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Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa Processo: 1795/07.6GISNT.L1-
9
Relator: FÁTIMA MATA-
MOUROS Descritores: INFANTICÍDIO
HOMICÍDIO
QUALIFICADO
CULPA
ESPECIAL
CENSURABILIDADE
ESPECIAL
PERVERSIDADE
IMPUTABILIDADE
DIMINUIDA
Nº do Documento: RL Data do Acordão: 11-03-2010 Votação: UNANIMIDADE Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL Decisão: PROVIDO
PARCIALMENTE
I – O crime de infanticídio, p. e p. no artº 136.º do Código Penal pressupõe que a morte
do filho advenha de perturbação da mãe provocada pelo parto.
II - Não obstante a Arguida ter matado a filha logo após o parto, decorrendo da
factualidade provada que ela já tinha anteriormente ao parto decidido que assim
procederia, tem-se por claramente afastada a subsunção da sua conduta ao tipo criminal
de infanticídio.
III - Fundando-se as circunstâncias qualificativas do crime de homicídio previstas no
artº 132º do Código Penal na especial culpa do agente, não são as mesmas taxativas ou
de funcionamento automático, antes constituem exemplos-padrão, exigindo-se sempre
que elas exprimam, no caso concreto, a especial censurabilidade ou perversidade do
agente, manifestada na prática do facto em determinadas circunstâncias.
IV - Mesmo nos casos em que se referem a um maior desvalor da conduta (por
exemplo, no caso de homicídio cometido na pessoa do pai ou do filho), não é essa
circunstância que, por si, determina a qualificação do crime, mas a especial
censurabilidade ou perversidade do agente, isto é, o especial tipo de culpa.
V - A ocorrência dos exemplos-padrão não determina, todavia, por si só e
automaticamente, a qualificação do crime; assim como a sua não verificação não
impede que outros elementos possam ser julgados como qualificadores da culpa, desde
que sejam substancialmente análogos aos legalmente descritos.
VI - Essencial, é que, as circunstâncias em que o agente comete o crime revelem uma
especial censurabilidade ou perversidade, ou seja, uma censurabilidade ou perversidade
distintas (pela sua anormal gravidade) daquelas que, em maior ou menor grau, se
revelem na autoria de um homicídio simples
VII - O facto ter sido praticado contra vítima especialmente indefesa e o facto de ter
causado a morte (com asfixia da recém-nascida, nomeadamente através da introdução
de um saco de plástico na cabeça e atado na zona do seu pescoço), constituem
circunstâncias que merecem a qualificação de graves.
VIII - A estes elementos de facto relevados no acórdão recorrido como factores de
revelação de especial censurabilidade, acresce a qualidade de ascendente da arguida em
relação à vítima, integradora do exemplo-padrão previsto logo na alínea a) do n.º 2 do
artº 132.º
IX – Porém, a especial censurabilidade a que se reporta o crime de homicídio
qualificado exige um completo domínio do agente para se determinar de acordo com a
norma e para avaliar cabalmente a ilicitude do facto. Só deste modo a culpa poderá ser
tida por especialmente censurável; ou seja: este tipo de crime não pode ser cometido
num estado de imputabilidade diminuída, pois, neste caso, a culpa não excede o grau da
mera censurabilidade.
X - A arguida agiu debaixo de enorme sofrimento físico e psíquico, sofrendo dores
agonizantes e dando à luz uma criança no termo do período de gestação, sem contar
com o mais leve apoio médico ou mesmo humano. Se não foi por isso que se viu
determinada à prática dos factos, não é menos certo, porém, que o estado de perturbação
que necessariamente a envolveu, pesou, inevitavelmente, no grau de culpa concreta com
que actuou. Não pode, por isso ser ignorado por um Direito Penal em que aquela
constitui figura central.
XI - Neste contexto, falar de especial censurabilidade seria ignorar que o crime de
homicídio qualificado pela especial censurabilidade não pode ser cometido numa
situação de imputabilidade diminuída. Ainda que essa inimputabilidade seja meramente
relativa e circunstancial, e não inibidora da sua capacidade de avaliação da ilicitude do
facto e se determinar de acordo com a mesma, como no caso em análise. A decisão
recorrida deve, portanto, ser corrigida quanto à qualificação jurídica do crime praticado
pela recorrente, que é o de homicídio simples, p. e p. no artº 131.º do Código Penal.
Acordam, em conferência, na 9.a Secção (Criminal) do Tribunal da Relação de Lisboa:
I – Relatório
I. - No processo comum NUIPC 1795/07.6GISNT, na sequência da sua submissão a
julgamento, por sentença proferida em 23 de Junho de 2009, no Juízo de Grande
Instância Criminal Lisboa-Noroeste, foi a arguida condenada
a) como autora material de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos artigos 131º
e 132º, nº 1 do Código Penal, na pena de 12 anos e 3 meses de prisão;
b) como autora material de um crime de profanação de cadáver, p. e p. pelo artigo 254º,
nº 1, al. a) do Código Penal, na pena de 6 meses de prisão;
c) em cúmulo jurídico destas penas, foi a arguida condenada na pena única de 12 anos e
6 meses de prisão (artigo 77º, nºs 1 e 2 do Código Penal);
II – Inconformada com a mencionada decisão, a arguida interpôs o presente recurso,
onde pugna pela anulação do julgamento e sua consequente repetição ou, a revogação
da condenação e substituição por outra que, pelo crime p. p. no art. 136.º do CP a
condene em pena não superior a cinco anos de prisão suspensa, extraindo da sua
motivação as seguintes conclusões:
1ª A recorrente impugna o douto aresto recorrido, tanto nas suas conclusões de facto,
como de Direito, nos termos do artº 410 nº 1, do CPP.
2ª No que se refere à matéria de facto:
Em geral, a recorrente discorda que hajam sido dados como provados os factos que
passa a enunciar, mencionando as provas que, em seu entender, justificam decisão
distinta [artigo 412º, n.º 3 do CPP], mas que no essencial se resumem à circunstância de
a arguida (i) não aceitar que tenha decidido desde logo livrar-se do nascituro, matando-
o após o parto, facto descrito no artigo 3º do elenco dos factos provados (ii) que haja
sido ela a dar um nó no saco de plástico e colocando-a dentro de mais sacos de plástico,
factos referidos no artº 16 (iii) que haja escondido a recém-nascida num armário, com o
intuito de a fazer desaparecer, factos referidos no artº 17º do elenco de factos provados
(iv) que tivesse conhecimento que a recém-nascida estivesse viva após o parto.
3ª A recorrente consigna que a única pessoa que depôs em audiência ter visualizado a
cena pós-parto de que resultaram os efeitos de que curam os autos foram: a própria
arguida [que em discurso confuso acaba por admitir, por não se recordar, vários factos
como possíveis], a testemunha B… [que apenas visualizou a arguida com grandes
hemorragias tendo-a conduzido ao Hospital]; não havendo testemunhas presenciais, a
condenação baseou-se unicamente nas declarações da arguida e da testemunha atrás
referida.
4ª Ocorreu erro notório na apreciação da prova [artigo 410º, n.º 2, alínea c) do CPP],
quando se valorou como depoimento, relevante o de B… quando há todo um conjunto
de factores que evidenciam a sua não credibilidade e as contradições manifestas do seu
testemunho em relação ao envolvimento da arguida recorrente: (i) comportamento no
caso é de desconhecimento da situação (ii) depoimento foi de tal forma confuso que o
Mmo Juiz, não obstante a testemunha já haver sido inquirida, ordenou que a mesma
aguardasse fora da sala de audiência, sem abandonar as instalações do Tribunal (iii) A
Inspectora C… refere, em contradição flagrante com o depoimento de B…, afirmando
que na primeira vez que se deslocaram à casa do Sr. B… estavam acompanhados por
este, que lhes disse que o quarto onde posteriormente veio a ser encontrado a recém-
nascida, não era muito utilizado, sendo um quarto só de arrumos
(2009051917245972864001495764_04:35); a propósito da fundamentação do artigo 22,
refere que o companheiro da arguida, b… ainda a transportou para a cama,
comunicando-lhe que ia chamar o 112, no entanto, os Inspectores da PJ não referem a
existência de manchas de sangue na cama [apenas visualizando-se a fls 64 uma toalha]
mas apenas no chão.
5ª. Ocorreu erro notório na apreciação da prova [artigo 410º, n.º 2, alínea c) do CPP],
quando se desvalorizou como único depoimento presencial relevante no que se refere à
morte intencional da recém-nascida: as declarações da arguida foram tidas como
credíveis em relação a muitos dos factos essenciais dos autos, pelo que se afigura
carecer de fundamentação especificada a razão pela qual se cinde a credibilidade da
arguida que vale para provar uns factos e já não vale para provar outros.
6º A arguida não aceita que tenham sido dados como provados alguns factos, indicando
os meios de prova que justificam decisão diversa, ocorrendo, insuficiência para a
decisão da matéria de facto provada [artº 410º nº 2, a)]: Facto 3 [Meio de prova: (i)
20090602100619728641495764_04:33]; Facto 5 [Meio de prova:
20090602100619728641495764_06:21 a 08:12; acresce o depoimento da Sra.
Inspectora C… ao afirmar que, posteriormente ao sucedido, veio a ter conhecimento que
a arguida tinha casa própria (2009051917245972864001495764_ 06:47); Facto 15 [a
arguida ao prestar declarações, afirmou (i) que a recém-nascida não tinha chorado após
o parto (15:18) (ii) não teve qualquer reacção (iii) estava roxa, vermelha. Meio de
prova: o já referido e ainda o facto de a arguida afirmar que tentou soprar para a cara da
recém-nascida, cortando-lhe de seguida o cordão umbilical, e a mesma continuava sem
reacção (15:58 e 16:36). Facto reafirmado pela arguida ao referir não saber qual a
medida do cordão umbilical quando o cortou, na esperança que a recém-nascida tivesse
alguma reacção, o que não aconteceu (56:07); Facto 16 e 17: meio de prova:
20090602100619728641495764_17:12: referindo que foi buscar os sacos de plástico
mas não se lembra de ter dado os nós à volta do pescoço. Refere o facto de estar em
pânico, sentir-se muito débil, mas não se recordando de dar nós (17:30); Facto 28: Não
se aceita, que tenha sido considerado provado que a recém-nascida, nasceu com vida,
tendo tido respiração extra-uterina, pois a autópsia foi efectuada 48 horas após o óbito
(fls 35 a 38 dos autos), e baseada no de Docimásia hidroestática positiva e óptica,
devendo o primeiro dos métodos ser efectuado 24 horas após a morte, facto que não
ocorreu; Facto 30: não se aceita que fosse a ora recorrente quem tivesse atado um saco à
volta do pescoço da recém-nascida, pois que nenhuma prova foi feita em audiência
relativamente a esta factualidade. Facto 32: não se aceita que a intenção da arguida
fosse desfazer-se posteriormente do cadáver, fazendo-o desaparecer e não mais ser
encontrado: Meio de prova: 20090602100619728641495764_ 18:28]
7ª. No que se refere à matéria de Direito:
O aresto recorrido enferma de erro de Direito, por violação na aplicação do nº 2 do artº
374º do CPP, devido a inadequado acatamento do dever de formulação do exame crítico
das provas, já que, a propósito da especial censurabilidade ou perversidade da conduta
da recorrente – elemento essencial para a caracterização do tipo incriminador – não
especifica quais os meios de prova que permitiram, em concreto, determinar tal dedução
para enquadramento no tipo ilícito.
8ª A recorrente discorda quanto á qualificação do crime:
O aresto recorrido enferma de erro de Direito, quando considera estarem reunidos factos
integrantes dos tipos incriminadores previstos nos artigos 131º e 132º nº 1 do Código
Penal, que assim violou, pois que não está provado a especial censurabilidade ou
perversidade do agente.
Para a verificação da especial censurabilidade da culpa do agente na prática do crime de
homicídio, há necessidade de avaliar a sua conduta global; ora, a recorrente não previu,
não estava obrigada a prever, nem jamais quis, nem quereria a morte da recém-nascida.
Jamais cometeria o crime de infanticídio, se pudesse prever um resultado de tal forma
gravoso.
Cremos estar perante o tipo previsto no artº 136º do Código Penal, pois que (i) tentando
em estado de pânico agravado tentou socorrer a recém-nascida (ii) como a recém-
nascida não reagiu, a recorrente supôs que a mesma estivesse sem vida.
9ª Quanto á espécie e medida da pena, a recorrente discorda e reitera o seguinte:
Somos levados a concluir, com o devido respeito, pelo crime de infanticídio, sendo a
pena aplicada sempre suspensa na sua execução.
De acordo com o disposto no artº 50º do Código Penal, estão reunidos os pressupostos
de tal medida alternativa à prisão, e nada obsta à sua aplicação, ainda que impondo o
tempo máximo de suspensão legalmente previsto [ (i)Do ponto de vista da integração
social da arguida, que a arguida não tem filhos; completou o curso de Linguística na
Universidade Nova de Lisboa, dá explicações de Português e Inglês sendo ainda
operadora em call center (ii)Do ponto de vista do seu comportamento pretérito, que, não
tem registo de antecedentes criminais].
III - Respondeu o MP, salientando a sua discordância com a recorrente e pugnando pela
manutenção da condenação, entendendo que:
- A argumentação do recurso em sede de impugnação de facto se limita a pôr em causa
a livre convicção do julgador quanto a tal matéria, e concluindo que a fundamentação
judicial para considerar os factos como provados é clara, inequívoca e exaustiva,
espelha a decisão recorrida, e ao invés do ora alegado, a real aplicação do disposto no
artigo 127º do Código de Processo Penal, ou seja, o julgamento segundo as regras da
experiência e a livre convicção.
- Se extrai claramente, da matéria de facto dada como provada na sentença ora
recorrida, que não se verifica o vício de erro notório que a recorrente aponta à decisão
proferida sobre matéria de facto.
- Também quanto a existência de contradição insanável da fundamentação, não assiste
razão à arguida.
- Face aos factos dados como provados bem andou o Tribunal a quo ao qualificar o
crime de homicídio praticado pela arguida.
- Face à moldura penal do crime, nunca a pena poderia ser suspensa, porquanto
legalmente inadmissível, considerando a pena aplicada correctamente doseada em
função da culpa demonstrada pela arguida e demais elementos atendidos.
IV – O Exmo. Procurador-Geral Adjunto nesta Relação nada acrescentou à resposta
apresentada pelo MP na 1ª instância, com a qual concordou.
V – Colhidos os vistos legais, cumpre agora apreciar e decidir.
II – Fundamentação
1. Conforme entendimento pacífico dos Tribunais Superiores, são as conclusões
extraídas pelo recorrente, a partir da respectiva motivação, que operam a fixação e
delimitação do objecto dos recursos que àqueles são submetidos, sem prejuízo da
tomada de posição sobre todas e quaisquer questões que, face à lei, sejam de
conhecimento oficioso e de que ainda seja possível conhecer.
Mediante o presente recurso o recorrente submete à apreciação deste Tribunal Superior
as seguintes questões:
I) impugnação da matéria de facto dada como provada na sentença recorrida;
e consequentes
II) alteração da qualificação jurídica do crime praticado de homicídio para infanticídio.
III) Por último, sustenta ainda a recorrente, a diminuição da pena e sua suspensão.
2. Passemos, pois, ao conhecimento das questões alegadas. Para tanto, vejamos, antes
de mais, o conteúdo da decisão recorrida, no que concerne a matéria de facto.
O Tribunal a quo considerou provados os seguintes factos:
1. A Arguida e B…, mantiveram um relacionamento amoroso iniciado no ano de 2001,
tendo vivido um com o outro em condições análogas às dos cônjuges entre o ano de
2006 e o ano de 2007, na habitação sita em Av…, Rinchoa.
2. Por cerca do mês de Maio de 2007 a Arguida suspeitou que estava grávida, o que
confirmou nesse mês, através do resultado positivo de teste de gravidez.
3. Pensou em não contar a ninguém esse seu estado, passando a ocultá-lo, bem assim
decidiu livrar-se do nascituro, matando-o após o parto.
4. Em consonância com tal resolução, nunca se dirigiu a um médico ginecologista ou
obstetra, durante toda a gravidez.
5. Nem nunca comprou quaisquer artigos próprios para o seu estado de gravidez, para
si ou para o nascituro.
6. Tendo-se esforçado durante os meses de gravidez para que a mesma não fosse visível
ou perceptível a terceiros, nomeadamente ao seu companheiro, à sua mãe e demais
familiares.
7. O que efectivamente conseguiu, inventando que estava com um problema de saúde de
cariz ginecológico (tumor) e que carecia de ser submetida a tratamentos de
quimioterapia, para o debelar.
8. Também convenceu o seu companheiro e familiares que esse problema de saúde
tinha como consequência fazer inchar a zona abdominal e baixo-ventre, de modo a que
não estranhassem o aumento do seu volume corporal.
9. Logrou, desse modo, dissimular a gravidez, durante todo o respectivo tempo.
10. No dia 15 de Novembro de 2007, a Arguida começou a sentir dores de barriga, pelo
que, a fim de obter algum alívio, foi deitar-se, após tomar paracetamol.
11. Por cerca da meia-noite as dores intensificaram-se e a Arguida entrou em trabalho
de parto.
12. Uma vez que estava deitada no quarto de dormir com o seu companheiro e não o
querendo acordar e alertar, a mesma dirigiu-se para a casa de banho.
13. Fechou a respectiva porta e, constatando que estava a perder sangue e líquido
amniótico, agachou-se dentro da zona do duche. 14. Cerca das 03H30 de 16 de
Novembro de 2007 a Arguida pariu, tendo nascido uma criança de sexo feminino, com
o peso de cerca de 3,650 kg e com o comprimento de 54 cm.
15. Imediatamente após o nascimento, a Arguida dirigiu-se à cozinha e, com o auxílio
de uma tesoura, cortou o cordão umbilical que a unia à recém-nascida.
16. De seguida foi à dispensa buscar sacos de plástico, enfiou um saco de plástico na
cabeça da recém-nascida, dando um nó no mesmo, na zona do pescoço desta, e
colocou-a dentro de mais sacos de plástico.
17. Após escondeu-a num armário existente no outro quarto de dormir da casa que
habitava, com o intuito de, posteriormente, a fazer desaparecer.
18. Terminada a tarefa de esconder a recém-nascida, a Arguida deslocou-se para o
quarto onde o seu companheiro permanecia a dormir.
19. Contudo, porquanto a mesma começou com fortes hemorragias, teve de acordar o
companheiro, que a ajudou a dirigir-se à casa de banho.
20. Já na casa de banho, sentou-se na sanita e permaneceu aí o tempo suficiente para
que a placenta fosse expelida, o que veio a ocorrer.
21. Posteriormente a Arguida começou com hemorragias mais fortes, tendo desmaiado.
22. O seu companheiro transportou-a de volta para a cama e comunicou-lhe que ia
chamar o «112», para a transportarem para o Hospital.
23. A Arguida ainda lhe disse para não chamar, contudo voltou a desmaiar e o seu
companheiro solicitou o auxílio do INEM, que aí ocorreu e procedeu ao transporte dela
para as urgências do Hospital Fernando Fonseca, na Amadora.
24. Aí chegada, os médicos que a assistiram detectaram que a Arguida acabara de ter
um parto e perguntaram-lhe pela criança. 25. A Arguida respondeu que tinha deitado a
criança num caixote de lixo existente na Rua da sua residência.
26. Após ter regressado do Hospital, no dia 16 de Novembro, o companheiro da
Arguida encontrou o cadáver da recém-nascida, dentro dos sacos de plástico, no
armário mencionado em 17., subsequentemente ao que telefonou para a Polícia, tendo
comparecido agentes no local, que, designadamente, providenciaram pela remoção do
cadáver para o Instituto de Medicina Legal, onde foi autopsiado.
27. A criança que a Arguida deu à luz encontrava-se em termo de gestação, com
ausência de malformações internas ou externas.
28. Nasceu com vida, tendo tido respiração extra-uterina.
29. A sua morte ficou a dever-se a asfixia por sufocação, por oclusão dos orifícios
respiratórios, em consequência da acção da Arguida mencionada em 16.
30. Através de tal acção, designadamente ao enfiar um saco de plástico na cabeça da
recém-nascida e atar o mesmo à volta do pescoço desta, a Arguida, sabendo que ela
nascera com vida, igualmente sabia que desse modo lhe provocaria a morte, o que quis
que sucedesse.
31. Nessa conduta agiu de forma deliberada, livre e consciente, bem sabendo que a
mesma era proibida e criminalmente punível.
32. Ao esconder o cadáver da recém-nascida, embrulhado em sacos de plástico, dentro
de um armário, com vista a, posteriormente, desfazer-se dele, fazendo-o desaparecer e
não mais ser encontrado, a Arguida agiu igualmente de forma deliberada, livre e
consciente, bem sabendo que não estava autorizada a tal procedimento e que essa
conduta era proibida e criminalmente punível.
(da determinação da sanção)
33. Desde há cerca de um ano a Arguida e B… voltaram a viver um com outro, ainda
que de forma concomitante, em virtude de este passar alguns períodos na cidade na
cidade do Porto.
34. A Arguida não tem filhos.
35. Completou o curso de linguística na Universidade Nova de Lisboa.
36. Dá explicações, de Português e de Inglês, em centro de explicações privado, bem
como exerce a profissão de operadora de call center.
37. Em Dezembro de 2007 iniciou consultas de neuropsicologia e de psiquiatria, que
mantém.
38. Não tem registo de antecedentes criminais.
Da relevante para a discussão da causa, não resultou provada a seguinte matéria de
facto:
1. Que a Arguida tivesse conhecimento que a sua gravidez tivesse sido consequência de
relação sexual esporádica, com outra pessoa que não o seu companheiro B….
2. Que o facto de a recém-nascida não ser filha de B… tivesse tido alguma influência
na acção da Arguida que se teve por provada.
3. Que o cadáver da recém-nascida tivesse sido encontrado dentro do armário por
elementos da Polícia Judiciária.
Foi a seguinte a motivação da decisão de facto expendida no acórdão recorrido:
Relativamente à gravidez da Arguida, ocultação desse estado, bem assim ao sucedido
na noite do parto, assentou o Tribunal fundamentalmente nas declarações da própria
Arguida e no depoimento do seu companheiro B…, complementado pelos depoimentos
dos bombeiros que acorreram ao local e do Inspector da Polícia Judiciária D…, que
também aí se deslocou, bem assim pela documentação que infra se referirá.
A Arguida essencialmente assumiu os factos a ela respeitantes tal como se tiveram por
provados, com excepção da intenção de matar a criança após o parto, dizendo a este
respeito que, quando confirmou o seu estado de gravidez, pôs de parte fazer um aborto,
tendo considerado a opção da adopção.
Disse também que após o parto a sua filha não chorou, não reagiu, que não se
apercebeu se estava viva ou morta. Que ficou em pânico, que recorda-se de ter ido à
dispensa buscar sacos de plástico, que não se lembre de dar nós, que admite que tenha
colocado a recém-nascida dentro deles, bem assim que a tivesse colocado dentro de um
armário, num quarto de dormir.
Igualmente não assumiu a sua intenção de, após o parto, desfazer-se do cadáver da
recém-nascida, referindo a esse respeito que não tinha nada previsto, que não ia
conseguir esconder «uma coisa dessas».
B… (que desde há cerca de um ano voltou a viver com a Arguida) relatou o sucedido na
noite em questão, de que se apercebeu apenas quando a sua companheira o acordou
(justificou o facto de não ter acordado por si próprio com a argumentação de que
dormia sob efeito de calmantes e anti-depressivos, que tomara antes de se deitar,
medicação que a Arguida também confirmou, dizendo ainda que o seu companheiro
sofre de depressão crónica e que seria improvável que pudesse ter acordado com
qualquer barulho, porque fechara a porta do respectivo quarto de dormir, bem como
fechara aporta da casa de banho em que teve a criança), queixando-se de dores de
barriga e que tinha hemorragias. Relatou as vicissitudes posteriores, até ao transporte
da Arguida para o Hospital, bem assim o facto de, após ter regressado do Hospital, ter
encontrado o cadáver da recém-nascida, num armário, dentro de sacos de plástico, que
retirou daquele local, tendo disso informado a G.N.R.
Mais disse que ignorava, e que não suspeitava, que a sua companheira estivesse
grávida, bem como ignorava que ela tivesse tido uma criança, que ela nunca lhe disse
isso, pensando que o seu estado e as hemorragias de que sofria se devessem ao tumor
que ela lhe disse que tinha.
Os bombeiros que se deslocaram ao local e que transportaram a Arguida ao Hospital,
E… e F…, disseram que o episódio em questão foi-lhes comunicado pela triagem do
CODU-INEM, para efectuarem o transporte de uma mulher com um mioma e
hemorragia, conforme fizeram.
D…, Inspector da Polícia Judiciária, disse que, pelas 16/17H00 de 16 de Novembro,
deslocou-se a casa da Arguida, na sequência de comunicação da G.N.R. de Rio de
Mouro para a Polícia Judiciária de que, conforme informação do Hospital Amadora-
Sintra, aquela teria tido um parto ou um aborto em casa e que deitara o feto ou o
recém-nascido para um caixote do lixo. Demonstrou conhecimento do estado em que se
encontrava a casa, designadamente da existência de extensas manchas de sangue pelo
chão. Disse que procurou o alegado feto nos caixotes do lixo, não o tendo encontrado e
que, mais tarde, por cerca das 20/21H00 desse mesmo dia recebeu um telefonema da
G.N.R. de Rio de Mouro, informando que o companheiro da Arguida encontrara o
cadáver do recém-nascido. Que voltou à casa por cerca das 22H00, tendo diligenciado
pela remoção do cadáver para o Instituto de Medicina Legal.
Descreveu o seu estado, designadamente que se encontrava dentro de sacos de plástico
e que tinha um saco de plástico a apertar-lhe a cabeça pescoço. Mais referiu que o
cadáver encontrava-se defecado, o que o fez supor da existência de vida extra-uterina.
De fls. 61 a 71 encontra-se a reportagem fotográfica que foi efectuada pela equipa da
Polícia Judiciária à casa em questão, salientando-se a este respeito as fotografias de
fls. 69, 70 e 71, relativamente aos sacos de plástico em que se encontrava o cadáver,
sendo perfeitamente visível que um dos sacos envolve a sua cabeça e encontra-se atado
à volta do pescoço.
A testemunha C…, igualmente Inspectora da Polícia Judiciária, acompanhou D…
aquando da primeira deslocação à casa da Arguida e do seu companheiro.
Ambos disseram também que não viram na casa qualquer vestuário de criança ou
indícios de que os habitantes esperassem o nascimento de qualquer criança, o que aliás
se mostra consentâneo com as declarações da Arguida, bem assim com o depoimento
de B…, que ignorava que a sua companheira se encontrasse grávida.
Quanto ao internamento da Arguida no Hospital Fernando Fonseca ou Amadora-
Sintra, a chefe de equipa do respectivo serviço de urgência, G…, médica
ginecologista/obstetra, e a directora do departamento da mulher desse hospital, H…,
disseram que a mesma entrou, em estado de choque, em perigo de vida, que disse que
tinha uma patologia ginecológica, mas que se concluiu que ela tinha uma laceração de
grau 2 no períneo, que habitualmente só num parto pode ocorrer, pelo que,
confrontada com isso, disse que tinha tido um aborto e que tinha depositado o feto num
contentor de lixo, o que determinou que se accionassem os mecanismos,
designadamente policiais, respectivos.
Relativamente às características da recém-nascida, bem assim às causas da sua morte,
assentou o Tribunal no teor do respectivo relatório de autópsia, de fls. 34 a 38 e no
depoimento da médica ginecologista/obstetra G…, que revelou conhecimento da
normalidade das características que ali são descritas concernentes ao seu
desenvolvimento físico e da sua compatibilidade com parto de termo.
Deste contexto e das regras da experiência comum concluiu o Tribunal pela prova da
vontade ou intenção da Arguida de matar o nascituro e desfazer-se dele, sendo certo
também que do exame pericial psicológico a que foi submetida (cfr. fls. 249 a 273),
concluindo por um funcionamento intelectual global de nível superior, com
processamento cognitivo íntegro, sem indicadores de deterioração mental, não se
encontra qualquer característica própria da Arguida que obstasse a que assim não
procedesse, se não o tivesse querido fazer.
Com efeito, desde que soube que estava grávida a Arguida escondeu a gravidez, com
sucesso (além do seu próprio companheiro, até da sua mãe, I…, com quem contactava
pessoalmente cerca de uma vez por semana e por telefone praticamente todos os dias,
que inclusive disse que chegou a suspeitar que ela estivesse grávida, devido a estar
«muito gorda», mas que perguntou-lhe uma ou duas vezes e que ela sempre lhe disse
que não), não consultou qualquer médico ginecologista ou obstetra, nunca adquiriu
roupa ou outros utensílios para a criança. Em suma, comportou-se perante os que a
rodeavam como se não estivesse grávida.
Consentâneo com esse comportamento acabou por ser aquele que teve, de parir
sozinha, e esconder o corpo da recém-nascida, não obstante isso ter sucedido dentro da
casa em que habitava com o companheiro, só vindo a descobrir-se o sucedido em
virtude das complicações pós-parto, que determinaram o seu internamento hospitalar,
aliás com risco da própria vida, conforme referiu a médica que a assistiu.
O comportamento da Arguida contraria claramente a sua versão de que pretenderia
dar para adopção o filho que viesse a ter (que, aliás, mesmo abstraindo da demais
factualidade, foi pouco convincente, pelo modo como falou a respeito dessa suposta
intenção, que face ao contexto envolvente claramente se afigura como mera defesa e
desculpa perante o Tribunal e perante si própria).
Com efeito, nada obstaria a que o fizesse. Certo é que não o podia fazer introduzindo a
recém-nascida dentro de sacos de plástico, que, obviamente, morreria.
Que a quis matar é, assim, evidente, bem como mais evidencia essa intenção o facto de
ter enfiado um saco de plástico na cabeça da recém-nascida e atado o mesmo à volta
do seu pescoço, o que também contraria a sua (ténue, aliás) versão de que não se
apercebeu se estava viva ou morta.
Será pertinente que se questione porque é que quis proceder desse modo e não abortou
oportunamente?
A este respeito, não obstante a Arguida ter dito que pôs de parte abortar, admite-se que
tal não corresponda inteiramente à verdade, mas que antes terá sucedido ela ter
pretendido abortar, porém, sem sucesso, altura a partir da qual efectivamente pôs de
parte abortar e determinou-se em eliminar o nascituro (com efeito a Arguida fez pelo
menos uma deslocação a Espanha, aparentemente sozinha, supostamente para se tratar
do inexistente «tumor», pelo que se afigura provável que o verdadeiro objectivo da
viagem tivesse sido a interrupção da gravidez, que já não terá sido possível concretizar
devido ao adiantado do seu estado).
O facto de ter colocado o cadáver da recém-nascida, envolto nos sacos de plástico,
dentro de um armário, num quarto que se encontrava desocupado, mostrando-se
condizente com o demais comportamento, não pode deixar de não ter outro significado
que não seja o da intenção de ocultar o corpo até se lhe proporcionar a oportunidade
de o fazer desaparecer (que se frustrou em virtude do internamento hospitalar a que se
viu obrigada, sendo certo que, mesmo aí, quando foi confrontada com o parto, ainda
tentou evitar que o cadáver fosse encontrado, dizendo que o tinha deitado para um
caixote ou contentor de lixo).
Relativamente à matéria não provada, sem prejuízo de efectivamente não ser o
companheiro da Arguida o pai da criança (cfr. doc. de fls. 240 a 243), nenhuma prova
foi produzida no sentido de que a Arguida tivesse conhecimento desse facto, ou de que,
mesmo que tal sucedesse, essa circunstância tivesse tido ou pudesse ter alguma
influência no comportamento que adoptou.
A prova da factualidade relativa à situação pessoal da Arguida assentou
essencialmente nas suas declarações e no depoimento da testemunha B…, bem assim
teve-se em conta o teor do relatório pericial psicológico a que foi submetida e a
declaração médica que apresentou em audiência, a fls. 397.
Relativamente aos antecedentes criminais assentou o Tribunal no C.R.C., de fls. 365.
3. Perante este quadro, vejamos se assiste razão à recorrente.
I) A arguida veio colocar em crise a decisão sobre a matéria de facto decidida na 1a
Instância.
No caso sob apreciação este Tribunal pode conhecer de facto, em conformidade com o
preceituado no art. 428°, do CPP, uma vez que houve documentação da prova
produzida, oralmente, na audiência em 1a Instância.
Em conformidade com o disposto na al. b), do art. 431°, do CPP, e sem prejuízo do
disposto no art. 410°, do mesmo Código, a decisão sobre a matéria de facto pode ser
modificada, havendo documentação da prova, se esta tiver sido impugnada nos termos
do art. 412° n° 3.
Recorde-se que, para esse efeito, mesmo que não seja requerida renovação da prova,
como no caso sub judice, haverão de ser cumpridas as regras das alíneas a) e b) do art.
412°, n° 3 do Código de Processo Penal, de acordo com as quais quando impugne a
decisão proferida sobre matéria de facto o recorrente deve especificar quer «os
concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados» quer «as concretas
provas que impõem decisão diversa da recorrida».
No caso sub judice, a recorrente concretizou, nas conclusões que extraiu da sua
motivação, os factos que, no seu entender, não deveriam ter sido dados como provados,
indicando os seguintes:
- que tenha decidido desde logo livrar-se do nascituro, matando-o após o parto;
- que tenha sido ela a dar o nó no saco de plástico e colocando a recém-nascida dentro
de mais sacos de plástico;
- que a tenha escondido num armário no intuito de a fazer desaparecer;
- que tivesse conhecimento que a recém-nascida estivesse viva após o parto.
Estes factos constam dos n.ºs 3, 16 e 17 e 30 do elenco de factos provados registado no
acórdão.
Para além da individualização dos concretos factos que considera mal julgados, na
impugnação da matéria de facto, por via de recurso, a lei exige ainda que o recorrente
explique as razões para cada uma das apontadas divergências, como decorre da al. b) do
citado n.º 3 do art. 412.º do CPP.
Recordemos os argumentos invocados no recurso:
Invoca, em primeiro lugar, a recorrente que a única pessoa que presenciou a cena pós-
parto foi a própria arguida e a testemunha B…, sendo que esta testemunha apenas
testemunhou as hemorragias e a condução da arguida ao hospital.
Daí que entenda haver erro notório na apreciação da prova, nos termos previstos no art.
410.º/2c) do CPP, designadamente ao valorar-se como relevante o depoimento desta
testemunha, quando a mesma evidenciou falta de credibilidade num depoimento
confuso com contradições manifestas, ao mesmo tempo que se desvaloriza como único
depoimento relevante no que se refere à morte intencional as declarações da arguida.
Mais invoca a recorrente carecer de fundamentação especificada a razão pela qual se
cinde a credibilidade da arguida, cujas declarações valeram para provar uns factos mas
já não valeram para outros.
Finalmente, invoca ainda insuficiência para a decisão da matéria de facto provada,
socorrendo-se:
- das declarações da arguida, em especial do facto de esta ter declarado que a recém-
nascida não chorou após o parto, não teve reacção e estava roxa e vermelha, que foi
buscar os sacos de plástico mas não se lembra de dar o nó, referindo estar em pânico e
em estado débil.
- do facto de autópsia ter sido realizada somente 48 depois do óbito.
Vejamos:
Como é sabido, o recurso da matéria de facto não configura um novo julgamento. Tal
como vem entendendo pacificamente o Supremo Tribunal de Justiça, «o recurso de
matéria de facto para a Relação não é um novo julgamento em que a 2.ª Instância
aprecia toda a prova produzida e documentada em 1.ª Instância, como se o julgamento
ali realizado não existisse; antes se deve afirmar que os recursos, mesmo em matéria de
facto, são remédios jurídicos destinados a colmatar erros de julgamento, que devem ser
indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros» (cfr. Ac.
STJ de 9/3/2006 in www. dgsi.pt).
A especificação das «concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida» (art.
412.º/3b) só se satisfaz com a indicação do conteúdo específico da prova que impõe a
pretendida alteração. E, como sublinha Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do
Código de Processo Penal, UCP, p. 1135, «o recorrente deve explicitar por que razão
essa prova impõe decisão diversa da recorrida. Este é o cerne do dever de
especificação» sendo que «o grau acrescido de concretização exigido pela Lei n.º
48/2007, de 29.8, visa precisamente impor ao recorrente que relacione o conteúdo
específico do meio de prova que impõe decisão diversa da recorrida com o facto
individualizado que considera incorrectamente julgado». Finalmente, importa ainda
lembrar, no caso de as provas terem sido gravadas, como é o caso dos presentes autos,
da motivação tem de constar a referência ao consignado em acta, devendo o recorrente
indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação – art. 412°, n° 4 do
C.P.P.
Ora lida a motivação do recurso apresentado pela recorrente, verifica-se que a razão
essencial da impugnação da matéria de facto que apresenta se prende com a inexistência
de testemunhas presenciais dos factos integradores da conduta criminosa em referência,
para além da própria arguida e seu companheiro, a testemunha B…, cujo depoimento,
todavia, não deve merecer credibilidade, pelo que restaria ao tribunal acreditar
inteiramente nas declarações prestadas pela arguida.
Em sustentação da falta de credibilidade da testemunha B…, a recorrente aponta, em
especial:
- a impossibilidade de não ter tomado conhecimento da gravidez da sua companheira,
quando o bebé viria a nascer com 3,650 Kg;
- o tribunal não permitiu que a testemunha se ausentasse do tribunal após a prestação do
seu depoimento;
- a justificação dada pela testemunha para ter ido abrir o armário do quarto, baseada na
necessidade de ir procurar roupas para a arguida, em contradição com o facto de não ter
voltado ao hospital;
- a referência a ter transportado a arguida para a cama em contraste com a ausência de
manchas de sangue na cama.
O merecimento de cada um dos argumentos em presença não pode ser analisado em
abstracto, antes devendo ser analisado em concreto perante a motivação da convicção
afirmada pelo tribunal a quo.
Ora, no que respeita ao contributo do depoimento da testemunha em referência para a
formação da convicção do tribunal, o acórdão recorrido apenas evidencia sinais da sua
relevância no que respeita à ignorância da gravidez da arguida (o que é corroborado
pelas declarações desta e ausência de qualquer vestuário de criança na casa habitada por
ambos) e ao sucedido na noite dos factos apenas a partir do momento em que foi
acordado pela arguida, queixando-se de dores de barriga e de hemorragias, relatando o
transporte daquela para o hospital (matéria também amplamente corroborada por outras
provas reunidas nos autos) e a detecção do cadáver dentro de sacos de plástico em casa
já no regresso do hospital com a informação à polícia (o que também se encontra em
consonância com as informações que deram origem aos autos e registos fotográficos do
cadáver) e, finalmente, no que respeita aos elementos pessoais da arguida.
Ou seja o tribunal a quo socorreu-se deste testemunho apenas em corroboração das
próprias declarações da arguida e demais elementos de prova constantes dos autos. Dito
de outro modo, e diferentemente do pretendido pela recorrente, nenhum facto relevante
para a decisão da causa se mostra suportado apenas do depoimento desta testemunha.
Mais, nenhum dos factos apurados ora impugnados no recurso foi apurado pelo tribunal
a quo com base no depoimento desta testemunha.
Acresce que a clareza do raciocínio lógico seguido pelo julgador na formação da sua
convicção, em nada sai abalada pelas discrepâncias pontuais apontadas aqui e ali pelo
recorrente na análise que faz deste depoimento, ao longo da sua motivação de recurso.
Certo é que nos aspectos em que o relato desta testemunha contribuiu para formar a
convicção do tribunal, esta não se bastou apenas com base naquela prova, antes resultou
em boa parte das próprias declarações prestadas pela arguida e da leitura que o tribunal
fez das mesmas, quando conjugadas com toda a restante prova reunida.
Pretende, em segundo lugar, a recorrente que no acórdão recorrido não existe
fundamentação especificada para a cisão da credibilidade da arguida, cujas declarações
valeram para provar uns factos mas já não valeram para outros, o que mais uma vez
qualifica de erro notório na apreciação da prova.
A este propósito cumpre recordar que das declarações da arguida o tribunal a quo só
não deu credibilidade à sua negação da intenção e vontade de matar o nascituro bem
como à concretização dessa vontade, colocando a recém-nascida dentro de sacos de
plástico, escondendo-a de seguida num armário ou que tivesse tido a percepção de que a
recém-nascida estivesse viva após o parto.
Todavia, e mais uma vez diferentemente do que a recorrente pretende, o tribunal
explicou a razão para não acreditar nesta parte da versão da arguida, não omitindo a sua
negação da intenção de matar do conteúdo das suas declarações, mas afirmando
claramente que concluiu a referida intenção de todo o contexto apurado (gravidez
escondida, inclusivamente da sua mãe, sem acompanhamento médico a que acrescem
ainda sinais visíveis da ausência de preparação da chegada de um bebé a um lar sem
qualquer roupa ou utensílios próprios para o acolher bem como as condições em que foi
encontrado o cadáver da criança) e das regras da experiência comum, socorrendo-se
ainda do teor do exame pericial psicológico a que a arguida foi submetida nos autos.
O acórdão sob apreciação permite, no geral, a reconstituião do procedimento lógico que
presidiu à solução encontrada e que determinou que fossem dados uns factos como
provados e outros como não provados. Com excepção, todavia, para um ponto.
Há, com efeito, um ponto dos factos apurados em primeira instância que não encontra
nem na prova produzida nem nas regras da lógica e experiência comum base sólida de
sustentação, além de que a exposição da convicção do tribunal ao longo da motivação
aponta mesmo para a sua negação: trata-se da referência final constante do facto n.º 3,
reportada à intenção de matar a criança após o parto firmada logo no momento em que a
arguida soube que estava grávida. Na verdade, não faz muito sentido que ao tomar
conhecimento da sua gravidez uma mulher decida aguardar pelo termo da mesma para
matar a criança que está a gerar. Trata-se de uma decisão que foge a toda a lógica, pelo
que se apresenta como inverosímil a uma compreensão normal das coisas. Que a
arguida tenha desde o primeiro momento pensado em livrar-se do nascituro, está, com
efeito, de acordo com o comportamento apurado à mesma durante a gravidez,
designadamente ao ocultá-la de toda a gente, sem fazer qualquer consulta ou exame
médico durante todo o tempo de gestação e sem, finalmente, adquirir qualquer peça de
enxoval para o bebé, como bem se invocou na motivação do acórdão recorrido.
Todavia, todo o referido quadro não permite afirmar que a ideia de se livrar do filho
logo formada fosse ao ponto de decidir, a nove meses de distância, que iria matar o
nascituro logo após o parto. Tudo indica, pelo contrário, que a arguida terá passado por
várias fases ao longo da gravidez no que respeita à ideia do que pretendia fazer com a
criança. O próprio tribunal a quo deixa dessa hesitação e alteração de planos clara
convicção ao afirmar-se na motivação da decisão de facto, que «não obstante a Arguida
ter dito que pôs de parte abortar, admite-se que tal não corresponda inteiramente à
verdade, mas que antes terá sucedido ela ter pretendido abortar, porém, sem sucesso,
altura a partir da qual efectivamente pôs de parte abortar e determinou-se em eliminar o
nascituro (com efeito a Arguida fez pelo menos uma deslocação a Espanha,
aparentemente sozinha, supostamente para se tratar do inexistente «tumor», pelo que se
afigura provável que o verdadeiro objectivo da viagem tivesse sido a interrupção da
gravidez, que já não terá sido possível concretizar devido ao adiantado do seu estado)».
Entende-se, assim, que, em correcção deste erro que se afigura como notório nos termos
do art. 410.º/2c) do CPP, deve ser retirado dos factos provados a referência à formação
da intenção de matar desde o primeiro momento (final do facto descrito em 3) o qual
deverá, assim passar a integrar os factos não provados.
Finalmente, invoca ainda insuficiência para a decisão da matéria de facto provada,
socorrendo-se de duas ordens de argumentos:
- as declarações da arguida, em especial quando afirma que a recém-nascida não chorou
após o parto, não teve reacção e estava roxa e vermelha e que foi buscar os sacos de
plástico mas não se lembra de dar o nó, referindo estar em pânico e em estado débil.
- a autópsia ter sido realizada somente 48 depois do óbito.
A este respeito e antes do mais cumpre referir que a recorrente parece confundir
insuficiência para a decisão da matéria de facto apurada com insuficiência de prova. Na
verdade, o fundamento a que se refere a al. a) do n.º 2 do art. 410.º do CPP é a
insuficiência da matéria de facto para a decisão de direito o que é realidade bem
diferente da insuficiência de prova para a decisão de facto proferida. Enquanto a
primeira integra, com efeito, um vício da sentença, a segunda não pode deixar de
convocar o princípio base da apreciação da prova no nosso sistema processual penal: o
princípio da livre apreciação. A prova é apreciada pelo julgador segundo as regras da
experiência e da sua livre convicção (artº 127º do Código de Processo Penal) e é no
julgamento da 1ª instância que, por força da oralidade e do contacto pessoal e directo
com as provas, melhor se conjugam as condições para apreciar a fiabilidade dos
depoimentos.
Assim sendo, não podemos concordar com a recorrente, nesta matéria, tendo em
atenção o supra exposto e os invocados princípios da livre apreciação e da imediação.
Na verdade, e diferentemente do pretendido pela recorrente, o tribunal recorrido fez um
criterioso apuramento da matéria de facto, segundo as regras da experiência, e no
respeito pelo princípio da livre apreciação da prova consagrado no art. 127.º do CPP,
inclusive os seus limites, nenhuma censura merecendo a matéria de facto apurada,
afigurando-se, pelo contrário, que a convicção do tribunal a quo se apoia nos elementos
probatórios resultantes do julgamento, evidenciando um raciocínio lógico na respectiva
formação. Não será a circunstância de a arguida ter referido ou deixado de referir, por
exemplo, que a criança chorou à nascença que determinará inevitavelmente o
apuramento desse facto. Atente-se que existem outros elementos de prova com
relevância para o apuramento destes dados, com especial relevo, naturalmente, para o
próprio resultado da autópsia. Inquestionável é que o acórdão sob apreciação permite a
completa reconstituião do procedimento lógico que presidiu à solução encontrada e que
determinou que fossem dados uns factos como provados e outros como não provados.
Conclui-se, assim, que pretendendo embora discutir o acerto da factualidade dada como
provada na sentença recorrida, a recorrente limitou-se, no geral, a discordar da
valoração da prova efectuada pelo Tribunal a quo, sem, todavia, apresentar argumentos
válidos ou suficientes para infirmar a convicção afirmada pelo julgador.
No que respeita, ao tempo decorrido entre o óbito e a realização da autópsia, tratou-se
de dado registado no respectivo relatório o que, todavia, não se afigurou, aos olhos dos
técnicos, como elemento relevante para impedir a conclusão pericial de que «o recém-
nascido do sexo feminino autopsiado teve respiração extra uterina. A morte do recém-
nascido do sexo feminino autopsiado foi devida a asfixia por sufocação por obstrução
dos orifícios respiratórios. As lesões traumáticas descritas (…) resultaram de acção de
natureza contundente».
É certo que a médica obstetra que inquirida foi em julgamento, por ter assistido a
arguida no hospital, não soube responder à dúvida suscitada pela ilustre defensora
daquela concernente à fidedignidade das conclusões da autópsia perante o hiato de
tempo decorrido entre o óbito e a realização da mesma. Mas não é menos certo também,
que a médica em referência não é especialista em Medicina Legal, como logo
reconheceu. Porém, os serviços que realizaram a autópsia são os especializados em
patologia forense.
Ora, conforme dispõe o art. 163.º/1 do CPP, «o juízo técnico, científico (…) inerente à
prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador», acrescentando o n.º
2 que «sempre que a convicção do julgador divergir do juízo contido no parecer dos
peritos, deve aquele fundamentar a divergência». Não foi, obviamente, o caso. Nem o
tribunal a quo divergiu das conclusões periciais, nem a mera dúvida apresentada pela
ilustra advogada da arguida a uma testemunha (médica) e que esta não soube resolver,
se apresenta como suficiente para o efeito.
Termos em que improcede a impugnação da matéria de facto suscitada no presente
recurso, nos moldes em que o foi.
Todavia, existe um aspecto da matéria de facto em que a decisão recorrida se apresenta
como insuficiente para a boa decisão da causa. Com efeito, em vão procuraremos ao
longo de toda a decisão, quer no elenco dos factos provados quer no dos factos não
provados a mais leve referência aos sentimentos manifestados pela arguida bem como
ou à dor física, e psíquica vivida durante e após a prática dos factos. E, todavia, ouvidas
as gravações da prova logo se verifica ter sido matéria amplamente abordada no
julgamento, em especial pela própria arguida e testemunha B…, seu companheiro.
Que se trata de matéria com evidente relevo para a decisão a proferir, não devem restar
dúvidas, desde logo perante os normativos legais que prevêem os critérios para a
fixação da medida da pena.
Em face do exposto, manifesto é que o Tribunal a quo omitiu a pronúncia sobre factos
indispensáveis à boa apreciação da mesma, o que, configura o vício de insuficiência da
matéria de facto provada, porquanto nesta expressão devem ser incluídos os factos
provados e os factos não provados (neste sentido v. Anotações 82 e 87 ao art. 410.º do
CPP, inscritas por Paulo Pinto da Albuquerque no seu Comentário do CPP).
O acórdão recorrido enferma, assim, do vício a que alude a alínea a) do n.º 2 do artigo
410.º do Código de Processo Penal, vício que se afigura ser do conhecimento oficioso.
O tribunal de recurso tem o poder de suprir as nulidades da sentença.
Devendo todos os factos integrantes da matéria de facto ser apurados em 1.ª instância,
certo é que no caso o tribunal de recurso dispõe de todos os elementos necessários para
suprir a omissão verificada na 1ª instância, relativamente a factos que, pese embora num
outro segmento de argumentação (demonstração da ausência da vontade de matar ou do
desconhecimento do nascimento com vida da criança), certo é que foram invocados na
motivação de recurso à qual também o MP teve ocasião de responder, o que garante as
condições do processo leal e justo (art. 431.º/a) e b) do CPP).
Impõe-se, em suma, um alargamento da matéria de facto apurada de forma a abranger as
condições emocionais e físicas em que a arguida viveu os factos, bem como as suas
consequências.
Assim, com base:
1) nas declarações prestadas pela própria arguida, num relato várias vezes interrompido
pela comoção e a dor sofrida até hoje, numa lembrança que a assola todas as manhãs,
logo ao acordar,
2) bem como no depoimento da testemunha B…, firme ao explicar que reatou a relação
com a arguida, apesar dos factos, por se tratar de uma pessoa que «não tem mau
instinto», se emociona quando vê uma criança e soube sempre estar presente para o
ajudar nos seus problemas, apesar de a testemunha nem sempre ter conseguido ajudá-la
nos dela,
3) mas sobretudo com base nas regras da lógica e da experiência comum, sabendo-se
como pode ser dolorosa fisicamente a vivência de um parto, em especial de um bebé
pesado e de dimensões grandes, vivido sem nenhuma ajuda, e que terá deixado a
arguida em risco de vida, como testemunhado pela médica obstetra que a assistiu no
hospital, julga-se demonstrado ainda, em sede de factos provados que:
- a arguida sofreu dores físicas muito fortes durante o parto, ficando num estado de
sofrimento e perturbação física e emocional após o nascimento da criança;
- penaliza-se pelo sucedido, sentindo profundo desgosto e amargura pelos factos.
II) Perante os factos apurados, improcedendo a impugnação de facto apresentada pela
recorrente, e mesmo considerando os dois factos aditados, manifesto é que deverá
improceder também a pretensão de ver a sua condenação alterada para a prática do
crime de infanticídio.
Na verdade, a questão do enquadramento jurídico-penal dos factos colocada ao recurso
assentava no pressuposto da procedência da impugnação da matéria de facto já acima
conhecida e considerada improcedente.
Como se refere no acórdão recorrido, «não obstante a Arguida ter matado a filha logo
após o parto, decorrendo da factualidade provada que ela já tinha anteriormente ao parto
decidido que assim procederia, tem-se por claramente afastada a subsunção da sua
conduta ao tipo criminal de infanticídio, que imporia que a morte em questão tivesse
meramente advindo de perturbação provocada pelo parto, que afectasse o seu
discernimento (cfr. artigo 136º do Código Penal), o que não se concluiu que tivesse
sucedido (sem prejuízo da perturbação que o parto naturalmente provoca na
parturiente), nem tão pouco se coadunaria com a formação prévia da vontade de assim
proceder após o parto».
Assente que estamos perante um crime de homicídio, vejamos, então se deverá haver
lugar à qualificação do crime pela especial censurabilidade.
A este respeito pode ler-se no acórdão recorrido: «A acusação funda as qualificativas do
crime de homicídio que imputa à Arguida no facto de esta ter praticado o facto contra
pessoa particularmente indefesa, em razão da idade [alínea c)], ter agido por motivo
torpe ou fútil [alínea e)] e ter persistido na intenção de matar por mais de vinte e quatro
horas [alínea j)].
Com efeito, fundando-se as circunstâncias qualificativas do crime de homicídio
previstas no artigo 132º do Código Penal na especial culpa do agente (no sentido de que
o homicídio qualificado constitui um tipo de culpa, cfr. Teresa Serra, Homicídio
Qualificado, Ed. Almedina, 1990; Figueiredo Dias, Comentário Conimbrincense ao
Código Penal, Ed. Coimbra Editora, Tomo I, pág. 29, ou Ac. do S.T.J. de 4-7-1996, in
C.J.S.T.J., ano IV, T. II, pág. 222), não são as mesmas taxativas ou de funcionamento
automático, antes constituem exemplos-padrão, exigindo-se sempre que elas exprimam,
no caso concreto, a especial censurabilidade ou perversidade do agente, manifestada na
prática do facto em determinadas circunstâncias.
Deste entendimento decorre que não obsta à verificação dessa especial censurabilidade
ou perversidade do agente na produção da morte de outrem o facto de não se ter por
verificada qualquer das circunstâncias qualificativas enumeradas no artigo.
No caso em apreciação, não se tendo por provado o motivo torpe ou fútil da
qualificativa em que assentava a acusação (de a Arguida assim ter procedido em virtude
de a gravidez ter resultado de relação sexual esporádica), é, porém, manifesto que a
Arguida praticou o facto contra pessoa absolutamente indefesa, bem como persistiu na
intenção de matar por mais de vinte e quatro horas.
Além da verificação dessas qualificativas exemplificadas no tipo, entende-se que a
produção da morte em tais circunstâncias consubstanciam conduta em concreto
reveladora de especial censurabilidade e de especial perversidade, uma vez que as
circunstâncias em que a morte foi previamente calculada (quando tinha alternativas,
designadamente a via da adopção, atento a que não pretendia ficar com a criança para si,
o que já por si também fere elementares sentimentos de normalidade social) e causada
(com asfixia da recém-nascida, nomeadamente através da introdução de um saco de
plástico na cabeça e atado na zona do seu pescoço) são de tal modo graves que
reflectem atitude profundamente distanciada do agente em relação a uma determinação
normal com os valores, bem como são demonstrativas de sentimentos absolutamente
rejeitados pela sociedade (acerca das noções de especial censurabilidade e de especial
perversidade, v. Teresa Serra, ob. cit., págs. 63 e 64).
Conclui-se assim que a Arguida cometeu um crime de homicídio qualificado, p. e p.
pelos artigos 131º e 132º, nº 1 do Código Penal».
Cumpre analisar:
Com efeito, tal como evidenciado no Ac. STJ de 18 de Fevereiro de 2009, disponível in
www.dgsi.pt, «embora dividida, a doutrina vem entendendo que os exemplos-padrão
definidos no art.º 132.º do Código Penal se prendem essencialmente com a questão da
culpa, pois mesmo quando se referem a um maior desvalor da conduta (por exemplo, no
caso de homicídio cometido na pessoa do pai ou do filho), não é essa circunstância que,
por si, determina a qualificação do crime, mas a especial censurabilidade ou
perversidade do agente, isto é, o especial tipo de culpa. (…)
Acerca dos conceitos de censurabilidade e perversidade, escreve Teresa Serra
(Homicídio Qualificado – Tipo de Culpa e Medida da Pena, pág. 63): Dominantemente,
entende-se que só se pode decidir que a morte foi causada em circunstâncias que
revelam especial censurabilidade ou perversidade do agente através de uma ponderação
global das circunstâncias externas e internas presentes no facto concreto.
A ideia de censurabilidade constitui o conceito nuclear sobre o qual se funda a
concepção normativa da culpa. Culpa é censurabilidade do facto ao agente, isto é,
censura-se ao agente o ter podido determinar-se de acordo com a norma e não o ter
feito. No art. 132º, trata-se duma censurabilidade especial: as circunstâncias em que a
morte foi causada são de tal modo graves que reflectem uma atitude profundamente
distanciada do agente em relação a uma determinação normal de acordo com os valores.
(…). Com efeito, qualquer homicídio simples, enquanto lesão do bem jurídico
fundamental que é a vida humana, revela já a censurabilidade ou perversidade do agente
que o comete. No homicídio qualificado o que está em causa é uma diferença essencial
de grau que permite ao juiz concluir pela aplicação do art. 132º ao caso concreto, após a
ponderação da circunstância indiciadora presente ou de outra circunstância susceptível
de preencher o chamado Leitbild dos exemplo-padrão».
E prossegue o mesmo acórdão: «A ocorrência destes exemplos não determina, todavia,
por si só e automaticamente, a qualificação do crime; assim como a sua não verificação
não impede que outros elementos possam ser julgados como qualificadores da culpa,
desde que sejam substancialmente análogos aos legalmente descritos. Conforme se
afirmou em acórdão deste Supremo Tribunal, relatado pelo Conselheiro Rodrigues da
Costa (ac. de 07-07-2005, proc. 1670/05 – 5ª secção): é preciso que, autonomamente, o
intérprete se certifique de que, da ocorrência de qualquer daquelas circunstâncias
resultou em concreto a especial censurabilidade ou perversidade. Como inversamente,
não será um maior desvalor da acção do agente ou um aspecto especialmente
desvalioso da sua personalidade documentado no facto que dará origem ao
preenchimento do tipo de culpa agravado, sendo necessário que essa atitude se
concretize em qualquer dos exemplos-padrão ou em qualquer circunstância
substancialmente análoga. É que estes são elementos típicos, embora atinentes ao tipo
de culpa e não ao tipo de ilícito e daí que, mesmo no caso de ocorrência de outra
circunstância que não a exactamente prevista, esta tenha de assentar numa estrutura
valorativa correspondente à do respectivo exemplo-padrão».
Tem pautado, com efeito, a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça o
entendimento constante de que a qualificação do crime de homicídio qualificado não é
consequência inevitável da existência de qualquer das circunstâncias constantes do n.º 2
do artigo 132.º do CP. «Essencial, é que, as circunstâncias em que o agente comete o
crime revelem uma especial censurabilidade ou perversidade, ou seja, uma
censurabilidade ou perversidade distintas (pela sua anormal gravidade) daquelas que,
em maior ou menor grau, se revelem na autoria de um homicídio simples» (ac. de 21-
05-1997 - proc. n.º 188/97). Não considera, portanto, o Supremo a qualificação do crime
de homicídio como uma consequência automática do preenchimento de algum dos
exemplos-padrão, entendendo que as circunstâncias ali enunciadas se reportam à culpa.
Conforme se decidiu no ac. 14-07-2006 - proc. 1926/06, o que vem a conferir ao tipo
qualificado características de tipo de culpa é o facto de ser sempre decisivo que da
actuação do arguido, preenchendo uma qualquer circunstância coincidente com a do
exemplo-padrão ou circunstância de estrutura análoga, resulte uma especial
censurabilidade ou perversidade, pois se, não obstante ocorrer uma circunstância do
tipo aludido, se não verificar aquela, a realização do tipo qualificado tem-se por
excluída».
Recordado o sentido da jurisprudência superior afirmada em sede de preenchimento do
tipo de homicídio qualificado previsto no art. 132.º do CP, caberá verificar se no caso
em apreço se mostram reunidos os respectivos pressupostos.
Desde logo importa realçar que uma das circunstância em que o acórdão recorrido
assentava a verificação de especial censurabilidade na conduta da arguida,
designadamente a persistência do propósito de matar por mais de 24h, deixou de poder
ser atendida, perante a alteração dos factos acolhida neste tribunal de recurso, como
acima já se deixou consignado. Subsiste, porém, o facto ter sido praticado contra vítima
especialmente indefesa e o facto de ter causado a morte (com asfixia da recém-nascida,
nomeadamente através da introdução de um saco de plástico na cabeça e atado na zona
do seu pescoço), que _ ninguém duvidará _ constituem circunstâncias que merecem a
qualificação de graves.
A estes elementos de facto relevados no acórdão recorrido como factores de revelação
de especial censurabilidade, acresce a qualidade de ascendente da arguida em relação à
vítima, integradora do exemplo-padrão previsto logo na alínea a) do n.º 2 do art. 132.º
Porém, deverão, neste caso em concreto, aquelas circunstâncias de facto ser
consideradas como reveladoras de especial censurabilidade?
Aqui chegados, caberá recorrer de novo ao Ac. STJ já acima citado para salientar que «a
especial censurabilidade a que se reporta o crime de homicídio qualificado exige um
completo domínio do agente para se determinar de acordo com a norma e para avaliar
cabalmente a ilicitude do facto, pelo que, só deste modo a culpa poderá ser tida por
especialmente censurável; ou seja: este tipo de crime não pode ser cometido num estado
de imputabilidade diminuída, pois, neste caso, a culpa não excede o grau da mera
censurabilidade. Neste sentido, decidiu o STJ no ac. de 18-10-2006 – proc. 2679/06».
Ora, neste caso, a arguida agiu debaixo de enorme sofrimento físico e psíquico,
sofrendo dores agonizantes e dando à luz uma criança no termo do período de gestação,
sem contar com o mais leve apoio médico ou mesmo humano. Não tendo sido
determinante do homicídio, a perturbação da arguida não deixou, porém de estar
presente ao longo de todo o tempo em que praticou os factos. Uma perturbação ditada
por uma dor agonizante e uma situação de evidente e inevitável aflição para a qual não
pode contar com ajuda de qualquer espécie. Se não foi por isso que se viu determinada à
prática dos factos, não é menos certo, porém, que o estado de perturbação que
necessariamente a envolveu, pesou, inevitavelmente, no grau de culpa concreta com que
actuou. Não pode, por isso ser ignorado por um Direito Penal em que aquela constitui
figura central.
Este estado psíquico e físico, não se tendo apresentado como determinante dos actos
que então praticou, não deixaram de condicionar o seu raciocínio. Neste contexto, falar
de especial censurabilidade seria ignorar a lucidez dos ensinamentos do STJ acima
acabados de recordar: i.e., o de que o crime de homicídio qualificado pela especial
censurabilidade não pode ser cometido numa situação de imputabilidade diminuída.
Ainda que essa inimputabilidade seja meramente relativa e circunstancial, e não
inibidora da sua capacidade de avaliação da ilicitude do facto e se determinar de acordo
com a mesma, como no caso em presença.
A decisão recorrida deve, portanto, ser corrigida quanto à qualificação jurídica do crime
praticado pela recorrente, que é o de homicídio simples, p. e p. no art.º 131.º do C.
Penal.
III) Também a pretensão de diminuição da pena e suspensão da respectiva execução
apresentada no recurso, sustentada na alteração da qualificação do crime para o crime de
infanticídio, p.p. no art. 136.º do CP, não poderá deixar de improceder.
Todavia, importa, naturalmente, encontrar a pena adequada à nova moldura penal em
presença para punir o crime de homicídio. Dispõe o art. 131.º do CP que quem matar
pessoa é punido com pena de prisão de oito a dezasseis anos.
Assim, nos termos do disposto no art. 73.º/1ª) e b) do CP, ponderando o dolo directo,
elevado grau de ilicitude e as consequências irreparáveis causadas, sem ignorar a
ausência de antecedentes criminais e a inserção social e profissional da arguida, bem
como, finalmente, o sofrimento resultante para a arguida dos actos que ela mesma
praticou, numa amargura causada pela morte da própria filha que provavelmente a
acompanhará durante toda a vida numa penalização que se impõe a si mesma marcando
as primeiras imagens que lhe vêm à memória todas as manhãs ao acordar, julga-se
adequada uma pena situada ainda abaixo da média entre os limites máximo e mínimo,
que se fixa nos nove anos de prisão, mas já algo distanciada do limite mínimo.
Reformulando o cúmulo de modo a englobar a pena de seis meses de prisão aplicada em
primeira instância pelo crime de profanação de cadáver (e que não merece qualquer
censura), julga-se adequada à punição dos dois crimes a pena única de nove anos e três
meses de prisão, no respeito pelo disposto no art. 77.º do CP.
III – Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes da 9ª secção deste Tribunal da Relação em:
I) Conceder parcial provimento ao recurso.
II) Corrigindo o erro notório verificado na apreciação de facto, eliminar do elenco dos
factos provados a referência constante da parte final do facto n.º 3 (matando-o após
parto), aditar aos factos não provados o seguinte: não provado que a arguida decidisse
matar o nascituro após parto logo que soube que estava grávida.
III) Suprindo oficiosamente a nulidade do acórdão consistente na insuficiência da
matéria de facto para a decisão, aditar os seguintes factos aos provados:
- a arguida sofreu dores físicas muito fortes durante o parto, ficando num estado de
sofrimento e perturbação física e emocional após o nascimento da criança;
- penaliza-se pelo sucedido, sentindo profundo desgosto e amargura pelos factos.
IV) Em consequência, alterar a condenação da arguida nos seguintes moldes:
a) como autora material de um crime de homicídio simples, p. e p. pelos artigos 131º do
Código Penal, vai a arguida condenada na pena de 9 anos de prisão;
b) Em cúmulo jurídico com a pena de seis meses aplicada pelo crime de profanação de
cadáver, condenar a Arguida A… na pena única de 9 anos e três meses de prisão.
V) Fixar a tributação em 6 UCs (art. 513.º n.º 1 e 514.º n.º 1 do Código de Processo
Penal e art. 87.º n.º 1 al. b) e 3 do Código das Custas Judiciais), sem prejuízo da
protecção judiciária concedida.
Notifique.
(Acórdão elaborado e integralmente revisto pela relatora – art.º 94º, nº 2 do CPP)
Lisboa, 11 de Março de 2010
Maria de Fátima Mata-Mouros
João Abrunhosa