Acervo_performare_Alexandre Pieroni Calado - Ator - Performer Ajuda o Happening a Pensar a Atuacao Contemporanea

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    Ator / Performer ajuda ohappening a pensar a atuao contempornea?

    Alexandre Pieroni Calado - Comunicao Oral

    ECA/ USP - GT Territrios e Fronteira

    Palavras-chave: Atuao contempornea, happening, desempenho no matricial

    Neste texto procuro pensar o desempenho cnico contemporneo, a partir de textos do ator,

    diretor e terico de teatro norte-americano Michael Kirby (1931-97). Kirby trabalhou com o

    Wooster Group e com Woody Allen. Foi professor na New York University e escreveu livros

    seminais como Happenings (1965), The Art of Time (1969), A formalist theatre (1987) e

    Futurist Performance (2001). Foi editor da TDR de 1969 a 1986 e um dos fundadores dos

    estudos sobreperformance nos EUA, juntamente com Richard Schechner. Este artigo nasce da

    convico de que o vocabulrio crtico de que dispomos condiciona os nossos processos

    criativos.

    I. Ator / Performer: como encarar a barra? Diferenciao e at oposio entre ator e

    performerpersistem em muitos discursos como bem ilustra o Dicionrio de Teatro, de Patrice

    Pavis. Em duas entradas distintas o semilogo francs afirma que o ator algum que interpreta

    um texto e uma encenao (PAVIS, 2001: 30); o performer um artista que fala e age em seu

    prprio nome (PAVIS, 2001: 284-5). Esta compartimentao de categorias parece-me

    dificilmente sustentada perante as prticas cnicas contemporneas. A Oxford Encyclopedia of

    Theatre and Performance, por seu lado, oferece apenas uma entrada para as duas noes e

    confirma esta dificuldade: O que o ator ou performerfaz no palco no incio do sculo vinte

    estende-se desde interpretar uma personagem psicologicamente realista representao

    seqencial de mltiplos papis ou personae at realizao de tarefas ou participao em

    imagens sem qualquer implicao de personagem (ZARRILLI, 2003: 12)1. Alm dos termos

    serem aqui intercambiveis, esta entrada explicita bem como o ator contemporneo dificilmente

    pode ser entendido simplesmente como algum que representa uma personagem.

    Diferentes tericos mantm que a definio tradicional de ator tem hoje as suas fronteiras

    abaladas. Por exemplo, Hans-Thies Lehmann defende, em O Teatro Ps-dramtico, que o teatrodas ltimas dcadas do sculo vinte se afastou definitivamente do modelo dramtico dominado

    pelo texto dialogado, pela presena de personagens e pela ideia de conflito. Segundo o terico

    alemo, a transformao operada nos signos teatrais teve por consequncia que as delimitaes

    que separam o gnero teatral de outras prticas que como a arte da performance tendem a

    uma experincia do real se tenham tornado mais fludas (LEHMANN, 2002: 216).

    Consequentemente, o ator contemporneo, ainda segundo Lehmann, apresenta-se como o ator

    pico que mostra ou utiliza, como operformer, a sua presena como material esttico de base

    1 A traduo de obras que no esto em portugus minha, excepto

    quando indicado em contrrio na bibliografia.

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    (LEHMANN, 2002: 222); ele evolui entre uma metamorfose em objeto inanimado de

    apresentao e a afirmao de si como pessoa (LEHAMNN, 2002: 268); em resumo, no

    mais o representante de um papel mas aquele que oferece a sua presena contemplao

    (LEHMANN, 2002: 217). Odette Aslan, consagrada investigadora da evoluo do trabalho do

    ator no sculo vinte, por seu lado, corrobora a posio de Lehmann, reforando o

    desenvolvimento da criatividade do ator: Mais que a personagem, ele deixa aparecer a sua

    pessoa. Ele vai mesmo at a performance: o ato de ser si, a apresentao de si em ato.

    (ASLAN, 2006: 103)

    O que estes tericos constatam observa-se num amplo conjunto de prticas que tm em

    comum uma reconstruo das categorias dramticas. Exemplos com a Cia. de Atores, o Teatro

    da Vertigem e o Arquiplago, no Brasil, e o Teatro da Garagem, o Teatro Praga, a Casa

    Conveniente, o Teatro do Vestido, a Patrcia Portela, em Portugal, ilustram-no no contexto luso

    e brasileiro. Wooster Group (EUA), Forced Entertainment (Reino Unido), STAN (Blgica), La

    Fura dels Baus (Espanha), Societtas Raffaello Sanzio (Itlia), Anatoli Vassiliev (Russia),

    Theodoros Terzopoulos (Grcia) e Tadashi Suzuki (Japo) so nomes de praticamente os quatro

    cantos do mundo j consagrados por prticas que questionam os modos convencionais de fazer

    teatro e o papel do ator na criao.

    II. Atuao no happening: desempenho na fronteira? Kirby, na Introduo ao seu livro

    Happenings escreve: Os happenings podem ser descritos como uma forma de teatro

    propositadamente composta, na qual diversos elementos algicos, incluindo desempenho no

    matricial, so organizados numa estrutura compartimentada. (KIRBY, 1965: 21) No pretendo

    aqui analisar quanto esta descrio colide com muitos preconceitos, alguns dos quais esto bem

    ilustrados na traduo brasileira desta passagem, no Dicionrio de Teatro de Pavis, mas antes

    aprofundar a noo de desempenho no matricial que particularmente pertinente para

    compreender a atuao contempornea.

    Considerando trabalhos de Allan Kaprow e Claes Oldenburg, entre outros, Kirby salienta as

    fortes analogias do processo de criao no Happening com as prticas da collage, da

    assemblage e do environment (KIRBY, 1965: 11, 22). A esta apropriao de procedimentos,que concorre para o carter algico da composio, corresponde um afastamento das categorias

    tradicionais do drama (espao, tempo, personagens e situaes ficcionais). So estas ltimas que

    Kirby considera uma matriz, na qual a atuao se processa; a ausncia destas que o leva a

    denominar o desempenho do ator no happening como nonmatrixed performing (KIRBY,

    1965: 16). importante salientar que esta noo no se reduz de no representao, como

    fica claro no texto From acting to not-acting (1987). Kirby entende que o ator no

    representa quando no faz nada para reforar a informao e a identificao e que representa

    quando faz algo para fingir, simular ou personificar [impersonate] (KIRBY, 1987: 3). Para oautor norte-americano, estes so dois extremos de um continuo onde possvel identificar certas

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    categorias intermdias como matriz simblica [symbolized matrix] e representao

    recebida [received acting]. Com estas Kirby salienta que, mesmo no representando, o

    desempenho do ator pode ser percebido como tal em consequncia da existncia de elementos

    matriciais. Quanto mais fortes, persistentes e mutuamente se reforam estes elementos, mais a

    atuao recebida como uma representao, independentemente de quo quotidiano seja o

    comportamento do ator.

    Entre os happenings documentados no seu livro, Kirby constata que certas unidades destas

    criaes apenas contm sons ou elementos fsicos e dispensam a presena humana (KIRBY,

    1965: 14). Com efeito, o abandono da matriz desloca o foco para a situao concreta da

    apresentao, para os materiais utilizados e para a recepo. Esta percepo contribui para que

    Kirby afirme que o desempenho do ator tende a estar no mesmo nvel que os aspetos fsicos da

    produo (KIRBY, 1965: 19). Assim, na economia da apresentao, a singularidade da pessoa

    valorizada por no estar associada noo de personagem mas o desempenho do ator tratado

    como apenas um entre os elementos da montagem. Trata-se sem dvida de uma tendncia no

    antropocntrica do fazer teatral.

    Sem interpretar uma matriz externa ao evento concreto que ocorre na presena do espectador,

    de acordo com Kirby, o ator no happening apenas executa tarefas genericamente simples e

    pouco exigentes: andar, correr, dizer palavras, cantar, lavar pratos, varrer, operar mquinas e

    equipamento de palco, por exemplo (KIRBY, 1987: 3). Uma vez que estas tarefas so

    programadas mas no marcadas como em outras formas de teatro, o atorgoza de um grau de

    liberdade comparativamente maior. Contudo, Kirby mantm que no adequado falar-se em

    improvisao, j que esta normalmente entendida como algo que no preparado

    antecipadamente, alm de estar, de modo geral, associada a prticas teatrais muito diferentes do

    happening. Kirby prefere falar em indeterminao (KIRBY, 1965: 17).

    III. Cena contempornea: que contributos? Kirby mantm que o ator no happening nem

    desaparece na personagem, como pretenderia Stanislavsky, nem aparece ao lado dela,

    comentando-a, como pretenderia Brecht; para ele, surgiu uma nova categoria (KIRBY, 1965:

    17). Alm do happening, Kirby encontra o desempenho matricial em certas peas de dana e naatuao dos assistentes de cena do Kurombo e do Kabuki (KIRBY, 1987: 3-4); talvez este

    ltimo exemplo seja o que de modo mais evidente traduz a noo de realizao de tarefas. O

    happening uma designao histrica mas muitas inovaes por ele introduzidas so hoje

    aplicadas ao teatro narrativo e de representao: a criao coletiva de roteiros e espetculos, a

    experimentao com diferentes relaes entre o pblico e a apresentao, a crescente nfase no

    movimento e na imagens, etc. tambm freqente encontrar criaes onde os atores transitam

    entre diferentes modos de desempenho, muitas vezes integrando a realizao de tarefas

    enquanto eles mesmos na sua atuao. Ainda que perante a enorme diversidade demanifestaes cnicas atuais seja difcil postular axiomas definitivos, creio que o desempenho

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    no matricial do happening descrito por Michael Kirby pode ajudar a compreender e a

    desenvolver a atuao contempornea.

    BLIOGRAFIA

    KIRBY, Michael, A Formalist Theatre, Philadelphia: University of Pennsylvania Press,

    1987.

    KIRBY, Michael, Happenings, New York: E. P. Dutton,1965.

    PAVIS, Patrice, Dicionrio de Teatro, trad. J. Guinsburg et al., So Paulo: Editora Perspectiva,

    2001.

    ZARRILLI, Phillip, Acting / Actor in: Dennis KENNEDY (ed.), The Oxford Encyclopedia

    of Theatre and Performance, Oxford: Oxford University Press, 2003.

    ASLAN, Odette, Lacteur en devenir in: Thtre / Public 182, Gennevilliers: Thtre de

    Gennevilliers, pp. 102-107, 2006.

    LEHMANN, Hans-Thies, Le Thtre Postdramatique, Paris: LArche, 2002.

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