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  "  A CONSTITUIÇÃO FEDERAL E O DIREITO DOS POVOS INDÍGENAS À TERRA: UMA ANÁLISE DA DECISÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL SOBRE A DEMARCAÇÃO DA TERRA INDÍGENA RAPOSA SERRA DO SOL 1  Júlia Ribeiro Marques 2  RESUMO: O presente trabalho pretende fazer uma análise da decisão do Supremo Tribunal Federal sobre a demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, a fim de possibilitar uma melhor compreensão acerca da contribuição desse julgamento para a questão dos direitos indígenas à terra hoje no Brasil. Para tanto, proceder-se-á a um estudo dos dispositivos constitucionais referentes ao direitos indígenas, mais precisamente do art. 231 e seus  parágrafos, examinando-se a evolução do tratamento dispensado aos povos indígenas nas Constituições anteriores até a promulgação da atual Constituição, bem como os pressupostos constitucionais que configuram os direitos dos povos indígenas à terra (originariedade dos direitos e tradicionalidade da ocupação), as garantias constitucionais que emanam desses  pressupostos e o instituto da dema rcação. Palavras-chave: Constituição Federal. Princípio da Integração ou da Assimilação. Princípio da Interação. Direitos originários. Terras tradicionalmente ocupadas. Posse permanente. Usufruto Exclusivo. Garantias constitucionais. Demarcação. Raposa Serra do Sol. Supremo Tribunal Federal. Julgamento. INTRODUÇÃO Os direitos indígenas, no Brasil, ainda que tenham sido objeto de preocupação do legislador desde os tempos em que nosso país era Colônia de Portugal, só tomaram contorno constitucional com a Carta de 1934, a qual foi seguida pelas de 1937, de 1946 e de 1967, todas com a mesma abordagem: os povos indígenas como realidades transitórias, que seriam, 1 Artigo extraído do Trabalho de Conclusão de Curso (TCC), apresentado como requisito parcial para obtenção do grau de Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais, na Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS, e aprovado com nota máxima pela Banca Examinadora composta pelo Prof. Me. Plínio Saraiva Melgaré (orientador), Prof. Me. Dilso Domingos Pereira e Prof. Me. Eugênio Facchini  Neto, em 25/0 6/2012.  2 Acadêmica do Curso de Ciências Jurídicas e Sociais da PUCRS. Contato: julia.rmarques@hot mail.com.  

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  • 1 A CONSTITUIO FEDERAL E O DIREITO DOS POVOS INDGENAS

    TERRA: UMA ANLISE DA DECISO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL SOBRE A DEMARCAO DA TERRA INDGENA RAPOSA

    SERRA DO SOL1

    Jlia Ribeiro Marques2

    RESUMO: O presente trabalho pretende fazer uma anlise da deciso do Supremo Tribunal

    Federal sobre a demarcao da Terra Indgena Raposa Serra do Sol, a fim de possibilitar uma

    melhor compreenso acerca da contribuio desse julgamento para a questo dos direitos

    indgenas terra hoje no Brasil. Para tanto, proceder-se- a um estudo dos dispositivos

    constitucionais referentes ao direitos indgenas, mais precisamente do art. 231 e seus

    pargrafos, examinando-se a evoluo do tratamento dispensado aos povos indgenas nas

    Constituies anteriores at a promulgao da atual Constituio, bem como os pressupostos

    constitucionais que configuram os direitos dos povos indgenas terra (originariedade dos

    direitos e tradicionalidade da ocupao), as garantias constitucionais que emanam desses

    pressupostos e o instituto da demarcao.

    Palavras-chave: Constituio Federal. Princpio da Integrao ou da Assimilao. Princpio

    da Interao. Direitos originrios. Terras tradicionalmente ocupadas. Posse permanente.

    Usufruto Exclusivo. Garantias constitucionais. Demarcao. Raposa Serra do Sol. Supremo

    Tribunal Federal. Julgamento.

    INTRODUO

    Os direitos indgenas, no Brasil, ainda que tenham sido objeto de preocupao do

    legislador desde os tempos em que nosso pas era Colnia de Portugal, s tomaram contorno

    constitucional com a Carta de 1934, a qual foi seguida pelas de 1937, de 1946 e de 1967,

    todas com a mesma abordagem: os povos indgenas como realidades transitrias, que seriam,

    1 Artigo extrado do Trabalho de Concluso de Curso (TCC), apresentado como requisito parcial para obteno do grau de Bacharel em Cincias Jurdicas e Sociais, na Faculdade de Direito da Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul PUCRS, e aprovado com nota mxima pela Banca Examinadora composta pelo Prof. Me. Plnio Saraiva Melgar (orientador), Prof. Me. Dilso Domingos Pereira e Prof. Me. Eugnio Facchini Neto, em 25/06/2012. 2 Acadmica do Curso de Cincias Jurdicas e Sociais da PUCRS. Contato: [email protected].

  • 2 gradualmente, assimilados e integrados sociedade envolvente, deixando, por conseguinte, de

    serem ndios.

    Com a promulgao da Constituio Federal de 1988, de cunho marcadamente

    democrtico e fundamentada no princpio da dignidade da pessoa humana, conferido aos

    indgenas um captulo especfico destinado a reconhecer seus direitos fundamentais: o

    Captulo VIII, formado pelos arts. 231 e 232. Estes dispositivos constitucionais inauguraram

    um novo princpio norteador das relaes entre comunidades indgenas, sociedade envolvente

    e Estado, abandonando oficialmente a postura integracionista e assimilacionista at ento

    vigente, para adentrar em uma concepo de interao entre estes segmentos.

    Assim, no seu art. 231, caput, nossa Carta Magna estabelece que so reconhecidos aos

    ndios sua organizao social, costumes, lnguas, crenas e tradies, e os direitos originrios

    sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo Unio demarc-las, proteger e

    fazer respeitar todos os seus bens.

    Todavia, h mais de quinhentos anos, na prtica, o direito indgena terra justamente

    o mais violado, inclusive nos dias atuais, quando estas comunidades esto protegidas por uma

    Constituio Federal considerada extremamente avanada no tocante garantia dos seus

    direitos. Os ndios so vtimas de toda sorte de violncia fsica e moral, perpetrada por

    segmentos da sociedade interessados na explorao e ocupao de suas terras, o que d

    origem a inmeros conflitos locais que tm como objeto a disputa sobre reas indgenas.

    Entre os casos de conflitos em terras indgenas, o mais proeminente no cenrio ps-

    Constituio de 1988 aquele ensejado pela demarcao da rea Raposa Serra do Sol, no

    Estado de Roraima, que, alm de ter ganho uma grande repercusso na mdia e na opinio

    pblica nacionais, bem como perante organizaes internacionais, foi objeto de uma deciso

    emblemtica do Supremo Tribunal Federal no tocante ao reconhecimento dos direitos dos

    ndios terra.

    Nesses termos, partindo-se do estudo das normas constitucionais relativas aos direitos

    indgenas, mais especificamente do art. 231, caput e pargrafos, o presente trabalho objetiva

    examinar os pressupostos constitucionais que configuram os direitos dos ndios terra, para

    melhor entender as garantias constitucionais que emanam destes direitos e o prprio instituto

    da demarcao. Ao final, tendo como substrato este estudo, realizada uma anlise da deciso

    do Supremo Tribunal Federal no caso da demarcao da terra indgena Raposa Serra do Sol,

  • 3 com o fim de possibilitar um maior esclarecimento acerca da importncia de referido

    julgamento para a questo dos direitos indgenas terra hoje no Brasil.

    1 A CONSTITUIO FEDERAL DE 1988 E OS POVOS INDGENAS 1.1 OS POVOS INDGENAS E AS CONSTITUIES ANTERIORES

    No Brasil, os direitos dos povos indgenas so reconhecidos desde o perodo colonial.

    Diversos instrumentos normativos decretados pela Coroa Portuguesa dispunham acerca da

    soberania indgena e dos seus direitos territoriais sobre as reas que ocupavam.

    Todavia, em 1822 o Brasil torna-se independente de Portugal e passa a adotar um

    sistema jurdico inspirado nos Estados nacionais constitucionais, os quais haviam se

    constitudo a partir de uma concepo burguesa de Estado, territrio, governo e povo nicos.

    Dessa forma, o reconhecimento da soberania das comunidades indgenas, antes existente na

    legislao colonial, acaba sendo inconcebvel dentro de um Estado brasileiro que se pretendia

    uno, com territrio, governo e povo homogneos.3

    Nesse contexto, em 1824 promulgada a primeira Constituio brasileira, conhecida

    como Constituio do Imprio, que no trouxe qualquer dispositivo relativo aos direitos

    indgenas, permanecendo silente quanto existncia destes no cenrio nacional. Somente em

    1834, com a Reforma Constitucional do Imprio, os indgenas so incorporados ao texto da

    Carta Magna por meio de ato adicional: Art. 11, 5- Atribui competncia s Assemblias

    Legislativas Provinciais para promover cumulativamente com as Assemblias e Governos

    Gerais (...) a catechese e civilizao do indgena e o estabelecimento de colnias.4

    Em 1890, aps a proclamao da Repblica em 15 de novembro de 1889, promulgada

    uma nova Constituio, em cujo texto no se encontrava qualquer dispositivo que fizesse

    meno s comunidades indgenas.

    Embora continuassem a surgir normas infraconstitucionais relativas s comunidades

    indgenas e suas terras na vigncia dessas duas Constituies, apenas com a promulgao da

    Constituio de 1934 a questo passa a ser matria constitucional. Os direitos indgenas foram

    abordados em dois dispositivos, quais sejam, o art. 5, inciso XIX, alnea m, e o art. 129.

    3 MARS de Souza Filho, Carlos Frederico. O Renascer dos Povos Indgenas para o Direito. Curitiba: Juru, 2005, p. 62. 4 CUNHA, Manuela Carneiro da. Os Direitos do ndio: ensaios e documentos. So Paulo: Brasiliense, 1987, p. 212.

  • 4

    O primeiro dispunha sobre a competncia exclusiva da Unio para legislar sobre a

    incorporao dos indgenas sociedade nacional: Art. 5 - Compete privativamente Unio:

    (...) XIX - legislar sobre: (...) m) incorporao dos silvcolas comunho nacional.5

    O art. 129, localizado no Ttulo IV, Da Ordem Econmica e Social, previa o respeito

    posse das terras em que os indgenas se encontrassem permanentemente localizados,

    contudo vedava a estes a possibilidade de alien-las: Art. 129 Ser respeitada a posse de

    terras de silvcolas que nelas se achem permanentemente localizados, sendo-lhes, no entanto,

    vedado alien-las.6

    Sobre a natureza da posse permanente e a razo da inalienabilidade das terras

    indgenas, Freitas Junior afirma : [...] o pressuposto da localizao permanente utilizado para determinar a existncia da posse indgena parece referir-se a uma posse imemorial dos ndios sobre as terras que se pretendem suas. No havia uma compreenso de terra indgena como um habitat cultural de um povo. [...] O gravame da inalienabilidade em relao s terras indgenas correspondeu a uma proteo adicional concedida aos interesses dos ndios. Considerando as terras indgenas inalienveis, proibindo, inclusive, os prprios ndios de alien-las ou transferi-las, a Constituio de 1934 restringia o tratamento depredatrio e negocista dado quelas terras, dificultando as freqentes espoliaes aos direitos dos indgenas. 7

    Em 1937 instaurado o Estado Novo por Getlio Vargas, e uma nova Constituio

    promulgada, a Polaca. Esta Carta conservou o reconhecimento do direito indgena terra,

    apenas modificando um pouco os seus termos: Art. 154 Ser respeitada aos silvcolas a

    posse das terras em que se achem localizados em carter permanente, sendo-lhes, porm,

    vedada a alienao das mesmas.8

    A Lei Maior de 1937 suprimiu o artigo que previa a competncia da Unio para legislar

    sobre a incorporao dos silvcolas comunho nacional, o que estava diretamente

    5 BRASIL. Constituio (1934). Constituio da Repblica dos Estados Unidos do Brasil. Rio de Janeiro, RJ: Congresso Nacional, 1934. Disponvel em . Acesso em: 25 mar. 2012. 6 BRASIL. Constituio (1934). Constituio da Repblica dos Estados Unidos do Brasil. Rio de Janeiro, RJ: Congresso Nacional, 1934. Disponvel em . Acesso em: 25 mar. 2012. 7 FREITAS JUNIOR, Lus de. A Posse das Terras Tradicionalmente Ocupadas pelos ndios como um Instituto Diverso da Posse Civil e sua Qualificao como um Direito Constitucional Fundamental. 2010.247 f. Dissertao (Mestrado em Direito Constitucional) Programa de Ps-Graduao em Direito Constitucional, Universidade de Fortaleza, Cear, Fortaleza, 2010, p. 63. 8 BRASIL. Constituio (1937). Constituio dos Estados Unidos do Brasil. Rio de Janeiro, RJ: Congresso Nacional, 1937. Disponvel em . Acesso em: 25 mar. 2012.

  • 5 relacionado com a estrutura autoritria de poder promovida pelo Estado Novo, em que o

    governo tudo podia, ainda que sem o respaldo da vontade popular.9

    Com a promulgao da Constituio de 1946, a competncia da Unio para legislar

    sobre a incorporao dos ndios comunho nacional voltou a ser matria constitucional,

    estando prevista nos seguintes termos: Art. 5 - Compete Unio: (...) XV - legislar sobre:

    (...) r) incorporao dos silvcolas comunho nacional.10

    Outrossim, a Lei Maior de 1946 manteve o dispositivo referente ao respeito posse dos

    indgenas sobre as terras onde se encontrassem permanentemente localizados, impondo aos

    ndios a proibio de transferi-las, por qualquer ttulo: Art. 216 Ser respeitada aos

    silvcolas a posse das terras onde se achem permanentemente localizados, com a condio de

    no a transferirem. 11

    Cabe salientar que, na esteira das Constituies de 1934 e de 1937, a Carta de 1946

    exigia a localizao permanente dos ndios sobre as terras como pressuposto para a

    configurao do seu direito de posse sobre elas. Essa localizao permanente era entendida

    como um pressuposto do passado, ou seja, devia haver uma ocupao da terra desde tempos

    imemoriais pela comunidade indgena.12

    A Constituio de 1967, promulgada trs anos aps o Golpe Militar de 1964, elaborada

    pelo ainda ativo Congresso Nacional, manteve a competncia exclusiva da Unio para legislar

    sobre a incorporao dos indgenas comunho nacional, nestes termos: Art. 8 - Compete

    Unio: (...) XVII - legislar sobre: (...) o) nacionalidade, cidadania e naturalizao;

    incorporao dos silvcolas comunho nacional; 13

    No seu art. 186, disps sobre o direito das comunidades indgenas s terras por elas

    habitadas, a ainda procedeu a um avano em relao s Constituies anteriores ao garantir-

    lhes o usufruto exclusivo dos recursos naturais e de todas as utilidades nelas existentes: Art.

    186. assegurada aos silvcolas a posse permanente das terras que habitam e reconhecido o

    seu direito ao usufruto exclusivo dos recursos naturais e de todas as utilidades nelas

    9 FREITAS JUNIOR, op. cit., p. 63. 10 BRASIL. Constituio (1946). Constituio dos Estados Unidos do Brasil. Rio de Janeiro, RJ: Congresso Nacional, 1946. Disponvel em . Acesso em: 25 mar. 2012. 11 BRASIL. Constituio (1946). Constituio dos Estados Unidos do Brasil. Rio de Janeiro, RJ: Congresso Nacional, 1946. Disponvel em . Acesso em: 25 mar. 2012. 12 FREITAS JUNIOR, op. cit., p. 65. 13 BRASIL. Constituio (1967). Constituio da Repblica Federativo do Brasil. Braslia, DF: Congresso Nacional, 1967. Disponvel em . Acesso em: 27 mar. 2012

  • 6 existentes.14 Dessa forma, explicitou os direitos dos ndios sobre as terras que ocupavam, ao

    mesmo tempo em que estabeleceu garantias de eficcia destes direitos, bem como distinguiu-

    os do direito de propriedade.15

    oportuno ressaltar que, quando o dispositivo falava em assegurar aos indgenas a

    posse permanente das terras que habitam, a contrario sensu das Constituies anteriores, essa

    posse permanente devia ser entendida, a partir de ento, como uma garantia para o futuro, no

    sentido de propiciar aos grupos indgenas o seu habitat,16 deixando de ser exigido como um

    pressuposto referente a uma ocupao passada.

    A Constituio de 1967 ainda trouxe em seu texto uma inovao: em seu art. 4, inciso

    IV, incluiu as terras ocupadas pelos indgenas entre os bens da Unio: Art. 4 - Incluem-se

    entre os bens da Unio: (...) IV - as terras ocupadas pelos silvcolas.17 Essa atribuio da

    propriedade Unio (e no aos grupos indgenas) deve ser entendida como uma medida de

    proteo adicional aos direitos destas comunidades, pois as suas terras ficavam ipso facto

    inalienveis, exceto por autorizao legislativa,18 impedindo, dessa forma, sua alienao pelos

    Estados e Municpios, bem como a usurpao realizada pelos posseiros e pelas oligarquias

    rurais.19

    Em 17 de outubro de 1969, o governo ditatorial do General Costa e Silva outorgou a

    Emenda Constitucional n 1, mantendo a propriedade da Unio sobre as terras indgenas (art.

    4, IV) e a sua competncia exclusiva para legislar sobre a incorporao dos indgenas

    comunho nacional (art. 8, XVII, o). Entretanto, modificou o art. 186 da Carta de 1967,

    redigindo-o nestes termos: Art. 198. As terras habitadas pelos silvcolas so inalienveis nos termos que a lei federal determinar, a eles cabendo a sua posse permanente e ficando reconhecido o seu direito ao usufruto exclusivo das riquezas naturais e de todas as utilidades nelas existentes. 1 Ficam declaradas a nulidade e a extino dos efeitos jurdicos de qualquer natureza que tenham por objeto o domnio, a posse ou a ocupao de terras habitadas pelos silvcolas. 2 A nulidade e extino de que trata o pargrafo anterior no do aos ocupantes

    14 BRASIL. Constituio (1967). Constituio da Repblica Federativo do Brasil. Braslia, DF: Congresso Nacional, 1967. Disponvel em . Acesso em: 27 mar. 2012 15 CUNHA, Andreia. Territrio e Povos Indgenas. 2006. 155 f. Dissertao (Mestrado em Direito Econmico e Social) Programa de Ps-Graduao em Direito Econmico e Social, Pontifcia Universidade Catlica do Paran, Curitiba, 2006, p. 35. 16 FREITAS JUNIOR, op. cit., p. 65. 17 BRASIL. Constituio (1967). Constituio da Repblica Federativo do Brasil. Braslia, DF: Congresso Nacional, 1967. Disponvel em . Acesso em: 27 mar. 2012 18 CUNHA, M., op. cit., p. 94. 19 VILLARES, Luiz Fernando. Direito e Povos Indgenas. Curitiba: Juru, 2009, p. 110.

  • 7 direito a qualquer ao ou indenizao contra a Unio e a Fundao Nacional do ndio.20

    A Emenda Constitucional n 1/69, alm de determinar a extino e a nulidade dos

    efeitos jurdicos de atos que lesionassem os direitos territoriais dos ndios, restabeleceu

    expressamente a inalienabilidade das terras por eles ocupadas, que havia sido suprimida do

    texto constitucional quando da promulgao da Constituio de 1967, assegurando-as, assim,

    por duas vias. Segundo Freitas Junior: Declaradas patrimnio da Unio e tambm inalienveis, as terras habitadas pelos ndios estavam por duas vias asseguradas; enquanto bens da Unio s seriam alienados mediante autorizao legislativa, por outro lado, sendo essas terras por natureza inalienveis, nem a prpria Unio, legtima proprietria, poderia transferi-las, mesmo com autorizao legislativa. 21

    Cabe consignar, tambm, que este dispositivo constitucional continuou referindo-se

    posse permanente dos indgenas sobre as terras por eles ocupadas no sentido de garantir

    estabilidade de seus direitos sobre o seu habitat, em uma perspectiva para o futuro.

    Ressalte-se que, por trs dessa ampla proteo dos direitos territoriais indgenas, estava

    a poltica de segurana nacional caracterstica do Governo Militar, cuja inteno era

    estabelecer um controle mais efetivo em relao s terras ocupadas pelos ndios,

    principalmente na Amaznia, pois consideravam-nas estratgicas para a defesa das fronteiras

    nacionais.22

    Dessa breve retrospectiva histrica, podemos concluir que, embora houvesse uma

    preocupao do legislador com a questo indgena desde o perodo Colonial, inclusive

    elevando-a ao status de matria constitucional em 1934, esse tratamento dispensado aos

    ndios era pautado por uma idia integracionista, ou seja, de que seus direitos mereciam

    proteo apenas enquanto eles no fossem assimilados pela sociedade nacional de forma

    progressiva, consubstanciando uma noo de transitoriedade da realidade indgena no Pas.

    20 BRASIL. Constituio (1967). Emenda Constitucional n 1 de 17 de outubro de 1969. Altera na ntegra o texto da Constituio de 1967. Braslia, DF: 1969. Disponvel em . Acesso em: 31 mar. 2012. 21 FREITAS JUNIOR, op. cit., p. 66. 22 MONTANARI JUNIOR, Isaias. Terra Indgena e a Constituio Federal: Pressupostos Constitucionais para a Caracterizao das Terras Indgenas. In: XV CONGRESSO NACIONAL DO CONPENDI, 2006, Manaus. Anais de Manaus. Disponvel em: . Acesso em: 18 out. 2011.

  • 8 1.2 A CONSTITUIO FEDERAL DE 1988 E OS POVOS INDGENAS: UMA MUDANA DE PARADIGMA

    Em 05 de outubro de 1988, aps vinte anos de uma ditadura militar caracterizada pela

    reiterada violao de direitos humanos, foi promulgada a oitava Constituio brasileira, um

    marco da redemocratizao no Pas. A Constituio Cidad, como ficou conhecida,

    estabeleceu como um dos fundamentos da Repblica Federativa do Brasil o princpio da

    dignidade da pessoa humana, valor basilar de todos os direitos fundamentais.

    Partindo dessa tica democrtica e humanitria, alicerada na dignidade da pessoa

    humana, a nova Carta Magna, em seu prembulo, reconhece a sociedade brasileira como uma

    sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, estabelecendo entre os objetivos do Estado

    brasileiro, em seu art. 3, a construo de uma sociedade livre, justa e solidria, bem como a

    promoo do bem de todos, sem preconceitos de origem, raa, sexo, cor, idade e quaisquer

    outras formas de discriminao.

    Sob essa inspirao pluralista, os povos indgenas brasileiros conquistaram um captulo

    inteiro na Constituio dispondo sobre seus direitos, o Captulo VIII Dos ndios, formado

    pelos arts. 231 e 232, inserido no Ttulo VIII Da Ordem Social, alm de diversos outros

    artigos espalhados ao longo do texto da Lei Maior. Nesse sentido, Jos Afonso da Silva

    assim afirma: inegvel, contudo, que ela deu um largo passo frente na questo indgena, com vrios dispositivos referentes aos ndios, nos quais dispe sobre a propriedade das terras ocupadas pelos ndios, a competncia da Unio para legislar sobre populaes indgenas, autorizao congressual para minerao em terras indgenas, relaes das comunidades indgenas com suas terras, preservao de suas lnguas, usos, costumes e tradies. Os arts. 231 e 232 que estabelecem as bases dos direitos dos ndios.23

    Entretanto, apesar da Constituio Cidad ter surgido neste contexto de consolidao da

    dignidade da pessoa humana, a conquista desses dispositivos constitucionais no se deu de

    forma simples, tendo sido resultado tambm de uma intensa mobilizao dos indgenas

    brasileiros e de setores da sociedade civil24.

    Em que pese a Constituio no tenha atingido um grau de proteo totalmente

    satisfatrio para os povos indgenas, porquanto acabou cedendo s presses de elites

    economicamente interessadas na explorao de suas terras e prevendo algumas excees s

    garantias de seus direitos, ela logrou apontar um contedo mnimo de direitos capazes de

    23 SILVA, Jos Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. So Paulo: Malheiros, 2011, p. 855. 24 ARAJO, Ana Valria. Povos Indgenas e a Lei dos Brancos: o direito diferena. Braslia: Ministrio da Educao, Secretaria de Educao Continuada, Alfabetizao e Diversidade, LACED/Museu Nacional, 2006, p. 38.

  • 9 assegurar s comunidades indgenas uma existncia mais digna. Assim expe Mrcia Cristina

    Altvater Vilas Boas: Evidente que a nossa Constituio no esgotou todo o contedo dos direitos a que fazem jus os povos indgenas, mas indiscutvel ter sinalizado de forma salutar um contedo mnimo necessrio, para que a partir deles viesse o reconhecimento de outros direitos que direta ou indiretamente decorram daqueles expressamente previstos nos arts. 231 e 232.25

    Dentro desse contedo mnimo de direitos que a Constituio Cidad sinalizou, ela

    acabou por revolucionar a relao entre povos indgenas, Estado e sociedade nacional, ao

    reconhecer queles, no seu art. 231, sua organizao social, costumes, lnguas, crenas e

    tradies, bem como os direitos originrios sobre as terras que tradicionalmente ocupam,

    impondo Unio o dever de demarc-las e de proteger e fazer respeitar todos os seus bens.

    Explicitando isso em seu texto, a Carta Magna reconheceu aos ndios o seu direito diferena

    cultural e identidade tnica, ou seja, de serem ndios e de assim permanecerem para sempre,

    sem qualquer condio ou termo, colocando um fim ao paradigma da integrao ou

    assimilao, e inaugurando o paradigma da interao.26

    At a promulgao da Constituio de 1988, a poltica orientadora da relao dos povos

    indgenas com o Estado e a comunho nacional tinha como base ideolgica uma concepo

    evolucionista e preconceituosa, assentada em duas premissas: a primeira, de que os ndios

    eram realidades transitrias e atrasadas, que seriam, inevitavelmente, assimiladas pela

    sociedade dita civilizada; e a segunda, de que o Estado deveria, atravs da tutela, proteger

    essas populaes enquanto no se houvessem incorporado comunho nacional, assegurando

    a sua transio pacfica e harmoniosa para essa sociedade entendida como mais civilizada e

    moderna.27

    Entretanto, a poltica de assimilao, vista at ento como a melhor alternativa para as

    comunidades indgenas, acabou mostrando-se, na prtica, como uma medida nefasta na vida

    dessas populaes.

    Assim, na dcada de 1980, comea a se impor no Brasil a teoria da relatividade

    cultural, inicialmente defendida pelo antroplogo teuto-americano Franz Boas e, aqui, pelos

    irmos Orlando e Cludio Villas-Boas, criadores do Parque Nacional do Xingu. Esta

    concepo sustenta que no possvel comparar sociedades e culturas humanas entre si, no

    25 VILAS BOAS, Mrcia Cristina Altvater. Os Povos Indgenas Brasileiros e a Transio Paradigmtica. Porto Alegre: Nria Fabris, 2012, p. 71. 26 BARRETO, Helder Giro. Direitos Indgenas: vetores constitucionais. Curitiba: Juru, 2005, p. 104. 27 RODRIGUES, Maria Guadalupe Moog. Indigenous Rights in Democratic Brazil. Human Rights Quarterly, Baltimore, v. 24, n. 2, p. 487, maio 2002.

  • 10 sentido de se afirmar que uma mais evoluda em relao a outra, porquanto cada qual

    apresenta modos de viver e de pensar altamente complexos e constitudos de inmeras

    singularidades, s podendo ser descritas por conceitos prprios. Dessa forma, os povos

    indgenas brasileiros passam a ser reconhecidos como realidades culturalmente diferentes,

    com formas prprias de organizao e de desenvolvimento, e no mais como uma sociedade

    atrasada, fadada transitoriedade e, posteriormente, assimilao.28

    nesse contexto terico que surge a Constituio de 1988, afirmando o direito dessas

    comunidades de serem e permanecerem culturalmente diferentes do resto da sociedade

    nacional, sem qualquer condio ou termo, abandonando definitivamente a concepo

    integracionista.

    Dessa forma, garantindo o direito dos povos indgenas sua diferena cultural e sua

    identidade tnica, a Carta Magna inaugura o paradigma da interao, baseado em uma relao

    de horizontalidade entre as comunidades indgenas e a sociedade envolvente, na qual ambas

    podem interagir entre si em condies de igualdade.29 O indivduo ou o grupo aos quais no

    se reconhece suas especificidades culturais ou tnicas jamais ser capaz de reconhecer sua

    prpria identidade, sendo colocado, assim, margem da sociedade, e, por conseguinte, no

    podendo relacionar-se igualitariamente com esta.30

    2 DIREITOS DOS POVOS INDGENAS TERRA NA CONSTITUIO FEDERAL DE 1988 2.1 DIREITOS DOS POVOS INDGENAS TERRA E SEUS PRESSUPOSTOS CONSTITUCIONAIS

    A questo da terra o ponto central dos direitos constitucionais dos povos indgenas,

    pois adquire carter de sobrevivncia fsica e cultural para eles.31 Diferentemente da

    sociedade ocidental e capitalista, para os ndios a terra no apenas o espao fsico que

    habitam, elemento de sua espiritualidade, onde seus ancestrais repousam e onde se

    assentam suas crenas. uma singular relao de reciprocidade, em que o ndio, vendo-se

    28 KAYSER, Hartmut-Emanuel. Os Direitos dos Povos Indgenas do Brasil: desenvolvimento histrico e estgio atual. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2010, p. 210 et seq. 29 LEITO. Ana Valeria Nascimento de Arajo. Direitos Culturais dos Povos Indgenas: aspectos de seu reconhecimento. In SANTILLI, Juliana (Org.). Os Direitos Indgenas e a Constituio. Porto Alegre: Fabris, 1993, p. 228. 30 BARRETO, op. cit., p. 104. 31 SILVA, J., op. cit., p. 856.

  • 11 como parte integrante da natureza e da terra, faz desta elemento essencial para sua prpria

    existncia.

    Por essa razo, a Constituio Federal de 1988, alm de reconhecer aos povos indgenas

    a sua organizao social, lnguas, crenas e tradies, tambm garante a essas populaes os

    direitos originrios sobre as terras que tradicionalmente ocupam, tendo em vista que seus

    direitos diferena cultural e identidade tnica s sero assegurados se lhes forem

    garantidos seus direitos territoriais. No por outro motivo que o extermnio de milhares de

    ndios e o desaparecimento de inmeras comunidades tm sua causa no apenas na violncia

    imediata contra eles praticada mas tambm na violncia mediata da subtrao de seus

    territrios.32

    Dessa forma, a Constituio Federal de 1988 assegura os direitos indgenas terra em

    quatro dispositivos, estando o ncleo desses direitos e as garantias deles decorrentes

    expressamente estabelecidos no art. 231 e seus sete pargrafos. O caput desse dispositivo

    assim determina: So reconhecidos aos ndios sua organizao social, costumes, lnguas,

    crenas e tradies, e os direitos originrios s terras que tradicionalmente ocupam,

    competindo Unio demarc-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.

    O caput do art. 231 revela os dois pressupostos constitucionais que configuram e do

    contedo aos direitos dos povos indgenas terra, quais sejam, a originariedade dos direitos

    (direitos originrios) e a tradicionalidade da ocupao (terras que tradicionalmente ocupam).

    O primeiro o pressuposto constitucional que legitima os direitos indgenas terra, e o

    segundo o pressuposto atravs do qual tais direitos se revelam.33

    O reconhecimento constitucional da originariedade desses direitos significa que eles so

    congnitos e anteriores formao do prprio Estado brasileiro, assentando-se no fato de que

    os ndios j habitavam o que hoje o territrio nacional muito antes da chegada dos primeiros

    europeus colonizadores.34 Com isso, a nossa Carta Magna acolheu o indigenato, um instituto

    jurdico luso-brasileiro, cuja origem encontra-se nos primeiros tempos da Colnia, quando o

    Alvar de 1 de abril de 1680, posteriormente confirmado pela Lei de 6 de julho de 1755,

    32 LOBO, Luiz Felipe Bruno. Direito Indigenista Brasileiro: Subsdios sua Doutrina. So Paulo: LTr, 1996, p. 44-45. 33 FREITAS JUNIOR, op. cit., p. 83. 34 MACHADO, Costa (Org.); FERRAZ, Anna Candida da Cunha (Coord.). Constituio Federal Interpretada. Barueri: Manole, 2011, p. 1230.

  • 12 afirmou que, nas terras outorgadas a particulares em sesmarias, sempre seria reservado o

    direito dos ndios sobre elas, uma vez que so seus primrios e naturais senhores.35

    De acordo com a teoria do indigenato, os direitos indgenas terra so inatos, ou seja,

    existentes a partir do nascimento de cada indgena, no se submetendo a legitimao e

    registro posterior, uma vez que reconhecidos como existentes anteriormente formao do

    Estado brasileiro, e, obviamente, do prprio ordenamento jurdico ptrio, ao passo que os

    direitos de outros, no-ndios, decorrentes da ocupao, so adquiridos ao longo da vida, e

    estes sim sujeitos a posterior legitimao e registro.36

    Os direitos originrios dos ndios recaem sobre as terras tradicionalmente ocupadas por

    eles. A fim de evitar interpretaes distorcidas que pudessem descaracterizar tais terras como

    verdadeiros territrios de um povo, o legislador constituinte detalhou e especificou o conceito

    de terras tradicionalmente ocupadas,37 assim dispondo no 1 do art. 231 da Constituio

    Federal: 1. So terras tradicionalmente ocupadas pelos ndios aquelas habitadas em carter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindveis preservao dos recursos ambientais necessrios a seu bem-estar e as necessrias a sua reproduo fsica e cultural, segundo seus usos, costumes e tradies.

    Dessa forma, terras tradicionalmente ocupadas pelos ndios um conceito jurdico que

    rene quatro situaes complementares, todas necessrias e nenhuma suficiente sozinha,

    tomadas segundo os usos, costumes e tradies de cada povo: a) as habitadas pela

    comunidade em carter permanente; b) as utilizadas para as atividades produtivas da

    comunidade; c) as imprescindveis preservao dos recursos ambientais necessrios a seu

    bem-estar, e; d) as necessrias sua reproduo fsica e cultural.38

    Quando a Constituio afirma que as terras tradicionalmente ocupadas pelos indgenas

    so aquelas habitadas por eles em carter permanente, no se refere a uma posse imemorial,

    ou seja, desde tempos remotos impossveis de mensurao pela memria, nem,

    necessariamente, a uma ocupao ininterrupta e atual, tendo em vista os inmeros casos em

    que as comunidades indgenas so expulsas de suas terras por meio de violncia fsica ou

    moral. Este conceito deve ser entendido como aquelas terras em que a comunidade

    35 SILVA, J., op. cit., p. 860. 36 MENDES JUNIOR, Joo. Os Indigenas do Brazil, seus Direitos Individuaes e Politicos. So Paulo: Fac-Similar, 1912, p. 58-59. 37 BARBOSA, Marco Antonio. Direito Antropolgico e Terras Indgenas no Brasil. So Paulo: Pliade, 2001, p. 94. 38 ARRUDA, Rinaldo. Territrios Indgenas no Brasil: aspectos jurdicos e socioculturais. In SOUZA LIMA, Antonio Carlos; BARROSO-HOFFMANN, Maria. Etnodesenvolvimento e Polticas Pblicas: bases para uma nova poltica indigenista. Rio de Janeiro: Contra Capa/LACED, 2002, p. 139.

  • 13 desenvolve, atualmente, todos os aspectos cotidianos de sua vida, ou, verificando-se a

    inexistncia de posse atual em razo de sua expulso por meio de violncia, aquelas em que

    haja vestgios de sua ocupao permanente em um passado vivo e palpitante, capaz de ser

    reconstitudo pela histria oral, pelo modo de ocupao ou por rastros de sua presena na

    rea.39

    As terras utilizadas para as atividades produtivas da comunidade so as reas em que

    esta desenvolve a agricultura, a caa, a pesca, a coleta, ou seja, onde exerce qualquer

    atividade com o fim de produzir e obter os elementos necessrios a sua subsistncia.40

    As terras imprescindveis preservao dos recursos ambientais necessrios ao bem-

    estar dos povos indgenas remete idia de que este espao deve ser suficientemente extenso,

    a fim de que, pelo crescimento demogrfico e pela constante e intensiva explorao do solo,

    no venha a ser impossibilitada a conservao dos recursos naturais dos quais a populao

    indgena precisa para sobreviver.41

    Por fim, as terras necessrias reproduo fsica e cultural das comunidades indgenas

    relacionam-se com o fato de que as terras consideradas tradicionalmente ocupadas devem

    abranger um espao suficiente a permitir o desenvolvimento da populao indgena, tanto em

    um sentido demogrfico quanto em um sentido cultural.

    Note-se que, quando a Constituio sujeita o conceito de terras indgenas

    tradicionalmente ocupadas aos usos, costumes e tradies das comunidades, isso significa que

    a tradicionalidade atende ao modo cultural como essas etnias relacionam-se com a terra,

    conforme seus cdigos, padres, crenas, instituies, formas de produo, reproduo e

    valores espirituais42, variando de acordo com o universo simblico e com a cosmologia de

    cada uma das comunidades indgenas.

    Observe-se que a tradicionalidade deve ser interpretada sob o ponto de vista de que as

    culturas indgenas, como quaisquer outras, so dinmicas e transformam-se ao longo do

    tempo, pois nenhuma cultura esttica e isolada, ela est sempre relacionando-se com outras.

    Portanto, eventuais mudanas decorrentes do contato com outras comunidades, indgenas ou

    39 SILVA, Lsaro Moreira da. O Reconhecimento dos Direitos Originrios dos ndios sobre suas Terras Tradicionais na Constituio Federal de 1988 e a Extenso do Conceito de Terras Indgenas Tradicionalmente Ocupadas. Revista Jurdica Unigran, Dourados, v. 6, n. 11, p. 150, jan./jul. 2004. 40 BARBOSA, op. cit., p. 94. 41 BARBOSA, loc. cit. 42 MONTANARI JUNIOR, op. cit.

  • 14 no, de forma alguma representam a negao de seus conhecimentos tradicionais ou de sua

    identidade cultural e tnica. Nesse sentido, Rinaldo Arruda destaca: Dentro desse socialmente construdo campo de significados, o atual dilema indgena se eterniza: se continuam autnticos, so vistos com simpatia ou no como selvagens, sem condies de autodeterminao. Se incorporam em sua constelao cultural elementos da modernidade, passam a perder legitimidade como ndios e seus direitos passam a ser contestados.43

    Destarte, existindo ocupao tradicional sobre a terra indgena, nos termos do 1 do

    art. 231, incidiro sobre ela os direitos originrios da comunidade que a ocupa. Estes direitos

    originrios esto consignados no 2 do art. 231: As terras tradicionalmente ocupadas pelos

    ndios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do

    solo, dos rios e dos lagos nelas existentes.

    Aos povos indgenas so reconhecidos, ento, os direitos de posse permanente e de

    usufruto exclusivo.

    O direito posse permanente revela-se como uma destinao das terras indgenas, para

    sempre, como habitat da comunidade, vale dizer, como o espao onde desenvolvem sua

    organizao social, seus costumes, suas tradies, suas lnguas e suas crenas, no

    restringindo-se a uma mera relao material entre homem e coisa, prpria do direito civil.44

    Em razo desse direito de posse permanente, o 5 do art. 231 garante aos povos

    indgenas a vedao de sua remoo das suas terras: 5. vedada a remoo dos grupos indgenas de suas terras, salvo, ad referendum do Congresso Nacional, em caso de catstrofe ou epidemia que ponha em risco sua populao, ou no interesse da soberania do Pas, aps deliberao do Congresso Nacional, garantido, em qualquer hiptese, o retorno imediato logo que cesse o risco.

    Contudo, essa garantia possui duas excees: casos de catstrofe ou de epidemia que

    ponham em risco as populaes indgenas e casos de interesse da soberania do Pas. Na

    primeira situao, o presidente pode ordenar diretamente a remoo, porm, dever haver

    verificao e anuncia posterior do Congresso Nacional (ad referendum), e, na segunda

    situao, a remoo s possvel aps deliberao do Congresso Nacional. Note-se que, em

    qualquer dos casos, garantido s comunidades indgenas o seu retorno imediato logo que o

    risco haja cessado.

    43 ARRUDA, op. cit., p. 139. 44 SILVA, J., op. cit., p. 860.

  • 15 O direito de usufruto exclusivo que os povos indgenas tm sobre o solo, os rios e os

    lagos existentes nas terras que tradicionalmente ocupam lhes garante os meios para sua

    autossustentao fsica, cultural e econmica, mediante a explorao dos recursos ambientais

    de seus territrios.

    Dessa forma, os direitos de posse permanente e de usufruto exclusivo tm carter

    complementar, pois no h como se cogitar a efetivao do primeiro sem assegurar o

    segundo. Nesses termos, Roberto A. O. Santos: Os dois institutos, o usufruto exclusivo e a posse permanente, completam-se e apiam-se reciprocamente. A posse necessria e deve ser permanentemente afirmada. Mas ela, s, no basta s comunidades indgenas, que precisam empregar as riquezas possudas na sua prpria manuteno, no seu lazer, no desfrute de seus valores culturais e, se o quiserem, na absoro da cultura chamada branca. Por seu turno, o usufruto no um usufruto qualquer, mas uma variante que preserva todo tempo a posse da terra, base da segurana econmica e do futuro biocultural da sociedade indgena.45

    Note-se que o direito ao usufruto exclusivo recai apenas sobre as riquezas do solo, dos

    rios e dos lagos, excluindo dessa regra os potenciais de energia hidrulica e as riquezas

    minerais, que, de acordo com o art. 176, caput, da Constituio Federal, constituem

    propriedade distinta da do solo, para fins de explorao e aproveitamento. o que dispe o

    3 do art. 231: 3. O aproveitamento dos recursos hdricos, includos os potenciais energticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indgenas s podem ser efetivados com autorizao do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada participao nos resultados da lavra, na forma da lei.

    Todavia, o prprio 3 do art. 231 estabelece requisitos constitucionais exigidos para a

    explorao dos potenciais de energia hidrulica, bem como para a pesquisa e a lavra das

    riquezas minerais que se derem em terras indgenas, quais sejam, a autorizao do Congresso

    Nacional, a consulta prvia s comunidades indgenas afetadas e, no caso de explorao dos

    recursos, a participao destas nos resultados da lavra, na forma da lei.

    Embora estejam tramitando, atualmente, vrios projetos de lei sobre minerao ou

    aproveitamento de potenciais hidreltricos em terras indgenas, no Senado e na Cmara dos

    Deputados, nenhum foi aprovado ainda e, diante da sua inexistncia, qualquer atividade dessa

    espcie em terras indgenas tradicionais deve ser considerada ilegal.

    Essa exceo ao direito de usufruto exclusivo dos povos indgenas mostra-se um grave

    retrocesso na garantia de seus direitos territoriais, devendo-se pensar em estend-lo tambm

    45 SANTOS. Roberto A. O. A Parceria Agrcola em Terras Indgenas. In SANTILLI, Juliana (Org.). Os Direitos Indgenas e a Constituio. Porto Alegre: Fabris, 1993, p. 182.

  • 16 para os potenciais de energia hidrulica e as riquezas minerais, como forma de garantir-lhes

    plenamente os direitos sobre as terras que tradicionalmente ocupam.46

    Neste ponto, torna-se importante salientar que a utilizao de recursos naturais pelos

    povos indgenas, de modo geral, realizada de forma altamente sustentvel, em virtude da

    especial relao que o ndio tem com a terra, dela s retirando o suficiente para a sua

    sobrevivncia e autodeterminao, sem esgot-la jamais. De acordo com Andria Cunha, os

    sistemas tradicionais de manejo dos recursos naturais pelos povos indgenas devem no s ser

    respeitados pela sociedade envolvente como tambm, incorporados e assimilados porque

    permitem falar em uma sustentabilidade ambiental.47

    Mesmo havendo, por um lado, essa exceo ao direito de usufruto exclusivo,

    possibilitando a explorao dos potenciais de energia hidrulica, bem como a pesquisa e a

    lavra dos recursos minerais em terras indgenas por no-ndios, a Constituio Federal

    estabelece, por outro, uma importante garantia a este direito no 7 do art. 231, quando

    probe, sem quaisquer excees, a garimpagem em terras indgenas por meio de cooperativas.

    Nessa linha, cabendo aos indgenas os direito de posse permanente e de usufruto

    exclusivo, a propriedade das terras tradicionalmente ocupadas por eles pertence Unio,

    conforme estatui o art. 20, inciso XI, da Constituio Federal. Esse domnio visa somente dar

    maior proteo e garantia a tais terras, pois est estritamente vinculado ao cumprimento

    daqueles direitos.

    Diante disso, o 4 do art. 231 determina que as terras de que trata este artigo so

    inalienveis e indisponveis, e os direitos sobre elas imprescritveis. A inalienabilidade e a

    indisponibilidade das terras tradicionalmente ocupadas, portanto, so uma garantia aos

    direitos territoriais indgenas em virtude dessa propriedade vinculada da Unio. Assim, as

    terras indgenas no podem ser vendidas, doadas, permutadas nem utilizadas como garantia de

    crditos,48 pois inalienveis, assim como no podem ter sua destinao posse permanente e

    ao usufruto exclusivo indgena desvirtuada, porquanto indisponveis.

    J a imprescritibilidade dos direitos indgenas terra significa que estes no so

    atingidos pelo decurso do tempo ou pela consumao de fatos contrrios a eles, o que inclui a

    sua continuidade de vigncia mesmo nos casos em que tenham sido expulsos de suas terras,

    por conta do carter originrio desses direitos.

    46 VILLARES, op. cit., p. 245. 47 CUNHA, A., op. cit., p. 75. 48 KAYSER, op. cit., p. 242.

  • 17 Por fim, uma das mais importantes garantias encontra-se no 6 do art. 231, que trata da

    nulidade e extino de atos que prejudiquem os direitos dos povos indgenas terra: 6. So nulos e extintos, no produzindo efeitos jurdicos, os atos que tenham por objeto a ocupao, o domnio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a explorao das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse pblico da Unio, segundo o que dispuser lei complementar, no gerando a nulidade e a extino direito a indenizao ou aes contra a Unio, salvo, na forma da lei, quanto s benfeitorias derivadas da ocupao de boa-f.

    De acordo com esse dispositivo, so nulos e extintos os atos de terceiros no-ndios que

    prejudiquem os direitos indgenas de posse permanente e de usufruto exclusivo sobre as terras

    que tradicionalmente ocupam, uma vez que tais direitos so originrios e, por isso, anteriores

    a quaisquer outros atos de ocupao. Entretanto, essa garantia no absoluta, porquanto

    admite exceo em um caso: quando houver relevante interesse pblico da Unio, segundo o

    que dispuser lei complementar. Porm, deve-se atentar para o fato de que esta lei ainda no

    foi criada, logo, a regulamentao de validade e extino desses atos irrestrita.49

    De qualquer forma, quando nulo e extinto um ato perpetrado contra os direitos

    territoriais indgenas, no existe direito de ao ou direito indenizao contra os ndios, suas

    comunidades ou organizaes que lhes representem, porquanto estes no so acionveis.

    Todavia, contra a Unio, a quem cabe a propriedade e o dever de proteo sobre as terras

    tradicionalmente ocupadas, o direito de ao e o direito de indenizao so possveis no caso

    de benfeitorias derivadas da ocupao de boa-f pelos posseiros.50

    2.2 DEMARCAO DE TERRAS INDGENAS

    O caput do art. 231 da Constituio Federal, em sua parte final, impe Unio o dever

    de demarcar as terras tradicionalmente ocupadas pelos indgenas, bem como de proteger e

    fazer respeitar todos os seus bens: So reconhecidos aos ndios sua organizao social,

    costumes, lnguas, crenas e tradies, e os direitos originrios s terras que tradicionalmente

    ocupam, competindo Unio demarc-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.

    Do dispositivo constitucional infere-se que, quando uma determinada sorte de terras

    tradicionalmente ocupada pelos ndios, ou seja, respeita os elementos do 1 do art. 231, so

    reconhecidos os seus direitos originrios sobre elas, surgindo para a Unio a obrigao de

    demarc-las.

    49 KAYSER, op. cit., p. 245. 50 KAYSER, loc. cit.

  • 18 Importa ressaltar que a demarcao de terras indgenas no ato constitutivo de

    direitos, uma vez que, conforme exposto anteriormente, os direitos indgenas sobre as terras

    tradicionalmente ocupadas so originrios e reconhecidos pelo Estado, logo, preexistentes

    formao deste e, por conseguinte, sua existncia independe de qualquer ato estatal, inclusive

    do demarcatrio.51

    Diante disso, tem-se que a demarcao dessas terras ato administrativo de

    competncia da Unio (uma vez que se trata de bens de sua propriedade) e de natureza

    meramente declaratria, pois sua nica funo limitar geograficamente determinado espao

    territorial, onde reconhecida a ocupao tradicional de ndios, e, diante disso, precisar a real

    extenso dos seus direitos originrios posse permanente e ao usufruto exclusivo das riquezas

    do solo, rios e lagos nele existentes, a fim de assegurar a plena eficcia do dever estatal de

    proteger tais terras.52

    Em que pese o dever jurdico do Estado de proteger as terras indgenas tradicionalmente

    ocupadas independa da existncia de demarcao, esta constitui-se em importante instrumento

    de proteo fsica daquelas, bem como dos direitos e interesses indgenas, pois, segundo

    Trcio Sampaio Ferraz Junior, tem o sentido de conferir certeza e segurana ao exerccio do

    direito, no que se refere ao seu contedo (faculdades) e objeto (terras ocupadas

    tradicionalmente).53 Ademais, para alm de proteger os seus direitos territoriais, a

    demarcao tambm permite aos povos indgenas o efetivo exerccio dos seus direitos

    culturais, como bem observado por Joo Pacheco de Oliveira e Marcelo Piedrafita Iglesias: Mais que atividade topogrfica, cartogrfica ou jurdica, demarcar criar condies sociais para que surja, dentro de um grupo tnico territorializado, uma forma de organizao poltica capaz no s de promover a adequada administrao dos recursos fundirios e ambientais, mas tambm de atualizar a prpria cultura, enriquecendo-a com novas experincias, sem prejuzo da reproduo de seu patrimnio cognitivo e da manuteno de valores tidos por seus membros atuais como centrais.54

    Quanto ao procedimento demarcatrio, este atualmente regulamentado pelo Decreto

    n 1.775, de 08 de janeiro de 1996, compondo-se de seis etapas distintas: 1) identificao e

    51 KAYSER, op. cit., p. 246. 52 LEITO, Raimundo Sergio Barros. Natureza jurdica do ato administrativo de reconhecimento de terra indgena a declarao em juzo. In SANTILLI, Juliana (Org.). Os Direitos Indgenas e a Constituio. Porto Alegre: Fabris, 1993, p. 67. 53 FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. A Demarcao de Terras Indgenas e seu Fundamento Constitucional. Revista Brasileira de Direito Constitucional, So Paulo, n. 3, p. 695, jan./jun. 2004. 54 OLIVEIRA, Joo Pacheco de; IGLESIAS, Marcleo Piedrafita. As demarcaes participativas e o fortalecimento das organizaes indgenas. In SOUZA LIMA, Antonio Carlos; BARROSO-HOFFMANN, Maria. Estado e Povos Indgenas no Brasil: bases para uma nova poltica indigenista II. Rio de Janeiro: Contra Capa/LACED, 2002, p. 67.

  • 19 delimitao; 2) aprovao e publicao; 3) impugnao (ou contraditrio); 4) deciso e

    demarcao; 5) homologao e registro.55 realizado por iniciativa e sob a orientao da

    FUNAI , sendo garantido ao grupo indgena que tem o interesse na demarcao a participao

    em todas as fases do procedimento.

    A ttulo ilustrativo, colaciona-se abaixo quadro elaborado pelo Instituto Socioambiental

    (ISA), que informa a situao jurdica das terras indgenas hoje no Brasil, sendo possvel

    observar que, do total de terras indgenas atualmente conhecidas, 66,72% j foram

    demarcadas, homologadas ou registradas:

    Quadro: Situao das TIs no Brasil

    Situao N TIs Extenso (hectares)

    Em identificao 125 9.964

    Com restrio de uso a no ndios 5 842.022

    Total 130 (19,32%) 851.986 (0,76%)

    Identificada 25 (3,71%) 2.822.857 (2,50%)

    Declarada 69 (10,25%) 4.888.944 (4,34%)

    Reservada 20 106.229

    Homologada 30 5.549.675

    Reservada ou Homologada com Registro no CRI e/ou SPU 399 98.471.415

    Total 449 (66,72%) 104.127.319 (92,40%)

    Total Geral 673 (100%) 112.691.106 (100%)

    Fonte: http://pib.socioambiental.org/pt/c/0/1/2/situacao-juridica-das-tis-hoje, acessado em: 10/05/2012

    Da anlise desses dados, conclui-se que, embora a Unio ainda esteja em mora com seu

    dever constitucional de demarcao das terras indgenas, inegvel que, a partir da

    Constituio Federal de 1988, houve uma considervel acelerao no tocante ao nmero de

    processos demarcatrios deflagrados e de reas efetivamente demarcadas.56

    A demarcao , portanto, um processo de territorializao de fundamental importncia

    para os indgenas, pois permite o seu reconhecimento em uma modalidade de cidadania que

    lhes peculiar, como sujeitos de direito diferenciados.57

    55 LOBO, op. cit., p. 59. 56 RIOS. Aurlio Veiga. Terras Indgenas no Brasil: definio, reconhecimento e novas formas de aquisio. In SOUZA LIMA, Antonio Carlos; BARROSO-HOFFMANN, Maria. Alm da Tutela: bases para uma nova poltica indigenista III. Rio de Janeiro: Contra Capa/LACED, 2002, p. 69. 57 CUNHA, A., op. cit., p. 64.

  • 20 3 ANLISE DA DECISO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NO CASO DA DEMARCAO DA TERRA INDGENA RAPOSA SERRA DO SOL

    3.1 HISTRICO DA DEMARCAO DA TERRA INDGENA RAPOSA SERRA DO SOL

    As terras indgenas so o objeto central de inmeras disputas e conflitos entre ndios por

    um lado, que reivindicam os seus direitos originrios, e segmentos no-indgenas por outro,

    com os mais diversos interesses econmicos nessas reas. E tais conflitos locais acirram-se

    justamente com o incio do procedimento demarcatrio, pois quando estabelece-se a

    reivindicao formal sobre tais terras.58 Interessante destacar as palavras de Dalmo de Abreu

    Dallari sobre o tema: Embora a imprensa conceda muito mais espao a articulistas ligados ao agronegcio e a setores militares retrgrados e preconceituosos, incapazes de uma viso realista e humanista da presena indgena na histria e na sociedade contempornea do Brasil, tm sido tambm divulgadas algumas informaes importantes reveladoras da truculncia e do desprezo pela tica e pelo direitos que caracterizam os invasores de terras indgenas. Uns, que se comportam como grileiros ricos, poderosos e sem escrpulos, buscam apoderar-se de grandes extenses de terras sem pagar por elas, para ali implantar empreendimentos agropecurios. Valendo-se de sua superioridade econmica, e associando-se a oligarcas e polticos sem tica nem compromisso social, invadem terras sabidamente indgenas e, para resistir aos protestos e tentativas de retomada das reas pelos legtimos ocupantes, criam milcias particulares, exibem reservas de armas e munies e proclamam suas disposies de resistir por meios violentos s determinaes, inclusive judiciais, para que desocupem as terras invadidas. A par desses existem outros invasores, como os mineradores que, na busca de riquezas, envenenam as guas, destroem a vegetao e provocam outros srios danos natureza, retirando dos ndios as possibilidades mnimas de sobrevivncia fsica e cultural. Outros invasores de reas indgenas vo procura de riquezas contidas na extraordinria variedade da flora brasileira, muitas vezes simulando objetivos puramente cientficos ou sociais ou, ainda, religiosos. E os ndios so as grandes vtimas, praticamente indefesas, sendo quase anulados os direitos que lhes so assegurados pela Constituio.59

    No Brasil, destaca-se, no cenrio ps-Constituio de 1988, o conflito desencadeado

    pela demarcao da Terra Indgena Raposa Serra do Sol, considerado um dos casos mais

    emblemticos no tocante a conflitos em terras indgenas, tendo em vista sua ampla

    repercusso na mdia nacional e na opinio pblica, bem como perante o cenrio

    internacional, havendo mobilizado diversos segmentos da sociedade, como grupos jurdicos,

    polticos e acadmicos, a colocarem em pauta a questo indgena no Pas.

    58 ARAJO, Ana Valria e LEITO, Srgio. Direitos Indgenas: avanos e impasses ps-1988. In SOUZA LIMA, Antonio Carlos; BARROSO-HOFFMANN, Maria. Alm da Tutela: bases para uma nova poltica indigenista III. Rio de Janeiro: Contra Capa/LACED, 2002, p. 29. 59 DAALARI, Dalmo de Abreu . A Raposa Serra do Sol e os direitos constitucionais no Brasil. In MIRAS, Julia Trujillo; GONGORA, Majo Fvero; MARTINS, Renato e PATEO, Rogrio Duarte do. Makunaima Grita! Terra Indgena Raposa Serra do Sol e os Direitos Constitucionais no Brasil. Rio de Janeiro: Azougue, 2009, p. 17-18.

  • 21 A Terra Indgena Raposa Serra do Sol localiza-se na regio nordeste do Estado de

    Roraima, dentro da Amaznia Legal, na trplice fronteira entre Brasil, Venezuela e Guiana,

    abrangendo um rea oficial de 1.747.464 hectares, onde habitam 19.933 indgenas, divididos

    em cinco etnias, quais sejam, Ingarik, Makuxi, Patamona, Taurepang e Wapixana.60

    O incio do procedimento administrativo de demarcao dessa rea indgena remonta ao

    ano de 1977, quando a FUNAI designou o primeiro grupo de trabalho para sua identificao.

    Desde ento, em face de divergncias polticas, diversos grupos de trabalho foram

    sucessivamente institudos, at que, em 1993, foi elaborado relatrio conclusivo, identificando

    formalmente a Raposa Serra do Sol em uma rea de 1.678.800 hectares.61

    Trs anos aps a identificao formal da rea pela FUNAI, em face de controvrsias

    sobre o procedimento administrativo de demarcao de terras indgenas, em 1996 foi editado

    o Decreto n 1.775, revogando os Decretos n 22/1991 e 608/1992, que at ento dispunham

    sobre tal procedimento, introduzindo uma fase de impugnao e contraditrio, na qual

    Estados, Municpios e outros interessados na demarcao podem apresentar contestaes ao

    relatrio do grupo de trabalho perante a FUNAI.

    Dessa forma, foram apresentadas contestaes pelo Estado de Roraima, pelo Municpio

    de Normandia e por vrios ocupantes no-ndios. Em despacho expedido em julho de 1996, a

    FUNAI considerou improcedentes todos os argumentos apresentados nas contestaes,

    enviando o procedimento ao Ministro da Justia da poca, Nelson Jobim. O Ministro expediu

    o despacho n 80/1996, mandando a FUNAI aprimorar e modificar o seu relatrio, a fim de

    reduzir a rea em 300.000 hectares. Essa deciso foi claramente uma tentativa de conciliao

    de interesses polticos divergentes sobre a demarcao da Raposa Serra do Sol.

    O despacho do Ministro Nelson Jobim foi duramente criticado por movimentos

    indgenas e rgos de assistncia e proteo ao ndio, os quais consideraram sua atitude uma

    afronta aos princpios constitucionais,62 alm de ter sido censurado, no Relatrio sobre a

    Situao dos Direitos Humanos no Brasil de 1997, pela Comisso Interamericana de Direito

    Humanos CIDH, rgo da Organizao dos Estados Americanos OEA.63

    60 INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL. Povos Indgenas do Brasil. De Olho nas Terras Indgenas. Disponvel em: . Acesso em: 12 maio 2012. 61 FREITAS JUNIOR, op. cit., p. 158. 62 MOTA, Carolina e GALAFASSI, Bianca. A demarcao da Terra Indgena Raposa Serra do Sol: processo administrativo e conflitos judiciais. In MIRAS, Julia Trujillo; GONGORA, Majo Fvero; MARTINS, Renato e PATEO, Rogrio Duarte do. Makunaima Grita! Terra Indgena Raposa Serra do Sol e os Direitos Constitucionais no Brasil. Rio de Janeiro: Azougue, 2009, p. 92. 63 KAYSER, op. cit., p. 403.

  • 22 Diante da presso interna e do alcance internacional que o conflito comeava a ter, em

    11 de dezembro de 1998, o novo Ministro da Justia, Renan Calheiros, expediu o despacho n

    50, revogando o Despacho n 80/96. Na mesma data, o Ministro editou a Portaria n

    820/1998, declarando a Terra Indgena Raposa Serra do Sol de posse permanente das cinco

    etnias que a habitam, com uma extenso contnua de 1.678.800 hectares, mantendo-se fiel ao

    relatrio de identificao da FUNAI e excluindo de sua abrangncia apenas as instalaes do

    6 Peloto Especial de Fronteiras e a sede do municpio de Uiramut.64

    Diante da edio da referida portaria, inmeras aes judiciais passaram a ser ajuizadas

    por ocupantes no-indgenas e por representantes do Estado de Roraima, perante o Supremo

    Tribunal Federal, o Superior Tribunal de Justia, a Justia Federal e a Justia Estadual, todas

    com o intuito de questionar a validade do ato administrativo do Ministro da Justia. Cumpre

    registrar que, em realidade, desde 1993, com a identificao da rea pela FUNAI, muitas

    aes possessrias j haviam sido intentadas contra a Unio, perante as Justias Estadual e

    Federal.65 Ainda, importa consignar que, em muitas dessas aes ajuizadas desde 1993, foram

    concedidas inmeras e sucessivas liminares suspendendo os efeitos da demarcao e

    causando diversos prejuzos s comunidades indgenas que habitam a rea.

    Nesse nterim, diante do crescente acirramento dos conflitos em torno da demarcao da

    rea, em 13 de abril de 2005, o ento Ministro da Justia, Mrcio Thomas Bastos, expediu

    nova portaria, a de n 534/2005, revogando a Portaria n 820/1998, declarando a posse

    permanente dos grupos Ingarik, Makuxi, Taurepang e Wapixana sobre a terra indgena, em

    uma extenso contnua de 1.747.464 hectares, apenas excluindo, alm da sede do municpio

    de Uiramut e do 6 Peloto Especial de Fronteiras, os equipamentos e instalaes pblicas

    estaduais e federais j existentes.66

    Em 15 de abril de 2004, o Presidente da Repblica, Luiz Incio Lula da Silva, assinou o

    decreto de homologao da demarcao da terra indgena Raposa Serra do Sol, doze anos

    aps a identificao formal desta pela FUNAI, colocando um fim ao procedimento

    administrativo demarcatrio desta rea.67

    Algumas aes populares foram ajuizadas questionando a validade da Portaria n

    534/2005 e do decreto presidencial homologatrio, dentre elas a Petio n 3.388, cujo

    64 MOTA, Carolina e GALAFASSI, Bianca, op. cit., p. 92. 65 Ibid., p. 98. 66 BRASIL. Portaria n. 534, de 13 de abril de 2005. Define os limites da terra indgena Raposa Serra do Sol. Dirio Oficial da Unio, Braslia, DF, 15 abr.2005, Seo 1, p. 59. 67 BRASIL. Decreto do Presidente da Repblica, de 15 de abril de 2005. Homologa a demarcao administrativa da terra indgena Raposa Serra do Sol. Dirio Oficial da Unio, Braslia, DF, 18 abr. 2005, Seo 1, p. 11.

  • 23 julgamento pelo Supremo Tribunal Federal ps um fim s controvrsias judiciais que

    envolviam a demarcao da Terra Indgena Raposa Serra do Sol.

    3.2 ANLISE DO JULGAMENTO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NA DEMARCAO DA TERRA INDGENA RAPOSA SERRA DO SOL

    Em 20 de maio de 2005, foi ajuizada ao popular (Petio n 3.388/RR) pelo Senador

    da Repblica Affonso Botelho Neto, assistido pelo tambm Senador Francisco Mozarildo de

    Melo Cavalcanti, contra a Unio, impugnando o modelo contnuo de demarcao da terra

    indgena Raposa Serra do Sol68.

    No bojo dessa ao popular, foram levados ao Supremo Tribunal Federal, por meio da

    Petio n 3.388, diversos interesses fundamentalmente divergentes em relao demarcao

    da rea Raposa Serra do Sol, compondo um complexo quadro de anlise da questo indgena

    no Brasil.

    O julgamento do caso teve seu incio no dia 27 de agosto de 2008, encerrando-se apenas

    no dia 19 de maro de 2009. Nesta data, o Supremo Tribunal Federal, por maioria de votos,

    julgou a ao popular parcialmente procedente, de acordo com os fundamentos do Voto do

    Ministro Relator, Carlos Ayres Britto, declarando a constitucionalidade do procedimento

    administrativo demarcatrio e, por conseguinte, da demarcao contnua da terra indgena,

    porm, submetendo esse reconhecimento a dezenove salvaguardas propostas pelo Ministro

    Menezes Direito. Restaram vencidos em seus votos os Ministros Joaquim Barbosa, que julgou

    a ao popular totalmente improcedente, e Marco Aurlio, o qual suscitou a preliminar de

    nulidade do processo e, no mrito, julgou a ao totalmente procedente.69

    Diante disso, passa-se anlise da deciso do Supremo Tribunal Federal, cujos

    fundamentos encontram-se no Voto-condutor do Ministro Carlos Ayres Britto, bem como nas

    dezenove salvaguardas propostas pelo Ministro Menezes Direito.

    Analisando o Voto-condutor, possvel observar que, para se chegar ao julgamento do

    caso concreto da demarcao da Raposa Serra do Sol, foram examinados quatro temas de

    pertinncia fundamental para a questo indgena no Brasil hoje: a relao das comunidades

    indgenas com a sociedade brasileira, o status jurdico das terras indgenas, as regras

    68 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Petio n 3.388/RR. Requerente: Affonso Botelho Neto. Requerido: Unio. Relator: Ministro Carlos Ayres Britto. Braslia, DF, 19 de maro de 2009. Dirio de Justia Eletrnico, Braslia, DF, 30 mar. 2009. Disponvel em: . Acesso em: 14 maio de 2012. 69 O resumo da parte dispositiva foi realizado com base no Acrdo da Petio n 3.388.

  • 24 constitucionais referentes demarcao das terras indgenas e, por fim, o modelo de

    demarcao destas terras.

    No tocante relao das comunidades indgenas com a sociedade brasileira, o Supremo

    Tribunal Federal as reconhece como parte essencial da realidade scio-cultural de nosso Pas,

    enquanto uma das principais vertentes tnicas formadoras da nao brasileira, conjuntamente

    com negros e brancos. E exatamente isso que a nossa Constituio Federal reconhece em

    seu prembulo quando afirma ser a nossa sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos,

    bem como quando reconhece aos ndios um Captulo inteiro destinado proteo e garantia

    de seus direitos fundamentais. Assim, reconhecendo tais direitos e viabilizando mecanismos

    oficiais para sua afirmao e efetivao, a Constituio Federal permite uma relao

    horizontal de interao entre as comunidades indgenas e os demais segmentos scio-culturais

    que compem a sociedade brasileira.

    Outro ponto importante abordado no Voto do Relator o status jurdico das terras

    indgenas e a competncia constitucional da Unio para demarc-las e proteger todos os bens

    nelas existentes, materiais ou imateriais (entenda-se: todos os bens fsicos e culturais). O

    Supremo afirma que todas as terras indgenas fazem parte do territrio nacional, tanto que so

    bens de domnio da Unio, nos termos do art. 20, inciso XI, da Constituio Federal.

    A propriedade atribuda Unio tem to-somente o cunho de conferir maior proteo s

    terras indgenas, porquanto, de qualquer forma, ficam elas vinculadas garantia dos seus

    direitos, cabendo apenas aos ndios a posse permanente e o usufruto exclusivo dos recursos

    naturais atinentes ao solo, rios e lagos, tornando tais bens indisponveis e inalienveis, bem

    como os direitos sobre eles imprescritveis.

    Ainda, no Voto explicitada a natureza especial e peculiar das terras indgenas, pois

    no se caracterizam nem como propriedade privada, nem como territrio. De acordo com a

    exposio do Relator, territrio se define como parte elementar de cada qual das nossas

    pessoas jurdicas federadas, juntamente com o povo e o governo, sendo o espao em que

    incide determinada ordem jurdica soberana e autnoma. Todavia, aqui deve ser realizada

    uma ressalva em relao ao Voto: o Supremo Tribunal Federal distingue as terras indgenas

    de territrios no sentido poltico, ou seja, como elemento formador do Estado e que

    fisicamente limita o poder deste.70 Obviamente, as terras indgenas no constituem territrio

    poltico no sentido constitucional, porm inegvel que estes espaos assumem, nos termos

    70 MARS, op. cit., p. 120.

  • 25 em que so conceituados pela prpria Carta Magna no 1 do art. 231, verdadeiro carter

    territorial para as etnias que neles habitam, no sentido de constituir pressuposto essencial para

    a prpria sobrevivncia fsica e cultural de um determinado grupo de pessoas, no caso, os

    indgenas.

    Em relao s regras constitucionais para a demarcao de terras indgenas,

    aproximando-se do cerne da questo objeto do julgamento, o Relator prev quatro marcos

    para coordenar a sua realizao, que do seu contedo positivo.

    O primeiro o marco temporal da ocupao, segundo o qual, para incidirem os direitos

    dos ndios sobre determinada poro de terras, deve-se verificar a sua ocupao tradicional na

    data da promulgao da Constituio Federal (5 de outubro de 1988), no havendo que se

    considerar ocupao anterior ou posterior.

    Neste ponto especfico, deve ser feita uma crtica em relao a tal posicionamento do

    Supremo Tribunal Federal: ao considerar a ocupao tradicional apenas como aquela que se

    verifica no dia 5 de outubro de 1988, aberta uma lacuna para a no efetivao dos direitos

    das comunidades indgenas que foram expulsas e espoliadas de suas terras, por meio de

    violncia fsica ou moral, antes dessa data. Estipular tal marco temporal , infelizmente,

    ignorar o fato de que muitos grupos indgenas que atualmente pleiteiam seus direitos no

    esto ocupando suas terras em virtude de terem sido outrora expulsos, o que no pode, de

    forma alguma, retirar-lhes seus direitos constitucionais sobre estas reas. 71

    O segundo marco o da tradicionalidade da ocupao, o qual, segundo o Relator,

    significa que a ocupao tradicional deve possuir carter de permanncia, mas tambm deve

    caracterizar-se pelo modo cultural prprio como cada etnia relaciona-se com a terra, de

    acordo com seus costumes e sua cosmoviso.

    O terceiro marco o da concreta abrangncia fundiria e da finalidade prtica da

    ocupao, o qual diz respeito s quatro condies que conceituam as terras indgenas

    tradicionais e que esto previstas no 1 do art. 231 da Constituio, extraindo-se do Voto-

    condutor que o referido dispositivo constitucional possui duas funes, quais sejam, a de

    determinar quais espaos territoriais devem ser considerados na demarcao de uma terra

    indgena, e a de estabelecer a finalidade prtica da demarcao dessa rea. Segundo o Voto,

    estas caractersticas/finalidades previstas no art. 231, 1, fazem com que a posse indgena

    sobre as terras tradicionais seja um instituto fundamentalmente diferente da posse civilista,

    71 VILLARES, op. cit., p. 117.

  • 26 porquanto naquela a terra deixa de ser mero objeto como nesta, e passa a ganhar a conotao

    de um ente em que os indgenas desenvolvem seus usos, costumes, tradies culturais e

    religiosas.72

    O quarto marco o do princpio da proporcionalidade, que significa levar em conta, no

    ato demarcatrio, aquilo que necessrio e imprescindvel para assegurar s comunidades

    indgenas a sua dignidade humana, e no apenas a sua sobrevivncia fsica, devendo ser

    interpretado sempre de acordo com o universo simblico do indgena.

    Por fim, antes de adentrar especificamente no caso da terra indgena Raposa Serra do

    Sol, no Voto examinado o tema que constitui a grande controvrsia nos autos da ao

    popular: o modelo de demarcao das terras indgenas, se contnua ou em ilhas.

    O Supremo reconhece que a demarcao contnua de terras indgenas (sem

    fragmentaes territoriais) a nica forma de se viabilizar os quatro imperativos

    constitucionais presentes no 1 do art. 231 da Carta Magna, bem como de efetivar os direitos

    originrios dos ndios posse permanente e ao usufruto exclusivo dos recursos naturais destas

    reas. Ademais, a Corte afirma que, alm de contnua, a demarcao deve ser realizada de

    forma monotnica ou intratnica, para que cada etnia tenha para si uma poro de terras em

    que possa desenvolver-se conforme sua prpria cultura, excluindo da demarcao os espaos

    fundirios entre um grupo e outro, inclusive com o intuito de evitar aproximao demasiada

    entre comunidades inimigas ou grandes vazios demogrficos. Porm, a demarcao

    intertnica admitida se, no plano dos fatos, for observado que diferentes etnias convivem e

    circulam harmoniosamente umas nos espaos das outras, sem que isso gere conflitos.

    Por derradeiro, chega-se deciso do caso concreto acerca da demarcao da terra

    indgena Raposa Serra do Sol.

    O Supremo Tribunal Federal reconheceu a rea em uma extenso contnua de 1.747.464

    hectares como de ocupao tradicional pelas etnias indgenas que nela habitam (Ingarik,

    Makuxi, Patamona, Taurepang e Wapixana), nos termos do 1 do art. 231 da Constituio

    Federal. Declarando a tradicionalidade da ocupao da Raposa Serra do Sol, a Suprema Corte

    reconheceu que sobre elas incidem os direitos indgenas originrios de posse permanente e de

    usufruto exclusivo das riquezas existentes em seu solo, rios e lagos, conforme preconiza o art.

    231, caput e 2, da Constituio Federal.

    72 MENDES, Gilmar Ferreira. O domnio da Unio sobre as terras indgenas: o Parque Nacional do Xingu. Braslia: Ministrio Pblico Federal, 1988, p. 58.

  • 27 Nessa toada, nos termos do 6 do art. 231 da Constituio Federal, declarou nulas as

    titulaes conferidas pelo INCRA a no-ndios nessa rea, bem como invlidas a ocupao da

    Fazenda Guanabara e a posse dos rizicultores privados que a exploravam, reconhecendo a

    prevalncia dos direitos originrios indgenas sobre todos estes atos.

    A Suprema Corte confirmou que a demarcao em modelo contnuo se deu em

    conformidade com todas as coordenadas constitucionais, no padecendo de quaisquer

    nulidades, pois obedeceu ao marco temporal da data da promulgao da Constituio Federal

    de 1988, da tradicionalidade da ocupao, da abrangncia fundiria e da finalidade prtica,

    bem como atendeu ao princpio da proporcionalidade extensiva. Outrossim, admitiu para esse

    caso especfico a demarcao intertnica, tendo em vista que as etnias Ingarik, Makuxi,

    Wapixana, Patamona e Taurepang convivem na regio sem conflitos armados h, pelo menos,

    150 anos, possuem uma lngua de tronco comum, alm de cultivarem entre si intensas

    relaes de trocas e unies exogmicas, no lhes causando qualquer prejuzo essa forma de

    demarcao.

    Assim, foi declarada a constitucionalidade da demarcao contnua da terra indgena

    Raposa Serra do Sol, contudo, devendo ser observadas dezenove salvaguardas que dizem

    respeito, resumidamente, ao direito de usufruto das comunidades indgenas sobre as terras

    tradicionalmente ocupadas, a questes ligadas soberania nacional e ao meio-ambiente, bem

    como ao processo de demarcao das terras indgenas.73

    A grande parte das condicionantes j esto previstas, explcita ou implicitamente, no

    prprio texto da Constituio Federal, algumas de carter protetivo, e outras enquadrando-se

    nas excees previstas s garantias constitucionais, como aquela que afirma que o usufruto

    exclusivo das comunidades indgenas sobre o solo, os rios e lagos relativizado sempre que

    houver relevante interesse pblico da Unio, o que est implcito no 6 do art. 231 da Carta

    Magna. Outras condicionantes no constam do texto da Constituio Federal, e constituem

    situaes prejudiciais concreo dos direitos indgenas territoriais, como, por exemplo,

    aquela que veda a ampliao de terras indgenas j demarcadas, que pode vir a ser um

    impedimento para que a Unio corrija erros passados em outras demarcaes, em que os

    direitos indgenas terra no tenham sido efetivamente protegidos e resguardados.

    De qualquer forma, a grande polmica gerada pela estipulao dessas dezenove

    73 YOKOYA SIMONI, M.. O reconhecimento dos direitos dos povos indgenas sob a perspectiva internacional e a brasileira. Boletim Meridiano 47, Braslia, Vol. 10, N. 105, ago. 2010, p. 41. Disponvel em: . Acesso em: 05 Nov. 2011.

  • 28 ressalvas est na possibilidade de sua repercusso fora do processo referente ao caso da

    demarcao da terra indgena Raposa Serra do Sol. Todavia, porquanto trata-se de ao

    popular, tem-se que as ressalvas nela contidas, e no constantes do texto constitucional, no

    podem ser invocadas com efeito vinculante para outras aes judiciais que versem sobre a

    demarcao de outras terras indgenas, pois seus limites objetivos e subjetivos dizem respeito

    somente ao caso da Raposa Serra do Sol,74 o que tambm no impede que elas venham a ser

    empregadas em outros casos semelhantes por fora jurisprudencial e interpretativa.

    CONCLUSES

    Conforme a anlise e os comentrios tecidos sobre o julgamento do Supremo Tribunal

    Federal no caso da demarcao da Terra Indgena Raposa Serra do Sol no presente trabalho, a

    concluso qual se chega que a Suprema Corte fundamentou sua deciso de forma

    eminentemente compatvel com o carter protetivo da Constituio Federal em relao aos

    povos indgenas brasileiros, reconhecendo-os como sujeitos de direitos diferenciados, que

    lhes so atribudos em virtude de sua especial e peculiar condio de primeiros ocupantes do

    que hoje territrio brasileiro, alm de vertente scio-cultural essencial na formao da nossa

    sociedade.

    O mrito do julgamento do Supremo Tribunal Federal no se encontra apenas no fato de

    reconhecerem a importncia da garantia dos direitos terra para as comunidades indgenas,

    exaltando os pressupostos constitucionais da originariedade desses direitos e da

    tradicionalidade da ocupao. A grande conquista est no fato desse reconhecimento ter como

    base ideolgica o princpio da interao entre ndios e a sociedade envolvente, em que os

    direitos terra so assegurados, por meio de medidas afirmativas como a demarcao, para

    que os indgenas possam preservar sua diferena cultural e sua identidade tnica e, por

    conseguinte, relacionar-se de maneira igualitria com o restante da sociedade.

    Entretanto, Suprema Corte no pode ser atribudo um posicionamento absolutamente

    protetivo em relao aos direitos indgenas, o que se evidencia em dois pontos da deciso:

    quando afirma que o marco temporal da ocupao para fins de demarcao a data da

    promulgao da Constituio Federal, porquanto exclui-se da proteo constitucional aquelas

    comunidades que foram expulsas de suas terras antes da referida data; e quando faz as

    dezenove ressalvas s quais a constitucionalidade da demarcao da rea Raposa Serra do Sol

    74 CUNHA, A., op. cit., p. 166.

  • 29 deve submeter-se, porquanto muitas delas, como j visto, representam um grave retrocesso

    para a questo indgena no Brasil.

    Dessa forma, o julgamento do Supremo Tribunal Federal trouxe grandes contribuies

    para a causa indgena no Brasil, ao reconhecer o carter de direito humano fundamental que a

    garantia da terra adquire para os indgenas, embora tambm tenha apresentado algumas

    regresses no tocante interpretao e aplicao de determinados pontos das normas

    constitucionais. De todo modo, a deciso do Supremo Tribunal Federal no tem carter

    vinculante em relao a futuras decises relativas a esse assunto, mas com certeza constitui-se

    em um precedente jurisprudencial com grande fora interpretativa para futuros julgamentos

    que tenham os direitos indgenas terra como objeto.

    Assim, a partir desse caso emblemtico e do entendimento eminentemente protetivo e

    humanitrio da Suprema Corte, espera-se do Poder Judicirio, que at ento possua uma

    tradio conservadora e retrgrada em relao s causas indgenas, um novo rumo em seu

    posicionamento, de maneira mais compatvel com as prprias normas constitucionais,

    reconhecendo a natureza especialssima dos direitos indgenas terra.

  • 30 REFERNCIAS

    ARAJO, Ana Valria. Povos Indgenas e a Lei dos Brancos: o direito diferena. Braslia: Ministrio da Educao, Secretaria de Educao Continuada, Alfabetizao e Diversidade, LACED/Museu Nacional, 2006, 208 p. ARAJO, Ana Valria e LEITO, Srgio. Direitos Indgenas: avanos e impasses ps-1988. In SOUZA LIMA, Antonio Carlos; BARROSO-HOFFMANN, Maria. Alm da Tutela: bases para uma nova poltica indigenista III. Rio de Janeiro: Contra Capa/LACED, 2002, p. 23-33. ARRUDA, Rinaldo. Territrios Indgenas no Brasil: aspectos jurdicos e socioculturais. In SOUZA LIMA, Antonio Carlos; BARROSO-HOFFMANN, Maria. Etnodesenvolvimento e Polticas Pblicas: bases para uma nova poltica indigenista. Rio de Janeiro: Contra Capa/LACED, 2002, p. 131-150. BARBOSA, Marco Antonio. Direito Antropolgico e Terras Indgenas no Brasil. So Paulo: Pliade, 2001 130 p. BARRETO, Helder Giro. Direitos Indgenas: vetores constitucionais. Curitiba: Juru, 2005, 152 p. BRASIL. Constituio (1934). Constituio da Repblica dos Estados Unidos do Brasil. Rio de Janeiro, RJ: Congresso Nacional, 1934. Disponvel em . Acesso em: 25 mar. 2012. BRASIL. Constituio (1937). Constituio dos Estados Unidos do Brasil. Rio de Janeiro, RJ: Congresso Nacional, 1937. Disponvel em . Acesso em: 25 mar. 2012. BRASIL. Constituio (1946). Constituio dos Estados Unidos do Brasil. Rio de Janeiro, RJ: Congresso Nacional, 1946. Disponvel em . Acesso em: 25 mar. 2012. BRASIL. Constituio (1967). Constituio da Repblica Federativo do Brasil. Braslia, DF: Congresso Nacional, 1967. Disponvel em . Acesso em: 27 mar. 2012 BRASIL. Constituio (1967). Emenda Constitucional n 1 de 17 de outubro de 1969. Altera na ntegra o texto da Constituio de 1967. Braslia, DF: 1969. Disponvel em . Acesso em: 31 mar. 2012. BRASIL. Decreto do Presidente da Repblica, de 15 de abril de 2005. Homologa a demarcao administrativa da terra indgena Raposa Serra do Sol. Dirio Oficial da Unio, Braslia, DF, 18 abr. 2005, Seo 1, p. 11. BRASIL. Portaria n. 534, de 13 de abril de 2005. Define os limites da terra indgena Raposa Serra do Sol. Dirio Oficial da Unio, Braslia, DF, 15 abr.2005, Seo 1, p. 59. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Petio n 3.388/RR. Requerente: Affonso Botelho Neto. Requerido: Unio. Relator: Ministro Carlos Ayres Britto. Braslia, DF, 19 de maro de 2009. Dirio de Justia Eletrnico, Braslia, DF, 30 mar. 2009. Disponvel em: . Acesso em: 14 maio de 2012.

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