8

Click here to load reader

Aconselhamento Confiado ao Corpo de Cristo

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Aconselhamento Confiado ao Corpo de Cristo

UM MINISTÉRIO CONFIADO AO CORPO DE CRISTO

Maria Cecilia Alfano1

À medida que nossa sociedade cresceu em complexidade, o trabalho de especialistas ganhou espaço. A Igreja também está à procura de especialistas para assessorar seus líderes em estratégias de crescimento, administração, educação, entre outras. Atualmente, em boa parte das igrejas evangélicas, uma equipe pastoral não é considerada completa se não tiver pelo menos um psicólogo. John MacArthur destaca que “em nenhuma outra área a veneração do ‘especialista’ teve um impacto tão insidioso como na área do aconselhamento”.2 Nas palavras de David Hunt, os pastores são considerados hoje “competentes para pregar ou ensinar a Palavra de Deus se têm um diploma de teologia, mas incompetentes para aconselhar usando a Palavra de Deus sem um diploma de psicologia”.3

Em seu livro Quebrando Paradigmas, quando expressa sua confiança em um “acompanhamento profissional efetuado por um terapeuta, psicólogo ou psiquiatra”, o pastor Ed René Kivitz oferece um exemplo do pensamento da Igreja. No seu entender,

Há ocasiões em que a mutualidade no corpo de Cristo fornece a atmosfera de amor, aceitação e sustentação espiritual para que o socorro profissional seja instrumento para o soerguimento do cristão. Procurar ajuda profissional não é pecado, nem falta de fé, mas sim prudência de quem recebe como bênção os recursos da ciência.4

Neste contexto, a tarefa de ajudar pessoas com problemas profundos tem sido vista pela Igreja como própria do profissional. De modo geral, todos concordam que o aconselhamento praticado pelo corpo de Cristo, com sensibilidade e bom senso, pode oferecer encorajamento. No entanto, a perspectiva da especialização profissional costuma ser aplicada ao ministério e atribui ao especialista a tarefa de examinar o que há por trás dos problemas da vida, sondar a dinâmica interior no aspecto emocional/mental, e aplicar técnicas específicas para mudança. Em resumo, o que geralmente ouvimos na Igreja é que há diferentes níveis de atuação no aconselhamento: em um plano básico estão os leigos; no plano médio, os pastores e obreiros treinados para o aconselhamento, e no plano mais alto, os profissionais.

Certamente não estamos querendo sugerir que não se deva lançar mão dos recursos da ciência médica na dimensão em que isto se faz necessário. Encaminhar para o médico uma pessoa cujo comportamento viciado acarretou consequências físicas é imprescindível5. No entanto, na maioria das vezes, quando se pensa no especialista, tem-se em mente um psicólogo ou um psiquiatra com o propósito de sondar motivações e dar orientações sobre como relacionar-se consigo mesmo e com outras pessoas, e encontrar sentido na vida.

Ainda que sem desvalorizar a atuação dos obreiros cristãos preparados para o ministério de aconselhamento, queremos ser cautelosos também com a especialização dentro do próprio corpo de Cristo, e destacar que as Escrituras ensinam com clareza que Deus é quem opera o processo de santificação, transformando pessoas à imagem de Cristo enquanto os cristãos ministram “uns aos outros, cada um conforme o dom que recebeu, como bons despenseiros da multiforme graça de Deus” (1Pe 4.10). O aconselhamento bíblico é uma expressão da dinâmica do corpo de Cristo, no contexto de vida da igreja local.

1 Este texto é parte da dissertação apresentada no programa Master in Arts of Biblical Counseling em The Master’s College, Santa Clarita, Califórnia, em 2004.

2 MacARTHUR, John F. Jr. Spirit-giftedness and biblical counseling. In: MacARTHUR, John F. Jr., MACK, Wayne A. Introduction to biblical counseling. Dallas, Tex.: Word, 1994, p. 311.

3 HUNT, Dave. Escapando da sedução: retorno ao cristianismo bíblico. Porto Alegre: Chamada da Meia-Noite, 1995, p. 154.

4 KIVITZ, Ed René. Quebrando paradigmas. 2. ed. São Paulo: Abba, 1997, p. 62.

5Algumas pessoas podem ter sintomas mediados fisicamente de intensidade tal que o controle mediante medicação psicotrópica se faz necessário para que seja possível dar início e continuidade a um aconselhamento bíblico. É recomendável que o conselheiro bíblico cultive relacionamento com um médico cristão, conhecedor das pressuposições bíblicas para o aconselhamento, para que possam atuar em conjunto.

Page 2: Aconselhamento Confiado ao Corpo de Cristo

O ministério de aconselhamento na igreja local

A igreja local é o ajuntamento de crentes em Jesus Cristo regenerados pelo poder do Espírito Santo e em processo de se tornarem semelhantes a Cristo e aptos para a missão à qual Ele os chamou. Esta missão pode ser descrita em três aspectos: em relação a Deus, em relação ao mundo e em relação ao próprio corpo local. “A igreja existe como comunidade congregada... [para] tornar-se um organismo maduro, mediante o processo de edificação, para honrar e glorificar a Deus, e, ao fazê-lo, deve tornar-se uma testemunha dinâmica no mundo”.6 Os três aspectos são igualmente importantes e devem receber a devida atenção. Eles não são independentes; pelo contrário, estão intimamente relacionados.

Os dois primeiros aspectos podem ser resumidos no fato de que a Igreja foi escolhida para manifestar ao mundo o caráter de Deus, fazendo conhecida a Sua glória diante de todos. O terceiro diz respeito ao corpo local composto por indivíduos que ganharam vida espiritual, foram recriados em Cristo com novas capacidades e possibilidades que devem ser desenvolvidas e aperfeiçoadas até à plena maturidade à semelhança de Cristo (2Co 3.18; Ef 4.15) para que os dois primeiros aspectos da tarefa possam ser cumpridos a contento.

O crescimento de cada membro do corpo é uma responsabilidade pessoal em certo sentido, mas também é comunitária, visto que os membros do corpo pertencem uns aos outros para edificação mútua, e não há lugar no corpo para viver e crescer isoladamente. Duas das principais passagens sobre o corpo no Novo Testamento − Efésios 4 e 1 Coríntios 14 − enfatizam a edificação mútua. Também em Romanos 12, depois de exortar os crentes a estarem engajados em um processo de transformação de suas vidas, Paulo menciona a edificação mútua pelo exercício dos dons espirituais e pelo relacionamento em amor. “Edificai-vos reciprocamente” é igualmente a exortação feita aos tessalonicenses (1Ts 5.11).

Definimos anteriormente o aconselhamento bíblico como o aspecto do ministério em que o corpo de Cristo, capacitado pelo Espírito Santo e baseado na Palavra de Deus corretamente interpretada e aplicada a situações específicas, ministra à vida de um irmão visando cooperar com o plano de Deus de conformar progressivamente este irmão à imagem de Cristo. Podemos acrescentar agora que cremos que o contexto da igreja local é a estrutura bíblica para esta dinâmica, usando as palavras de John Street: “ministérios de aconselhamento que não estão debaixo da estrutura de autoridade da igreja local não merecem credibilidade...eles estão assumindo um ministério que pertence distintamente à igreja local”.7

O ministério bíblico de aconselhamento não acontece em uma organização, mas em um organismo. Com isso queremos dizer não só que o aconselhamento bíblico é um ministério a ser exercido na dinâmica da igreja local, mas também que ele não é apenas um ministério ou atividade a mais entre outros mantidos pela igreja. As igrejas locais não apenas incluem um ministério de aconselhamento que treina conselheiros e oferece sessões de aconselhamento, mas elas são em si um ministério de aconselhamento.

O pastor William Goode deixou registrada sua experiência e seu alerta:

Quase toda a semana alguém me pergunta como começar um ministério de aconselhamento em uma igreja local − uma pergunta que, para mim, ilustra uma concepção errada muito comum da verdadeira natureza do aconselhamento.... No projeto de Deus para o ministério, o aconselhamento é concebido como uma parte sincronizada do todo.8

Ele descreveu duas maneiras de se começar um ministério de aconselhamento na igreja local. A primeira, infelizmente a mais comum, consiste em estabelecer um centro de aconselhamento onde o aconselhado é atendido e recebe orientação bíblica, mas não tem oportunidade de ver

6 GETZ, Gene A. Igreja: forma e essência: o corpo de Cristo pelos ângulos das Escrituras, da história e da

cultura. São Paulo: Vida Nova, 1994, p. 95. 7 STREET, John D. Is counseling training important for your church? The Biblical Counselor, May 1998, p. 6. 8 GOODE, William W. Biblical counseling and the local church. In: MacARTHUR, John F. Jr., MACK, Wayne A. Introduction to biblical counseling. Dallas, Tex.: Word, 1994, p. 301, 305.

Page 3: Aconselhamento Confiado ao Corpo de Cristo

os princípios de crescimento cristão modelados na vida da igreja que mantém o centro. A segunda, a alternativa bíblica, começa pelo esforço de envolver os líderes e demais membros da igreja em um processo habitual de santificação progressiva e ministério mútuo em que aquele que necessita de ajuda pode se inserir e encontrar exemplos para seguir, além de uma palavra de orientação específica − o aconselhamento é então uma parte natural do ministério da igreja.

“Sou contrário a começar centros de aconselhamento, mesmo em igrejas locais!”, diz o pastor John Street9. Ele explica que as igrejas não devem ter um centro de aconselhamento; elas devem ser um centro de aconselhamento. Isto implica fazer do cuidado pessoal uma dinâmica na vida da igreja, e não uma atividade especializada.

O aconselhamento bíblico pode acontecer na igreja local em três diferentes dimensões. No que diz respeito aos membros do corpo, ele é parte natural do processo de edificação: a pregação ensina como viver e lidar com problemas biblicamente e motiva ao crescimento e mudança; a comunhão cristã e a vivência em pequenos grupos oferece apoio, encorajamento, exortação; a liderança é modelo de comprometimento na preservação e observância dos princípios bíblicos, e também atua com autoridade na disciplina da igreja quando necessário. Quanto mais forte forem os relacionamentos pessoais no corpo, menor a necessidade de uma intervenção formal de aconselhamento, embora haja ocasiões em que esta se faz útil e necessária.

Uma segunda dimensão diz respeito a pessoas que não conhecem a Cristo, que lutam com problemas pessoais e podem encontrar na igreja o lugar onde obter a resposta segura. Mesmo assim não estamos falando em um centro de aconselhamento, isolado do restante do ministério da Palavra, onde pessoas são atendidas durante uma hora por semana. O alvo do ministério da igreja local é ganhar estas pessoas para Cristo e dar início a um processo de transformação de vida dentro do corpo de Cristo, embora a porta de entrada seja uma ou mais conversas sobre os problemas pessoais que as afligem naquele momento. O princípio básico que nunca pode ser esquecido é que estas pessoas necessitam do ministério conjunto da igreja local.

Há pessoas que pertencem a igrejas locais, mas não encontram em sua igreja solução para seus problemas pessoais porque seus líderes não estão preparados para ajudá-las. Igrejas que adquiriram uma visão bíblica do ministério de aconselhamento e estão fortes em sua prática podem ser recurso de auxílio. Esta é a terceira dimensão do aconselhamento na igreja local, em que membros de outras igrejas, acompanhados por seus líderes, são aconselhados com o propósito de oferecer-lhes ajuda pessoal e ao mesmo tempo treinar estes líderes para que ganhem a visão ministerial e a apliquem. Mais uma vez não estamos falando em um centro de aconselhamento que atende cristãos uma vez por semana, independentemente da vida do corpo. O pastor Alden Laird relata a experiência de sua igreja no auxílio a outras:

Um número crescente de pastores têm aceito o requisito de que não aconselhamos um membro de outra igreja a menos que ele seja acompanhado por seu pastor ou outro líder espiritual. Deus tem permitido resultados maravilhosos em muitas destas situações à medida que pastores e líderes vêem que nós, como cristãos, temos um recuso suficiente na Palavra de Deus e que não necessitamos de um ajuda “profissional” para ajudar pessoas a mudarem sua vida.10

As pessoas que procuram aconselhamento fora da sua igreja local, costumam alegar vantagens como neutralidade, confidencialidade e maior transparência. Pode haver, e certamente haverá na prática ministerial, uma ou outra exceção, mas o princípio básico é que a igreja local é a estrutura onde buscar auxílio para lidar com os problemas da vida, com benefícios claros:

9 STREET, John D. Op. cit. p. 2. 10 LAIRD, Alden. Why counseling belongs in the local church and why people seek a neutral counselor. Return to the Word Biblical Counseling Newsletter, January-March 1998, p. 2.

Page 4: Aconselhamento Confiado ao Corpo de Cristo

− Conhecimento pessoal Pastores e líderes conhecem aqueles que estão sob o seu cuidado. Na convivência podem identificar seus problemas, resistências, vitórias, crescimento espiritual e relacionamento com o Senhor (Hb 10.24-25). − Responsabilidade pessoal e cobrança No contexto da igreja local, o aconselhado torna-se responsável perante os outros por suas atitudes e ações (Hb 13.17). Fora da igreja local, nenhum conselheiro pode ter esta autoridade espiritual. Justamente por esta razão muitos buscam aconselhamento fora da igreja local.

− Disciplina e restauração Não havendo responsabilidade pessoal e cobrança fora da igreja local, também não é possível aplicar a disciplina bíblica e conduzir um aconselhado no processo de Mateus 18.15-17 caso decida continuar a viver em rebeldia para com Deus. Fora da igreja, o papel do conselheiro pode ficar reduzido ao de um consultor ou mediador, enquanto que na igreja local os líderes são chamados a repreender e exortar com toda a autoridade e amor, confrontando o pecado e disciplinando com o propósito de restauração.

− Acompanhamento Na igreja local, o progresso do aconselhado pode ser acompanhado. Há uma interação entre o que acontece em um encontro de aconselhamento e nas demais atividades da comunidade. Outros membros podem estar envolvidos, trabalhando em equipe para ajudar no progresso do aconselhado, o que é especialmente útil no lidar com hábitos escravizadores.

− Serviço No contexto da igreja local, quando um aconselhado começa a crescer ele pode ser fonte de encorajamento para outros. Aqueles que aprenderam a lidar biblicamente com os seus problemas podem ajudar outros a encontrar respostas bíblicas.

Os pastores que confiam os membros de sua igreja a especialistas ou a centros de aconselhamento, alegando não ter tempo para este ministério, não ter preparo ou não “levar jeito para ser conselheiro”, estão privando seu rebanho de participar da dinâmica bíblica de edificação. Nas palavras de David Powlison, “a expressão principal e plena do ministério de aconselhamento ocorre nas igrejas locais onde os pastores efetivamente pastoreiam almas e ao mesmo tempo equipam e supervisionam diferentes formas de ministério envolvendo todos os membros”.11

O ministério do pastor

Por volta de 1970, o movimento do aconselhamento bíblico respondeu à figura do psicólogo com a figura do pastor como o conselheiro profissional, a quem compete a tarefa de orientar o rebanho nos problemas da vida. Jay Adams escreveu amplamente sobre o papel do pastor, traçando um modelo de aconselhamento que é relativamente formal, com papéis bem definidos. O pastor conselheiro conduz o encontro, senta-se atrás de uma mesa, estabelece a agenda, interpreta a Bíblia com autoridade, confronta, encoraja e guia no processo de restauração.12

Embora todo crente deva ser um conselheiro (encorajador, exortador, sustentador) para os irmãos em Cristo, certamente o pastor é chamado de modo particular para o papel de pregar a Palavra, e também aconselhar a Palavra. Ao lado do ministério público, Paulo considerava o ministério pessoal como parte vital da obra que lhe fora confiada. Em Colossenses 1.28 ele se refere ao esforço no ministério pessoal noutético. Em seu discurso de despedida de Éfeso, em Atos 20.31, Paulo descreve o papel que tivera junto àqueles irmãos: “por três anos, noite e dia, não cessei de admoestar (noutheteō), com lágrimas, a cada um”. Pregação e aconselhamento são tarefas do pastor que se completam. Ambos envolvem 11 POWLISON, David. Affirmations and denials: a proposed definition of biblical counseling. The Journal of Biblical Counseling, v. 19, n.1, Fall 2000, p. 21. 12 Para uma história do movimento de aconselhamento bíblico, consulte POWLISON, David. Competent to counsel: the history of a conservative protestant anti-psychiatry movement.1996b. (Tese de doutorado - University of Pensylvania).

Page 5: Aconselhamento Confiado ao Corpo de Cristo

proclamação e aplicação, e por meio de ambos o Espírito opera individualmente e promove mudança.

Na perspectiva de Adams, a ordenação ao pastorado é fundamental para o exercício do aconselhamento bíblico como função, pois a ordenação coloca o aconselhamento no contexto da autoridade de Cristo, conferida aos que “vos presidem” (Hb 13.7, 17; 1Ts 5.13):

Enquanto todos os cristãos podem aconselhar uns aos outros informalmente, a menos que tenha sido chamado oficialmente por Deus para ministrar a Sua Palavra e ordenado pela Sua Igreja para esta tarefa, alguém não pode tomar para si o papel de conselheiro. Uma coisa é aconselhar informalmente, conforme a necessidade; outra coisa é assumir o papel de conselheiro.13

A geração que deu continuidade ao trabalho de Jay Adams enfatizou que o aconselhamento bíblico deve buscar uma maior articulação entre (1) o ministério cujos elementos centrais são a autoridade pastoral e a intervenção corretiva e (2) o ministério cujo elemento central é a mutualidade enfatizada no Novo Testamento. “Temos que ter a flexibilidade de nos relacionar de modo diferente com pessoas diferentes. Há várias maneiras de estruturar o relacionamento de aconselhamento.”14

Certamente a função pastoral é singular no aconselhamento bíblico. Não podemos esquecer, porém, que a Bíblia indica a normalidade como uma vida diária de mútuo discipulado/aconselhamento dentro do corpo de Cristo. Dentro do campo de aconselhamento há, portanto, um leque amplo que se estende desde a intervenção formal do pastor, passa pelo aconselhamento/discipulado oferecido por pessoas mais maduras e experientes na fé (pais, mentores, professores), até chegar a um relacionamento diários de amigos e colegas, cada um participando de acordo com seu papel, autoridade e dons.

O ministério conjunto do corpo

O Novo Testamento ensina o sacerdócio de todos os nascidos de novo (Hb 10.19-22; 1Pe 2.5,9). Instruções como “Consolai-vos, pois, uns aos outros e edificai-vos reciprocamente” (1Ts 5.11) ou “Exortai-vos mutuamente cada dia” (Hb 3.13) foram escritas no contexto de igrejas locais e aplicam-se a todos os crentes.

O termo grego allēlōn, traduzido por uns aos outros aparece no Novo Testamento envolvendo exortação, aconselhamento, advertência, instrução, apoio na fraqueza, encorajamento, intercessão, entre outros. Cada crente da igreja de Roma deveria estar envolvido no ministério, competente para aconselhar: “E certo estou, meus irmãos, sim, eu mesmo, a vosso respeito, de que estais possuídos de bondade, cheios de todo o conhecimento, aptos para vos admoestardes uns aos outros” (Rm 15.14). Na igreja de Colossos deveria acontecer o mesmo: “Habite, ricamente, em vós a palavra de Cristo; instruí-vos e aconselhai-vos mutuamente em toda a sabedoria, louvando a Deus, com salmos, e hinos, e cânticos espirituais, com gratidão, em vosso coração” (Cl 3.16). Nestes dois versos, Paulo usa a mesma palavra (noutheteō) que usou para se referir ao trabalho do pastor. Aconselhamento é o trabalho do pastor e é trabalho de todos. Aos Gálatas, Paulo escreve: “ Irmãos, se alguém for surpreendido nalguma falta, vós, que sois espirituais, corrigi-o com espírito de brandura; e guarda-te para que não sejas também tentado” (Gl 6.1). Está claro que Deus quer que cada crente ajude seu irmão na aplicação habilidosa da Palavra de Deus à vida diária.

Com base em 1 Coríntios 12.5-7, John MacArthur destaca que há diversidade nos ministérios, nas realizações, mas o Senhor é quem opera tudo em todos, concedendo dons do Espírito visando a um fim proveitoso no corpo de Cristo, e acrescenta que “quase todos os dons espirituais descritos no Novo Testamento são úteis no ministério de aconselhamento”.15

13 ADAMS, JAY. Teaching to observe: the counselor as a teacher. Woodruff, SC: Timeless Texts, 1995, p.12.

14 POWLISON, David. Crucial issues in contemporary biblical counseling. Journal of Pastoral Practice, v.9, n. 3, 1988, p. 59.

15 MacARTHUR, John F. Jr. Spirit-giftedness and biblical counseling. In: MacARTHUR, John F. Jr., MACK, Wayne A. Introduction to biblical counseling. Dallas, Tex.: Word, 1994, p. 314.

Page 6: Aconselhamento Confiado ao Corpo de Cristo

O cuidado pessoal pode tomar a forma de uma palavra de encorajamento, explicação de um texto das Escrituras ou exortação. Aconselhamento bíblico envolve certamente conversação, mas é muito mais que conversação. É também misericórdia, serviço e dádiva de tempo, talentos e recurso em momentos de necessidade. A igreja trabalha como uma equipe, em ministério conjunto mobilizado e orientado pelo pastor.

Conquanto possa haver no corpo pessoas particularmente equipadas para o aconselhamento, ser um conselheiro bíblico não é ocupação exclusiva de alguns. Conforme Edward Welch,

aqueles que têm um treinamento especial e experiência em aplicar as Escritura à vida podem ter sido especificamente equipados por Deus para ajudar em certos problemas. Todavia, eles não são os únicos que atenderão à maioria das necessidades de aconselhamento da igreja. Pelo contrário, telefonamos a um amigo e pedimos suas orações, ouvimos um sermão que transforma nossa vida, crescemos na fé quando nosso pequeno grupo vem nos ajudar com um projeto em nossa casa, conversamos com uma pessoa idosa piedosa sobre como educar os filhos enquanto tomamos uma xícara de café.16

Embora uma pessoa não precise ter passado pela mesma experiência de vida para ministrar a outra, a experiência pode ser de ajuda. Por exemplo, uma viúva que descobriu o cuidado e a consolação de Deus na perda do marido, pode exercer um ministério efetivo a alguém que esteja passando pela mesma situação. O mesmo acontece na educação de filhos. Precisamos, porém, lembrar que alguém não precisa ter cometido o mesmo pecado para aconselhar um irmão em dificuldade. Não importa se uma pessoa praticou comportamento anoréxico ou bulímico, fez uso de drogas, cometeu um aborto, mentiu ou desobedeceu a uma autoridade. A aplicação sábia da Palavra cabe a todos.

Um outro aspecto que merece ser considerado é a tarefa que cabe à mulher no ministério de aconselhamento. As passagens do Novo Testamento que falam do ministério cristão uns aos outros não especificam a respeito do ministério de mulheres ou de homens. Podemos assumir que encorajar, admoestar, ensinar, orar pode ser tarefa tanto de homens como de mulheres, embora não caiba às mulheres o ministério pastoral ordenado.

Existem algumas situações específicas do aconselhamento de mulheres que embora se beneficiem de um ministério amplo no contexto da igreja, requerem um acompanhamento prolongado e uma prestação de contas intensa e específica que, por sabedoria e prudência, deve acontecer preferencialmente entre pessoas do mesmo sexo. É comum aceitarmos a idéia de que o discipulado é um relacionamento entre pessoas do mesmo sexo. Se entendermos este tipo de aconselhamento como parte específica de um discipulado, não teremos problema para perceber a conveniência de que seja realizado por mulheres.

Parece-nos importante esclarecer dois pontos da questão. Primeiro, não estamos sugerindo que um homem não possa ter parte no aconselhamento bíblico de uma mulher. Todos no corpo de Cristo ministram uns aos outros e o próprio Senhor Jesus deu exemplo ministrando a mulheres — Ele conversou com a mulher samaritana junto ao poço (Jo 4.7-27), uma mulher que tinha uma história de pecados sexuais. No entanto, devemos considerar que foi uma circunstância limitada a uma conversa, que talvez encontre paralelo mais adequado naquilo que mencionamos como a intervenção pastoral em que se sobressai o elemento de autoridade e que é certamente apropriada em determinados momentos. Mesmo assim, a recomendação é que o pastor esteja acompanhado de sua esposa ou de uma mulher cristã madura.

O apóstolo Paulo recomendou a Timóteo que exortasse às moças como a irmãs, como toda a pureza (1 Tm 5.2), o que indica o ministério de aconselhamento pastoral dirigido a elas. No entanto, quando Deus, por intermédio de Paulo, instruiu Tito para que falasse sobre a prática cristã condizente com a boa doutrina (2.1), Ele determinou que Tito falasse a homem idosos (2.2), a mulheres idosas (2.3) e aos moços (2.6). Com respeito às moças, a estratégia era diferente — cabia às mulheres maduras serem modelo de uma vida piedosa (2.4-5). Um

16 WELCH, Edward. What is biblical counseling anyway? The Journal of Biblical Counseling, v. 16, n. 1, Fall 1997c, p. 4.

Page 7: Aconselhamento Confiado ao Corpo de Cristo

paralelo nos nossos dias seria o pastor ou um líder instruindo mulheres maduras para que sejam capazes de aconselhar as mais jovens debaixo de sua supervisão. Em muitos aspectos, as mulheres maduras estão mais habilitadas do que um homem para alcançar problemas específicos de outras mulheres.

Segundo, não queremos sugerir que a conselheira ou discipuladora deixa de se reportar ao pastor ou outro líder espiritual no ministério de aconselhamento. Ela não vai substituir o papel do pastor ou líder nem queremos desconsiderar o benefício que pode resultar da presença da figura masculina de um conselheiro piedoso no processo de aconselhamento.17 O fato, porém, é que o acompanhamento exige um envolvimento intenso, e tempo gasto lado a lado. Desde que se requer franqueza e vulnerabilidade em todas as áreas da vida, tratando de assunto íntimos que possivelmente estão relacionados ao estilo de vida que requer mudanças, vemos limitações e inconveniências com respeito a acompanhar alguém do sexo oposto. Nesse caso sugerimos que quando um conselheiro for procurado por uma mulher, de modo geral ele conduza o início do processo, e em seguida inclua uma mulher para o acompanhamento. Essa estratégia elimina muitos dos problemas e constrangimentos que podem ocorrer em situações em que um homem está aconselhando uma mulher.18

Muitas vezes o conselheiro se sente confortável ao aconselhar uma mulher por não perceber o dano que está causando e o perigo que está correndo. A questão da estimulação sexual é uma realidade e pode operar em ambas as direções: do conselheiro para com a aconselhada e da aconselhada para com o conselheiro.19 Além da prudência do conselheiro em se proteger, deve haver também um cuidado com aquilo que o aconselhamento pode representar para a vida da aconselhada. Ao problema que a levou a buscar aconselhamento, podem se juntar conflitos resultantes do relacionamento com o conselheiro, com grande prejuízo para a vida espiritual. O conselheiro pode se tornar uma pedra de tropeço. Pela graça de Deus, superabundante diante das imperfeições humanas, muitas aconselhadas ainda prosseguem no crescimento cristão após experiências dolorosas com seus conselheiros, mas certamente não é aquilo que queremos propor para mulheres que precisam de alguém que as ajude a viver a vida cristã.

Quanto às qualificações das mulheres chamadas para serem discipuladoras, trata-se de “mulheres sérias em seu proceder” (Tt 2.3). A expressão resume o tipo de relacionamento com Deus que as mulheres maduras devem demonstrar no cotidiano. A palavra traduzida por “sérias” (hieroprepes) tem o sentido de reverentes e era usada no grego para descrever a sacerdotiza pagã que servia no templo20. Ela traz a conotação de uma adoração em tempo integral, não repartida. Aplica-se a uma mulher que aprendeu a viver constantemente sob o temor do Senhor, sem ter o coração dividido.

Paulo fala também de mulheres “não dadas ao vinho” (Tt 2.3). Embora o termo bíblico se refira especificamente à bebedice, podemos estender o mesmo para outros hábitos escravizadores comuns em nossa época − alimentos, qualquer tipo de dependência química, compras sem controle, tempo gasto com novelas e assim por diante. O que está em pauta é a habilidade de enfrentar os desafios da vida diária na dependência de Deus, sem buscar escapes.

17 Casais − o marido acompanhado pela esposa − podem ter um ministério frutífero de aconselhamento modelando a vida cristã familiar diante das aconselhadas. Isto é especialmente importante para jovens que vêm de lares desfeitos e/ou não tiveram uma presença paterna bíblica e firme.

18 Quando se faz necessário que um homem aconselhe uma mulher, além do cuidado de envolver uma outra mulher no aconselhamento, há várias medidas que podem ajudar como, por exemplo, manter um visor na porta da sala de aconselhamento e não aconselhar em local onde não haja outra pessoa em ambiente contíguo. 19 Situações de envolvimento emocional, ou “armadilhas da ternura” como as chama o pastor Jim Newheiser, não acontecem porque aconselhada e conselheiro estabeleceram um propósito malicioso. “Muitos começam com boas intenções e terminam em desastre.” NEWHEISER, Jim. The tenderness trap. The Journal of Biblical Counseling, v.13, n.3, Spring 1995, p. 44. 20 KELLY, John Norman Davidson Epístolas pastorais: introdução e comentário. São Paulo: Vida Nova, Mundo Cristão, 1991.

Page 8: Aconselhamento Confiado ao Corpo de Cristo

“Mestras do bem” (Tt 2.3) podem ensinar jovens casadas a edificar o relacionamento conjugal e lidar com seu lar, mas certamente podem e devem ensinar também moças solteiras a cultivar honestidade, disciplina, domínio próprio. Seu exemplo e suas palavras devem promover integridade de coração para com Deus, de tal forma que hábitos escravizadores não tenham mais lugar.

Na carta a Tito, Paulo escreveu ao pastor que ele havia deixado na ilha de Creta com a responsabilidade de estabelecer a igreja recentemente formada. Havia sérios problemas em Creta, típicos de uma sociedade pagã que estava sendo alcançada pelo evangelho. Não havia modelos de vida piedosa. Nos tempos do Novo Testamento, os habitantes de Creta eram proverbialmente famosos por possuírem um caráter indigno (Tt 1.12), além de que falsos ensinamentos estavam enganando e confundindo os habitantes da ilha de modo que, embora professassem conhecer a Deus, negavam a Deus por suas obras (Tt 1.16). Semelhantemente, muitas mulheres alcançadas hoje pelo evangelho estão sob uma forte influência de uma sociedade que estabelece seu estilo de vida baseado em valores diferentes dos de Deus. Um bom número delas não cresceu em lares piedosos ou provém de famílias que embora frequentassem uma igreja, não eram modelo de vida cristã na rotina diária. Essas mulheres, como as mulheres de Creta, precisam de modelos para seguir.

As possibilidades do ministério integral e abrangente de aconselhamento no contexto da igreja local são ricas, elas ultrapassam em muito aquilo que normalmente é oferecido em uma hora, uma vez por semana, num consultório. É tarefa do pastor aconselhar quando se faz necessária uma intervenção com autoridade pastoral, mas cabe igualmente a ele reconhecer diferentes capacidades ministeriais no seu rebanho, pregar sobre o ministério, desafiar cada um a descobrir e desenvolver seus dons, treinar e supervisionar, proporcionando para que interações edificantes aconteçam. Desta forma, quando ouvimos a palavra aconselhamento, não vamos pensar no psicólogo cristão nem somente no pastor como o especialista bíblico, mas numa comunidade envolvida na dinâmica ministerial.