1
32 | Domingo 14 Julho 2013 | 2 convicção íntima de que al- go vai acontecer no mundo e em Portugal. Os cidadãos sabem que está na hora, não só de mandar “o Governo embora”, mas também de construir uma plataforma de entendimento global que nos devolva a construção do nosso destino. Nesta perspectiva, os diri- gentes políticos de hoje são meros representantes de algo que já passou. Podem entreter-se a dividir, entre si, as migalhas que lhes res- tam do poder. Resolveram agora a questão do Governo, mas, em breve, os portugue- ses vão perceber que não podem continuar a abdicar da sua liberdade, pois ela está a ser perdida em cada instante que passa. E por isso eu tenho a cer- teza de que o nosso destino parece incerto, mas não está escrito. Como em 1974, haveremos de o construir de novo. DANIEL SAMPAIO PORQUE SIM DESTINO INCERTO? O destino incerto é o de Portugal. Em 1974, quisemos definir o nosso rumo. Após um golpe militar, lutámos para cons- truir um mundo novo. Desenvolver, Des- colonizar, Democratizar, os 3 D do 25 de Abril, nortearam o desígnio de muitos. Passados quase 40 anos, os dois primeiros D foram cumpridos. Já não temos colónias e o país desenvolveu-se. Muita gente estudou, temos um Serviço Nacional de Saúde que acolhe os cidadãos, não somos presos por fazer ouvir a nossa voz. Mas o terceiro D está em dificuldades. É certo que temos uma democracia formal: há eleições, Presi- dente da República, Governo e deputados, mas a verdade é que quase ninguém acredita. O português assiste, perplexo, a manobras de fraca política que mostram apenas o apego ao poder, sem nunca ter em conta os verdadeiros interesses dos cidadãos. Os políticos de hoje falam entre si, afirmam estar preocupados connosco, mas cada vez mais sentimos como o que dizem está distante de nós. A força democrática que extravasou no 25 de Abril de 1974 parece ter adormecido. Os portugue- ses murmuram pelos cantos: sentem como tudo vai ser decidido sem a sua opinião e, não raro, contra os seus interesses legítimos. Olham em volta e vê- em manifestações em países tão diferentes como a Grécia, a Inglaterra, a Suécia, a Turquia, o Egipto, o As pessoas já não se sentem representadas por dirigentes políticos oriundos de juventudes partidárias, sem mostrar consistência em trabalho persistente e dedicado na sociedade Brasil… compreendem como um simples incidente desencadeou protestos de rara violência. Em to- da a parte, o que sobressai é o descontentamento face à organização tradicional da sociedade. A de- mocracia formal, esgotada pelos desacreditados dirigentes do momento, tenta encontrar novos caminhos. Perante os protestos, os portugueses interrogam-se: valeu a pena lutar? Conseguiram mudar para uma sociedade mais justa? Eu observo também e vejo como a revolta, cla- ra ou escondida, é agora cada vez mais intensa. Apenas os militantes dedicados mantêm os par- tidos políticos, incapazes de perceberem como o mundo mudou. As pessoas já não se sentem re- presentadas por dirigentes políticos oriundos de juventudes partidárias, sem mostrar consistência em trabalho persistente e dedicado na socieda- de. A corrupção e o compadrio alastraram de tal forma que minam a credibilidade de quase todos os actuais agentes da política portuguesa. No en- tanto, a indignação moral perante tudo o que se passa não encontrou ainda a forma necessária à sua expressão, por isso as manifestações e greves não têm a força esperada, nem parecem abalar um regime adormecido. Observo Portugal e vejo que não é possível conti- nuar assim. Quem, como eu, viveu na ditadura de Salazar e vibrou com a Revolução dos Cravos tem a NUNO PACHECO EM PÚBLICO LINCOLN, BRASIL E O ACORDO ESTABANADO J á nestas crónicas se escreveu sobre isso, há três anos, mas como a coisa se mantém não é mau voltar a lembrar. Na edição de filmes em Blu-ray ainda se menciona “Brasileiro” como língua para legendas. Mas só na capa dos filmes, porque lá dentro, nos discos, vem claramente escrito Portuguese e Portuguese (Brazil) ou Brazilian Portuguese, tal como aliás su- cede com o Espanhol, quando é subdividido em Castilian Spanish e Latin Spanish. O que leva então os portugueses a imprimirem capas com “Brasi- leiro” escrito? Enquanto não se descobre a razão de tal teimosia, comparem-se, por curiosidade, algumas legendas de um filme que muitos terão visto no cinema e agora já podem ver ou rever em casa: Lincoln, de Steven Spielberg. Acertando as legendas para “Brasileiro”, Mary Todd Lincoln diz (aos 10m12s) ao marido: “Lembra que Robert [filho de ambos] vai estar aqui para a recepção? Sabia que ia esquecer.” Em Português, a tradução é assim: “Lembras-te que o Robert vem a casa para a receção? Eu sabia que ias esquecer-te.” Muda-se o tipo de tratamento, de “você” para “tu”, respeitando o uso de cada país, e a palavra “recep- ção”, que em Portugal se abastardou. Pouco depois (13m10s), Lincoln apresenta-se em público para dizer umas palavras e hastear a ban- deira. Em “Brasileiro” diz assim: “A mim cabe haste- ar a bandeira. Se não houver falha no maquinismo eu o farei.” E em Português: “O papel que me cabe é hastear a bandeira. O que, caso não haja falha de equipamento, farei.” Mesmo escritas, “ouvimos” as diferenças. A cena seguinte passa-se entre William Seward e Lincoln (14m29s). O primeiro queixa-se: “São os mesmos caipiras ignorantes que rejeita- ram a emenda há 10 meses.” Lincoln diz: “Gosto de nossas chances agora.” Isto no tal “Brasileiro”. Em Português a frase é mais extensa: “É a mesma cambada de labregos e carreiristas sem talento que rejeitou a emenda há 10 meses. Perderemos.” E Lin- coln responde: “Gosto das nossas probabilidades.” A mesma língua, sem dúvida, mas duas formas di- ferentes de usá-la em termos coloquiais. Querem “ouvir” diferenças maiores? Estão neste diálogo entre Latham e Bilbo, que Lincoln contrata para angariarem apoiantes para a sua 13.ª Emen- da à Constituição (37m27s). Ao verem o debate no congresso, interrogam-se: “Quem é aquele homem todo suado que morde o polegar?” “Não o conheço. Parece inquieto.” Isto em Português. Em “Brasilei- ro” o diálogo é traduzido assim: “Quem é o suado mordendo o dedão?” “Des- conheço, parece irrequie- to.” Um pouco mais adian- te (38m14s), ainda com os mesmos protagonistas e o mesmo cenário, primeiro na versão em “Brasileiro”: “O interessante é que o sr. Yeman parece irritado.” “Ele devia estar aplaudin- do.” “Parece que comeu ostra podre.” E agora em Português: “O mais inte- ressante é o aspeto carregado e descontente do sr. Yeaman.” “Ele devia estar a aplaudir.” “Parece que comeu uma ostra estragada.” Viram o “aspeto”? Se na versão brasileira fosse incluída tal palavra, escre- veriam “aspecto”. No espeto, só os portugueses. Por fim, só mais um exemplo, ainda com Latham e Bilbo (44m23s), desta vez a explicarem a Lincoln quem haviam conquistado para a causa anti-escla- vagista. Ao falarem de Giles Stuart (Stuart está a levantar dinheiro do banco, dão-lhe um encontrão, as notas espalham-se pelo chão e, enquanto eles o ajudam a apanhá-las, mostram-lhe a proposta de 13.ª Emenda), comentam (em Português): “Que tra- palhão.” E em “Brasileiro”: “Bem estabanado.” Bem estabanado??? Será Tupi? Guarani? Serta- nejo? Gaúcho? Nada disso. A palavra virá do latim tabanu, espécie de moscardo, que deu origem a ta- bão ou tavão. Ora, cruzando informações de vários dicionários, a picada de tal moscardo fazia com que a vítima ficasse tresloucada, descuidada, desastra- da. O estabanado (ou estavanado) vem daí. Pois bem: que tabão terá mordido a quem acha que pode “unificar” diferentes modos de falar e es- crever uma mesma língua (o Português) num acor- do ortográfico que apenas finge que é tudo igual, já que continuará a haver traduções diferenciadas (em filmes, livros, peças de teatro) para Portugal e para o Brasil? Que desvario moverá tais criaturas, contra todas as evidências, argumentos e protestos? Quem caça o moscardo e o neutraliza, para evitar os malefícios de tão estabanado acordo? Nos filmes em Blu-ray ainda se menciona “Brasileiro” como língua para legendas

ACORDO ESTABANADO

Embed Size (px)

DESCRIPTION

"LINCOLN, BRASIL E O ACORDO ESTABANADO", Nuno Pacheco, Revista PÚBLICO, 14 de Julho de 2013 (p. 32)

Citation preview

Page 1: ACORDO ESTABANADO

32 | Domingo 14 Julho 2013 | 2

convicção íntima de que al-

go vai acontecer no mundo

e em Portugal. Os cidadãos

sabem que está na hora, não

só de mandar “o Governo

embora”, mas também de

construir uma plataforma

de entendimento global que

nos devolva a construção do

nosso destino.

Nesta perspectiva, os diri-

gentes políticos de hoje são

meros representantes de

algo que já passou. Podem

entreter-se a dividir, entre

si, as migalhas que lhes res-

tam do poder. Resolveram

agora a questão do Governo,

mas, em breve, os portugue-

ses vão perceber que não

podem continuar a abdicar

da sua liberdade, pois ela

está a ser perdida em cada

instante que passa.

E por isso eu tenho a cer-

teza de que o nosso destino

parece incerto, mas não está escrito. Como em

1974, haveremos de o construir de novo.

DANIEL SAMPAIOPORQUE SIM

DESTINO INCERTO? O

destino incerto é o de Portugal.

Em 1974, quisemos defi nir o nosso rumo.

Após um golpe militar, lutámos para cons-

truir um mundo novo. Desenvolver, Des-

colonizar, Democratizar, os 3 D do 25 de

Abril, nortearam o desígnio de muitos.

Passados quase 40 anos, os dois primeiros D

foram cumpridos. Já não temos colónias e o país

desenvolveu-se. Muita gente estudou, temos um

Serviço Nacional de Saúde que acolhe os cidadãos,

não somos presos por fazer ouvir a nossa voz.

Mas o terceiro D está em difi culdades. É certo que

temos uma democracia formal: há eleições, Presi-

dente da República, Governo e deputados, mas a

verdade é que quase ninguém acredita. O português

assiste, perplexo, a manobras de fraca política que

mostram apenas o apego ao poder, sem nunca ter

em conta os verdadeiros interesses dos cidadãos.

Os políticos de hoje falam entre si, afi rmam estar

preocupados connosco, mas cada vez mais sentimos

como o que dizem está distante de nós.

A força democrática que extravasou no 25 de

Abril de 1974 parece ter adormecido. Os portugue-

ses murmuram pelos cantos: sentem como tudo vai

ser decidido sem a sua opinião e, não raro, contra

os seus interesses legítimos. Olham em volta e vê-

em manifestações em países tão diferentes como a

Grécia, a Inglaterra, a Suécia, a Turquia, o Egipto, o

As pessoas já não se sentem representadas por dirigentes políticos oriundos de juventudes partidárias, sem mostrar consistência em trabalho persistente e dedicado na sociedade

Brasil… compreendem como um simples incidente

desencadeou protestos de rara violência. Em to-

da a parte, o que sobressai é o descontentamento

face à organização tradicional da sociedade. A de-

mocracia formal, esgotada pelos desacreditados

dirigentes do momento, tenta encontrar novos

caminhos. Perante os protestos, os portugueses

interrogam-se: valeu a pena lutar? Conseguiram

mudar para uma sociedade mais justa?

Eu observo também e vejo como a revolta, cla-

ra ou escondida, é agora cada vez mais intensa.

Apenas os militantes dedicados mantêm os par-

tidos políticos, incapazes de perceberem como

o mundo mudou. As pessoas já não se sentem re-

presentadas por dirigentes políticos oriundos de

juventudes partidárias, sem mostrar consistência

em trabalho persistente e dedicado na socieda-

de. A corrupção e o compadrio alastraram de tal

forma que minam a credibilidade de quase todos

os actuais agentes da política portuguesa. No en-

tanto, a indignação moral perante tudo o que se

passa não encontrou ainda a forma necessária à

sua expressão, por isso as manifestações e greves

não têm a força esperada, nem parecem abalar

um regime adormecido.

Observo Portugal e vejo que não é possível conti-

nuar assim. Quem, como eu, viveu na ditadura de

Salazar e vibrou com a Revolução dos Cravos tem a

NUNO PACHECOEM PÚBLICO

LINCOLN, BRASIL E O ACORDO ESTABANADO J

á nestas crónicas se escreveu sobre isso, há

três anos, mas como a coisa se mantém não

é mau voltar a lembrar. Na edição de fi lmes

em Blu-ray ainda se menciona “Brasileiro”

como língua para legendas. Mas só na capa

dos fi lmes, porque lá dentro, nos discos,

vem claramente escrito Portuguese e Portuguese

(Brazil) ou Brazilian Portuguese, tal como aliás su-

cede com o Espanhol, quando é subdividido em

Castilian Spanish e Latin Spanish. O que leva então

os portugueses a imprimirem capas com “Brasi-

leiro” escrito? Enquanto não se descobre a razão

de tal teimosia, comparem-se, por curiosidade,

algumas legendas de um fi lme que muitos terão

visto no cinema e agora já podem ver ou rever em

casa: Lincoln, de Steven Spielberg.

Acertando as legendas para “Brasileiro”, Mary

Todd Lincoln diz (aos 10m12s) ao marido: “Lembra

que Robert [fi lho de ambos] vai estar aqui para a

recepção? Sabia que ia esquecer.” Em Português, a

tradução é assim: “Lembras-te que o Robert vem a

casa para a receção? Eu sabia que ias esquecer-te.”

Muda-se o tipo de tratamento, de “você” para “tu”,

respeitando o uso de cada país, e a palavra “recep-

ção”, que em Portugal se abastardou.

Pouco depois (13m10s), Lincoln apresenta-se em

público para dizer umas palavras e hastear a ban-

deira. Em “Brasileiro” diz assim: “A mim cabe haste-

ar a bandeira. Se não houver falha no maquinismo

eu o farei.” E em Português: “O papel que me cabe

é hastear a bandeira. O que, caso não haja falha de

equipamento, farei.” Mesmo escritas, “ouvimos” as

diferenças. A cena seguinte passa-se entre William

Seward e Lincoln (14m29s). O primeiro queixa-se:

“São os mesmos caipiras ignorantes que rejeita-

ram a emenda há 10 meses.” Lincoln diz: “Gosto

de nossas chances agora.” Isto no tal “Brasileiro”.

Em Português a frase é mais extensa: “É a mesma

cambada de labregos e carreiristas sem talento que

rejeitou a emenda há 10 meses. Perderemos.” E Lin-

coln responde: “Gosto das nossas probabilidades.”

A mesma língua, sem dúvida, mas duas formas di-

ferentes de usá-la em termos coloquiais.

Querem “ouvir” diferenças maiores? Estão neste

diálogo entre Latham e Bilbo, que Lincoln contrata

para angariarem apoiantes para a sua 13.ª Emen-

da à Constituição (37m27s). Ao verem o debate no

congresso, interrogam-se: “Quem é aquele homem

todo suado que morde o polegar?” “Não o conheço.

Parece inquieto.” Isto em

Português. Em “Brasilei-

ro” o diálogo é traduzido

assim: “Quem é o suado

mordendo o dedão?” “Des-

conheço, parece irrequie-

to.” Um pouco mais adian-

te (38m14s), ainda com os

mesmos protagonistas e o

mesmo cenário, primeiro

na versão em “Brasileiro”:

“O interessante é que o sr.

Yeman parece irritado.”

“Ele devia estar aplaudin-

do.” “Parece que comeu

ostra podre.” E agora em Português: “O mais inte-

ressante é o aspeto carregado e descontente do sr.

Yeaman.” “Ele devia estar a aplaudir.” “Parece que

comeu uma ostra estragada.” Viram o “aspeto”? Se

na versão brasileira fosse incluída tal palavra, escre-

veriam “aspecto”. No espeto, só os portugueses.

Por fi m, só mais um exemplo, ainda com Latham

e Bilbo (44m23s), desta vez a explicarem a Lincoln

quem haviam conquistado para a causa anti-escla-

vagista. Ao falarem de Giles Stuart (Stuart está a

levantar dinheiro do banco, dão-lhe um encontrão,

as notas espalham-se pelo chão e, enquanto eles o

ajudam a apanhá-las, mostram-lhe a proposta de

13.ª Emenda), comentam (em Português): “Que tra-

palhão.” E em “Brasileiro”: “Bem estabanado.”

Bem estabanado??? Será Tupi? Guarani? Serta-

nejo? Gaúcho? Nada disso. A palavra virá do latim

tabanu, espécie de moscardo, que deu origem a ta-

bão ou tavão. Ora, cruzando informações de vários

dicionários, a picada de tal moscardo fazia com que

a vítima fi casse tresloucada, descuidada, desastra-

da. O estabanado (ou estavanado) vem daí.

Pois bem: que tabão terá mordido a quem acha

que pode “unifi car” diferentes modos de falar e es-

crever uma mesma língua (o Português) num acor-

do ortográfi co que apenas fi nge que é tudo igual,

já que continuará a haver traduções diferenciadas

(em fi lmes, livros, peças de teatro) para Portugal e

para o Brasil? Que desvario moverá tais criaturas,

contra todas as evidências, argumentos e protestos?

Quem caça o moscardo e o neutraliza, para evitar

os malefícios de tão estabanado acordo?

Nos filmes em Blu-ray ainda se menciona “Brasileiro” como língua para legendas

JRD
Rectangle