciais de consulta, os boletins emitidos pela associao, os anais dos eventos, seus livros de resumos, programas e demais documentos atinentes a eles.

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I CONGRESSO NACIONAL DA ABRASCOAo iniciar sua caminhada, numa primeira incurso ainda tmida, mas ao mesmo tempo ousada para uma instituio jovem, a Abrasco, juntamente com a j instituda Associao Paulista de Sade Pblica (APSP), promove seu primeiro grande evento de dimenso nacional. Assim, o I Congresso Nacional da Abrasco realizado simultaneamente ao II Congresso Paulista de Sade Pblica, em So Paulo, no perodo de 17 a 21 de abril de 1983, sob a presidncia de Benedictus Philadelpho de Siqueira, numa parceria que renderia outros frutos no futuro. Ensaiando uma j presente vocao poltica, o congresso apresenta como tema central de discusso a Poltica Nacional de Sade, abordada com foco em quatro temas bsicos: Poltica de Assistncia Mdica, Poltica

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de Saneamento, Poltica de Recursos Humanos e Participao Popular em Sade. O significado dessa primeira iniciativa para a associao se traduziu no fato de queo Congresso significou o lanamento da ABRASCO fora do crculo restrito dos profissionais de ps-graduao (...). Acreditamos que, aps este Congresso, a ABRASCO ter o respaldo e a legitimidade necessrios para ser o canal das reivindicaes e lutas no s dos profissionais de Sade Coletiva, mas tambm dos setores organizados da populao, por melhores condies de sade e pela democratizao real da sociedade brasileira. (Siqueira, 1983:1)

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Em consonncia com o tema central proposto e o momento poltico vivenciado, alerta-se para a inexistncia de um Sistema Nacional de Sade voltado para atender s reais necessidades da populao; para as conseqncias advindas das precrias condies do saneamento ambiental; para a inexistncia de uma poltica de recursos humanos; para o fato de o complexo mdico-hospitalar continuar a definir os rumos das aes de sade a serem implantadas e para o fato de a populao continuar a ser objeto das polticas de sade e no seu sujeito. Desde esse momento, pode-se avaliar como bastante intensa a capacidade convocatria da Abrasco. Essa avaliao est embasada no grande e surpreendente comparecimento de profissionais do setor, pois o congresso reuniu um nmero de participantes cerca de dois mil que surpreendeu os prprios organizadores. Esse fato demonstra no apenas o crescimento no nmero de profissionais ligados rea de SC, j naquela poca, mas tambm a dimenso das prximas atividades desenvolvidas pela associao.

I CONGRESSO BRASILEIRO DE SADE COLETIVA: O ABRASCOAo perceber que era necessrio ampliar seu escopo de participao e comunicao com seus associados, a Abrasco promove uma primeira reunio na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), no sentido de desencadear seu prprio processo de organizao de congressos. Sem experincia, com pouca infra-estrutura, mas sentindo a necessidade, sobretudo poltica, de realizar o evento, a instituio lana-se nessa empreitada a partir de sua terceira diretoria. Assim, o I Congresso Brasileiro de Sade Coletiva (CBSC), ou seja, o I Abrasco, realizado no perodo de 22 a 26 de setembro de 1986, no Rio de Janeiro, com o tema central Reforma Sanitria e Constituinte: garantia do direito universal sade.

Sob a presidncia de Sebastio Loureiro, o I Congresso Brasileiro de Sade Coletiva cumpre seu papel poltico em consonncia com seu corpo de associados e conta com a participao de cerca de dois mil profissionais da rea de SC. Sobre esse primeiro congresso, importante destacar seu papel e a oportunidade de sua realizao no momento poltico vivido. Um momento que vem, na seqncia e como um aprofundamento dos debates da VIII Conferncia Nacional de Sade (CNS), pouco antes da eleio para a Assemblia Nacional Constituinte. Em discurso proferido na abertura do evento, o presidente da Abrasco caracteriza o momento poltico como oportuno e importante para se discutir as bases tcnicas, polticas e institucionais de uma reforma sanitria que modificasse o ento quadro da sade. Ao falar sobre a VIII CNS, refora a responsabilidade de dar continuidade ao processo e de contribuir tantocom o conhecimento tcnico e cientfico produzido na Sade Coletiva, como na competncia poltica de analisar criticamente certas conjunturas, mobilizar vontades, articular iniciativas e aes que levem adiante um projeto de transformaes profundas no setor. esta responsabilidade e este compromisso que a ABRASCO, ao organizar este congresso, quer dividir com os participantes. este, ao nosso ver, o perfil de atuao da ABRASCO. (Loureiro, 1986:2)

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Ele afirma ainda que a Abrasco procurava ser a conscincia crtica do movimento progressista na sade. Como um frum cientfico com caractersticas marcadamente polticas (Abrasco, 1986a:6) , a assemblia-geral e a sesso plenria final desse I Congresso aprovam declaraes, propostas e moes cujo teor e amplitude refletem a abrangncia das preocupaes e deliberaes dos mais de dois mil participantes. Aprovam ainda a organizao de uma frente popular de defesa da Reforma Sanitria, tarefa a ser desenvolvida pela associao em 1987; a proposta elaborada por Eleutrio Rodriguez Neto, com base no relatrio da VIII CNS a proposta de contedo Sade para a Constituio, colocada como subsdio para a discusso, com vistas Assemblia Nacional Constituinte; e 26 moes referentes aos mais variados objetos atinentes ao setor (Abrasco, 1986a). A declarao final desse I CBSC reveste-se de grande importncia poltica, uma vez que, entre outras questes, reafirmaa necessidade da continuidade no processo de mobilizao social em torno da reforma iniciado com a VIII CNS; o apoio Comisso Nacional da Reforma Sanitria (...); o apoio estratgico aos avanos representados pelas AIS (...); a necessidade de construo de uma Frente Popular pela Reforma Sanitria (...);

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e o engajamento decisivo no processo constitucional, estabelecendo um projeto para a sade a ser inscrito na nova constituio e comprometendo desde agora os candidatos com as propostas da Reforma Sanitria. (Abrasco, 1986b:1)

Para a diretoria, a realizao desse congressorepresentou o novo patamar na construo cientfica do saber, ao mesmo tempo que permitiu a formulao de propostas estratgicas da Reforma Sanitria que certamente sero inscritas na nova Constituio brasileira. (Abrasco, 1986a:6)

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II CONGRESSO BRASILEIRO DE SADE COLETIVA/III CONGRESSO PAULISTA DE SADE PBLICANum momento propcio para se trabalhar um texto legal para o Sistema nico de Sade (SUS), realiza-se o II Congresso Brasileiro de Sade Coletiva, de 3 a 7 de julho de 1989, em So Paulo, apresentando como tema central o Sistema nico de Sade conquista da sociedade. Sob a presidncia de Guilherme Rodrigues da Silva e semelhana do primeiro congresso, o evento promovido em parceria com a Associao Paulista de Sade Pblica (APSP). Correspondendo s expectativas, um congresso bastante concorrido, com cerca de 2.500 participantes advindos tanto dos servios de sade quanto das instituies acadmicas. Ocorre em um momento importante para a sociedade brasileira, quando ir se realizar a primeira eleio para presidente da Repblica desde o Golpe Militar de 1964, numa conjuntura que contribui para que o congresso se transforme em espao de definio de polticas, passveis de serem cobradas dos futuros candidatos presidncia. No programa