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PROGRAMA AVANÇADO EM GESTÃO PÚBLICA CONTEMPORÂNEA PROGRAMA AVANÇADO EM GESTÃO PÚBLICA CONTEMPORÂNEA Abrindo a Caixa Preta do Estado: A Economia Política da Informação Marcos Fernandes Gonçalves da Silva 1 Há uma tendência de aproximação entre a ciência econômica, a administração pública e a ciência política que está gerando uma série de novos e importantes resultados para a análise do governo, de problemas relacionados à ação de grupos de pressão na máquina pública e da corrupção. A chamada Nova Economia Política (NEP), que engloba desde os novos campos da Nova Economia Institucional (NEI) até a teoria da Escolha Pública (EP) ou Economia Constitucional (EC), fornece conceitos e modelos para a teoria dos contratos e para a teoria econômica do direito e da análise das leis. 1 Professor Adjunto Doutor FGV/EESP, FGV/EAESP. Avenida Nove de Julho, 2029, 05435001 (00-55-1132813353) [email protected] . 1

Abrindo a Caixa Preta Do Estado

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Abrindo a Caixa Preta do Estado: A Economia Política

da Informação

Marcos Fernandes Gonçalves da Silva1

Há uma tendência de aproximação entre a ciência econômica, a administração

pública e a ciência política que está gerando uma série de novos e importantes

resultados para a análise do governo, de problemas relacionados à ação de

grupos de pressão na máquina pública e da corrupção. A chamada Nova

Economia Política (NEP), que engloba desde os novos campos da Nova

Economia Institucional (NEI) até a teoria da Escolha Pública (EP) ou

Economia Constitucional (EC), fornece conceitos e modelos para a teoria dos

contratos e para a teoria econômica do direito e da análise das leis.

O objetivo deste artigo é mostrar que a escolha democrática e, portanto, o

Estado e o governo democráticos, possuem falhas que abrem espaço para a

separação entre o público e o estatal, entre os interesses de grupos de pressão e

os interesses "coletivos", os quais são, em verdade, hipotéticos. Por exemplo, o

aparecimento de ineficiência e da corrupção na máquina pública está associado

ao fato de que não podemos falar, a rigor, em administração gerencial pura

dentro do Estado, ao custo de ingenuamente supor que as estruturas de

incentivo com as quais deparam-se burocratas, políticos e os agentes privados

que agem sobre a máquina pública possam ser comparáveis às estruturas de

mercado.

1 Professor Adjunto Doutor FGV/EESP, FGV/EAESP. Avenida Nove de Julho, 2029, 05435001 (00-55-1132813353) [email protected].

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Para mostrar como as escolhas públicas são intrinsecamente falhas e que,

naturalmente, admitem ineficiência e corrupção ocasional 2, farei uma

apresentação da visão implícita ao conjunto de abordagens da NEP para, em

seguida, indicar sua relevância no estudo da gestão pública. Usarei sempre o

exemplo da corrupção por representar um caso clássico de disfunção gerencial.

As principais questões que buscarei responder são:

1. O agente público, burocrata ou político, pode ser comparado ao agente

privado que atua em organizações privadas?

2. As escolhas e decisões públicas possuem a mesma natureza das decisões

privadas?

3. Podemos imaginar um modelo de autonomia burocrática aos moldes da

autonomia relativa de decisão de um burocrata do setor privado?

As escolhas públicas não são estritamente técnicas ou gerenciais. Não há

neutralidade das decisões públicas no que se refere aos interesses de grupos de

pressão dentro e fora do Estado. Por exemplo, a elaboração e gestão de um

orçamento público é um processo técnico (contábil e financeiro) e político. A

desconsideração desse fato pode implicar diagnósticos inadequados e

formulações legais e institucionais que podem abrir espaço, como bem ilustra a

história recente do Brasil, para o aparecimento, por exemplo, de corrupção no

orçamento. Isto é, a elaboração de um arcabouço legal-constitucional para

nortear o processo orçamentário deve considerar a natureza política do mesmo,

pelo menos se o objetivo das leis e instituições é controlar o desvirtuamento do

orçamento; outro exemplo: a análise das compras de obras de engenharia e de

bens e serviços pelo governo deve, da mesma forma, levar em consideração

2 Usarei corrupção neste artigo somente como um exemplo de falha de estruturas de governança e de accountability.

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que as escolhas públicas possuem um caráter especial, qual seja, elas são

sujeitas a critérios políticos.

Portanto, há uma dimensão política das decisões públicas, gerando

potencialmente a impossibilidade de um Estado gerencial puro e a necessidade

de controle rigoroso sobre as decisões dos agentes públicos. Para explicar este

fato usaremos alguns conceitos de teoria econômica aplicada ao estudo das

organizações.

A economia tem ampliado seus limites para além de seu objeto tradicional,

qual seja, o estudo da formação de preços. Ela é também um método de análise

aplicável a outros domínios das ciências sociais, como a sociologia, a política

e a teoria das organizações públicas, não públicas e públicas não estatais.

A ciência econômica pode ser entendida como o estudo dos processos de

escolha condicionadas por restrições. Sempre que há uma escolha com

restrição surgem escassez e custo de oportunidade, que são os dois conceitos

econômicos fundamentais dentro da teoria da escolha racional. A ciência

econômica pode, inclusive, ser definida genericamente, como o faz Robbins

(1935), enquanto o estudo das escolhas limitadas a restrições.

A descrição da visão econômica da política e das escolhas individuais e

coletivas será o ponto de partida para a minha apresentação de uma visão geral

de análise dos processos de produção de bens públicos puros e semi-públicos.

O fundamento da teoria econômica da política é a teoria da escolha racional. A

noção de racionalidade em economia pressupõe os conceitos de preferências,

ordenações transitivas e maximização condicionada por restrições. Considere-

se o seguinte exemplo: um processo de escolha pública envolvendo consecução

de algumas obras públicas, no qual o agente público depara-se com três opções

de alocação do recurso público (três obras de engenharia diferentes)

denominadas 1, 2 e 3. Suponha que a sociedade tenha revelado suas

preferências – por meio do voto– ao político/burocrata e que este as explicita

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da seguinte forma: o projeto 1 é preferível ao 2, que é preferível ao 3. A

racionalidade da escolha pública, a qual se revela, por hipótese, idêntica à da

sociedade, depende da transitividade das preferências; isto é, o burocrata, se

racional, deve também preferir 1 a 3.

As ordenações de preferências do agente individual privado dependem, a

princípio, dos incentivos implícitos a um conjunto de regras, normas, leis e

instituições e dos valores e ideologias. Por exemplo, há alguns anos atrás

muitas pessoas colocavam fora de seu espaço de escolha de bens de consumo

tudo que se relacionava à África do Sul. Por trás de uma ordenação de

preferências há um sistema de valores e crenças. Se alguns agentes têm suas

ordenações determinadas por crenças que podem ser consideradas absurdas –

devido à ignorância ou à superstição – isto não caracteriza suas ordenações de

preferências e suas decisões, portanto, como irracionais: de gustibus non est

diusputandum, ou simplesmente, gosto não se discute. Na teoria da escolha

racional, as preferências são formadas exogenamente e conforme as crenças e

valores dos indivíduos. O predicado de racionalidade da teoria apenas exige,

por necessidade lógica, ordenações e decisões consistentes, ou seja, a escolha

racional pede somente, deste ponto de vista, consistência entre crenças e ação.

Outro aspecto fundamental para a teoria da escolha racional é a suposição de

que os agentes decidem diante de restrições e que, portanto, há custo de

oportunidade implícito a qualquer escolha. A construção de uma rodovia em

um determinado local, por exemplo, evidencia a existência de uma restrição

representada pelo orçamento: há um custo de oportunidade nessa decisão pois,

dada a escassez de recursos financeiros, deixa-se de lado outros projetos de

construção e várias localidades perdem os benefícios potenciais de

investimentos.

Outro aspecto importante da teoria da escolha racional é apontado por Elster

(1987). A teoria da escolha racional sugere uma forma específica de

relacionamento entre os conceitos de preferência, crença e escassez. A ação

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racional deve seguir critérios de consistência lógica, que se aplicam para as

ordenações de preferências e crenças, e também deve ser eficiente: a decisão é

racional quando o agente procura a melhor forma de atingir seus objetivos. Na

teoria dos preços, por exemplo, a eficiência da ação empresarial depende da

hipótese de maximização de lucros. A ação racional supõe, portanto,

transitividade e eficiência.

A teoria econômica considera que, nos processos de escolhas individuais, as

instituições e valores são exógenos. Todavia, esses elementos são

fundamentais, dado que implicam estruturas de incentivos que podem gerar

resultados não desejados. A simples existência de Estado e governo cria a

possibilidade de alocações políticas de recursos econômicos escassos, as quais

podem ser determinadas por critérios não competitivos. A criação de um

subsídio, devido à ação de grupos setoriais de pressão, altera o sistema

alocativo e gera transferências de renda. Exemplo análogo é a criação de

direitos especiais dentro da lei, como monopólios e cartórios. Não obstante, os

agentes econômicos que vislumbram a possibilidade de receberem privilégios

com concorrências públicas dirigidas agirão racionalmente se levarem em

consideração os benefícios criados pelas regras do jogo – ou pela ausência das

mesmas. Entretanto, o resultado dessas ações racionais, do ponto de vista

social e da eficiência econômica, pode ser custoso para a sociedade. A

argumentação aqui se sustenta na teoria do rent seeking – "atividades

caçadoras de renda". O objetivo desse tipo de ação é transferir renda, e não

gerá-la. O resultado de ações caçadoras de renda generalizadas dentro da

sociedade é uma alocação ineficiente de recursos econômicos escassos em

atividades tipicamente improdutivas (ver, por exemplo, Baumol, 1990).

A EC e a EP representam um campo de estudo, dentro das chamadas teorias

econômicas da política, dos processos de escolha no Estado. A análise a ser

desenvolvida neste artigo partirá basicamente dos resultados apresentados por

trabalhos significativos nesses campos de pesquisa como, por exemplo, os de

Buchanan & Tullock (1962), Arrow (1951), Downs (1957) e Olson

(1965,1982).

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Arrow (1951) prova logicamente a impossibilidade de escolhas coletivas

racionais (transitivas e completas), como as decisões de produção de bens

públicos e como a própria escolha democrática dentro de qualquer parlamento.

Por exemplo, considere-se a existência de três indivíduos na sociedade (1, 2 e

3) e três possibilidades de contratação, pelo governo, de obras públicas (A, B e

C). Suponha-se que: (i) o indivíduo 1 possui uma ordenação de preferências de

tal forma que A é preferível a B, a qual é preferível a C; (ii) o indivíduo 2,

uma ordenação para a qual C é preferível a A, que é preferível a B; e (iii) o

indivíduo 3, uma ordenação tal que B é preferível a C e C é preferível a A.

Nesse caso, se cada indivíduo é racional e faz escolhas racionais, cada

ordenação individual de preferências deve implicar, portanto, transitividade.

Por definição, a transitividade exige que, para o indivíduo 1, se A é preferível

a B e B a C, então A deve ser preferível a C, por exemplo.

Por outro lado, é impossível agregar essas ordenações de preferências no nível

público, social ou coletivo. As ordenações individuais e privadas de

preferências não criam a possibilidade de uma ordenação coletiva racional.

Portanto, não há a possibilidade de escolhas coletivas e públicas racionais. Há,

na verdade, a possibilidade de escolhas privadas dentro do Estado feitas por

políticos e burocratas, que podem ter suas ações mais ou menos controladas

pela Constituição e pelas leis.

Tullock (1993) desenvolve o conceito, ao qual me referi acima, de

comportamento rent-seeking ou caçador de renda. Segundo essa concepção, os

agentes privados e públicos buscam transferir renda dentro da sociedade. Numa

economia competitiva pura, sem Estado ou qualquer poder de monopólio, na

qual os indivíduos são remunerados de acordo com suas capacidades

produtivas, a distribuição de renda dependerá da distribuição do estoque de

propriedade, da qualidade dos fatores de produção e do esforço de trabalho dos

indivíduos. Todavia, com o aparecimento de, por exemplo, um monopólio,

haverá transferência de renda dentro da economia, dada a existência de lucro

econômico positivo no equilíbrio de longo prazo. Caso apareça um monopólio

na economia, conquistado devido à concessão de direitos especiais

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barganhados junto ao Estado, o agente e o conjunto de agentes que se

beneficiam do mesmo são definidos como caçadores-de-renda.

O rent-seeking surge tipicamente como uma atividade "parasitária" do Estado.

O Estado arrecada tributos e transfere-os, legal ou ilegalmente, por meio da

produção de bens públicos, como segurança, e bens semi-públicos para

determinados segmentos da sociedade, os quais se organizam na forma de

grupos de pressão. Por isso, não é possível imaginar um Estado, ou governo,

gerencial puro.

Olson (1965) descarta qualquer possibilidade de um Estado gerencial puro. O

Estado e o mercado político não são perfeitos: políticos e burocratas

representam seus interesses dentro do governo e os interesses de agentes

privados que se organizam coletivamente para agir sobre a máquina

governamental, e tal ação visa caçar renda de grupos da sociedade menos

organizados. Essas transferências podem ser acompanhadas de conflitos

distributivos entre diversos grupos de interesse que competem entre si para

garantir maiores benefícios.

Entretanto, faz-se necessária a exposição mais detalhada do argumento que

sustenta a impossibilidade de um Estado gerencial. É preciso mostrar porque o

burocrata deve ser submetido a relações de contratos e incentivos. Faz-se

necessário o estudo dos problemas de agência e da impossibilidade de

autonomia burocrática dentro do Estado.

Przeworski (1996) sugere uma abordagem para o estudo do comportamento

burocrático: a teoria da agência, ou o chamado problema principal-agente. Na

verdade, entre economistas e modernos teóricos da administração privada e

pública, essa teoria não representa, hoje em dia, nenhuma novidade.

Entretanto, nas ciências sociais em geral e, principalmente, entre vários

intelectuais e administradores públicos brasileiros, tal concepção infelizmente

é pouco conhecida. Infelizmente, pois, o problema principal-agente ajuda a

compreender melhor porque precisamos de relações contratuais formais e

informais específicas que condicionam a ação de burocratas, de tal forma a

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maximizar a eficiência e a eficácia da administração pública. Pode-se definir o

problema de agência da forma que segue: o problema principal-agente (ou

agência) surge quando, no estabelecimento um contrato 3, o contratante

(principal) não possui informação perfeita que permita a avaliação do esforço

ou ação empreendida pelo agente, ação que afeta o bem-estar do primeiro.

Aqui o termo principal refere-se ao indivíduo ou entidade que possui a

autoridade para agir, enquanto o agente é aquele que atua no lugar do principal

e sob a autoridade contratual do mesmo.

A teoria em questão pode ser resumida de forma muito simples. O principal é

aquele que, numa organização, delega responsabilidade a um outro indivíduo,

denominado agente, o qual age de acordo com seus objetivos privados. O

problema em questão reside no fato de que, na administração, em geral, e na

pública, em particular, torna-se extremamente difícil a fiscalização do

comportamento do agente. Pode-se, portanto, afirmar que principal-agente é

uma questão de supervisão e controle de comportamento de agentes que podem

agir de forma oculta. Na medida em que a eficiência e a decência da

administração pública dependem do comportamento, nem sempre controlado e

supervisionado, de agentes (burocratas), o principal (a sociedade, representada

pelo governo) vê-se à mercê da perda de controle sobre a máquina estatal.

Há diversos problemas de agência na administração pública. Por mais que se

suponha que todos burocratas sejam, a princípio, agentes que buscam

maximizar seus esforços altruísticamente visando o bem comum, deve-se supor

que os funcionários públicos e contratados têm suas ações motivadas por

interesse próprio (legítimo) e nem sempre pelo suposto interesse coletivo.

O Homem4 público é igual, em parte, a qualquer agente econômico, isto é, não

há razão de se supor que somente o homem privado busque seus fins privados:

o homem público não é um agente perfeito, imune aos seus próprios interesses

3 Contrato aqui pode ser um contrato formal de trabalho, jurídico ou contrato tácito, informal, por exemplo. Contratos são relações entre agentes estabelecidas com base em algum acordo de ação a priori cooperativa.4 Vale notar, para se evitar qualquer problema de incorreção política, que refiro-me à espécie, não ao gênero!

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privados. Como visto acima, as teorias econômicas aplicadas à política e à

administração pública levam em consideração que as ações na esfera pública

são políticas num sentido muito específico, qual seja: os interesses privados

dentro e fora do Estado são relevantes para explicar as próprias ações de

governo. Logo, a desconsideração deste fato (empírico inclusive) nos modelos

de controle sobre o comportamento dos agentes públicos pode trazer sérias

conseqüências para as políticas de reforma do Estado.

Considerações a respeito daquilo que os economistas chamam de economia da

informação são relevantes para a melhor compreensão, juntamente com o

problema principal-agente, da ação do agente público. A economia da

informação estuda um objeto amplo, associado ao rompimento da hipótese,

presente nas análises econômicas, segundo a qual os indivíduos que atuam no

mercado, ou dentro de organizações, possuem acesso ao mesmo estoque de

informações. Entretanto, a discussão em torno da administração pública e da

relação entre o principal (a sociedade representada no governo) e os agentes

(os burocratas) deve ser suficientemente realista ao ponto de incorporar a

hipótese de que, na maior parte das vezes, a ação dos agentes não está sob total

controle do principal. Ademais, considerando-se que os agentes possuem fins

privados, o problema do estabelecimento de contratos eficientes torna-se

central.

Os economistas definem como risco moral a possibilidade de que o

comportamento do agente se desvie do desejado pelo principal. Isto é, há a

possibilidade de uma parte envolvida na administração de uma organização

empreender determinadas ações sem que os "gerentes" – no caso da

administração pública, os contribuintes e o governo – possam fiscalizar

perfeitamente suas mesmas ações. Logo, podemos entender agora todas as

dimensões do problema principal-agente aplicado ao setor público: o problema

principal-agente (ou agência) surge quando, no caso da administração pública,

o contratante-principal (sociedade) não possui informação perfeita que permita

a avaliação da probidade da ação empreendida pelo segundo, ação essa que

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afeta o bem-estar do primeiro. É exatamente esse fato o que torna o problema

principal-agente tão importante para a compreensão do problema da

administração pública.

Num mundo perfeito, de informação e controle perfeitos, certamente não

existiria ineficiência e ineficácia das ações de Estado. No entanto, os fatos da

vida prática indicam o contrário. O agente pode ter –e geralmente tem – mais

informação que o principal e pode agir – e agirá – de acordo com seu próprio

interesse; a informação que o principal recebe é inadequada para monitorar o

agente. Isto é, o agente comporta-se estrategicamente.

Por exemplo, se uma firma (principal) contrata um empregado (agente), o

principal espera que o agente trabalhe duro, maximizando o esforço. No

entanto, o agente pode, se tiver condições, trapacear. O incentivo à trapaça é

diretamente proporcional à possibilidade das ações do agente serem ocultas e

da incapacidade do principal de controlá-las.

Pode-se imaginar esquemas de fiscalização e controle do comportamento dos

burocratas. Porém, na maior parte dos casos, a fiscalização é cara ou

impossível. A solução para isso talvez seja a introdução de incentivos aos

contratos: se o agente tem a priori incentivo para agir em seu próprio

interesse, uma mudança no sistema de incentivos pode dirigir seu

comportamento a um resultado ótimo do ponto de vista do principal e dele

mesmo. Os incentivos devem ser concebidos de tal forma a levar a parte que

age de forma oculta a assumir plenamente as conseqüências de suas ações. No

caso, por exemplo, de uma relação entre o governo (principal) e o burocrata

(agente), um contrato eficiente entre as partes pode ser o estabelecimento de

contratos de gestão com metas e bonificações. O problema central, no que se

refere ao problema de agência no setor público, está em como criar uma

arquitetura contratual que limite a priori o comportamento incontrolável do

burocrata, já que o Estado não tem acionistas, por exemplo.

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Pelas razões expostas acima, esse tipo de análise é perfeitamente aplicável

ao estudo da administração no setor público, particularmente no que se refere à

elaboração e execução de peças orçamentárias e planos anuais de investimento.

É fundamental entender que as regras básicas que orientam a ação dos agentes

dentro do Estado são, além das leis de controle sobre a ação do Homem

público, os contratos de incentivo. A princípio, a lei e as regras dos setor

público existem para limitar e orientar, no âmbito da administração pública, o

comportamento dos agentes públicos na direção do interesse social. Entretanto,

há um problema que transcende o poder das leis, regras e regulamentos em

controlar o comportamento dos agentes públicos: eles têm seus próprios

interesses, que podem coincidir ou não com interesses dos gestores

hierarquicamente superiores. Nesse sentido, a administração pública tende a

ser mais imperfeita do que se imagina à primeira vista. Os contratos de

incentivo podem ser mecanismos de definição das regras do jogo e dos pay-offs

na administração pública, de forma a minimizar os desvios do Estado vis-à-vis

ao interesse da sociedade em geral.

A regra do jogo na administração pública cria a estrutura de incentivos que

direciona as escolhas individuais e, portanto, determina a alocação mais ou

menos eficiente e eficaz dos recursos públicos. Tais incentivos motivam

racionalmente os talentos de uma organização. Caso contrário, se não há

contratos adaptados a incentivos dentro do governo, há a tendência ao

desperdício de recursos econômicos e tecnológicos (conhecimento humano) em

atividades que não agregam nada à eficiência organizacional.

BIBLIOGRAFIA E REFERÊNCIAS

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