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Antes que os homens falassem, eles interpretavam o mundo. Depois de falar, muito tempo depois, é que inventaram a escrita, uma “codificação da fala”. Referimo- nos aqui, é claro, à escrita fonética, em que as letras representam “sons”, fonemas. Parece um nadinha dizer isso assim por trivial que pareça. Mas não é tanto assim. O que o argumento esconde é que a invenção da escrita corresponde a certas necessidades do próprio contexto histórico e social . Essas necessidades, no entanto, se perdem no esquecimento depois que o “código” foi estabelecido. [fonética] foi inventada como uma lembrança grafada de uma fala e, de certo modo, ela concorre em sentido contrário da memória, como “tradição oral”. Se nos permitem um resumo grosseiro do argumento, apenas para pontuar a nossa discussão, perguntaríamos o seguinte: qual é a interpretação de mundo que essa escrita codifica? De quem é esta fala que deve ser lembrada ipsis litteris? Que usos a palavra escrita assume, ao ser inventada? Pensando uma prática educativa para o ensino médio a partir de Paulo Freire Notas de trabalho sobre o documentário “Paulo Freire Contemporâneo” Eduardo Amaral

Acervo Paulo Freire

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Proposta de trabalho a partir do documentário "Paulo Freire Contemporâneo", por Eduardo Amaral

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Page 1: Acervo Paulo Freire

… Paulo Freire Antes que os homens falassem, eles já interpretavam o mundo. Depois de falar, muito tempo depois, é que inventaram a escrita, uma “codificação da fala”. Referimo-nos aqui, é claro, à escrita fonética, em que as letras representam “sons”, fonemas. Parece um nadinha dizer isso assim – por trivial que pareça. Mas não é tanto assim. O que o argumento esconde é que a invenção da escrita corresponde a certas necessidades do próprio contexto histórico e social . Essas necessidades, no entanto, se perdem no esquecimento depois que o “código” foi estabelecido. A escrita [fonética] foi inventada como uma lembrança grafada de uma fala e, de certo modo, ela concorre em sentido contrário da memória, como “tradição oral”. Se nos permitem um resumo grosseiro do argumento, apenas para pontuar a nossa discussão, perguntaríamos o seguinte: qual é a interpretação de mundo que essa escrita codifica? De quem é esta fala que deve ser lembrada ipsis litteris? Que usos a palavra escrita assume, ao ser inventada?

Pensando uma

prática educativa para o ensino médio

a partir de Paulo Freire

Notas de trabalho sobre o documentário “Paulo Freire

Contemporâneo”

Eduardo Amaral

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Pensando uma prática educativa para o ensino médio a partir de Paulo Freire: Notas de trabalho sobre o documentário “Paulo Freire Contemporâneo”

Eduardo Amaral*

O Ministério da Educação, através da Secretaria

de Educação à Distância, mantém a programação

da TV Escola, que visa à formação de professores.

Tive a oportunidade de participar do programa

Acervo, que na ocasião veiculou o documentário

“Paulo Freire Contemporâneo”. O que se segue é a

proposta de trabalho que redigi a partir do

documentário. (EA, 2007)

* Eduardo Amaral é professor de Filosofia na rede pública estadual de São

Paulo. Autor do blog “a propósito…”: http://edu74.wordpress.com/

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… Paulo Freire

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Introdução e proposição do trabalho

É sabido de todos que um dos grandes desafios do ensino médio tem sido o

de fazer dos alunos bons leitores, isto é, que tenham uma boa compreensão

de textos entre os vários gêneros discursivos, bem como consigam

escrever razoavelmente textos, com coerência e correção, observadas as

regras gramaticais e ortográficas da língua portuguesa. E tanto maior o

desafio quanto mais diagnosticamos que, por inúmeras razões possíveis, os

alunos têm chegado do ensino fundamental com um sem número de

dificuldades, quer na compreensão de textos, quer na escritura. Não

discutiremos aqui tais razões possíveis para esse quadro – trata-se aqui

meramente de uma constatação. A questão que se nos coloca, no entanto, é

o que fazer com tais alunos, cuja habilidade em ler e escrever encontra-se

muito aquém do que esperávamos que estivessem.

Tais dificuldades incidem em todas as disciplinas e repercutem no que os

alunos conseguem reter delas ou desenvolvê-las. Afora o fato de que, em

muitos casos, é pela linguagem escrita que avaliamos nossos alunos. Tanto

é assim que alunos que tenham maior fluência ou domínio da linguagem

escrita tendem a ter melhor desempenho em nossas provas.

A proposta de trabalho que desenvolveremos aqui quer apresentar um

caminho possível de como lidar com isso, de modo interdisciplinar. As

sugestões que faremos, a partir da exibição do vídeo documentário “Paulo

Freire Contemporâneo”1, dirigem-se a dois momentos complementares:

um primeiro momento, nas reuniões pedagógicas, pois acreditamos que os

professores, antes de qualquer trabalho com os alunos, devam também

discutir o vídeo, trabalhar com ele em vista de sua própria formação e para

o planejamento conjunto das atividades a serem desenvolvidas com os

alunos, que é o segundo momento do trabalho.

Para falar de Paulo Freire. Dispensamos aqui uma longa apresentação de

nosso personagem – apresentação que o documentário responde por si só

e de modo muito mais tocante do que poderíamos fazer agora.

Pretendemos apenas chamar a atenção para alguns aspectos abordados no

vídeo, decorrentes da elaboração teórica de Paulo Freire e sobretudo da

1 O vídeo-documentário Paulo Freire Contemporâneo está disponível no site da Tv Escola do Ministério da Educação: http://goo.gl/2bW6h

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… Paulo Freire

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prática de sua ação educativa e que nos interessarão estrategicamente

para elaborar uma proposta de trabalho. A seguir, alguns comentários e

sugestões de trabalho para a discussão entre os professores.

A leitura do mundo antecede a leitura da palavra

Antes que os homens falassem, eles já interpretavam o mundo. Depois de

falar, muito tempo depois, é que inventaram a escrita, uma “codificação da

fala”. Referimo-nos aqui, é claro, à escrita fonética, em que as letras

representam “sons”, fonemas.

Parece um nadinha dizer isso assim – por trivial que pareça. Mas não é

tanto assim. O que o argumento esconde é que a invenção da escrita

corresponde a certas necessidades do próprio contexto histórico e social1.

Essas necessidades, no entanto, se perdem no esquecimento depois que o

“código” foi estabelecido. A escrita [fonética] foi inventada como uma

lembrança grafada de uma fala e, de certo modo, ela concorre em sentido

contrário da memória, como “tradição oral”. Se nos permitem um resumo

grosseiro do argumento, apenas para pontuar a nossa discussão,

perguntaríamos o seguinte: qual é a interpretação de mundo que essa

escrita codifica? De quem é esta fala que deve ser lembrada ipsis litteris?

Que usos a palavra escrita assume, ao ser inventada? — Claro está que não

se trata de uma necessidade vivida da mesma forma por todos, mas refere-

se primordialmente a um determinado grupo/classe social, que detém

autoridade (também no sentido de “autoria”) sobre o “código”. Ora, isso

tem a ver com o processo histórico de inclusão e de exclusão de

grupos/classes sociais do “universo letrado”2, considerando variáveis sociais

e econômicas que facilitam ou dificultam em muito a aprendizagem do

próprio código, como o acesso à educação formal (escolarização), acesso

aos livros e documentos escritos, etc.

Em algum momento do vídeo, Paulo Freire afirma que a alfabetização é por

ele considerada como uma codificação da experiência concreta dos

1 Sabemos das repercussões da palavra escrita para o mundo grego. Para um panorama mais geral do problema, cf. HAVELOCK, Eric A. A Revolução da Escrita na Grécia Antiga e suas consequências. São Paulo/Rio de Janeiro: Ed. Unesp/Paz e Terra, 1996. 2 Uma primeira sugestão é que os professores de História incorporem essa temática em seus planos de aula. O assunto pode ser encontrado em vários livros de História da Educação. O tema, precisamente, é o fio condutor da ótima e de saborosa leitura de Mario Alighiero Manacorda, História da Educação: da Antiguidade aos nossos dias. São Paulo: Cortez, 7ªed.,1999.

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educandos. E eis um dos primeiros fundamentos nos quais a prática

educativa proposta por Freire se desenvolve. No entanto, ao que tudo

indica, essa ‘fala codificada como escrita’ se refere a uma determinada

experiência – a de um determinado grupo/classe social, muito específico.

Trocando em miúdos, não foi a “fala popular” que a primeira escrita

expressou, tampouco foi a experiência dos que vem de baixo (sejam

escravos ou trabalhadores, ou digamos de modo genérico: “o povo”) que

esta escrita quis codificar.

Etimologia como ferramenta de trabalho

Em resumo e para melhor explicitar o ponto do argumento, digamos que a

palavra escrita veicula uma interpretação do mundo, que não pode ser

tomada como se fosse “natural” – mas sim, social e histórica. Os nomes que

as coisas receberam, quem foi que os deu? Por quê? Por que esses nomes e

não outros? Porque já havia uma interpretação – o que nos dá pistas

qualquer pesquisa etimológica das palavras que costumamos empregar.

Pois o sentido que damos às palavras, por vezes, é bastante diverso

daquele que a sua etimologia ensina. Donde o segundo momento do

“método”, que é tematizar as palavras, perceber nelas o seu sentido

originário, por assim dizer.

Tomemos uma palavra, daquelas sempre presentes nas cartilhas e de uso

mais corriqueiro, que poderia ser insuspeita: CASA. Como proceder a partir

dela? Em primeiro lugar, a mera discussão do seu significado, pode dar

margem a boas discussões com os alunos.

a) O que é que chamamos de CASA? Qual é a coisa que esse nome nomeia?

Poderemos reparar que usamos o nome indistintamente para vários

objetos diferentes entre si. Casa, de alvenaria, telhado, janela, na qual

existem dormitórios, cozinha, área, quintal, varanda… Ou outra casa,

um cômodo apenas, feita de restos de tábuas de madeira, em palafitas

sobre as margens de algum córrego. Ou seja, dizemos CASA

indistintamente para qualquer habitação, seja ela como for. O primeiro

passo é fazer com que os alunos pensem sobre os diferentes tipos de

habitação, por exemplo. Tentar entender porque é que são tão

diferentes.

b) Uma consulta a um dicionário etimológico ou, o que aqui indicamos, o

Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, rico em análises

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etimológicas, pode nos dar boas pistas de como a palavra foi abarcando

todos estes objetos.

c) Se formos pesquisar a origem desta palavra, portanto, veremos que

ela não era o nome para “qualquer habitação”. A palavra CASA é de

origem latina, CASA mesmo, mas designava uma habitação rústica,

‘popular’ por assim dizer: “choupana, cabana, casebre, arribana”.

d) Em oposição à palavra casa, a língua latina possuía outra palavra,

DOMUS, que aí sim é aquilo que entendemos por esse nome “casa” hoje

em dia. DOMUS, de onde vem a palavra ‘domicílio’, quer dizer ‘casa,

morada, habitação’, explica o dicionário. E ‘domicílio’ tem a ver com

‘domínio’: é o lugar que está sob meu domínio, domínio privado, espaço

privado.

e) É que a noção que a palavra latina carrega remete a outra, ainda

seguindo as pistas do dicionário: ‘ec(o)-’, que é o mesmo antepositivo

da palavra ecologia ou economia, por mais diferentes que pareçam ser

em seu significado.

ec(o)-

antepositivo, do gr. oîkos,ou ‘casa, habitação; bens, família’

A palavra OÎKOS, da língua grega, se refere a um conjunto de coisas que

aprendemos a chamar por nomes diferentes. Significa ‘casa’ (que em

um sentido bastante amplo poderemos entender o sentido da palavra

ecologia), mas também todos os ‘bens’ (bens materiais, o que

chamamos de ‘bens de consumo’) que a casa possui: a geladeira, o

fogão, a mesa, o armário, as camas… tudo isso são as ‘posses’, os bens

do ‘proprietário da casa’. Então, OÎKOS designa tudo que é de posse de

alguém, o que é ‘propriedade privada’ e que portanto está sob domínio

de alguém, e portanto, o terreno em que a casa foi construída, bem

como todas as terras que são de posse do proprietário de terras são da

sua OÎKOS. Por extensão de sentido, ainda, toda riqueza e tudo o que

pela riqueza se pode obter são também designados por OÎKOS (e eis a

economia!).

f) Mas poderemos ainda estranhar que no dicionário, ao lado de ‘casa’ e

‘bens’, apareça também a palavra ‘família’ na explicação desse

antepositivo ‘ec(o)-’. Pois a família, para os gregos antigos, é também

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parte da OÎKOS, tanto quanto os cavalos, que são propriedade do senhor

das terras, são da OÎKOS. Ele é o senhor de tudo. A relação que se

mantém entre os membros da família e o senhor (ou ‘chefe de família’)

é uma relação de mando, de domínio, tanto quanto o proprietário

manda e domina todos os seus bens. — Não é esta uma boa imagem

para explicitar as relações privadas e familiares entre os povos

antigos?

g) Ora, então a palavra CASA que empregamos carrega o sentido de

propriedade privada (o “lar” e tudo o que o lar comporta) – sentido

que tem a ver com uma experiência muito específica, que é a do

‘senhor’. [Percebam ainda que a cada palavra de que lançamos mão,

como essa: “senhor”, um novo leque de sentidos se abre? Os usos que

damos a palavra “Senhor”, “Sr.”…] Para quem não seja proprietário

sequer de seu próprio lar, ou que seu lar não seja tal como

reconheçamos como sendo uma CASA, não pode entender o uso que faz

dessa palavra, ou entenderá como sendo algo estranho a ele, algo que

foge de sua própria experiência – que eventualmente pode ser a

experiência dos ‘despossuídos’, dos sem-posses, sem-domicílio, sem-

casa, sem-família.

Quando Freire diz que a alfabetização é um processo criador quer tocar

neste ponto. Seria preciso que tais necessidades que concorreram para a

invenção da escrita fossem de algum modo revividas pelo educando –

como se, para aprender o código fosse preciso também “recriá-lo”. Mas

recriá-lo a partir de sua experiência concreta, de como interpreta tal

experiência, para só depois codificá-la como escrita e reconhecê-la como

leitura.

Portanto, tal escrita e os métodos de seu ensino não dialogam em princípio

com a experiência concreta destes educandos, dos filhos do “povo”, de

modo que, para eles, a alfabetização se torna um processo difícil e muitas

vezes absolutamente ineficaz, por não corresponder a nada de sua

experiência concreta, tampouco de sua “experiência vocabular”1. — Ocorre

que, nas nossas escolas ensinamos as palavras que fogem do universo

1 Reparemos, no vídeo, o zelo em colher “de casa em casa” as palavras que compõe “universo vocabular” de Angicos (RN), para servirem de “palavras geradoras”: palavras de uso corrente, de uso do “povo” a quem se destina a ação pedagógica, a partir das quais os alunos terão acesso ao código de “todos os fonemas da língua portuguesa”.

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vocabular de nossos alunos, que não têm sequer uso oral delas ou para elas –

e portanto não precisariam em circunstâncias nenhumas serem escritas pelo

jovem educando, a não ser na escola. Não se trata, obviamente, de abrir mão

do que a escola pode e deve mesmo ensinar em termos de “novos

vocabulários” que são incorporados aos corpos de cada disciplina, mas

apenas para atentarmo-nos a esse abismo que há entre a fala do povo e a

palavra escrita, que é a palavra escolar.

De que experiência partir?

Uma escola pública recebe os mais diferentes públicos – portanto, a

experiência concreta dos educandos é mais ou menos variada. O exemplo

que o vídeo nos apresenta é da escola rural Jaguaquara, na região do Jequié

(BA). Por se tratar de uma escola rural, a experiência que a escola lança

mão é a da lavoura, experiência comum entre as 600 crianças e suas

respectivas famílias. No entanto, aqui em nosso trabalho, pensamos em

uma escola de ensino médio, na zona urbana. O grau de generalidade do

público, no entanto, vai em sentido inverso à concretude que se espera desta

experiência, que é variável, sempre a depender de quem a ação educativa se

dirige.

Cumpre lembrar, por outro lado, que Paulo Freire desenvolveu seu

trabalho tendo em vista aqueles jovens e adultos que não estiveram na

escola ou que abandonaram-na1. O público a que se visava era portanto de

adultos analfabetos. Reparemos ainda, no documentário, quando se discute

o MOVA (Movimento de Alfabetização): o público a que se dirige a ação

educativa é mais uma vez bastante determinado, no caso, os chamados

“catadores de lixo”, ou os “catadores de material reciclável”, como eles

aprendem a se chamar. A experiência concreta é pois bastante

determinada: trata-se do próprio trabalho destes educandos e as relações

em que, por este trabalho, eles se reconheçam. — Não é o caso de nossos

alunos, no ensino médio regular, ou ao menos não é assim na maior parte das

vezes. Nossos alunos nem são tão adultos, nem “tão analfabetos” e, assim,

não se trata aqui de propor um processo de alfabetização, como se nada

soubessem escrever ou ler.

1 Tratava-se de um Plano Nacional de Alfabetização de Adultos em plena década de 60.

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Portanto, uma dificuldade nos apresenta desde já, quanto à escolha dos

temas que serão trabalhados. Serão os temas próprios da juventude em

geral? Inserção no mercado de trabalho, drogas, sexualidade… são vários

temas possíveis. Todavia, queremos apresentar um outro tema possível,

que pode até abarcar todos os demais, que é a experiência concreta do

próprio processo de escolarização destes educandos, bem como a

escolarização de seus pais, avós, de sua família e, por que não?, também a

experiência de seus professores. Junto à escolarização, é necessário também

tematizar a experiência com a palavra escrita. Tomar essa questão, as

relações com a escola e com o universo letrado, como um problema a ser

pensado e refletido também por eles, estudantes.

Atividades com os alunos

1 “A escola de outrora”

Uma das passagens mais tocantes do documentário “Paulo Freire

Contemporâneo” é justamente a fala dos educandos que, com orgulho e

emocionados, narram o que a capacidade de ler, que aprenderam

tardiamente, como isto mudou a vida deles, o modo de encarar o mundo e

mesmo se expressar, de falar com as pessoas. Como a capacidade de ler e

escrever lhes deu uma certa segurança. O medo que antes sentiam ao ir em

qualquer repartição pública ou ao banco…

Caso perguntemos aos alunos sobre seus pais, quantos deles chegaram a

estudar até na faculdade, qual será a proporção? Então, quantos estudaram até

o ensino médio? Ou até só o fundamental? Só o pai ou a mãe também? – Então,

um primeiro passo do trabalho é um levantamento sobre o grau de

escolaridade dos pais dos alunos. Mas poderemos também perguntar sobre os

avós, paternos e maternos. Perceberemos como a proporção muda

sensivelmente. Não será raro que alunos digam que eles nem sabiam ler e

escrever.

O objetivo do levantamento é para que os alunos percebam que eles, no

ensino médio, já tenham mais escolaridade senão que seus pais, mais do

que os avós. Isso porque a escolarização, no Brasil, é acontecimento

recente – se entendermos por escolarização o acesso universal à educação

formal que se dá na escola. Para conferir, basta pesquisarmos os índices e

gráficos sobre a escolarização nos sites como IBGE ou em livros e revistas

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especializados em educação, para saber como isto tem evoluído nos

últimos 100 anos (desde o início da República), ou nos últimos 50 anos (o

professor de Geografia que esteja trabalhando com dados demográficos

poderá orientar o trabalho).

Próximo passo é discutir livremente com os alunos as hipóteses que eles

tenham sobre essa constatação e que eles registrem essas hipóteses em

seus cadernos. Tal procedimento prepara o passo seguinte, que pode ser

desenvolvido na disciplina de História. Trata-se de elaborar com os alunos

um roteiro de perguntas para uma entrevista, para verificar se essas

hipóteses correspondem a interpretação que disso dão os seus pais e avós,

que serão primeiramente os entrevistados, sobre sua escolarização ou falta

dela. Dizíamos, há pouco, que a escrita [fonética] foi inventada como uma

lembrança grafada de uma fala e, de certo modo, ela concorre em sentido

contrário da memória, como “tradição oral”. É da tradição oral que

podemos partir, daquilo que se fala, de memória. O recurso de que

lançamos mão, de entrevistas, é justamente o usado em História Oral, que

parte dos relatos, da memória e das interpretações que os entrevistados

dão de sua própria história1.

Para sermos mais objetivos no trabalho, será necessário que os alunos

entrevistem alguém que não tenha escolaridade ou que não esteja

alfabetizado. As perguntas tentarão levar o entrevistado a buscar possíveis

motivos para que ele tenha abandonado a escola ou nunca tivesse ido a ela.

Por outro lado, perguntar também sobre o que ele imagina sobre os

“ganhos” que poderia ter caso soubesse ler e escrever. Qual a falta que isso

faz? Qual a importância de saber ler – sentida por aquele que não sabe.

O passo seguinte é que “transcrevam” estas entrevistas – que registrem por

escrito as falas, essas vozes de que ouviram sobre o processo de

escolarização. Que percebam a importância de registrar por escrito essas

falas, caso contrário elas se perderiam por completo no esquecimento.

Para finalizar, a exibição do vídeo-documentário para os alunos, para que

comparem os depoimentos do vídeo aos depoimentos que eles colheram.

1 Há um longo preparo para uma atividade dessa. Indicamos o Guia de História Oral, elaborado pela equipe do “Museu da Pessoa” [http://www.museudapessoa.net/], disponível neste link: http://goo.gl/rh1O8

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2 “A escola e os professores”

Nossa memória de professores ainda carrega as marcas daquele tempo em

que fomos alunos. Ocorre que, porque sabemos ler, não nos lembramos

mais dos encantos da primeira palavra que lemos. Por escrevermos, não

nos lembramos do prazer que foi escrever a primeira palavra. Afastamo-

nos do prazer e maravilhamento infantil que há em ler e escrever. Há ainda

um maravilhamento ao descobrir um sentido oculto nas palavras, como há

prazer em escrever as palavras a que nos ligamos afetivamente. No

documentário, é o próprio Paulo Freire quem narra a ocasião em que o

educando foi à lousa e escreveu o nome da esposa: NI-NA, NINA. “É

escrevendo o nome da minha mulher que eu posso reescrever o nome do

meu país”.

Outro trabalho a ser desenvolvido pelos alunos partiria da “nossa

memória” – que possamos socializar com eles o que era a escola em que

estudamos, como eram os professores, como a escola era organizada. Mas

sobretudo — o que nos levou a estudar o que estudamos e nos tornarmos

professores. O prazer que eventualmente temos entre as palavras de

nossas disciplinas, com as descobertas que tivemos ainda na escola e que

nos marcaram a ponto de nos mantermos estudando.

Cada grupo de alunos pode escolher uma disciplina, ou um professor, para

realizar a entrevista. Uma atividade assim tem como objetivo fazer com

que os alunos percebam que o professor não é um “sabe-tudo”, mas

também se formou, estudou, como ele, aluno. Cria-se assim uma relação

mais horizontal (mais um princípio de Paulo Freire) entre professor e

aluno. Depois da entrevista, de novo registro escrito.

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3 “Nomes e coisas”

Se interpretamos o mundo antes de ler e escrever – poderemos dar novos

sentidos para as palavras ou criar novas palavras para aquilo que

sentimos? A atividade aqui, em Língua Portuguesa, tematizará as

palavras. E se as palavras fossem “coisas”? É certo que as palavras

nomeiam coisas – os substantivos são os seus nomes: essa MESA, esta

CADEIRA, essa CANETA, aquela CASA… Mas essas palavras que não se referem a

coisa alguma, a nada que seja palpável, concreto, material? Uma coisa como

SAUDADE ou AMIZADE ou AMOR? E se essas palavras designassem “coisas”?

Como elas seriam? Ou ainda, se elas fossem nomes de pessoas? Eis a força

dos mitos gregos, em que tais palavras assumiam o nome de deuses: como

Eros (ou “amor”, em grego, e Cupido para a mitologia romana).

Um bom exercício de criação de sentido é a poesia – versificada ou não, o

que aqui pouco importa. Trata-se antes do exercício de fabulação, de criar

uma história para apresentar o sentido da palavra. Há vários motes para

trabalhar com os alunos, desde as letras de canções que eles mesmos

costumam ouvir, até os poemas mais consagradas da literatura.

Eis alguns exemplos de temas que podemos desenvolver com os alunos1:

“Se recebo um presente dado com carinho por pessoa de quem não gosto –

como se chama o que sinto?”

[Clarice Lispector]

Ou ainda este:

“Amor é fogo que arde sem se ver

é ferida que dói e não se sente

é um contentamento desconte

é dor que desatina sem doer.”

[Camões]

1 Boas sugestões encontramos no Livro Didático Público, da Secretaria de Estado da Educação do Paraná, que pode ser encontrado na internet. De lá, tiramos algumas destas sugestões, do trabalho das professoras Luciana Cristina Vargas Cruz e Maria de Fátima Navarro Lins Paul, p.77. http://goo.gl/erK45

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E mais um poema de Manoel de Barros, que na sua didática, nos ensina

como ainda podemos nos maravilhar com as palavras…

UMA DIDÁTICA DA INVENÇÃO, VII

“No descomeço era o verbo.

Só depois é que veio o delírio do verbo.

O delírio do verbo estava no começo, lá

onde a criança diz: Eu escuto a cor

dos passarinhos.

(...)

se a criança muda a função de um verbo, ele delira.

E pois.

Em poesia que é voz de poeta, que é a voz

de fazer nascimentos.

O verbo tem que pegar delírio.”

[Manoel de Barros]

Uma vez que os alunos entrem em contato com a criação deles mesmos,

quanto ao sentido que podem dar às palavras, de como a experiência deles

pode ser expressa numa história fabulosa – o passo seguinte é tematizar as

palavras, como criação de alguém que também quis expressar algum

sentido, alguma experiência ali. Um dos recursos que dispomos, como

ilustramos, é o da análise etimológica. Todas palavras são “criação”. Todas

elas criação de alguém, de quem se esquece, mas a palavra, em sua história,

permanece.

4 “Nomes e coisas – 2”

Em Biologia há todos aqueles nomes estranhos. Mas poderiam não ser. A

atividade que propomos é que os alunos agrupem vários “bichos” em uma

classificação que eles mesmos criem. Trata-se assim de uma Novíssima

Classificação Inventada dos Bichos. Assim, por exemplo, poderia haver uma

categoria de “bichos que fazem barulho”, outra dos “bichos que fazem sons

que quase não podemos ouvir” e mais a dos “bichos que não fazem som

algum” – em que as várias espécies podem fazer parte, pouco importando

aqui a classificação científica mais apropriada. Mas estas categorias têm

nomes muito complexos. Então, a partir da etimologia, ou da mera

invencionice, criaremos nomes para tais categorias, em uma única palavra.

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Exemplos: os ‘sonzeiros’, ‘sonzinos’ e os ‘sensons’. Certamente, tais nomes

fariam mais sentido para os alunos do que aqueles que damos em biologia.

Os alunos poderiam elaborar murais ilustrados com as classificações a que

chegaram.

Mas reparem o sentido da atividade. Trata-se antes de interpretar o

mundo, depois nomeá-lo, codificá-lo em palavra. Não é diferente com a

taxonomia na biologia. Há nela já uma interpretação – e as classificações de

que lançam mão é mais ou menos adequada a depender do que se

interpretou. Assim, consideramos nos vários exemplos de seres vivos que

fazer som ou não fazer não é coisa muito proveitosa para o estudo deles,

mas sim o fato de terem ou não ossos. Assim, temos os grupos de seres

ossudos e não-ossudos. Mas não é bem “osso”… mas as vértebras – que é

isso? Por que é importante saber se o bicho tem isso, vértebra? Se é

importante, então classificaremos os seres entre os vertebrados e

invertebrados. E por aí, vai.

O raciocínio vai ao encontro destes passos – primeiro, interpretar o

mundo. Depois, dar nomes e escrevê-lo. Ainda tematizar (problematizar)

os nomes que inventamos, para buscarmos melhores nomes, para dizer

enfim exatamente o que queremos dizer.

À guisa de conclusão

Pretendemos aqui, menos que orientar um trabalho, oferecer várias

alternativas para que os próprios professores pensem em seus caminhos.

Embora sejam marcadas as disciplinas, várias das sugestões que demos

podem ser desenvolvidas de outro modo por outras disciplinas.

É porque também a prática da docência é um exercício de liberdade e

criação. Mas criação com o outro, o educando – que ele também carece

criar seus caminhos.

Ao problematizarmos o “universo escolar” pretendemos também que não

tomemos as dificuldades dos alunos como natural ou pela índole deles –

mas para dizer que a escola também é uma criação, e deve ser recriada no

dia-a-dia, a partir dos caminhos de ensino e aprendizagem que oferece.

Paulo Freire criticava a escola – como instituição que nasce de uma classe

social e impõe padrões e saberes e métodos que nada sabem da

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experiência concreta de seus alunos. Mesmo a experiência da escolarização

– em que nossos alunos aprenderam a ler mal, a escrever pior, a copiar e

não pensar, nem criar – deve ser problematizada. Pois a aprendizagem, ler

o mundo e o mundo das palavras, há nisso um grande prazer e uma grande

felicidade. Pensemos nisso e façamos da escola um lugar feliz. Eis o que a

prática da ação educativa freiriana nos ensina: a sermos mais — mais

homens, mais educadores e, por isso, mais felizes.

Sugestões de leituras:

Obras de Paulo Freire

A Importância do Ato de Ler.

São Paulo: Cortez/Autores Associados, 23ªed., 1989.

Pedagogia do Oprimido.

Rio de Janeiro: Paz e Terra, 23ªed., 1996.

Sobre Paulo Freire:

Página do Instituto Paulo Freire, Brasil: http://goo.gl/Q3oJC

Página do Mandato do Deputado Federal Ivan Valente [PSOL-SP]

sobre Paulo Freire: http://goo.gl/JtZQT