of 13 /13
AÇÃO MEDIADORA COM COMUNICAÇÃO ALTERNATIVA NA PROMOÇÃO DE INCLUSÃO DE ALUNOS COM TRANSTORNO DO ESPECTRO AUTISTA Liliana Maria Passerino (UFRGS) i Maria Rosangela Bez (UFRGS) ii Resumo O presente artigo apresenta um recorte de pesquisas do grupo TEIAS Tecnologia na Educação para Inclusão e Aprendizagem em Sociedade no âmbito do projeto SCALA Sistema de Comunicação Alternativa para Letramento de crianças com Autismo. São demonstrados exemplos de práticas inclusivas de atuação junto a sujeitos com Transtorno do Espectro Autista (TEA) não oralizados, no seu desenvolvimento sócio-cognitivo. O artigo aborda a mediação que embasa as práticas inclusivas e da comunicação e linguagem e sua importância neste processo. São discutidos os problemas de comunicação presentes no autismo e as possibilidades da comunicação alternativa como alternativa pedagógica. Na sequência é apresentado o Sistema SCALA e uma proposta metodológica para o mesmo. Esta proposta fundamenta-se na elaboração de ações mediadoras a partir de contextos de ação visando a uma reorganização das relações do sujeito com o mundo, e não apenas na ampliação, complementação ou suplementação das funcionalidades de comunicação do sujeito com Transtorno do Espectro Autista. As práticas inclusivas com uso de ações mediadoras, realizadas em duas turmas de educação Infantil mostraram resultados promissores nos processos inclusivos. Palavras-chave: Transtorno do espectro autista, comunicação alternativa, inclusão. 1 Introdução O presente artigo apresenta um recorte das pesquisas do grupo TEIAS Tecnologia na Educação para Inclusão e Aprendizagem em Sociedade da UFRGS no âmbito do projeto SCALA Sistema de Comunicação Alternativa para Letramento de crianças com Autismo. O texto discute a importância da mediação e da comunicação para o desenvolvimento de sujeitos com Transtorno do Espectro Autista (TEA) e apresenta uma proposta metodológica de intervenção educativa e um recurso de tecnologia assistiva em comunicação alternativa (SCALA) desenvolvido com a finalidade de promover a comunicação oral e a interação de crianças com TEA na Educação Infantil. 2 Mediação A mediação é uma ação que se desenvolve entre três elementos no mínimo, sendo dois sujeitos e um objeto, na qual os sujeitos se focam em torno desse objeto com a finalidade de executar alguma ação. Na perspectiva sócio-histórica a mediação adquire um papel importante no desenvolvimento humano, pois dentro de um contexto social inclui a utilização de ferramentas e signos e a combinação desses instrumentos iii , também chamados de mediadores, possibilitando o desenvolvimento de processos cognitivos. Didática e Prática de Ensino na relação com a Escola EdUECE- Livro 1 00715

AÇÃO MEDIADORA COM COMUNICAÇÃO ALTERNATIVA ... - … AÇÃO MEDIADORA COM... · aÇÃo mediadora com comunicaÇÃo alternativa na promoÇÃo de inclusÃo de alunos com transtorno

  • Author
    trantu

  • View
    235

  • Download
    0

Embed Size (px)

Text of AÇÃO MEDIADORA COM COMUNICAÇÃO ALTERNATIVA ... - … AÇÃO MEDIADORA COM... · aÇÃo...

AO MEDIADORA COM COMUNICAO ALTERNATIVA NA PROMOO

DE INCLUSO DE ALUNOS COM TRANSTORNO DO ESPECTRO AUTISTA

Liliana Maria Passerino (UFRGS)i

Maria Rosangela Bez (UFRGS)ii

ResumoO presente artigo apresenta um recorte de pesquisas do grupo TEIAS Tecnologia naEducao para Incluso e Aprendizagem em Sociedade no mbito do projeto SCALA Sistema de Comunicao Alternativa para Letramento de crianas com Autismo. Sodemonstrados exemplos de prticas inclusivas de atuao junto a sujeitos com Transtornodo Espectro Autista (TEA) no oralizados, no seu desenvolvimento scio-cognitivo. Oartigo aborda a mediao que embasa as prticas inclusivas e da comunicao e linguageme sua importncia neste processo. So discutidos os problemas de comunicao presentes noautismo e as possibilidades da comunicao alternativa como alternativa pedaggica. Nasequncia apresentado o Sistema SCALA e uma proposta metodolgica para o mesmo.Esta proposta fundamenta-se na elaborao de aes mediadoras a partir de contextos deao visando a uma reorganizao das relaes do sujeito com o mundo, e no apenas naampliao, complementao ou suplementao das funcionalidades de comunicao dosujeito com Transtorno do Espectro Autista. As prticas inclusivas com uso de aesmediadoras, realizadas em duas turmas de educao Infantil mostraram resultadospromissores nos processos inclusivos.

Palavras-chave: Transtorno do espectro autista, comunicao alternativa, incluso.

1 Introduo

O presente artigo apresenta um recorte das pesquisas do grupo TEIAS Tecnologia

na Educao para Incluso e Aprendizagem em Sociedade da UFRGS no mbito do projeto

SCALA Sistema de Comunicao Alternativa para Letramento de crianas com Autismo.

O texto discute a importncia da mediao e da comunicao para o desenvolvimento de

sujeitos com Transtorno do Espectro Autista (TEA) e apresenta uma proposta metodolgica

de interveno educativa e um recurso de tecnologia assistiva em comunicao alternativa

(SCALA) desenvolvido com a finalidade de promover a comunicao oral e a interao de

crianas com TEA na Educao Infantil.

2 Mediao

A mediao uma ao que se desenvolve entre trs elementos no mnimo, sendo

dois sujeitos e um objeto, na qual os sujeitos se focam em torno desse objeto com a

finalidade de executar alguma ao. Na perspectiva scio-histrica a mediao adquire um

papel importante no desenvolvimento humano, pois dentro de um contexto social inclui a

utilizao de ferramentas e signos e a combinao desses instrumentosiii, tambm chamados

de mediadores, possibilitando o desenvolvimento de processos cognitivos.

Didtica e Prtica de Ensino na relao com a Escola

EdUECE- Livro 100715

Para Wertsch (1999), quando os interlocutores participam de um processo de

mediao, se estabelece um nvel intersubjetivo ao compartilhar uma definio de situaoiv

que o autor denomina de ao mediadora.

A ao mediadora um conceito proposto por Wertsch (1999) a partir dos estudos

scio-histricos derivados de Vygotsky (1998), especialmente no que ser refere

apropriao, de Bakhtin (1981) nos aspectos semiticos e discurso, e de Burke (1966)

contemplando as mltiplas perspectivas da ao humana. Para Wertsch (1999), a ao

humana toda ao na qual possvel encontrar cinco elementos: o Ato , que se refere ao

que efetivamente aconteceu, seja nos fatos ou no pensamento; a Cena que estabelece a

situao ou contexto no qual o ato se desenvolveu; o Agente que se refere a(s) pessoa(s)

que desenvolveu(ram) o ato; a Agncia, que so os meios ou instrumentos utilizados pelo(s)

agente(s) no ato; e o Propsito trata-se do objetivo implcito ou explcito do ato

desenvolvido por esse(s) agente(s).

Segundo Wertsch (1999) o ponto principal de tenso na proposta de Burke encontra-

se na dialtica entre agente e agncia. Esta tenso , na opinio do autor, um binmio

irredutvel para anlise do processo de mediao e constituiria o que o autor denomina de

ao mediada.

Na ao mediada, signos e instrumentos participam em conjunto com os sujeitos em

interao. O sujeito se apropria desses signos e os utiliza ativamente, primeiro de forma

controlada pelo sujeito mais experiente e depois autonomamente ao atingir a

autorregulao. Esse processo implica a transformao do instrumento em um conceito

(signo), que usado, inicialmente, para o autocontrole no incio do processo de

internalizao at chegar na autorregulao.

A ao mediada pode ser tanto interior como exterior e individual ou coletiva.

Porm, importante destacar que toda ao mediada tem uma dimenso psicolgica

individual e uma dimenso exterior instrumental ou objetiva, ambos os elementos se

tensionam e se inter-relacionam de forma no redutvel (WERTSCH, 1999). O resultado da

ao mediada um processo de apropriao no qual o sujeito passa a internalizar a ao

alterando seus estados mentais a partir do uso de instrumentos e signos. A apropriao se

relaciona com os processos psicolgicos e com a forma de mediao proposta (agente-

agncia) que pode restringir ou possibilitar o ato. Desta forma, a ao ganha caractersticas

qualitativamente diferentes a partir dos modos de mediao adotados e influncia no

processo de apropriao.

A apropriao acontece, segundo Tomasello (2003), numa cena de ateno

conjunta de carter tridico na qual participam dois agentes a partir de um contexto

Didtica e Prtica de Ensino na relao com a Escola

EdUECE- Livro 100716

compartilhado atuando sobre objetos. As cenas de ateno conjunta aparecem cedo no

desenvolvimento humano, por volta dos nove meses de idade quando as crianas comeam

a perceber os outros como agentes intencionais, seres comuns que possuem objetivos e

fazem escolhas ativas entre os meios comportamentais disponveis para atingir aqueles

objetivos, o que inclui escolher ativamente ao que se ir prestar ateno na busca desses

objetivos (TOMASELLO, 2003, p.94).

justamente nestas cenas que se desenvolve o processo de mediao, no qual

aprendemos coisas atravs dos outros, dos artefatos e prticas culturais nas quais

participamos e dos problemas e situaes que enfrentamos. Esse processo de mediao

permite utilizar artefatos e prticas para alm do mundo fsico, adentrando no mundo

psicolgico das intenes, das crenas, das representaes mentais dos nossos pares. Para

esse processo ser bem-sucedido a linguagem adquire importncia fundamental, como

veremos no item a seguir.

3 Comunicao e Linguagem

Toda linguagem humana composta de um sistema de smbolos lingusticos

adquiridos em um longo processo ontolgico de aprendizagem cultural (TOMASELLO,

2003) com uma dupla funo: a comunicativa e a cognitiva (VYGOTSKY, 2001). A

primeira permite estabelecer o processo de comunicao pela escolha e combinao de

smbolos, enquanto que a segunda, permite a representao de crenas e intenes agindo

estados mentais prprios e dos outros (TOMASELLO, 2003). Para Luria (1986) esta ltima

funo a que transformaria a linguagem num instrumento de pensamento e generalizao

[...] a palavra nunca se refere a um objeto isolado, mas a todo um grupo ouclasse de objetos. Por essa razo, cada palavra uma generalizao latente,toda palavra j generaliza e, em termos psicolgicos, antes de tudo umageneralizao (VYGOTSKY, 1988, p. 9).

A comunicao trata-se, portanto, de um processo multidimensional complexo no

qual se evidencia o uso intencional de smbolos lingusticos entre agentes na construo

intersubjetiva e perspectivada de significados (TOMASELLO, 2003).

Nas pesquisas de Vigotsky (2001) a palavra assume a funo de signo mediador que

no incio o meio de formao do conceito e, finalmente, se transforma em seu smbolo,

[...] por um longo tempo, a palavra para a criana antes uma propriedade que um

smbolo do objeto: que a criana assimila a estrutura externa. Ela assimila a estrutura

externa: palavra-objeto, que j depois se torna estrutura simblica (VYGOTSKY, 2001,

p.145). Sua aquisio se concretiza pelo uso do smbolo em aes de mediao (tridicas)

por meio das quais os participantes negociam e constroem o significado de forma

Didtica e Prtica de Ensino na relao com a Escola

EdUECE- Livro 100717

intersubjetiva, pois [...] o significado da palavra vem dado do processo de interao social

verbal com os adultos. As crianas no constroem seus prprios conceitos livremente. Os

encontram construdos no processo de compreenso da fala dos outros (WERTSCH,

1988, p. 121).

Para Tomasello (2003) ao comunicar uma reorganizao de representaes sociais,

culturais e mentais so efetivadas para construo e partilha de significados. Essa

intersubjetividade acontece quando os interlocutores compartilham algum aspecto de suas

definies de situao, podendo existir diferentes nveis de intersubjetividade dependendo

do nvel de compartilhamento entre os sujeitos (WERTSCH, 1988, 1999).

Contudo, Tomasello (2003) alerta que, alm da intersubjetividade, os smbolos

lingusticos tambm apresentam perspectivao, pois a compreenso de um smbolo

comunicativo requer a compreenso das intenes comunicativas dos outros, de forma que

cada smbolo incorpora uma perspectiva particular sobre um objeto ou evento. A capacidade

dos seres humanos de adotar diferentes perspectivas para o mesmo smbolo ou de tratar

objetos diferentes como se fossem os mesmos, para algum propsito comunicativo, somente

possvel porque todas essas perspectivas esto incorporadas ao smbolo. Esta natureza

perspectiva dos smbolos lingusticos abre um leque infinito de possibilidades de manipular

a ateno dos outros com implicaes na natureza da representao cognitiva

(TOMASELLO, 2003).

Por esse motivo, quando uma criana aprende um smbolo lingustico, esta ao no

se restringe internalizao do smbolo, mas, tambm, a internalizao das perspectivas e

do processo histrico de construo social do mesmo.

3.1 O Autismo e seus problemas de Comunicao

O autismo est inserido na categoria dos Transtornos do Espectro Autista (APA,

2013). Em relao rea de Linguagem e Comunicao, o autismo apresenta diversas

limitaes comunicativas evidenciadas na ausncia de intercmbios corporais expressivos,

na falta de intercmbios coloquiais ou falas no ajustadas ao contexto, repetitivas ou

ecollicas. Muitos estudos desenvolvidos nas ltimas dcadas confirmam estas dificuldades,

em relao aos gestos (PEETERS, 1998) assim como dificuldades em utilizar marcadores

pragmticos de tempo e espao (BRUNER; FELDMAN, 1993); expresses envolvendo

estados mentais (BARON-COHEN, 1988); expresses e gestos inadequados (LOVELAND;

et. al, 1990), e diminuio na complexidade e nmero de declaraes do tipo se ento

(TAGER-FLUSBERG; SULLIVAN, 1995), entre outros.

Didtica e Prtica de Ensino na relao com a Escola

EdUECE- Livro 100718

Contrariando autores que afirmam em funo do estereotipo, que algumas crianas

com autismo no so capazes de se comunicar, Passerino (2005) verifica a presena da

inteno comunicativa, mesmo que essa possa ocorrer atravs de uma forma alternativa de

comunicao.

[...] a ecolalia em algumas oportunidades mostrou-se funcional, seja parasolicitao ajuda, fala dirigida ao mediador, ou imitao do modelo, o queimplica que estudos mais aprofundados sobre o papel da ecolalia nodesenvolvimento dos sujeitos podem auxiliar na compreenso dos processosde desenvolvimento da linguagem e da interao social, contribuindo, destaforma, para o desenvolvimento do sujeito (PASSERINO, 2005, p.301).

No que se refere a histrias ou narrativas, a maior dificuldade dos sujeitos com

autismo centra-se em acompanhar uma narrativa com diferentes personagens, construindo a

semntica do personagem, sua forma de pensar e se colocando no lugar do mesmo

(HOBSON, 1993, JORDAN; POWELL, 1995). No presente estudo apresenta-se pesquisa

realizada em duas turmas inclusivas de educao infantil com o Sistema SCALA que

utilizaram aes mediadoras de contao de histrias com o recurso tecnolgico no mdulo

narrativas visuais.

Um estudo desenvolvido por Cihak (2007), envolvendo trs crianas com autismo

entre 7 e 9 anos, para identificar a compreenso simblica de imagens, mostrou que

possvel utilizar a comunicao funcional com sucesso. Nesse estudo, as crianas no-

oralizadas no utilizavam nenhum tipo de comunicao visual/simblica. A comunicao

funcional no recente no autismo, iniciada com o trabalho de Bondy e Frost (1994) que no

incio da dcada de 90 props um sistema denominado Imagem Comunicao Exchange

System (PECS) de Comunicao Alternativa (CA) com uma metodologia associada que

visa a ensinar habilidades de comunicao funcional para indivduos com autismo por meio

de uma organizao hierrquica, princpios bsicos de comportamento, tais como

modelagem, reforamento diferencial e transferncia controle de estmulo por meio atrasado

estratgias de perguntas (CIHAK, 2007).

Para Bosa (2006) mesmo crianas com autismo sem dificuldades de linguagem

evidentes podem se beneficiar de sistemas de apoio comunicao, pois a maioria das

crianas com autismo apresenta dificuldades de compreenso tanto na semntica com na

pragmtica da linguagem, especialmente com conceitos abstratos ou complexos, que

envolvem pontos de vista perspectivados. Nesses casos, assim como naqueles no h fala, o

uso de sistemas de CA pode promover e desenvolver processos que facilitam a comunicao

e promovem o desenvolvimento scio-cognitivo dos sujeitos (PASSERINO, 2011).

Didtica e Prtica de Ensino na relao com a Escola

EdUECE- Livro 100719

4 Comunicao Alternativa

A Comunicao Alternativa (CA) uma Tecnologia Assistiva para apoio ao

desenvolvimento de comunicao para pessoas com dficit nesse quesito. A CA abrange

tcnicas, processos e ferramentas que auxiliam a comunicao, com apoio, complementao

ou substituio da fala, e fundamenta-se em estratgias e tcnicas comunicativas para

promoo da autonomia dos sujeitos.

Especificamente no autismo, no qual os problemas de comunicao se apresentam

especialmente na prxis e, em menor medida, no nvel sinttico, morfossinttico, fonolgico

ou fontico, a relevncia do uso de um sistema de CA baseia-se em processos de

compreenso e produo de sentidos (PASSERINO, 2011). Diversos estudos sobre uso de

CA e autismo podem ser encontrados no Brasil (WALTER, 1998, ORR, 2006, BEZ;

PASSERINO, 2009, PASSERINO; BEZ; VICARI, 2013).

5 Sistema SCALA: Construo Coletiva de Prticas Inclusivas

O SCALAv foi desenvolvido pelo grupo de pesquisa TEIASvi a partir da

metodologia de Design Centrado em Contextos de uso (DCC) visando a apoiar processos

inclusivos e de desenvolvimento da linguagem e comunicao de sujeitos com TEA,

embasado epistemologicamente na teoria scio-histrica. O Sistema SCALA contempla

alm do aplicativo de software, uma proposta metodolgica de interveno educativa para o

processo de incluso e desenvolvimento da comunicao de crianas com TEA. Essa

proposta metodolgica parte das premissas sobre mediao e ao mediadoras discutidas no

presente artigo, e permite que os professores utilizem os mdulos disponveis no SCALA

como instrumento de mediao. Desta forma, o Mdulo Prancha (figura 1a) e Mdulo

Histria (figura 1b e 1c) foram inseridos em contextos educativos cotidianos, em propostas

que implicavam a participao vrios sujeitos para construir cenas de ateno conjunta

como as discutidas anteriormente.

O SCALA trata-se de um sistema de comunicao alternativa que possui mais de

4000 imagens (pictogramasvii) divididos em 7 categorias. O sistema possibilita importar

imagens, editar sons, salvar, exportar pranchas e histrias, mudar layout, assim como

visualizar/reproduzir as produes realizadas. Especificamente no Mdulo Narrativas

Visuais a edio possibilita a sua rotao, inverso, aumento e diminuio de tamanho,

sobreposio e excluso de cada imagem, insero de cenrios e a possibilidade de narrar a

histria para posterior reproduo sonorizada com um sintetizador de voz.

Este sistema foi utilizado em duas turmas de Educao Infantil com alunos com

TEA includos. As professoras das turmas foram acompanhadas ao longo de um ano letivo,

Didtica e Prtica de Ensino na relao com a Escola

EdUECE- Livro 100720

e participaram de um processo de formao cujo intuito, no s de mostrar a ferramenta,

mas tambm de oferecer uma formao continuada em aspectos relacionados ao Autismo e

aos processos de mediao. A formao no formal foi acompanhada de discusses dos

casos, planejamento conjunto e posterior acompanhamento e observao das prticas

educativas propostas. Assim, cada professora elaborou em conjunto com as pesquisadoras

um perfil scio-histrico de seus alunos com TEA e dos contextos culturais (educacionais)

nos quais eles se encontravam em processo de incluso.

O perfil scio-histrico foi elaborado a partir de quatro eixos norteadores:

comunicao, interao, identificao do sujeito e potencialidades/necessidades. E os

contextos culturais foram compostos por oito elementos constitutivos: atores (pessoas e

instituies); espaos (fsicos e simblicos); regras, normas, crenas compartilhadas;

organizao social; organizao espacial; organizao temporal; e semitica. A partir da

anlise conjunta do perfil e respectivo contexto foi possvel elaborar um conjunto de Aes

Mediadoras disparadoras de prticas inclusivas.

5.1 Estudo de Caso Aluno A

Para o caso do Aluno (A) estabeleceu-se o seguinte perfil inicial: menino de 4 anos,

com comunicao gestual, sem linguagem expressiva, utiliza do gesto de apontar ou segurar

mo da pessoa para obter o que deseja. Sua oralidade limita-se a balbucios, raramente

alguma palavra pequena repetida diversas vezes. Aprecia objetos circulares (bolas, rodas),

jogos de montagem e msica. Interage somente para satisfazer seus desejos. Apresenta

comportamento afetivo, porm reage de forma agressiva quando quer chamar a ateno e

em alguns momentos retirado da sala para se acalmar. O contexto da sala de aula do Aluno

(A) de uma turma com 12 alunos, uma professora e uma auxiliar (atores). O contexto

fsico uma sala com banheiro integrado, trs estantes com brinquedos e materiais para as

atividades. Como espao simblico, a sala organiza-se no espao central composto pelas

mesas e cadeiras que o espao de trabalho e um espao cantinho da rodinha numa

lateral da sala. A turma possui regras e combinaes que incentivam responsabilidade e

organizao na sala de aula e todos os alunos participam. A organizao espacial da sala

ocorre conforme combinaes realizadas na rodinha, ora trabalham colaborativamente com

toda turma, ora em pequenos grupos. J a organizao semitica, est representada num

gradil para mochilas com chamada em forma de foto, um gradil para atividades, alfabeto

com figuras correspondentes as letras disposto na parte superior da parede, e de maneira

oposta o numeral com figuras quantificando-as.

Didtica e Prtica de Ensino na relao com a Escola

EdUECE- Livro 100721

A proposta da prtica inclusiva teve como foco a construo de uma histria

colaborativa utilizando o SCALA. Cabe salientar que a turma j havia construdo uma

histria colaborativa anteriormente em papel e, portanto a ao mediadora foi facilitada pelo

conhecimento prvio da estratgia de ensino. Para a efetivao da prtica, um notebook foi

acoplado televiso da sala, a turma foi organizada num semicrculo, todos sentados e

orientados para a televiso. Inicialmente as professoras explicaram a atividade relembrando

a histria que haviam contado oralmente antes.

O aluno com TEA participou inserindo a primeira imagem para a reconstruo da

histria, agora em forma de pictograma. Todos os alunos, um a um complementaram a

histria com os pictogramas. Quando um aluno estava no computador os demais

observavam a tela e auxiliavam oralmente. Concluda a elaborao da histria a turma

assistiu e analisou o resultado. Durante o desenrolar da atividade os alunos demonstraram

satisfao e entusiasmo. Todos participaram de forma efetiva. O aluno com TEA mostrou-

se, por momentos agitado, buscou as professoras e procurou o computador em diversas

etapas, mesmo no sendo a sua vez. Apontou e balbuciou algumas letras durante a atividade

coletiva. Na apresentao da produo final todos estavam interessados, inclusive ele,

apresentando expresses de surpresa e encanto com sua produo (figura 2). Para

complementar a histria os alunos elaboraram uma narrao que foi digitada pela professora

(quadro 1).

A INCRVEL HISTRIA DA TURMA QUE VIROU PIRATA. ERA UMA VEZ UMA MELECA QUE SEENLOUQUECEU E COMIA AS PESSOAS... E AT AS CANETAS. UM DIA, ELA ENCONTROU UMA ARANHAGIGANTE E UM RATO MAIS GIGANTE AINDA; E, NESSE MOMENTO ELA SE EXPLODIU DE SUSTO EMELECOU TODO MUNDO. E TODOS ENGOLIRAM UM POUCO DE GOSMA. S O CARTEIRO, QUE SECHAMAVA JORGE AMADO, QUE NO ENGOLIU A GOSMA. ELE ERA MUITO SABIDO. COMO ELE NOTINHA ENGULIDO A GOSMA DO MAL, ELE TROUXE UMA GUA MILAGROSA PRA TODOS OSENGOSMENTADOS TOMAREM. AI ELES CONSEGUIRAM CUSPIR AQUELA GOSMA NOJENTA E FICARAMCURADOS. O CARTEIRO RESOLVEU DAR UM PRESENTINHO PRA TODOS: UM BA DE PIRATA CHEIO DECOISAS GOSTOSAS E DE BRINQUEDOS... MAS, DE REPENTE, DE DENTRO DO BA APARECEU UMA GUAVIVA BEM MALUCA. QUANDO ELA TOCAVA NA GENTE, A GENTE SE QUEIMAVA... MAS S UMPOUQUINHO... E DE DENTRO DELA APARECEU UM MAPA.... QUE ERA DE UM TESOURO... DO PIRATAENCANTADO!!! TODOS DA TURMA FORAM PRO FUNDO DO MAR ATRS DO TESOURO... AT AS PROFES.QUANDO O TESOURO FOI ENCONTRADO, FOI LEVADO PRO BARCO E A TURMA TODA VIROU UMATURMA DE PIRATAS QUE VIVEU FELIZ PRA SEMPRE VIAJANDO PELOS MARES... FIM.

Quadro 1 Narrativa criada pela turma de alunos

5.2 Estudo de Caso Aluno B

Para o caso do Aluno (B) estabeleceu-se o seguinte perfil inicial: Menino com 4

anos, sua comunicao gestual, apontando o que deseja. A comunicao oral rara e

restringe-se a uma slaba do nome da professora ou da auxiliar e da expresso no qu,

Didtica e Prtica de Ensino na relao com a Escola

EdUECE- Livro 100722

associado ao balano da mo em frente testa, que utiliza para negao. Tem diversas

estereotipias como balano das mos, corre-corre pela sala, dentre outros. As interaes

quando acontecem so por insistncia de outra pessoa, em geral da professora e nunca dele.

Frequentemente puxa o cabelo dos colegas, nas brincadeiras, prefere brincar sozinho. Tem

grande facilidade para montar quebra-cabeas. Quando contrariado, grita e corre pela sala,

s vezes joga objetos no cho e nas professoras. Quando tentado que direcione o olhar, ele

fecha os olhos em protesto.

O contexto da sala de aula composto de uma turma de 12 alunos, uma professora e

uma auxiliar. A turma tem dois alunos com TEA, embora o caso acompanhado seja somente

do aluno B. O contexto fsico de uma sala com banheiro integrado, com mesas agrupadas

apropriadas para crianas pequenas, rodeadas por cadeiras, trs estantes com brinquedos e

materiais para as atividades. Temporalmente a sala tem uma rotina fixa composta na

chegada da entrega das agendas e lanches e a colocao das mochilas no gradil.

Posteriormente a hora do brinquedo livre, depois a rodinha, atividade dirigida, brincadeiras

externas a sala de aula, higiene, lanche, aula extraclasse (msica, informtica, etc.),

brincadeiras dirigidas, msicas, hora do conto, rodinha de encerramento e sada.

A proposta de ao mediadora com o SCALA para a produo de narrativa no se

desenvolveu somente na sala de aula, teve incio no laboratrio de informtica da escola,

com projeo multimdia do SCALA e na sala de aula com uso de material impresso e com

o uso do SCALA na verso para tablet.

No laboratrio o trabalho foi conduzido pela professora, os alunos escolheram as

imagens para a histria, a participao do aluno com TEA se deteve em auxiliar a

professora com uso do mouse para coloc-las na tela. Cada imagem era relacionada com a

letra inicial da palavra. Aps, a criao da histria, a turma retornou para a sala de aula com

o material impresso das figuras escolhidas, para construo individual das suas histrias

(figura 3). O Aluno B mostrou-se bastante agitado e com dificuldade em se concentrar e

participar da atividade, sua histria utilizou somente uma imagem.

Aps esta etapa, os alunos puderam tambm manipular os tablets com o programa

SCALA, e explorar efetivamente o programa de acordo com seus interesses. Como o uso do

tablet j era conhecido do aluno B, este interagiu muito bem com o dispositivo mvel e

tornou-se centro de ateno dos colegas. Primeiro demonstrou que estava satisfeito em ver

os colegas ao seu redor vendo-o interagir, mas quando teve que dividir com os colegas o

dispositivo ficou agitado. Enquanto os colegas interagiam com a tecnologia demonstrou

interesse por breves momentos no que estavam fazendo.

Didtica e Prtica de Ensino na relao com a Escola

EdUECE- Livro 100723

6 Tecendo Algumas Consideraes

Ambos os exemplos apresentados, mostraram-se produtivos e permitiram observar

momentos de comunicao e interao dos sujeitos. Atravs das atividades realizadas no

contexto escolar, nessas turmas de Educao Infantil e das experincias com o uso do

SCALA, observou-se que a sua utilizao proporcionou a interao e atuou como facilitador

da comunicao entre os sujeitos de todo o grupo. Percebemos, ainda, que o uso da

tecnologia favoreceu a interao dos indivduos com TEA, o que sugere que estes possam

efetivamente estabelecer relaes e se integrar cada vez mais ao ambiente escolar. Inclusive

no relato dos prprios colegas e das professoras o SCALA deu vez e voz ao aluno com

TEA. Desta forma pode-se dizer que o sistema Scala mostrou-se efetivo para o apoio a

processos inclusivos.

RefernciasAPA - ASSOCIAO AMERICANA DE PSIQUIATRIA. DSM-5 - Diagnostic andStatistic Manual of Mental Disorders, Five Edition. 2013.

BAKHTIN, M. M. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais domtodo sociolgico na cincia da linguagem. So Paulo: Hucitec, 1981.

BARON-COHEN, S. Without a theory of mind one cannot participate in a conversation.Cognition, 1988, 29, 8384.

BEZ, M. R.; PASSERINO, L. M. Applying Alternative and AugmentativeCommunication to an inclusive group. In: WCCE 2009 - Education and Technologyfor a Better World Monday, 2009, Bento Gonalves-RS. WCCE 2009 Proceedings -Education and Technology for a Better World Monday. Germany: IFIP WCCE, 2009. v.1. p. 164-174.

BONDY, A., FROST, L. The picture exchange communication system. Focus onAutistic Behavior, 1994. p. 919.

BOSA, C. A. Autismo: intervenes psicoeducacionais. Revista Brasileira dePsiquiatria, v. 28, 2006, p. 47-53.

BRUNER, J.; FELDMAN, C. Theory of mind and the problem of autism. In BARON-COHEN, S. et. al (Eds.), Understanding other minds: Perspectives from autism.Oxford: Oxford University Press, 1993.

BURKE, K. Language as symbolic action: Essays on file, literature and method.Berkeley: University of California Press, 1966.

CIHAK, D. Teaching students with autism to read pictures. Research in Autism

Didtica e Prtica de Ensino na relao com a Escola

EdUECE- Livro 100724

Spectrum Disorders 1, 2007. p. 318329.

HOBSON, P. Understanding persons: The role of affect. In BARON-COHEN, S. et. al(Eds.), Understanding other minds: Perspectives from autism. Oxford: OxfordUniversity Press, 1993.p. 205-227.

JORDAN, R.; POWELL, S. Understanding and Teaching Children with Autism. WestSussex, England: John Wiley&Sons, 1995.

LOVELAND, K. A. et al. Narrative story telling in autism and Downs syndrome.British Journal of Developmental Psychology, 1990, 8, 923.

LURIA. A. Pensamento e linguagem: as ltimas conferncias de Luria. PortoAlegre: Artes Mdicas, 1986.

ORR, S. E. A constituio da linguagem de alunos autistas apoiada emComunicao Suplementar Alternativa. Tese de Doutorado. Piracicaba: UNIMEP,2006.

PASSERINO, L. M. Scalando: trajetrias de pesquisa na construo do Sistema deComunicao Alternativa para letramento de pessoas com autismo (SCALA). In:PAULA NUNES, L. R. O.; PELOSI, M. B.; WALTER, C. C. de F. (Org.).Compartilhando experincias: ampliando a comunicao alternativa. 1. ed. Marlia,SP: ABPEE, 2011, v. 1, p. 83-96.

PASSERINO, L. M.; BEZ, M. R. Building an Alternative Communication System forliteracy of children with autism (SCALA) with Context-Centered Design of Usage. In:Autism / Book 1. 2013, v. 1, p. 655-679.

PASSERINO, L. M.; BEZ, M. R. ; VICARI, R. M. . Formao de Professores emComunicao Alternativa para crianas com TEA: contextos em ao. RevistaEducao Especial (UFSM), v. 26, p. 619-637, 2013.

PASSERINO, L. Pessoas com Autismo em Ambientes Digitais de Aprendizagem:estudo dos processos de interao social e mediao. Tese (Doutorado em Informticana Educao) UFRGS Programa de Ps-Graduao em Informtica na Educao.Porto Alegre, 2005.

PEETERS, T. Autism: from theoretical understanding to educational intervention.Whurr Publishers, 1998.

TAGER-FLUSBERG, H.; SULLIVAN, K. Attributing mental states to story characters:A comparison of narratives produced by autistic and mentally retarded individuals.Applied Psycholinguistics, 1995, 16, 241256.

TOMASELLO, M. Origens Culturais da Aquisio do Conhecimento Humano. SoPaulo: Martins Fontes, 2003.

Didtica e Prtica de Ensino na relao com a Escola

EdUECE- Livro 100725

VYGOTSKY, L. S. A Construo do Pensamento e da Linguagem (texto integraltraduzido do russo). So Paulo: Martins Fontes, 2001

VYGOTSKY, L. S. A Formao Social da Mente. So Paulo: Martins Fontes, 1998.

WALTER, C. A adaptao do sistema PECS de comunicao para o Brasil: umacomunicao alternativa para pessoas com autismo infantil. In: MARQUEZINE M.C,et. al. (Orgs.). Perspectivas Multidiciplinares em Educao Especial. Londrina: Ed.UEL. 1998. p.277-80.

WERTSCH, J. V. Vygotsky y la Formacin Social de la Mente. Serie Cognicin ydesarrollo humano. Barcelona: Paids, 1988.

WERTSCH, J. La Mente en Accin. Buenos Aires: Aique, 1999.

Figuras

Fig. 1: a) mdulo prancha Fig. 1: b) mdulo narrativas visuais Fig. 1: c) narrativas visuais modo edio

Figura 2: Histria criada pelos alunos com uso do SCALA no mdulo narrativas visuais

Figura 3: Histrias produzidas pelos alunos, com baixa tecnologia, usando SCALA.

Didtica e Prtica de Ensino na relao com a Escola

EdUECE- Livro 100726

i Doutora em Informtica na Educao (UFRGS). Professora do Programa de Ps-Graduao emEducao (PPGEDU/UFRGS) e do Programa de Ps-Graduao em Informtica na Educao(PPGIE/UFRGS). E-mail: [email protected] Mestre em Educao (PPGEDU/UFRGS). Doutoranda em Informtica na Educao (PPGIE/UFRGS).iii Para Vygotsky (1998) existem dois tipos de instrumentos de mediao: os instrumentos e os signos. Adiferena entre ambos que nos instrumentos h ao do homem sobre o objeto exterior. O instrumento o elemento inserido entre o homem e sua ao, a fim de que possa transformar seu meio, mediado pelacomunicao. Por outro lado, os signos esto sempre ligados soluo de um problema psicolgico,portanto so instrumentos psicolgicos, interpretveis e podem referir-se a elementos ausentes, do espaoe tempo, como por exemplo, lembrar, relatar, escolher. Assim, os signos so estmulos impregnados designificado que estabelecem as atividades mediadas num contexto histrico-cultural, com interao socialatravs da internalizao.iv Uma definio de situao a forma como se representam e significam objetos e eventos numasituao (WERTSCH, 1999).v Disponvel em http://scala.ufrgs.br/Scalaweb o sistema est disponvel em duas verses, web eaplicativo para android, com dois mdulos prancha de comunicao e narrativas visuais, em trs idiomas(portugus, ingls e espanhol). Para mais informaes visite o projeto em http://scala.ufrgs.brvi Grupo TEIAS - Tecnologia na Educao para Incluso e Aprendizagem em Sociedade http://www.ufrgs.br/teiasvii Os pictogramas pertencem em sua maioria ao Portal Aragons de Comunicao Alternativa ARASAAC (http://www.catedu.es/arasaac/) e algumas foram desenvolvidas pela equipe do GrupoTEIAS.

Didtica e Prtica de Ensino na relao com a Escola

EdUECE- Livro 100727