Aconselhamento genético

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ARTIGO ESPECIAL

O aconselhamento genticoLaura B. Jardim1O aconselhamento gentico o processo que, utilizando-se da comunicao e da relao entre mdico e paciente, tem por objetivo fornecer informaes e criar um ambiente afetivo adequado para ajudar o paciente a lidar com tais informaes, percorrer o caminho at a tomada de decises e enfrentar, de forma assistida, as conseqncias dessas decises. Esse processo compreende todos os passos da prtica mdica em gentica clnica. Na presente reviso, so brevemente apresentados os termos e conceitos referentes ao aconselhamento gentico. Enfatizam-se tambm os aspectos mais peculiares da entrevista, do exame fsico, do diagnstico, da comunicao, da teraputica e da preveno, no que pode distinguir (ou no) a gentica clnica das demais especialidades mdicas. Unitermos: Aconselhamento gentico; gentica clnica.

Genetic counselingGenetic counseling is the process by which patients and relatives at risk for hereditary disorders are assisted in understanding the nature and the consequences of their condition, the probability of developing or transmitting it and the available options for treatment and family planning. This process comprises all steps of medical practice in clinical genetics. In the present paper, terms and concepts linked to genetic counseling are briefly reviewed. The most significant aspects of interview, physical exam, diagnosis, communication, treatment, and prevention in clinical genetics are also discussed. Key-words: Genetic counseling; clinical genetics.

Revista HCPA 2001(3):411-426

IntroduoA gentica humana a cincia da variao e da hereditariedade dos seres humanos. A gentica mdica, por sua vez, aborda a variao gentica humana que traz repercusses clnicas: relaciona-se diretamente com o diagnstico das doenas genticas e com a assistncia aos indivduos afetados por essas doenas (1). Provavelmente, o primeiro servio a prestar assistncia clnica em gentica foi o Eugenics Records Office de Nova York, chefiado por Charles Davenport, a partir de 1910. O predomnio das idias e das polticas eugnicas tanto na Alemanha totalitria quanto

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Departamento de Medicina Interna, Faculdade de Medicina, Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Correspondncia: Servio de Gentica Mdica, Hospital de Clnicas de Porto Alegre, Rua Ramiro Barcelos 2350, CEP 90035-003 Porto Alegre, RS, Brasil. Fones: +55 51 3316 8011, +55 51 3316 8309, +55 51 33168423; e-mail: [email protected]

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nos Estados-naes ocidentais (em especial, nos Estados Unidos, na Inglaterra e na Frana) contaminou a gentica clnica e, durante as dcadas seguintes, a sociedade e o senso comum confundiram a gentica com a ideologia racial e com os crimes de humanidade praticados em seu nome. Foi somente durante a Segunda Guerra Mundial que o desenvolvimento das clnicas de Aconselhamento Gentico teve sua retomada, nos estados norte-americanos de Michigan e Minnesota, em 1940 e 1941, e em Londres, no Great Ormond Street Childrens Hospital, em 1946 (2). De l para c, a Gentica Clnica apresentou um desenvolvimento considervel, que acompanhou ao menos trs correntes de pensamento contemporneo: o crescimento da Biotica, com sua considervel influncia sobre a moral vigente conceitos como beneficncia, liberdade, autonomia e justia sendo aplicados no dia-adia dos prestadores de servios mdicos em quase todo o mundo ocidental; a aplicao da psicologia psicodinmica no entendimento das motivaes e das necessidades dos doentes e de seus familiares filhos, pai, me, irmos e cnjuges constituindo uma trama intergeracional; as elaboraes tericas e as expectativas criadas pela descoberta do material gentico (DNA) e pelo aparecimento sbito de um imenso domnio do conhecimento: a biologia molecular. O progresso da gentica clnica deu-se, assim, tanto no sentido humanstico geral de busca do bem estar e da felicidade humana, como no sentido da expanso numrica das doenas reconhecidas como genticas e dos indivduos afetados que da gentica poderiam se beneficiar.

ConceitosA misso, o papel ou a tarefa do mdico geneticista resumida pela expresso aconselhamento gentico (AG). Vrias definies de AG j foram publicadas; citamos algumas delas: O aconselhamento gentico o processo pelo qual pacientes e indivduos em risco de uma determinada doena gentica so 412

informados das conseqncias da condio, da probabilidade de ela se desenvolver ou de se transmitir em outros familiares e dos meios existentes para preveni-la, evit-la ou trat-la (2). [O aconselhamento gentico] um processo educacional que busca ajudar indivduos doentes ou em risco de uma doena gentica, no sentido de eles entenderem a natureza do distrbio, a sua transmisso e as opes disponveis para o manejo dos seus casos e do seu planejamento familiar (3). O aconselhamento gentico (AG) o processo que, utilizando-se da comunicao e da relao entre mdico e paciente, tem por objetivo fornecer informaes e criar um ambiente afetivo adequado para ajudar o paciente a lidar com tais informaes, percorrer o caminho at a tomada de decises e enfrentar, de forma assistida, as conseqncias dessas decises (4). Embora todas essas definies apresentem duas idias-fora a da informao e a da preveno , se examinarmos bem a relao entre ambas, veremos que o sucesso do AG repousa sobre a primeira a informao. Para informar ou comunicar, educar, e assim por diante preciso que quem comunique: tenha capacidade diagnstica, sem a qual qualquer informao dada torna-se insegura e perigosa; saiba estimar os riscos genticos para outros familiares; possa representar de fato um papel de suporte, garantindo que os envolvidos realmente iro se beneficiar do AG e das vrias medidas de manejo e de preveno disponveis ou seja, que possua a capacidade de escuta do outro (ou do que o outro deseja ou necessita). Da mesma forma, preciso tentar garantir que quem receba a informao: compreenda os fatos mdicos, o que inclui o diagnstico, o curso provvel da doena e o manejo existente; compreenda o papel da hereditariedade na determinao do problema, assim como os riscos de recorrncia; consiga escolher, com autonomia, o curso de ao mais apropriado aos seus objetivos e ao seu modo de ver o mundo.Revista HCPA 2001(3)

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Assistimos, na verdade, a uma transformao da nfase principal dada misso da Gentica Mdica. Segundo Kessler (5), a nfase deslocou-se da preveno, caracteristicamente representada pelos clculos de risco gentico (emprico, mendeliano, etc.), para a comunicao. As razes para tal transformao so mltiplas. Em parte, esse deslocamento se deve percepo, por parte daqueles que trabalham com gentica, de que a preveno de todas, ou de grande parte das doenas genticas, um objetivo terico inatingvel (por sua imensido) e, possivelmente, indesejvel (por ir contra a variabilidade gentica dentro da espcie). Outra razo para um certo ceticismo quanto preveno, no AG, se deve ao convvio com os portadores dessas condies. A experincia e a reflexo mostraram a muitos de ns que nem todo indivduo em risco de transmitir uma doena gentica est ansioso em prevenir essa transmisso. Para um portador de uma ataxia espinocerebelar ou de uma acondroplasia, por exemplo, com um risco de 50% de transmisso a cada filho, a interrupo de uma gravidez significaria (de forma muito direta e organizada, no mundo das suas representaes simblicas) a escolha do no-ser, a escolha do seu prprio desaparecimento (imaginrio) do mundo. Finalmente ou talvez, principalmente a nfase na preveno diminuiu nos ltimos anos porque o AG tornou-se mais mdico do que gentico. medida que doentes e seus pais ou familiares passaram, cada vez mais, a ser atendidos por instituies clnicas, tornouse claro que o problema principal no reside no futuro (a prole em risco), mas sim no presente, no que j aconteceu: o doente e o seu cuidado, por um lado, e, por outro lado, o sofrimento psquico dos pais, como transmissores da vida e da mutao. claro que o papel da preveno primria mantm-se to relevante quanto o da preveno secundria para a Gentica Mdica. A preveno primria, que era classicamente abordada atravs dos clculos de riscos genticos riscos empricos, riscos mendelianos, riscos modificados e compostos -, passou de hiptese a possibilidade concreta, graas aos avanos tcnicos dos ltimos 20Revista HCPA 2001(3)

anos. Refiro-me ao diagnstico pr-natal, s triagens neonatais e deteco de portadores, temas que sero brevemente revistos a seguir ou em outros artigos desse nmero (6). Por outro lado, os avanos bioqumicos e moleculares tm propiciado a elaborao de estratgias teraputicas para um nmero limitado, mas cada vez maior de doenas. A sofisticao dessas estratgias modificaes nutricionais complexas, reposies enzimticas endovenosas, transplantes de rgos e terapias gnicas tornaram a gentica clnica em uma das especialidades mais complexas da medicina. O conhecimento e o acesso a essas novas terapias, revisados na presente revista pelos artigos de Silva et al. (7) e de Souza et al. (8), tambm fazem parte do AG. Os passos gerais de um AG A entrevista e o exame mdicos no AG A entrevista o primeiro e mais importante momento do AG. A entrevista garante acesso, inicialmente, aos dados relevantes para a elaborao das hipteses e, posteriormente, aos afetos e s motivaes dos envolvidos. A construo da rvore genealgica, embora aparentemente simples, uma das mais eficientes tcnicas para a obteno de dados genticos relevantes. O uso claro e consistente de smbolos permite uma deduo rpida de um padro de herana. A figura 1 mostra os smbolos mais importantes na construo de um pedigree. A tabela 1 mostra trs padres de herana, reconhecveis atravs da boa coleta de uma rvore genealgica. O probando ou propsito, assinalado com uma seta, o indivduo que procurou a ateno mdica, atravs do qual as informaes familiares foram obtidas, podendo ser ele afetado ou no. Note-se que grandes famlias podem ter vrios afetados e, do ponto de vista dos estudos de freqncia de certas doenas, importante salientar que cada famlia pode representar um caso, quando ento todas as famlias estudadas tornam-se o denominador. O entrevistador deve inquirir, de forma paciente e respeitosa, a respeito de casamentos mltiplos e consanginidades complexas, mortes na infncia, natimortos e 413

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Figura 1. Os smbolos de um heredograma.

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abortos nas irmandades. Embora muito relevantes, essas informaes podem acabar sendo omitidas pelo probando, caso no sejam ativamente buscadas. A ilegitimidade tambm deve ser lembrada, especialmente em situaes confusas, nas quais o padro de herana observado no combina com o esperado. A ilegitimidade no o problema, claro e nem a sua descoberta deve ser considerada importante a ponto de ser revelada desnecessariamente. Muitos agentes teratognicos ambientais desencadeiam disfunes fsicas e mentais subseqentes nos fetos expostos. Assim, deve-se tambm perguntar sobre uso de medicamentos e exposies a agentes fsicos e qumicos, durante as gestaes (ver a respeito disso o artigo de Faccini et al., na presente revista) (9). A recorrncia ou seja, a ocorrncia de mais de um afetado por uma mesma condio

na famlia , s vezes, bem documentada, atravs de investigao diagnstica; outras vezes, no entanto, apenas hipottica, ainda que altamente possvel. Outros afetados podem ter vivido h muito tempo, de forma que sua condio de doentes pode tanto ter sido esquecida especialmente quando sua doena provocou conflito e dor psicolgica nos familiares - , como, ao contrrio, ser confundida com a doena atual. Ambas as possibilidades devem ser pensadas pelo entrevistador. O e x a m e f s i c o outro ponto extremamente relevante no AG. As doenas genticas podem ser multissistmicas, ou, por outro lado, podem afetar predominantemente um rgo ou funo. O seu padro de rgos-alvo determina a semiologia da especialidade. Tambm as diferentes faixas etrias condicionam essa semiologia. A figura 2 apresenta as principais idades de apresentao das doenas

Figura 2. A idade de incio mdia dos erros inatos do metabolismo (como um modelo das doenas monognicas). Adaptada de Jimenez-Sanchez, Childs, Valle (14). Revista HCPA 2001(3)

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Figura 3. Ordem de envolvimento dos sistemas orgnicos nas doenas mendelianas. Adaptada de Beaudet, Scriver, Sly, Valle (19).

genticas; a figura 3 esquematiza a proporo de sistemas orgnicos afetados por essas condies. Pode-se ver que as apresentaes mais comuns so as multissistmicas e dismorfolgicas, por um lado, e as que envolvem o sistema nervoso central e o msculo-esqueltico, por outro. 416

O exame fsico dos doentes com afeces genticas determinou o desenvolvimento de uma categoria parte, na semiologia geral: a dismorfologia ou o conjunto de conhecimentos sobre antropometria, padres morfolgicos normais e anormais, suas variaes contnuas eRevista HCPA 2001(3)

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descontnuas e seus mecanismos etiopatognicos. Entretanto, no basta dominar a dismorfologia para se obter um bom exame fsico, em Gentica. O exame neurolgico vai tambm ser muitas vezes importante. As manifestaes neurolgicas so muito freqentes entre as doenas genticas, por ser o crebro um rgo muito complexo, que necessita de inmeros genes para o seu desenvolvimento e funo. Sublinhou-se bastante, at aqui, que a informao a idia-fora principal do AG. Entretanto, como diz Harper, como podemos garantir, no AG, que a informao diagnstica seja to extensa e acurada quanto deve ser? (2). Esse autor sugere, entre outras, as seguintes posturas gerais do mdico durante a avaliao clnica: 1) Deve-se tentar examinar pessoalmente os envolvidos, mesmo que j tenham sido extensamente investigados; 2) Deve-se tambm tentar examinar indivduos assintomticos, em risco, para se excluir um quadro leve ou inicial (isso vale tanto para pais como para filhos de indivduos reconhecidamente afetados); 3) Finalmente, muito importante avisar, desde o primeiro contato, que nem todas as questes dos consulentes sero respondidas e que, muito freqentemente, no se estabelece um diagnstico ou, em muitos outros casos, no se conhecem tratamentos curativos. Passo 2 O elenco de diagnsticos ou as diferentes categorias de doenas genticas As doenas genticas costumam ser classificadas em trs categorias gerais: as doenas cromossmicas, as doenas monognicas e as doenas multifatoriais (tabela 1). As doenas cromossmicas (a) envolvem os casos em que h falta, excesso ou rearranjo anormal de segmentos de cromossomos ou de cromossomos inteiros. Essas aberraes costumam acontecer como mutaes novas, nas quais ambos os pais so normais e o risco de recorrncia baixo. As doenas monognicas ou mendelianas (b) so aquelas determinadas primariamente por um nico gene mutante e, em decorrncia, so aquelas que apresentam um padro deRevista HCPA 2001(3)

herana simples. As doenas multifatoriais (c) so aquelas causadas pela interao de mltiplos genes com mltiplos fatores exgenos ou ambientais. Embora muitas dessas doenas multifatoriais como o diabete mlito, a gota, o palato fendido e provavelmente os transtornos psiquitricos maiores ocorram mais freqentemente dentro de certas famlias, o risco disso acontecer muito menor do que o risco das doenas monognicas (tabela 1). Cada uma dessas categorias apresenta uma problemtica distinta, a respeito das questes de sua patognese, preveno, diagnstico, AG e tratamento. So as doenas monognicas, entretanto, as que mais concentram r i s c o e, simultaneamente, possibilidade de tratamento. Vamos nos concentrar nelas, por serem o melhor modelo para o AG, embora algumas vezes voltemos s cromossmicas e s multifatoriais. As doenas monognicas ou mendelianas so aquelas determinadas por um nico gene mutante ou principal, podendo exibir um dos trs padres de herana: (a) autossmico dominante, (b) autossmico recessivo e (c) ligado ao X (tabela 1). Se uma determinada condio seguir um desses padres de herana, a sua patognese, independentemente de sua complexidade, ser devida a uma nica anormalidade no genoma, anormalidade essa que envolver uma nica protena. Muitas vezes, sem conhecermos nada de sua base celular, de sua fisiopatologia, s possvel reconhecer que um quadro clnico est, de fato, seguindo um padro de herana mendeliano. Nessa situao, na qual no sabemos qual o gene causador ou qual a protena envolvida, o diagnstico depender do reconhecimento do fentipo (o quadro clnico mais seus exames complementares), e a informao sobre os riscos de recorrncia repousar apenas nos riscos mendelianos a priori, no sendo possvel a deteco de heterozigotos para doenas recessivas ou para as dominantes de incio tardio, nem o diagnstico antenatal. Esse quadro clnico, por sua vez, pode ser esttico e j presente ao nascimento, ou pode representar a disfuno progressiva de um sistema orgnico, que se tornar aparente a partir de um determinado momento do ciclo 417

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vital. Na primeira situao, encontra-se a maioria das sndromes dismorfolgicas e, muitas vezes interseccionando-se com elas, os retardos mentais; na segunda, encontra-se boa parte das doenas degenerativas. No presente nmero desta revista, Flix et al. (10) apresentam o resultado da investigao diagnstica realizada em uma extensa srie de casos de retardo mental, atendidos em nosso meio, sendo um excelente exemplo de uma das rotinas diagnsticas em gentica clnica. Em outras condies, a protena deficiente j conhecida: sabe-se se ela uma protena estrutural ou se tem uma funo cataltica (uma enzima), e se compreendem, ao menos parcialmente, os efeitos de sua incluso na estrutura da clula ou da ausncia de sua funo. Quando se pode explicar a cadeia de eventos patogenticos subcelulares para uma dada condio monognica, essa condio passa a ser considerada como um Erro Inato do Metabolismo (EIM) (a respeito dos EIM, sugerimos a leitura dos artigos de Wajner et al., de Coelho et al. e de Pires et al., na presente edio da Revista) (8, 11, 12). Em julho de 2001, o Mendelian Inheritance in Man (13) listava a existncia de 8.831 diferentes loci causadores de distrbios autossmicos, de 496 diferentes loci causadores de distrbios ligados ao X e de 37 diferentes loci causadores de distrbios do DNA mitocondrial. So quase 10.000 diferentes possibilidades de diagnstico mendeliano seja ele clnico, bioqumico ou molecular. Entre esses quase 10.000 loci causadores de doena mendeliana, ao menos 517 so classificados como EIM (14). A maioria muito rara e possui herana autossmica recessiva; suas formas de apresentao mais comuns so as metablicas e as neurolgicas. Atualmente, o diagnstico molecular possvel em 70% desses EIM. Como sua patognese conhecida, estratgias teraputicas so aplicveis a muitos deles: 12% dos EIM (46 diferentes doenas) respondem completamente ao tratamento proposto e 54% (200 doenas) apresentam apenas um benefcio parcial, enquanto os demais 34% de EIM (126 doenas) no possuem qualquer tratamento eficaz (15). Um diagnstico preciso, entre tantos outros possveis todos raros o suficiente para 418

talvez no terem sido ainda vistos pelo mdico geneticista , revela-se extremamente importante, por ao menos duas razes. A primeira a de que um tratamento especfico j muitas vezes possvel; a segunda diz respeito ao prognstico para os familiares do doente, o que chamamos de riscos de recorrncia ou de riscos genticos. Passo 3 - A estimativa dos riscos genticos chegada a hora de estimar e informar os riscos para os demais familiares interessados. O fato de todo o processo anterior consumir muito tempo ou muitas consultas torna-se uma vantagem nesse momento, pois o longo processo permite a consolidao de uma razovel relao mdico-paciente. Dizer de uma relao que ela foi razovel significa que, entre outras coisas, foi possvel compreender o que os pacientes desejam saber e por que querem sab-lo. A maneira como a histria contada (ou no) e as reaes s perguntas do examinador dizem muito da atitude dos indivduos que esto sendo aconselhados (...) Existem temas omitidos, ou talvez receios exagerados, ligados doena? H sentimentos de culpa, ou talvez de raiva e acusao entre os pais? Os demais membros da famlia ajudam, ou agravam a situao? A criana afetada amada, ou antes considerada como um estorvo intolervel? A maioria dessas percepes no se originam de perguntas diretas, mas sim de uma boa e sensvel observao da famlia (2). A explanao que o mdico far sobre os riscos poder mobilizar, nos indivduos envolvidos, sentimentos de culpa ou raivaacusao entre duplas entre os dois pais ou entre uma dupla genitor-e-filho. Essa mobilizao de intensas cargas emocionais explica por que to freqentemente as pessoas no entendem o que julgamos dizer com clareza. Alm de todo o entorno afetivo a dificultar a compreenso dos interessados, a prpria expresso matemtica dos riscos propensa confuso. Riscos podem ser informados como chances ou como percentagens. Por exemplo, h quem prefira dizer que h uma chance em 50 de que um evento venha a acontecer; h outros que preferiro falar dosRevista HCPA 2001(3)

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2% de probabilidade para essa ocorrncia. Embora digam o mesmo, esses nmeros podem ser compreendidos de forma completamente diversa pelos envolvidos. Assim, o melhor sempre tentar descobrir o que o paciente entendeu do que se disse a ele. Algumas questes relevantes devem ser mantidas em mente: Riscos referem-se sempre ao futuro, nunca ao passado. Um risco de 25%, para uma doena autossmica recessiva, no quer dizer que o fato de o primeiro filho ter sido afetado garanta que o prximo (ou que os prximos trs filhos) seja(m) saudvel(is). O risco sempre o mesmo para cada nova gestao. Nmeros podem ser freqentemente invertidos. Por exemplo, pode-se entender que um risco de recorrncia de retardo mental de 1/20 signifique o exato oposto: que, de 20 gestaes possveis, 1 seja de uma criana normal e 19 sejam de uma criana afetada. A idia que fazemos de alto risco ou de baixo risco muito subjetiva. H casais que, recebendo um risco de 1 em 30, por exemplo, consideram intolervel ficarem expostos a ele e desistem de futuras gestaes. H outros poucos que podem at se sentir aliviados ao receberem um risco de 50%. A natureza e a gravidade da doena, assim como a existncia de filhos sadios, determinam como ser julgado um risco (2). As principais categorias de riscos genticos seriam as seguintes: 1) Riscos empricos: so os riscos estimados a partir de dados observados e no baseados em predies tericas. Essa a forma mais comum de apreciao dos riscos para as doenas cromossmicas e para as doenas comuns, multifatoriais. Deve-se atentar que, para que um risco emprico seja aplicvel a um determinado indivduo, a origem do mesmo deve ser semelhante a das populaes nas quais as observaes foram realizadas. Esses riscos costumam ser, muito freqentemente, compsitos, ou seja, so o resultado de uma composio heterognea, no tocante s causas reais da condio da populao observada. 2) Riscos mendelianos: so os riscos estimados de uma doena que apresenta uma clara herana monognica. No preciso observar famlias de afetados para calcularRevista HCPA 2001(3)

esses riscos eles podem ser deduzidos a priori (tabela 1). 3) Riscos genticos modificados: quando um risco a priori, baseado habitualmente em uma herana mendeliana, pode ser modificado por uma informao condicional. Por exemplo, embora o risco de vir a apresentar coria de Huntington seja de 50% para um filho de um afetado, esse risco ser cada vez menor quanto mais velho for esse indivduo. 4) Riscos estimados a partir de evidncias independentes: quando investigaes indiretas e adicionais vo sendo combinadas para dar a estimativa final. Por exemplo, o risco de ocorrncia da sndrome de Down em uma gestante com 40 anos pode ser modificado conforme os resultados da medida da transluscncia nucal na ecografia (2). Passo 4 A comunicao ao doente e famlia ou aspectos psicolgicos do AG Toda relao humana envolve aspectos psicolgicos multidimensionais. Na presente reviso, no seria possvel fazer meno a todas as possibilidades de conflito e sofrimento psquico decorrentes do AG. Assim, as prximas ilustraes sero apenas exemplos ou vinhetas. claro que, como em toda relao humana, os aspectos psicolgicos envolvidos no AG tm duas fontes: uma provm daquele que d o aconselhamento e a outra, daquele que busca e recebe a informao (convm lembrar que no s os pacientes, mas tambm os mdicos possuem motivaes inconscientes). Aspectos psicolgicos de quem recebe o aconselhamento A informao gentica como uma ameaa ao ego Os genes so os determinantes da vida. Sabemos que eles condicionam muitas de nossas caractersticas fsicas e intelectuais. Por isso, talvez os genes tenham tomado em parte a funo que a alma, antes, exercia para ns: o lugar da essncia do eu e da determinao da individualidade. Ao se descobrir portador de um gene deletrio, o sujeito enfrenta muita dificuldade para separar as partes de si que so doentes, 419

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Tabela 1. Classes de doenas genticasMecanismo Herana Exemplos

Cromossmicas

Uma anormalidade no nmero dos cromossomos devido a um defeito na meiose (formao de espermatozides ou de vulos).

Cada evento , em geral, uma mutao nova ou seja, os pais no so portadores. Os afetados podem transmitir o defeito. Em geral, espera-se encontrar um dos genitores (portador de translocao balanceada) como o transmissor.

Sndrome de Down

Ou uma anormalidade na estrutura dos cromossomos devido translocao. Enquanto a translocao balanceada, no h conseqncia clnica. A doena surge aps uma meiose (na gerao seguinte), quando os cromossomos so transmitidos desbalanceados.

Sndrome do miado do gato.

Monognicas Um gene principal desencadeia (mendelianas) o quadro clnico, em decorrncia de uma mutao. Se o gene est nos cromossomos autossmicos (partilhados por homens e mulheres), ele ter dois alelos (duas cpias):

- Se a presena de um nico alelo mutante j causa doena

Herana autossmica dominante: os afetados tm chance de 50% de transmitirem a cada filho(a). A transmisso vertical.

Coria de Huntington, Sndrome de Marfan, acondroplasia. Fenilcetonria, fibrose cstica, Doena de Tay Sachs.

- Se os dois alelos do gene devem ser mutantes para que haja doena

Herana autossmica recessiva: os heterozigotos no so doentes; ambos os pais devem ser heterozigotos (portadores) para que a doena seja transmitida prole;o risco de transmisso de 25%; em geral, no h doentes nas geraes anteriores, apenas entre a irmandade.

continua

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Mecanismo

Herana

Exemplos

Monognicas Se o gene est no cromossomo (mendelianas) X, ele ter duas cpias nas mulheres e uma nica cpia nos homens.

- Se a presena de um alelo normal evita a doena

Herana ligada ao X recessiva: os homens so predominantemente afetados; as mes so as portadoras e as transmissoras da mutao; comum existirem vrios afetados na linhagem materna. Herana ligada ao X dominante: mulheres so mais afetadas do que homens; mulheres afetadas tm chance de 50% de transmitirem o trao a filhos e filhas; homens afetados transmitem o trao a todas as filhas e a nenhum dos filhos. comum que o trao seja letal para os homens: pode haver muitos abortos na famlia e um nmero muito pequeno de homens nas proles.

Distrofia muscular de Duchenne, Hemofilia A, Sndrome do X frgil. Sndrome de Rett, Deficincia de ornitinatranscarbamilase.

- Se um nico alelo mutante j causa doena

Multifatoriais Mltiplos genes, em loci independentes, interagem de modo cumulativo, e determinam a tendncia constitucional do indivduo a desenvolver certa doena. Um ou mais componentes ambientais devem aparecer para que se cruze um limiar de significncia biolgica, tal que a doena aparea. O carter contnuo ou quantitativo do fentipo pode no ser aparente. Uma vez que o nmero de genes envolvidos desconhecido, difcil calcular o risco de um indivduo herdar certo trao. Os riscos utilizados so as freqncias de recorrncia observadas nas famlias (riscos empricos). O risco varia de famlia para famlia. Ele ser tanto maior quanto maior for o nmero de parentes afetados e maior a gravidade da doena no caso ndice.

Obesidade, doena afetiva bipolar, defeitos cardacos congnitos, defeitos de tubo neural, fendas labiais e palatinas.

Adaptada de Jardim, Vainer, Osrio (4)

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daquelas partes que ele considera sadias. Eu sou esse, e se eu deixasse de ter o gene para, digamos, acondroplasia, j no seria mais esse. Seria outro. Por isso, todo AG traz uma situao de ameaa ao ego, pois nos expe ao risco de descobrir defeitos, imperfeies e falhas inerentes nossa identidade. Uma vez que o AG tem to alta valncia emocional, motivaes inconscientes vo ter um peso determinante sobre a compreenso, as decises e as atitudes dos indivduos envolvidos. Muitas vezes esses motivos, medos ou desejos inconscientes iro perpetuar o sofrimento dos pacientes. A possibilidade de uma pessoa tomar decises erradas para si e para a prole ser alta, caso suas necessidades defensivas predominarem sobre o entendimento realstico de sua situao. Um exemplo de como a informao gentica pode ser intolervel ao ego dado pelos pais de pacientes com fenilcetonria. Sabe-se que o tratamento dessa condio pode ser muito bem-sucedido, revertendo o prognstico de um retardo mental para o de uma inteligncia normal, desde que a criana receba pouca fenilalanina na sua dieta, durante toda a infncia e adolescncia. A despeito de sua eficcia, o tratamento diettico impe uma tarefa muito pesada para os pais. Esses pais, transmissores do gene recessivo que causou a condio, tero de privar seu filho da maioria dos alimentos comuns e valorizados na nossa cultura (como a carne, por exemplo). No podero esquecer, talvez nem por um dia, que so os responsveis pela privao de comida de seu filho, por um lado, e pelo potencial retardo mental, por outro. Da por que falhas no tratamento diettico sejam to comuns nessa condio. O conhecimento do risco de recorrncia pode impedir a possibilidade da reparao O paciente entendeu que o seu gentipo no pode ser mudado. Dessa percepo, comumente, advm sensaes de fatalismo, desesperana, descontrole e desamparo, somados culpa ligada possvel transmisso da doena para a prole. Sabendo que podem gerar filhos doentes (ou com risco de adoecer), os pacientes agora podem se sentir furtados da possibilidade de reparar e reexperimentar aspectos 422

desenvolvimentais seus atravs dos filhos, o que uma expectativa inconsciente quase universal na deciso de procriar (4). Algumas vezes, entretanto, o paciente est disposto a correr o risco, seja por se tratar de um baixo risco, seja por existirem meios de se realizar um diagnstico antenatal. Entretanto, somente a compreenso das probabilidades positivas ou do valor afetivo de um diagnstico pr-natal poder oferecer ao casal o caminho mais livre de futuros sofrimentos e conflitos. O princpio da beneficncia Em geral, procura-se decidir por um curso de ao que beneficie os protagonistas, buscando o melhor caminho. Nem sempre, entretanto, o bem-estar advir da deciso de prevenir um novo afetado. Existem poucas estratgias para a preveno e nenhuma ainda completamente satisfatria. Um exemplo o diagnstico antenatal, que est, na grande maioria dos casos, limitado ao diagnstico fetal realizado entre 10 e 16 semanas de vida. A amniocentese oferecida, atualmente, a gestantes com mais de 35 anos, independentemente de terem elas familiares com qualquer doena gentica. Nem todas essas mulheres tero sido preparadas para um resultado positivo. Muitas dessas gestantes talvez no tenham compreendido que, conforme o resultado, esse procedimento poder lev-las a decidir pela continuidade ou trmino da gestao (5). Perante a descoberta de que seu feto tem uma anomalia cromossmica, muitos casais iro decidir (sem muito tempo) pela interrupo da gestao. O sofrimento decorrente dessa deciso poder ser, algumas vezes, to danoso (to pouco beneficente) quanto o nascimento de um beb doente, com o agravante de que foi escolhido (e no sofrido) pelo casal. Em outras palavras: somente com a reflexo sobre todas as possibilidades e todas as conseqncias de determinados cursos de ao, que se pode decidir sobre qual medida ir garantir maior beneficncia para um dado paciente ou famlia. O princpio da autonomia Muitos exemplos de como a autonomia Revista HCPA 2001(3)

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exercida ou ameaada, durante o AG, poderiam ser apresentados agora. Entre tantos outros, preciso recordar um aspecto: o do crescimento descontrolado do que pode ser a nossa autonomia ou livre-arbtrio. A introduo de novas tecnologias na medicina oferece aos casais de hoje a possibilidade de escolher engravidar (quando talvez antes, conhecendo apenas um risco a priori, no o fizessem). Oferece depois, ou para outros, a possibilidade de escolher pela interrupo de uma gestao de um feto malformado. Possibilita tambm que, sabendo do prprio gentipo, o sujeito decida no casar ou no ter filhos. Todas essas potencialidades resultam em um crescimento considervel da responsabilidade seja responsabilidade de escolha ou de omisso. Esse novo livrearbtrio, dado pela tecnologia, pode acarretar como conseqncia uma maior carga de angstia, especialmente pelo desamparo e solido evocados. natural, ento, que muitos de ns evitemos, por meios inconscientes, alcanar a autonomia, delegando as decises seja para o mdico, seja para um familiar. Aspectos psicolgicos de quem d o aconselhamento: O desejo de prevenir novos doentes e, com isso, a postura diretiva versus o respeito autonomia Todos os nossos esforos para explicar o que seja um alto risco, na seo anterior (passo 3), so provavelmente motivados pelo nosso desejo de preveno da recorrncia. Por outro lado, toda a nfase que dermos em um b a i x o r i s c o exprimir nosso desejo de tranqilizarmos um doente, um casal ou uma famlia. Os dois esforos so decorrentes de nossas crenas internas, ainda que essas convices tenham nascido de uma elaborao racional do problema. Tal desejo interno pode se manifestar de diferentes maneiras e vai procurar influenciar o entendimento dos pacientes. A isso ns chamamos aconselhamento diretivo seja ele consciente ou no. O aconselhamento diretivo procura recomendar um tipo de deciso famlia, em geral quanto reproduo. Ele contraria de forma aberta o direito autonomia do outro, quando no ofende mesmo a inteligncia doRevista HCPA 2001(3)

interlocutor. Quando diretivo, o mdico tornase um juiz que decide o que o melhor para os demais, sem levar em conta seus pontos de vista e sua experincia independente e individual. O que se pode recomendar que tentemos preservar a autonomia dos envolvidos no AG. Embora difcil, em geral possvel caso o mdico garanta aos pacientes acesso a todo o conhecimento disponvel sobre sua condio, de tal modo que possam tirar suas prprias concluses. Isso inclui no s os riscos de recorrncia, mas tambm a apreciao das conseqncias de uma deciso quanto ao que fazer conseqncias imediatas e tardias. H pacientes que podem se ressentir de um aconselhamento diretivo voc no deve mais ter filhos, por exemplo. Haver outros que, ao contrrio, iro solicitar explicitamente conselhos ao mdico. O que o senhor faria, no meu lugar? uma pergunta que todos j ouvimos. A forma de resolver essa situao vai depender, novamente, do que j se aprendeu durante essa relao mdico-paciente. Se algumas vezes esse pedido exprime uma dificuldade do paciente em encarar a grave realidade que o envolve (2), em outras ser apenas um desenvolvimento do dilogo, no curso do qual o paciente chega sua prpria deciso, independente do conselho obtido (16). Passo 5 - As formas de tratamento O tratamento das doenas genticas pode ser compreendido como um esforo de interromper o sofrimento fsico determinado por um ou mais genes defeituosos. Essa interveno pode se dar em qualquer um dos constituintes do modelo biolgico da doena:Causa Gene Cadeia de eventos fisiopatolgicos Protena defeituosa e seus efeitos celulares Manifestao clnica Fentipo

Se o objetivo for curar a doena, fazendo desaparecer a sua causa, no h, nos dias de hoje, doena gentica curvel. As alternativas existentes so a preveno e o controle dos efeitos, sendo que, na maior parte dos casos, o que se pode oferecer um cuidado de suporte ( famlia e aos afetados) (15). 423

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Os cuidados de suporte em geral so realizados como tratamentos do fentipo clnico. A educao dos pacientes, o uso de vrios agentes farmacolgicos e de procedimentos cirrgicos so includos aqui, como tratamentos sintomticos. O defeito bsico no corrigido, mas o paciente melhora sua condio. Os exemplos incluem: a instruo dos doentes acerca de suas suscetibilidades farmacolgicas (no caso da Porfiria Intermitente Aguda e da deficincia de G6PD) ou exposio radiao ultravioleta (nos diferentes albinismos); a administrao de beta-bloqueadores para pacientes com Sndrome de Marfan (na tentativa de prevenir a dilatao artica); e o uso de anticonvulsivantes em diferentes condies neurodegenerativas. A preveno e o controle dos efeitos so realizados atravs de tratamentos baseados na compreenso da fisiopatologia: so os tratamentos do quadro metablico e da protena disfuncional. Por fim, os tratamentos que mais se aproximam da causa, ou seja, que pretendem alguma correo do gentipo, seriam os transplantes de rgos e a terapia gnica propriamente dita. No irei me deter mais nas questes referentes ao tratamento das doenas genticas, pois a presente edio da revista contm ao menos dois artigos dedicados exclusivamente a esse assunto. Em um deles, Souza et al. (8) revisam as diversas formas de tratamento metablico, enquanto em outro, Silva et al. (7) introduzem-nos terapia gnica. Passo 6 - As formas de preveno A preveno das doenas genticas compreende, hoje, duas estratgias: (a) a que previne o desenvolvimento de sintomas nos indivduos afetados e (b) a que evita o nascimento de novos doentes. O primeiro caso concretizado atravs das triagens neonatais; o segundo, atravs da deteco de portadores heterozigotos e do diagnstico pr-natal. Podemos prevenir o aparecimento de sintomas, se duas condies forem satisfeitas: se a doena for tratvel e se o diagnstico for precoce. Assim, como indicado na seo 2, dos 510 EIM conhecidos, 260 so parcial ou quase completamente tratveis. A maior parte desses EIM ter uma herana autossmica recessiva; 424

nesse caso, o diagnstico de um afetado traz um risco de 25% para os seus irmos (nascidos ou no). Outra parcela desses EIM ser recessiva ligada ao X, quando ento se saber que 50% dos irmos de sexo masculino estaro sob risco. O diagnstico de um primeiro afetado, em outra palavras, melhora o prognstico de seus irmos com mesmo gentipo para a condio, pois esses provavelmente sero identificados precocemente. Essa estratgia no protege, porm, o probando ou o primeiro afetado de uma prole. Quando um EIM tratvel alcana uma freqncia relativamente alta em determinada populao, sua triagem neonatal se torna racional e justificvel, e todos os recmnascidos afetados podero ser identificados (mesmo o primeiro afetado da prole). Muitos pases e alguns poucos estados brasileiros oferecem triagens de certos EIM a seus recm-nascidos, procurando detectar, especificamente, a fenilcetonria e o hipotireoidismo congnito. No Rio Grande do Sul, a primeira atinge 1 em cada 15 mil (17) e a segunda, 1 em 4 mil recm-nascidos vivos (18). Outras condies foram sendo includas nas triagens neonatais, seja pela facilidade da coleta e do ensaio laboratorial como foi o caso das aminoacidopatias em nosso meio -, seja pelo advento de tratamentos eficazes e de novas polticas de sade como foi o caso de certas doenas tratveis pelo transplante de medula ssea, triadas em certos estados norte-americanos. No demais lembrar que a triagem neonatal s concretiza o seu objetivo teraputico o da preveno se toda criana diagnosticada tiver acesso ao tratamento de sua condio. A maioria das doenas genticas permanece, entretanto, sem tratamento disponvel. Com a possibilidade de diagnsticos pr-sintomticos, e na falta de uma teraputica, muitas pessoas passaram a eleg-los como uma forma de programar sua vida pessoal e reprodutiva. O reconhecimento de que se um heterozigoto para uma determinada mutao pode fazer o indivduo antever ou o incio da doena (se a mutao for dominante) ou o risco de sua transmisso prole (se for dominante ou recessiva). Assim, a deteco dos portadores pode evitar,Revista HCPA 2001(3)

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teoricamente, o nascimento de novos afetados, ainda que essa deciso seja individual e freqentemente dissociada no tempo e nas razes da realizao de tais testes. Hoje em dia, testes preditivos so oferecidos s pessoas em risco (e no populao geral) principalmente para a coria de Huntington, para as ataxias espinocerebelares e para a distrofia miotnica. Deteces de portadores realizadas com base populacional s foram realizadas em comunidades que concentram altas taxas de ocorrncia de uma determinada condio. O melhor exemplo a ser citado o da gangliosidose GM2 (forma de Tay-Sachs), uma doena recessiva e muito grave que extremamente freqente entre os judeus ashkenazi. Indivduos sem histria familiar, mas com essa origem tnica, em Israel, podem realizar uma investigao molecular e descobrir se so heterozigotos para alguma mutao Tay-Sachs, antecipando medidas para a preveno de filhos afetados no futuro. Finalmente, a ltima e mais radical das formas de preveno de novos afetados concretizada atravs do diagnstico pr-natal. No ser necessrio nos determos aqui pois, na presente edio, Sanseverino et al. (6) revisam o conhecimento atual sobre o diagnstico pr-natal e do notcia de sua prpria experincia com ele, sob o enfoque do AG.

venha a ter conseqncias populacionais. Por duas razes, pode-se dizer que essa uma boa concluso: primeiro, porque provavelmente no estaremos reproduzindo, s cegas, a atitude eugenista que nos antecedeu; segundo, porque sabemos que a variao foi a base da evoluo humana e que caractersticas genticas que hoje consideramos doentias nem sempre foram danosas. A fenilcetonria, que at 30 anos atrs era uma condio geneticamente letal, hoje quase neutra, ao menos para os homens: por que no esperar que novos tratamentos venham a aliviar ou curar os efeitos de um grande nmero de outras condies genticas ?

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ConclusesOs objetivos do AG esto ligados a indivduos e famlias. Por isso, forosamente iro variar de acordo com a natureza, desejos e atitudes dessas pessoas, bem como de acordo com a cultura na qual o AG se d. De acordo com essa premissa, o sucesso (ou fracasso) de um AG s poder ser mensurado de acordo com o auxlio que ele realmente venha a prestar em relao aos problemas individuais de uma famlia, e nunca em relao a mudanas na freqncia de uma doena gentica ou a um desfecho em particular. Se um bom AG vai seguir as diferentes razes e objetivos das pessoas envolvidas, a variedade individual vai se repetir nas conseqncias dos AG em geral. No de se esperar, ento, que a prtica clnica do AGRevista HCPA 2001(3)

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