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Açor - Coração da castanha na Maúnça

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Joaquim E. Oliveira

AÇOR(retrato íntimo)

Coração da castanha na Maúnça

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2012

Título: Açor (retrato íntimo) Coração da castanha na Maúnça

Autor: Joaquim E. Oliveira

Capa: Serviços gráficos da Câmara Municipal do Fundão

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1.ª edição: outubro de 2012

AÇOR(retrato íntimo)

Coração da castanha na Maúnça

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À Gardunha

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spessas fumarolas de névoa, como panais tendidos,

afagam a encosta que a Maúnça volta a sul. As primeiras

águas de outubro descem a espaços sobre as eiras do Açor.

Quem aqui estacar o passo, por um instante que seja, terá

E

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silêncio a bater-lhe na cara, com a humidade, com o ar,

aberto.

Indiferente à bátega que vai e que vem, touca branca

amparando o cabelo grisalho e curto, bata com estampados

dourados sobre azul, avental com bolso à direita e

galochas sustendo o corpo pequeno, Maria Rodrigues

Silva, a Ti Rosa, mergulha as mãos na velha masseira

anichada num canto fusco da casa do forno. A pequena

construção foi erguida há anos, em blocos de cimento e

teto de zinco, no quintal da casa materna, no sítio do

Souto.

Levante-se um pouco o queixo para o ver dali, e o

casario do Açor faz-se presépio, assim como está, plantado

na encosta da serra. A setecentos metros do nível de

qualquer oceano. O mar aqui é em tons de verde — o

verde-escuro e baço da folhagem e o verde-alface dos

ouriços que a moinha da chuva começa a ajudar a abrir.

Fala-se de soutos, pois. De castanheiros e castanhas.

Chamam Maúnça a esse braço da Gardunha que segura

no colo esta aldeia de xisto e longas memórias. É uma alta

colina, feita concha, hoje ponteada por soutos, nogueiras e

oliveiras, coberta de remendos de pinho bravo e tingida

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com os vários cambiantes de verde e cor de mel do mato

torgueiro e da queiró, da magoriça e da esteva. Velho

território de pastores, resineiros, fiandeiras, mineiros,

ceifeiros, carvoeiros, lavradores…

Nas ruas sinuosas e íngremes, nas quelhas estreitas ou

nas escaleiras improvisadas do Açor, tanto como nas leiras

ou nas assentadas, a água que cai é muita, e obriga

mulheres e homens a procurar abrigo.

Constante em todo o arco da aldeia serrana, a

folhagem dos castanheiros, estranhamente — porque a

estação, feita a conta por alto, vai a meio —, exibe assim

um verde ainda vigoroso. Por estes dias de outono já se

esperava que a ramaria não lhes fosse tão basta e que a

candeia já estivesse seca. Ninguém parece ainda

compreender o tempo desta coisa que a natureza é.

— Isto não anda bom. Os castanheiros estão já com os

ouriços e ainda se veem as candeias. O normal é: primeiro

vem a candeia e depois é que vem o ouricinho —, analisa

Ti Rosa. Numa destas noites que puxam à lareira, pela

hora da ceia, outra açoriana, Ti Georgina Rodrigues,

interpretava assim o novo e estranho comportamento das

coisas da natureza: “Este ano nem vi uma poupa…”

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O pão parece dormir na masseira, mas está vivo e

fermenta, coberto com vários panos, como que à sombra

de uma hesitante prateleira improvisada onde hiberna um

quarteirão de sacas de pinhas bravas.

Uma generosa braçada de ramalhas secas de pinheiro

sopra no coração côncavo da fornalha de tijolo de barro,

atiçada pela ágil sabedoria de Ti Rosa.

Ao meter as mãos no pão, os braços dançam-lhe,

alegres, em movimentos circulares, cruzados, ritmados,

compassados. É nesse enredo de dedos forjando a massa

sempre mole que os 72 anos desta mulher de infindas

energias dão uma última volta à mistura de farinhas de

centeio e trigo, fermento, azeite, sal e água. A massa já

está crescida. Diz-se finta.

— Quando tem um bocadinho de centeio e de trigo, o

pão é mais doce e não anda tão duro —, explica Ti Rosa.

Enquanto fala, faz tocar, com um movimento ligeiro, o

polegar da mão direita no cachinho enfarinhado dos outros

quatro dedos. E o eterno sorriso quase lhe fecha os olhos.

Daqui a nada tenderá a massa com as mesmas mãos e

fará entrar pela boca rubra do forno vinte formas do futuro

pão caseiro. Não o venderá.

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— É para o gasto da casa. Mete-se na arca até que a

gente o acabe. Aqui não há regra: se houver muita gente a

comer, gasta-se mais muito —, adianta Ti Generosa, três

anos mais nova e irmã de Ti Rosa. Os mesmos cabelos

brancos de neve, menos curtos, mais lisos. A voz sai mais

pausada a Generosa Silva Rodrigues. Já a irmã mais velha

fala como que a muitas velocidades, e o seu falar acaba

por parecer mais apressado, ansioso. Nada custa imaginá-

la hiperativa quando criança...

Generosa está ali para passar o pão da masseira para o

tabuleiro, antes de o meter ao forno. Aguarda que a irmã

dê a volta ao centeio. Sim, porque “ao trigo não se dá a

volta”, dizem a uma só voz.

— Ninguém nos ensinou. A gente via os nossos pais a

fazer. A gente só a ver, sem meter as mãos, nunca aprende

—, sentencia Ti Generosa, que aprendeu e começou a

amassar “já era viúva”. Dava outra história.

Ti Rosa é casada com Ti António Martins, 77 anos de

escassa conversa, mas de sorriso honesto e olhar franco.

Anda a esta hora, pelas quatro e meia da tarde, no Vale de

Trás da Eira, nos planos do fundão da encosta. Traz por lá

a Canina, a Riscadinha, a Môxa e a Marreca, e mais duas

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outras cabras a que não chegámos a saber os “nomes”, que

por instantes se escaparam da memória da forneira. Dar

nome aos animais, um costume de sempre em terra de

pastores.

De Rosa e António não veio descendência.

— Não tenho filho nenhum. Sou só eu mais o marido.

Tenho pena, pois, mas claro... tenho pena de os não ter,

mas até hoje ainda não me fizerem falta. Amanhã ou

d’outro dia, talvez… aqueles que os têm também se

queixem, também se veem sozinhos. É o que Deus quiser

—, solta Ti Rosa. Esta mulher fala sem qualquer negrume

na voz que cede sempre ao hábito local de trocar pelo “e”

o “a” da terceira pessoa do plural do pretérito perfeito. É

deste matiz que se pinta o falar no Açor.

“Olha lá, ó minha filha, que andas no rol dos inocentes:Tu pensas que aturar homens é comer castanhas quentes?‘Inda estás muito novinha, não te nascerem’nos dentes.Que idade tinha a mamã quando com o papá casou?Quinze anos tinha, aos vinte lá não chegou.Dizia-me tão mal dos homens, mas também do casar gostou”

Ti Rosa

As irmãs vão lançando a vista à alvura e à cinza das

nuvens. Nevoeiros, como fumarolas plantadas em cada

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uma das ranhuras das serras (Maúnça, Candal, Barroco do

Inferno e Junqueira, assim se chamam), vão-se entrevendo

nesse vale que faz lembrar uma ferradura engelhada

apontando a nascente, ao Castelejo.

A expressão do olhar vem-lhes como uma ferramenta

que arranca as recordações à memória. Uma delas vem dos

tempos em que muitos homens do Açor — se não quase

todos — trabalhavam nas minas de volfrâmio da

Panasqueira, a três horas a pé dali pelas veredas serranas.

Ti Rosa solta as lembranças.

— Pois, pois! O Açor também foi terra de mineiros.

Atravessavem estas serras todas de noite. O meu marido,

mesmo já de casada, ainda lá andou a trabalhar. Eu

morava nesta casa velha, e depois é que fiz aquela depois

de vir da França. Nesse tempo, às vezes, punha papéis de

jornal na parede, colados com massa de farinha e água…

não havia cola, não havia nada… era para ficar mais

bonito… mas, de noite, os ratinhos iam lá comer a massa

e, depois, eu, à espera do meu marido, ia lá, ouvia tic-tic-

tic… matava um rato. Sentia outro tic-tic-tic… matava

outro… e assim me entretinha até que o marido chegasse.

Era assim.

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Como tantos outros mineiros, António, o marido de Ti

Rosa, passava a semana na Panasqueira. Rumava, como

esses outros, aos poços de minério sempre nas madrugadas

das segundas-feiras, e regressava de minerar nas

madrugadas dos sábados. Sempre a pé, sempre de

madrugada, sempre por força dos horários do trabalho por

turnos. Sempre atravessando soutos, pinhais e o que mais

de mata e bosque e pedra as serras dão.

À chegada, António, sempre também, sabia que na

casa de Ti Ana, mãe de Rosa e Generosa, havia umas

passas de abrunho ou de figo ou uma aguardente de

medronho para reconfortar… Era no tempo em que os

cachecóis, enrolados pela boca e ao pescoço, gelavam ao

amparar o bafo de quem andasse ao relento.

— Passarem o que Deus sabe a atravessar estas serras.

Mau tempo, mau tempo... Ainda hoje falem da Ti Ana. A

gente bem diz: “O mal alembra e o bem não esquece” —,

suspira Ti Generosa.

José Borges Rodrigues, 81 anos, a quem chamam “o

romanceiro” do Açor, foi também homem da mina, dos

dezasseis aos trinta anos. Saiu “lá de dentro” em 1961 e

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ainda hoje transporta no corpo uma incómoda lembrança,

a silicose, que lhe faz o respirar mais pesado, custoso.

— Nos martelos trabalhava tudo a seco. Era um pó

desgraçado. Daqui morreram muitos com o mal da mina

—, recorda, sentado na mesa do computador, colocada a

um topo da sala. Ti José Borges completou a quarta classe

num exame na Covilhã.

A toda a volta, as paredes da sala pejada de mobília

estão pintadas a verde. Forte. A escrivaninha está

encostada à parede, dominada por um grande tapete, muito

colorido, com cenas de uma granja do velho oeste

americano: um rodeo na quinta. Na parede oposta, pregada

alta e junto à janela, uma pequena “Última Ceia” a preto e

branco, numa moldura dourada.

Ti José Borges era guardador de cabras quando, aos

dezasseis anos, largou a guarda das cabras e rumou às

correias da Panasqueira, a trabalhar “na escolha da pedra”.

Sete escudos por dia. Só depois dos dezoito o deixaram

entrar na mina. Poeiras, turnos e medo partilhados por

outros trinta companheiros, “tudo nova mocidade”.

“Era uma senhora que ia à missa para a Enxabarda, e deixou cá uma filha. Chegarem

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aqui dois senhores. Eles vinhem a ver daquela menina. Eles depois pedirem-lhe água, já com a velhacaria, já com a maldade no corpo, e ela veio aqui buscar água numa cantarinha, de uma fonte que ali estava. Eles tinhem um cão, traziem um cão... Ela deu-lhes a bilhinha da água, mas assim que lha deu, por perceber ao que vinham, pirou-se. Quando chegou ali ao Curralão da Lomba — que era uma parede grande onde metiem lá o gado antigamente —, ela foi tão esperta que, chegou ali, deu tanta volta, tanta volta ao Curralão da Lomba que o cão, até ali, a seguiu, mas quando chegou ali, o cão não soube de mais rasto nenhum. E a menina foi sumir-se lá para o cimo, lá para o alto da serra, no Vale Salgueiro, onde andavem uns pastores, e os pastores é que a acarinharem. Depois estes senhores encontrarem a mãe da menina, que vinha da missa. E disserem assim para a mãe: ‘Anda velha, se honrada a deixastes, honrada a vais encontrar’”

Ti Rosa e Ti Generosa

É sinuosa e estreita a língua de alcatrão grosso e

rugoso que leva ao Açor desde o cruzamento da estrada de

duas vias que leva a Silvares, à Barroca Grande, ao

Orvalho... Àquela chamam estrada municipal, e não leva

ninguém a mais lugar nenhum. Aqui chega, aqui se acaba.

Ou não?

— Agora, estrada, até há. Até à serra é terra batida,

mas depois entra na estrada das eólicas, que vai às

Rebardieiras, mas não temos o dizer que há um autocarro

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a seguir isto, não é? —, explica Ti Generosa sem qualquer

pesar. Até porque os carros passam “para lá”, deixando

marcas no corpo da Maúnça ou nas lombas do Candal, da

Cumeeira, do Vale Salgueiro ou do Bugalhal. Nos confins

de um mundo serrano, o sentir-se alguém isolado acaba

por ser, afinal, coisa relativa.

— Há sempre tanta gente, tanta gente que aqui vem…

E nós agora vamos fazer a festa das artes e sabores aqui da

Maúnça. E eu estou além no forno a cozer o pão, além no

Centro Comunitário —, promete Ti Rosa por antecipação,

chamando já pelo segundo fim de semana de novembro. A

irmã Generosa, que também o fez em anos anteriores, não

poderá “estar no forno” na edição de 2012 da Mostra de

Artes e Sabores da Maúnça. Não pode porque assim o dita

a saúde que sempre vai fugindo. Ainda que não a alegria.

— Festas é o que cá não falta. A associação tem

muitas atividades. Se a gente não está numa coisa, está

noutra… Com o rancho folclórico andemos para um lado,

andemos para o outro...

Ti Generosa maneja agora a vara do pano, com que

limpa a borralheira do forno, enquanto a irmã dá forma

longa aos pães que hão-de entrar pela boca da fornalha.

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Antes ainda, aconchega-os no panal, no tabuleiro,

anichado a um canto, no lado oposto ao da masseira. É pão

já quase à boca do forno.

A fornalha de tijolo está hoje no preciso local onde

antes se erguia um castanheiro. Diz Ti Rosa que era tão

grande que algumas pernadas chegavam à janela da casa

paterna, a uns dez passos dali.

— Cortou-se o castanheiro, não sei por que maneira

—, aponta Ti Rosa. Sim, cortou-se para ceder lugar ao

pão.

O ribombar electrónico das ave-marias lançadas do

sino da igreja revela aos montes que o dia vai pelas cinco

da tarde.

“O maranho é carne de porco e de cabra. Normalmente é de cabra. É os buchos das cabras. Aquilo dá muito trabalho a lavar… Metem chouriças, fumeiro, mas o que leva mais é carne de cabra. Se for nova é melhor de cozer, se for mais velha tem que se ter mais tempo a cozer. Portanto, é carne de cabra, é fumeiro, uma chouriça ou um bocadinho de presunto, carnes brancas, um bocadinho de presunto de carnes brancas, e umas coisinhas que a gente tira das tripas da cabra — que lhe chamemos nós o entretinho —, e então aquilo é que dá o sabor ao maranho. Se não levar aquelas coisas, pode levar tudo mas não tem sabor tão bom. Depois leva umas ervas, chamemos-lhes nós

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Page 21: Açor - Coração da castanha na Maúnça

sarpão, e salsa. Há muita gente que põe hortelã, mas eu, para mim, nunca puz. O sarpão é parecido com o alecrim, é até um cheiro muito forte. Pronto. E é isso assim. Depois leva arroz, tudo misturado. Tempera-se, leva vinho, um bocadinho de água, leva cebola picada… alho não ponho. Prova-se, tempera-se a gosto. Mete-se então para as peles. As peles dão muito trabalho. Primeiro que se limpem… É o estômago mesmo da cabra. É muito bem lavado. Depois são cortadas com uma tesoura à maneira, que não pode ser muito grande nem muito pequena. Depois são cosidas com uma agulha, com linha, aquilo tudo cosido, e, ao fim de estar a massa feita, mete-se lá para dentro e depois cose-se a boquinha outra vez. Depois é que se coze. Até chegarem à mesa, dão muito trabalho. Não se come todo o ano porque dá muito trabalho a fazer. É um prato para fazer pelas festas, com a família. É o maranho e a chanfana”

Ti Generosa

Depois há esta coisa das “eólicas”, plantadas na coluna

deitada das serras.

Mais que o número de almas que habitam o Açor, eis

oitenta e dois varapaus de ferro com caravelas, a que os

entendidos chamam aerogeradores. Gigantescos fantasmas

de metal cinzento-claro cravados há pouco mais de meia

dúzia de anos na Maúnça e noutras cristas da Gardunha, a

sul e a norte.

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Page 22: Açor - Coração da castanha na Maúnça

Estão a toda a volta da aldeia, como berloques

verticais de uma cinta metálica estendida a perder de vista;

criaturas sem boca nem olhos nem ouvidos, mas com vida

própria, alimentadas pelos estados de alma do próprio

vento.

Os açorianos alcunham-nas também de “ventoinhas”,

“antenas”, “torres”... Para além de tudo, chamam-lhes um

estorvo, mais para os ouvidos e mais ainda nas noites

quentes de verão, quando o ulular constante, poderoso e

quase hipnótico das pás entra pelas janelas e sopra

histórias que a ninguém apetece ouvir.

— A gente já se começou a habituar, mas quando foi

ao princípio aquilo era horrível—, sussurra Ti Generosa,

desdenhando. — Calhou ter lá uns terrenos, ainda dá umas

rendazitas. Quando é aí assim Maio, Junho, Julho, em que

a gente tem de dormir com as janelas abertas, aquilo faz

“buuu-buuuu”… até parece que vem por aí tudo abaixo

—, descreve, num gesto largo, os braços rodando e o

pescoço esticado, amaneirando assim o som dos geradores

alados.

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Mas Ti Generosa logo pega no comprido pau de rodo,

que governa com ambas as mãos para fazer rebolar as

brasas mais grosseiras.

Fossem hoje na serra tantos os soutos quantas as

eólicas…

E dos soutos do Açor? Ei-los aqui, mas só aos nomes,

que deles já só sobram uns poucos: o do Serro, do

Bugalhal, Madeira, da Fontanheira, da Ribeira Cimeira, da

Courela, do Rato, da Lora, da Malhadinha, do Chão Novo,

da Horta Fundeira, do Vale Tradeira, do Quintal, do Vale

de Abelheira, da Viola, dos Conqueiros, do Vale d’Urso,

do Inferno…

O souto maior era o da Fontanheira, a que alguns ainda

chamam das Ladeiras. E se era um souto!... Agora, um

castanheiro, dos maiores que se já viram, cresceu junto à

ribeira, no Vale da Cumeeira.

— Era tão grande que tinha uma taloca onde cabiam

vinte e seis cabeças de gado. Devia ter uns trezentos anos,

sabe-se lá —, recorda, num misto de orgulho e mágoa,

António Rodrigues Almeida, 74 anos, marido de Ti

Laurinda Martins, de 69. São eles os donos do Café do

Chafariz, plantado desde 1978 no coração do Açor, a Rua

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de São Jacinto, nem a um passo do Largo da Fonte. Por

cima está-lhes a casa.

Numa destas manhãs, despontando já o sol a rodos,

furando as neblinas brancas como a lã, feitas farrapos

corados, Ti Maria São José “Paulina”, 78 anos,

acrescentará que as castanhas eram apanhadas aos

“quartos” pelos rendeiros. Que o doutor José Esteves

Pinto, dono de quase tudo o que se via, ficava com três

partes e os rendeiros com uma.

— Trabalhava-se muito para não recebermos nada. Era

eu, a minha mãe, era o meu tio e era o meu avô. Éremos

quatro a apanhar. Era todos os dias. Levantávemo-nos de

manhã e, oh, dávemos voltas aqui a estes castanheiros

aqui, tudo em volta —, desvenda.

Nos dias de agora os castanheiros mondam-se e

apanha-se-lhes a castanha na cama limpa do chão. E já

está. Mas é preciso que se passe pelo mesmo castanheiro

várias vezes. Coisa para se fazer ao longo de quinze dias.

Depois vinha o tempo do rebusco. Diz o adágio, a

propósito: “Pelo São Martinho, vai à adega, prova o teu

vinho e rebusca o teu soutinho.” Os soutos ficavam livres

para quem quisesse recolher a castanha serôdia.

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Page 25: Açor - Coração da castanha na Maúnça

— Vinha muita gente de Silvares, do Ourondo, de São

Martinho… Sempre ficava muito rebusco. Era muita a

miséria, muita a fome —, suspira Ti Paulina.

Ti Rosa escuta-a e logo a persegue a memória dessas

fomes. — Para rebuscar já não havia, a bem dizer, nada.

Era uma pobreza —, sentencia.

Nestes chãos do Açor vêm ao mundo castanhas como

em nenhum outro lugar. Há-as com várias personalidades,

mas duas têm aqui papel principal: a longal e a portelã.

A primeira, mais alongada e saborosa, é boa cozida,

porque assim melhor se descasca. A segunda, de corpo

mais roliço, mais perfeitinha, é ideal para o caniço e, como

é bom de ver, para o caldudo. É melhor seca. Ambas vão

bem se vão assadas, com vantagem para a longal, que

cresce em maioria nos soutos do Açor.

— Isto é como as nossas unhas: umas são longais e

outras são portelãs. Nós cá dizemos assim: “Olha, as tuas

unhas são longais, as minhas são portelãs” —, exemplifica

Ti Paulina, sem largar a alegria e o caldeiro, que mantém,

aparentemente esquecido, pendendo na dobra do braço

esquerdo.

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As amigas rumam ao quintal da casa materna de Ti

Rosa, ali ao virar da esquina, no Souto, com uma certeza:

este ano a castanha está muito atrasada.

— Queria água mais cedo —, segreda Ti Paulina, para

assim acusar os males da chuva tardia.

“Pelo sinal, bico real. Comi toucinho, fez-me mal.Se mais tivesse, mais comia. Adeus compadre, até outro dia.Adeus Maria, adeus João. Vais no carro? Pois, então.Que linda perna! Isso não.Onde dormes? Atrás do forno.Dás-me um beijo? Dou-te um corno”

Ti José Borges Rodrigues

No alambique que tem junto ao Largo de Santo

António, paredes-meias com a casa do velho mas enérgico

Ti Filipe Miguel, os olhos muito azuis de Ti Alberto

guardam o cair fino e lento da aguardente nova. Carregou

pela manhã o engenho montado à entrada da pequena

adega, fronteira à rampa de acesso à casa. A meio da tarde,

Ti Alberto está satisfeito com o fruto da destilação.

— Já lhe tirei hoje duas panelas daquelas. Forte! —,

diz, de mãos nos bolsos. E aponta o sorriso breve para a

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Page 27: Açor - Coração da castanha na Maúnça

jarra de barro onde vai cascateando o líquido cristalino.

Seis litros, nada menos.

— Daqui a bocadito já lhe arranco a “cabeça” [a tampa

do alambique] porque, senão, até se suja o material.

Ti Alberto Filipe vende muita castanha e traz ainda

com saúde e viço um souto como os de antigamente.

Quem esconderia tal orgulho?

— Se vocês passarem ali, ao cimo do povo, e se

olharem assim para a direita, à última casa, se olharem

para um souto lindo que lá está daquele lado, é meu!

O castanheiro, é preciso ver, demora nada menos que

os seus cem anos para se fazer castanheiro. Ti Alberto

sabe bem do que fala.

— Tenho, lá no souto, pés que devem ter dois metros

de redondo, no fundo. Esses já têm mais de duzentos ou

trezentos anos. O meu pai é que mos deixou. Desde

quando nasci, já eram assim. Parece que nunca lhes achei

diferença [risos largos, orgulhosos]. Estão sempre iguais.

O que é… são ocos por dentro, aquilo é só a casca de fora,

igual àquele balde. Só têm a casca de fora.

O castanho, para mobília, já se sabe, nunca foi forte.

Quanto à castanha…

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Ainda há quem venha ao Açor só para a comprar a Ti

Alberto Filipe. Uns levam-lhe uma saca, outros carregam

duas… — Tive um freguês, que morreu no outro dia, e

esse levava-me uma média de trezentos a quinhentos

quilos por ano —, garante o produtor, dos poucos que não

largaram o souto e o mantiveram como negócio que ainda

vai valendo a pena.

— Castanheiros velhos, velhos, de duzentos e

trezentos anos, são uns 33, mas se for a contar os

castanheiros novos, já feitos por mim, enxertados, se os

for a contar por pés, trago lá nada menos que os seus cem

a botar castanhas —, garante.

Mas o castanheiro, podendo não parecer, sempre dá o

seu trabalho a manter.

— Durante o ano tenho que os limpar, botar-lhes

caldas e isso, mas não é à rama, é ao terreno —, remata.

O souto da Fontanheira, já aqui se disse, era grande

entre os maiores. Mas agora não está tratado, é só silvas e

matos. Uma pena.

— Pertencia ao doutor José Esteves Pinto, que foi

presidente da Câmara do Fundão muitos anos. Aqui,

metade da nossa aldeia, metade do terreno, era dele. E ele

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Page 29: Açor - Coração da castanha na Maúnça

ainda tem aí os seus cem hectares de pinho em terra de

mato. Era doutor de leis. E foi padrinho de casamento da

minha patroa, porque o meu sogro tratava-lhe metade dos

terrenos e foi convidá-lo para padrinho —, descreve este

verdadeiro domador de castanheiros.

Este doutor José Esteves Pinto foi dono de quase tudo

na Maúnça e em redor dela.

— Quando ele morreu, os filhos venderem tudo o que

o povo lhes quis comprar. Ficarem só com as serras. E das

quase duas mil cabras que o Açor chegou a contar em

tempos, para mais de cem eram dele —, palavra de

António Rodrigues Almeida, nosso anfitrião, antigo pastor

e agora dono do Café do Chafariz.

Se hoje é comerciante, Ti António pode orgulhar-se de

ter antes sido homem para quase todo o serviço: pastoreio,

barbearia, ceifa, comércio... Foi até resineiro ainda antes

de emigrar para Besançon, onde trabalhou numa “grande

fromageria” de emmental e grouyère, para, depois de um

azar rodoviário de que foi vítima, passar a viver na casa do

guarda da própria fábrica, trabalhando como “concièrge”.

Besançon. França. Anda por lá meio Açor. Mas, antes

de tudo, a Maúnça.

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Page 30: Açor - Coração da castanha na Maúnça

“O sorgaço é que dá a pútega, quer dizer, da esteva também nascem pútegas, mas o leite da pútega da esteva amarisca, e o leite da pútega do sorgaço é mais doce”

Ti José Borges Rodrigues

Pastores.

— Em primeiro fui pastor. Nós aqui era tudo pastores.

Tudo tinha cabras. Por essas serras andava tudo coberto de

gado e não havia aí tanto mato como agora —, ironiza Ti

António, que traz um boné verde com publicidade a uma

casa de máquinas agrícolas do Fundão, sede de concelho.

Ti António está encostado ao balcão do café, apoiado

nos braços para assim poupar a perna direita, para sempre

atordoada pelo atropelamento de que foi vítima em

França. O condutor fugiu. Nunca se soube quem era.

O dono do Café do Chafariz sobrepõe a voz rouca ao

volume e ritmo desabridos das vozes e da música que

saem do rádio com duplo leitor de cassetes anichado num

postigo de canto, junto à máquina do café.

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Page 31: Açor - Coração da castanha na Maúnça

— Por essas serras e barrocas era só castanheiros…

—, descreve. E, na cama dos castanheiros, vindo Maio,

floresce a peónia, que no Açor tratam por cuca. Outros

conhecem-na como rosa-albardeira. Talvez por ser dos

poucos soutos que ainda não foram pasto das chamas de

verão, no da Fontanheira ainda se vão vendo tapetes de

cuca de folha lanuda e folha lisa. Património natural que

ainda vai enfeitando altares de igreja.

O balcão em L ocupa a quarta parte do café. À direita,

mesas de madeira e dois bancos corridos acompanham as

paredes com estantes em que assentam troféus de torneios

idos. Uma foto a cores de uma antiga equipa de futebol, à

Benfica, ao centro, entre as estantes. Aqui não se sente o

frio, pelo contrário. Um radiador — pouco menos longo

que a janela de alumínio castanho de três folhas que dá

para o chafariz do largo —, aquece o espaço, alimentado

pelo bem pensado recuperador de calor que Ti Laurinda

serve com canhotas de eucalipto lá na cozinha, no

primeiro andar.

Sem ser chamado, o sino da igreja volta a dar as ave-

marias. E acrescenta-lhes cinco badaladas.

“Fui ao mato, farufunfato, sacotato

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Page 32: Açor - Coração da castanha na Maúnça

Agarrei um coelho, farufunfelho, sacotelhoTrouxe-o à velha, farufunfelha, sacotelhaA velha, farufunfelha, sacotelhaPôzio na cantareira, farufunfeira, sacoteiraVeio o gato, farufunfato, sacotatoComeu o coelho, farufunfelho, sacotelhoQual tu, velha, farufunfelha, sacotelhaNunca mais tornas a comer coelho, farufunfelho, sacotelhoQue eu torne a trazer do mato, farufunfato, sacotato”

Ti Generosa

A chuva fez por lavar as ervas rasas que agora

despenteiam a soleira do forno. A bátega teimosa esfregou

também as paredes de xisto e cimento, humedeceu o

bagaço de uva amontoado no quintal, encharcou as latadas

e os costados da serra, e arrastou as folhas de outono agora

acumuladas pelas calçadas ou nas escaleiras da Travessa

das Flores, das ruas da Eira, das Oliveiras, Nova, do Cimo,

da Flor…

Tanto recanto.

E a água faz-se ao ribeiro.

Aí está, que chega Ti António dos Santos, marido da

Ti Rosa. Vem lá de baixo, do Vale de Trás da Eira com as

seis cabritas, pelos quintais, pelos caminhos privados que

acabam por ser do usufruto de todos.

Na última etapa da tarde, Ti António tem de vencer

uma pequena mas íngreme subida por uma vereda de xisto

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Page 33: Açor - Coração da castanha na Maúnça

em cascabulho, que vem dar mesmo à porta do forno onde

a mulher e a cunhada oferecem os derradeiros afagos ao

pão antes de o levarem à fornalha. As cabritas cumprem a

curta transumância com passos elásticos, enérgicos, rumo

à mesma loja de sempre.

No forno, Ti Rosa molda a massa, dando-lhe uma

forma alongada. A irmã Generosa não aprecia, e não cala

o desconsolo porque, diz, assim o pão “ganha mais

côdea”.

— Para mim, é redondo —, sentencia, sem largar o

sorriso.

“Quando amasso o pão é que eu faço umas cruzes e digo: ‘Nosso Senhor te acrescente e que te livre de má gente’. Depois, quando a gente o mete para o forno, a gente sacode os panais e diz: ‘Ergue-te pão, que os panais erguidos estão, tanto cozas tu no forno, como a graça de Deus pelo mundo todo. A partir e a comer esteja sempre a crescer’”

Ti Rosa

Pastores ainda.

Tanta cabra nos idos do meio do século XX. Tanto

pastor. Juntavam-se os rebanhos na Eira dos Três Termos

e noutras assentadas serranas. Às vezes eram vinte e tal

pastores na mesma assentada.

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Page 34: Açor - Coração da castanha na Maúnça

— Aquelas serras… estava tudo coberto de gado até à

Enxabarda. E depois, como é que fazíemos para apartar as

cabras? —, lança agora Ti António Rodrigues, que logo

entrega resposta: — Elas, quando era à tarde, cada uma ia

ao seu destino, mas às vezes ainda iem umas c’aquelas e

c’as outras. Uma vez, andávemos além, na serra,

ajuntáme-nos c’os da Partida e do Vale da Figueira. E

depois, à noite, para apartar o gado? Era chibos c’as deles

e os deles c’as nossas!... Uma vez, uma irmã minha teve

de ir lá buscar dois cabritos que forem c’as deles, ao Vale

da Figueira, ali atrás da serra —, descreve Ti António

entre sorriso e riso.

As barreiras que esta gente subia e descia… só

barreiras, barreiras… com tudo à cabeça. Poucas ou

nenhumas juntas de bois, uma mula ou outra. As eiras de

socalcos feitos com desafiadoras paredes de xisto faziam

do corpo o escravo de toda a carga.

No topo da encosta fronteira ao Açor, a lomba do

Barroco do Inferno não dá só chão de pasto. É também

berço de um mistério. É lá que fica a Eira dos Três

Termos, assim chamada porque ali se separavam os

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Page 35: Açor - Coração da castanha na Maúnça

concelhos do Fundão, Castelo Branco e São Vicente da

Beira.

Por ali, havia um pedaço de terra onde, desde que a

memória é memória, não crescia qualquer vegetação que

não fosse erva rasa ou uma ou outra flor silvestre. Esse

torrão tinha a forma de um corpo humano deitado.

Diz o falar da gente que, no tempo das invasões

francesas, nos idos de Fevereiro de 1811, as tropas do

general Foy terão matado e enterrado ali duas donzelas.

Era esta a segunda de duas expedições organizadas pelas

forças de Napoleão para levar socorros ao marechal André

Massena… que nunca os viria a receber, derrotado no

Buçaco e nas Linhas de Torres Vedras. Desde então, no

local onde se diz que as donzelas foram barbaramente

mortas e sepultadas, só nascia erva, estranhamente

contornada por vegetação muito densa e alta.

— Onde enterrarem as raparigas nunca lá havia mato.

Agora, quando lá andarem a pôr as torres, passarem c’as

máquinas de cima daquilo… e fôremos lá a ensinar, a

avisar para lá não passarem… —, informa, desgostoso, Ti

António. O seu irmão, o Ti José Borges, confirma que o

mal foi feito quando foi feita a instalação dos

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Page 36: Açor - Coração da castanha na Maúnça

aerogeradores. — As máquinas andarem a moer aquilo

tudo, por causa dos lumes, para não se aproximarem das

eólicas. Já se não vê lá nada.

Barbaramente se mata também uma lenda, uma

memória, um pedaço do imaginário.

“A bola é de ferro a cavalo no marteloO martelo é de sola a cavalo na bolaA bola é redonda a cavalo na pombaA pomba é branca a cavalo na trancaA tranca partiu, puta que a pariu”

Ti Rosa

Mas não se mata um povo.

No Açor as famílias sempre foram numerosas. Ti

Georgina Rodrigues, 82 anos, viúva de Ti Zé Silveira, teve

sete filhos, de onde lhe vieram já catorze netos e seis

bisnetos.

— Já tem muito quem conte —, diz Ti Laurinda, sua

cunhada, sentada à mesa na cozinha, a jantar com Ti

António. Ele come com apetite umas costeletas com

batatas fritas. Ela passa a colher numa sopa de feijão

vermelho com couves.

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Page 37: Açor - Coração da castanha na Maúnça

Laurinda é também mulher de muito ofício: se hoje

está como comerciante, antes foi costureira, cabeleireira,

fiandeira, pastora, fez peças para automóveis, motas e

aviões, trabalhou na mesma fábrica dos queijos onde o

marido já se encontrava, em Besançon, e foi até

“enfermeira do povo”.

— Dava injeções a toda a gente que precisasse cá no

Açor —, recorda, sorrindo.

Tudo por falta de posto médico no Açor, que nunca o

teve. A propósito de raras medicinas: quando uma grávida

não arranjava parteira no povo ou um doente precisava de

cuidados médicos, eram levados em padiolas, por quatro

homens, até à Enxabarda, vale abaixo. Só a partir dali um

carro os levaria até ao Fundão. Ponto.

Ti Georgina faz companhia ao irmão e à cunhada, e

aproveita o bafo quente projetado através do espelho fusco

do recuperador de calor.

— … e não tenho cá ninguém. Estou sozinha —,

desabafa. Sim, o Açor é também uma aldeia sangrada de

gente, como tantas outras.

— Agora metade das casas já não tem ninguém. Agora

nem de dia se encontra quase já ninguém no povo. No

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Page 38: Açor - Coração da castanha na Maúnça

sábado e no domingo é que se encontra mais muita gente.

Dos novos já cá não há nada. É já só os velhotes, mais

nada —, acrescenta Ti Laurinda com um suspiro, costas

dos dedos sob o queixo.

— Na Suíça é capaz de haver quase tanta gente de cá

como há aqui. Ui… —, atira Ti António, num repente,

logo apoiado pelas cunhadas: “Se fossem a contar todos…

Os seus já são alguns vinte, os meus são alguns… três e

dois, cinco, seis…”, conta Laurinda fitando Georgina.

A Mostra de Artes e Sabores da Maúnça acaba por ser

um dos momentos em que mais gente se vê no Açor. Há

sempre quem goste de uma cervejinha… Ai…

— Nesses dias não se bebem cervejas. Isto é

tradicional. É só vinho, água, licores, aguardentes e

jeropiga. Cerveja não —, informa Ti Laurinda, secundada

pelos irmãos António e Georgina. Seja.

E como eram as jornas, antigamente?

Ti Laurinda: “Não eram como agora, em que a gente,

nascia o sol, tinha que estar à porta do patrão, e à noite

punha--se o sol e ainda a gente andava lá nos barrocos. E

chegava a gente a casa de noite. Agora já não se acorda

cedo. Ali o X’quim da Conceição ainda passa aí tanta vez

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Page 39: Açor - Coração da castanha na Maúnça

com o trator, ainda é de noite e não se vê nada… e aí vai

ele com o trator, nem sei pra quê…”

Ti Georgina: “Já não é como era em primeiro. E não

era só aqui. Ia a gente trabalhar para a Enxabarda ou ali

para São Martinho, por essas terras, a pé.”

Ti Laurinda: “Em primeiro era pior. Agora, só meia

dúzia de velhotes é que fazem isso, porque os novos

fiquem na cama até ao almoço.”

Ti António: “Muitos também a fazem assim porque

não querem trabalhar. Há tantos a quererem trabalhar e

não trabalhem…”

Ti Georgina: “Então, antes assim. Enquanto cá andem,

gozem a vida.”

“A abelha agora anda a trabalhar nela. É um mato rasteiro que floresce no outono. Dá uma hástia que leva tudo em flor por aí acima. Eu até tenho lá colmeias feitas deste de agora, mas é um mel que é muito ruim de apartar, é ruim de sair da cera. No ano passado nem o tirei: fiz aguardente”

Ti António Rodrigues Almeida, sobre a magoriça

“Em primeiro” é como quem diz “antigamente”.

No Açor, em primeiro, tudo era mais difícil, mais

longe, mais frio, mais pobre, mais pesado, mas também

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Page 40: Açor - Coração da castanha na Maúnça

mais puro, mais genuíno, mais rijo, mais partilhado, mais

vivido e enraizado.

Pequenos momentos de então são ainda agora

recordados como coisa acontecida há bocado.

Sentada numa pequena arca nova, junto ao calor da

lareira de cassete, Ti Georgina faz disso a prova, já o

jantar vai no fim e longe ainda vem qualquer telejornal:

— Tó, tu ainda conhecestes o primo Henriques. Mas

não o conhecestes enquanto cá estava a servir, em casa da

avó Paulina, e vinha cá dormir uma mulher ali dos lados

da Malhada Velha. Vinha do mercado e vinha cá dormir.

Depois faziem o queijo e punhem-lhe o queijo assim à

frente. Ela ia e, bumba, uma talhada grande. E dizia assim:

“Toda a vida me aborrecerem talhadas pequenas.” Dizia

então assim o primo Henriques, devagarinho: “Para tu a

comeres grande, não comemos nós nada.”

Ti Georgina aponta o indicador para o aparelho de tv,

desafiadoramente desligado perante o ecrã do recuperador

de calor encaixado na parede oposta, ao lado do fogão de

gás e do exaustor metalizados: “Depois que vierem assim

estes caixotes, acabarem serões, acabarem tudo. É só olhar

só para isto. Em primeiro era só as cozinhas

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Page 41: Açor - Coração da castanha na Maúnça

pequenininhas, ajuntava-se tudo, ai se bebia o pinguinho

do vinho, ali se comiem uns figos secos, abrunho, bebia-se

a aguardente, umas azeitoninhas, um bocadinho de pão…

era uma maravilha.

— Era uma miséria! —, ri-se Ti António, que não se

esquece de outra coisa mais que se fazia nessas noites

antigas frente à ala das pinhas bravas: “Fiava-se o

linho…”

Sim, era à lareira, pela noite dentro, que a vida

doméstica mais acontecia no Açor. O lume feito no chão,

corpos cheios de fumo, peito, joelhos e cara a escaldar e

costas arreganhadas de frio. E o caniço aproveitando.

Essas lareiras foram centro de muitos mundos.

Dois deles: o linho e o seu inevitável fiar.

“Ó linho chega-te à rocaÉ aí o teu lugarEstá lá dentro um passarinhoEstá sempre, sempre a cantar”

Ti Rosa

Ti Generosa já limpou a borralheira no forno. Deixou

as brasas à boca do dito. Desafiada pelo fio da conversa,

demonstra que sabe de cor os chamados “sete martírios do

linho”.

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Page 42: Açor - Coração da castanha na Maúnça

Entre risos, a irmã de Ti Rosa acrescenta vários pontos

à lengalenga de tarefas a que a flor sempre obrigou até

chegar a ser toalha, camisa, manta, lençol, colcha:

“Semear, mondar, regar, arrancar, ripar, levar para a água,

tirá-lo da água, pôr a secar, maçar, tascar, espadanar,

acedar, estrigar, fiar, levá-lo para dobadoura, ir para o

regadilho, lavar as meadas, tecer...”

— Até as mantas irem para a cama, havia muito

trabalho por trás. Antigamente, as mulheres tinhem

sempre que fazer e aproveitavem muito o tempo. Mesmo

que se sentassem na rua, aí, umas ao pé das outras, era

sempre a trabalhar, sempre a dar os seus pontinhos, a

fiar... Era no tempo de outubro até novembro, porque

ainda não estava tanto frio —, aclara Ti Generosa.

Ti Rosa é de uma geração que ainda o semeou.

— Obrei-o todo, ainda o meti no tear, ainda teci aqui

na loja do meu pai, ainda fiz mantas e lençóis. Eu é que

teci. Eu era tecedeira. Eu, no rancho, não danço nem

canto, é com uma roca que estou —, aponta. A roca era

apenas um dos instrumentos, porque depois ainda havia o

tear, a dobadoura, o regadilho, a espadana, o cortiço, a

lançadeira, a maça, a tasca…

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Page 43: Açor - Coração da castanha na Maúnça

Ti António, Ti Laurinda e Ti Georgina fazem contas

aos teares que já laboraram no Açor. E eram muitos,

porque “em primeiro” quem passasse nas ruas só ouvia

aquele Táca-táca-Táca-táca constante dos teares abrindo e

fechando as bocas para deixar passar as lançadeiras.

Na cozinha de casa, as vozes entrecruzam-se numa

profusão de nomes aparentemente enrodilhados no fundo

do passado e subitamente trazidos à tona, para respirar: a

Maria Rosa tinha um, a Conceição também tinha, a Maria

Emília tinha, a Ti Patrocínia, lá em cima, a Ti Evangelina,

a Ti Delfina, a Ti Deolinda, a Ti Clementina e a Ti

Benvinda. E a própria Ti Laurinda tecia no tear que era da

mãe.

— Dez.

“No tempo que eu era criançaBrincava eu sem maldadeBrincava, agora não brincoPorque não tenho vontadeNão tenho contas a darEstou na minha liberdade”

Ti Rosa

Liberdade… condicionada, claro está. Pelo menos nos

namoricos.

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Page 44: Açor - Coração da castanha na Maúnça

— Não era como agora —, ri-se Ti Georgina. — Era à

janela e, às vezes, à porta. O rapaz tinha que pedir aos pais

dela se podia entrar em casa. Só nos bailes é que se

abraçavem um ao outro. Mais nada. Não era como agora,

que andem aí agarrados em todo o lado. Às vezes saíemos

à missa, à Enxabarda, ao Castelejo.

E era então, pelo caminho, que algum abraço se dava.

Em primeiro, todos os domingos se dançava, pela tarde

ou já à noite, no Largo do Chafariz, no Terreiro da Capela

ou no Terreiro Largo.

— E a gente, as raparigas, não ia lá ter assim, sem

mais nem menos. Iem os rapazes a pedir aos pais, e alguns

não as deixavem ir… —, explica Ti Georgina.

— … para de dia não era preciso ir pedir aos pais. E

para de noite, se fossem sem autorização, chegavam lá os

pais e davem um par de trolhas às filhas e, ala, mandá-las

rumo a casa —, interrompe o irmão, prosseguindo: —

Quem animava a malta era o Manel Ferreiro. E também

vinhem uns tocadores de fora que eram cegos. Então e eu,

com o realejo? Tanta dança que fiz a tocar o realejo... —,

completa, subitamente saudoso.

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Page 45: Açor - Coração da castanha na Maúnça

Levantada assim uma memória, como a um coelho

espantado, saído de um tufo espesso de giesta, salta o

sorriso ao antigo resineiro e, com ele, engelham-se as

faces onde desponta uma barba curta, rala e alva.

— Dançávemos em qualquer lado se viesse um

tocador mesmo durante a semana. Então e na minha casa?

Tanto que se ali dançou já eu estava casada. Era nos

domingos à noite —, acrescenta Ti Georgina, molengando

as mãos numa faca de cabo preto, fazendo girar cabo e

lâmina sobre a toalha de plástico, no topo da mesa. As

costas voltadas ao televisor ainda mudo. A cunhada

completa-lhe a descrição:

— Dançar, dançava-se! Quando ia o sol alto, pelas

quatro da tarde, já a gente andava aí a correr e a dançar,

até às tantas da noite.

A casa de que fala Georgina, forrada de xisto, é hoje

“A Minha Casa”, o museu do lugar. Fica na Rua de São

Jacinto, de frente para o muro baixo da Rua do Souto, e lá

estão guardadas muitas das memórias do Açor. Quem

quiser a chave, que vá pedi-la ao Isidro, genro de Ti

Generosa.

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Page 46: Açor - Coração da castanha na Maúnça

Mas, namorar, namorar com aqueles olhares e palavras

tolas, era mesmo no caminho para a missa na Enxabarda

ou no Castelejo. Só então, libertos das grilhetas paternas,

moços e moças faziam a troca das emoções. Descalços,

eles e elas, e com os sapatos à cabeça ou, atados pelos

cordões, ao ombro. Calçavam-se à chegada.

— Não tínhemos cá missa e, aí, a gente já palavreava

um bocadito com os rapazitos. A gente ia contentinha,

todos os domingos. Íemos pelo Caminho da Ribeira, toda

a malta a saltar e a rir. Os da Enxabarda chamavam-lhe a

Ribeira do Açor, mas aqui a gente chama-lhe só “ribeira”

—, relata Ti Laurinda.

Em primeiro havia no Açor ranchos de vinte ou trinta

raparigas e de uns vinte ou trinta rapazes. A mulher de Ti

António atualiza a estatística aos que têm “solteiro” como

estado civil:

— Agora há cá só um rapaz com vinte anos e outro

que faz agora dezoito. E há mais um que já tem quase

cinquenta. O resto está tudo fora.

Mas andam por aí falando de namoriscos? A forneira

Ti Rosa conta-vos sobre isso uma estória, rematada com

uma gargalhada aberta, contagiante, e um bater das mãos

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enfarinhadas no avental: “Uma vez fomos à Enxabarda, às

Endoenças. Eu vinha de lá mais o meu [futuro] marido a

falar, pelo caminho acima, sem mal nem um, e o meu pai

apareceu e agarrou-se assim num guarda-chuva e veio

atrás de mim com ele para me dar. Não sei se me deu nem

se não.”

“Uma rosa branca estendida, vai ao dono, pousa-se-lhe arriba. Enquanto o dono vai e vem, a rosa branca aberta o tem. O que é?Era uma presa de água, que tinha um torno. Nós levantávemos-lhe um pau, que era para abrir o buraco à presa. Enquanto o dono vai e vem a regar, a presa está com o buraco aberto”

Ti Rosa

A história continuaria, se nela coubessem os treze

licores, as aguardentes e os pratos típicos da Ti Marcelina,

as dores do marido, o Ti José Mouco, a epopeia dos

ranchos nos “quintos” pelas charnecas da Lardosa ou as

memórias amargas da quase octogenária Ti Maria Martins

e os seus combates de infância e juventude, cântaro à

cabeça e regador na mão, Rua do Cimo acima até à da

Saladinha.

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Aqui faltam muitas das memórias que o Açor foi

vendo estampadas em verso nos três livros do Ti José

Borges Rodrigues. Falta aqui o Açor inteiro, porque aqui

não cabe, mesmo pequeno como parece ser.

O pão das irmãs Rosa e Generosa, esse, já cresceu e

tostou no estômago rubro do forno. Ficou alto, alargou na

cintura. Saiu portelão...

Soalheira, outubro, 2012

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