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Acta Científica – Ciências Humanas – 1º Semestre de 2007 �

Revista indexada

1. Edubase (Faculdade de Educação/Unicamp-SP)

2. Sumários Correntes de Periódicos Online (Faculdade de Educação/Unicamp-SP)

3. CLASSE - Citas Latinoamericanas en Ciencias Sociales y Humanidades (Universidad Nacional Autónoma de México)

4. INEP - Instituto Nacional de Estudos e Pesqui-sas Educacionais Anísio Teixeira (Ministério da Educação)

Ficha Catalográfica

Acta Científica. Ciências Humanas – CentroUniversitário Adventista de São Paulo,Campus Engenheiro Coelho – v.1, n.12 (2007)Engenheiro Coelho: Imprensa UniversitáriaAdventista, 2007.SemestralISSN: 1519-98001. Ciências Humanas

Consultoria e Normatização Técnica:Kátia Corina Vieira – CRB 8/5748

Lia M. de Souza Holdorf – CRB 8/6486

A1882

REITOREuler Pereira Bahia

PRÓ-REITORA ACADÊMICAThalita Regina Garcia

PRÓ-REITOR ADMINISTRATIVO Elnio Freitas

DIRETOR GERAL DO CAMPUS-ECJosé Paulo Martini

DIRETOR DE GRADUAÇÃOAfonso Ligório

DIRETORES DE PÓS-GRADUAÇÃO, EXTENSÃOE PESQUISARoberto C. Azevedo e Ednice Burlandy

EDITORVanderlei Dorneles

COMITÊ EDITORIALAfonso Ligório CardosoEliel UnglaubRenato Stencel

EDITORES-ASSOCIADOSRenato GrogerWendel Lima

DESIGNER GRÁFICOGeyvison Ludugério

PROGRAMADOR VISUALTiago Cabreira

CONSELHO EDITORIALAlberto R. Timm (Unasp-EC)Elias Boaventura (Unimep)Julian Melgosa (Adv. Univ. Philippines)Michael D. Pearson (Newbold College-UK)Paul Brantley (Andrews University-USA)

Valdemir C. Neri (Unisa)Víctor A. Korniejczuk (Univ. Montemorelos-México)William Green (Northern Caribbean Univ.- Jamaica)

COORDENADORES DOS CURSOSADMINISTRAÇÃO: Everson MückenbergCIÊNCIAS CONTÁBEIS: Wanderley GazetaCOMUNICAÇÃO SOCIAL: Martin KuhnEDUCAÇÃO ARTÍSTICA: Ellen de A. Boger StencelLETRAS: Joubert PerezPEDAGOGIA: Nair EblingTEOLOGIA: Amin A. RodorTRADUTOR E INTÉRPRETE: Ana SchäfferDIREITO: Josias de Souza

PUBLICAÇÃOUNASPRESS - Imprensa Universitária Adventista

A Revista Acta Científica – Ciências Humanas é uma publicação semestral elaborada pela diretoria de pós-graduação, extensão e pesquisa do Centro Universitário Adventista de São Paulo. Todos os direitos são reservados, nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida ou transmitida por quaisquer meios, sejam mecânicos ou eletrônicos, incluindo a fotocópia de qualquer informação sem a prévia autorização dos editores. O Conselho Editorial não assume necessariamente a responsabilidade pelo material publicado nesta revista. Os trabalhos publicados representam o pensamento de seus autores.

ENDEREÇOS PARA CORRESPONDÊNCIACentro Universitário Adventista de São Paulo

Acta Científica – Ciências HumanasCaixa Postal 11 - CEP 13165-970Engenheiro Coelho - SP Tel.: (0XX19) 3858-9055E-mail: [email protected]: www.unaspress.unasp.edu.br

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Acta Científi ca – Ciências Humanas – 1º Semestre de 2007 5

Imprensa Universitária Adventista de São [email protected]

Imprensa Universitária Adventista de São Paulo

1.º semestre – 2007 Volume 1, Número 12

SUMÁRIO07 EDitORiAL

09 fiLOSOfiA DA CiÊNCiAA CIÊNCIA NA PÓS-MODERNIDADE: A FALÊNCIA DAS METANARRATIVAS E SUAS IMPLICAÇÕES NA CONSTRUÇÃO DO PARADIGMA CIENTÍFCO CONTEMPORÂNEO

Allan Macedo de Novaes

23 LitERAtURAO NOME DA ROSA: (DES)CAMINHOS DA VERDADE PÓS-MODERNA

Creriane Nunes Lima

41 LitERAtURAA NARRAÇÃO DA HISTÓRIA E O CONCEITO DE TEMPO EM BENJAMIN

Afonso Ligório Cardoso

53 LitERAtURAUM COPO DE CÓLERA: NARRAÇÃO, DISCURSO E ESPETÁCULO – UMA OBRA PÓS-MODERNA

Tania Sturzbecher de Barros e Sérgio Fernandes de Lima

61 tECNOLOGiAAS NOVAS TECNOLOGIAS E A IN(EX)CLUSÃO SOCIAL, LINGUÍSTICA E DIGITAL

Ana Maria de Moura Schäff er

71 EDUCAÇÃOEDUCAÇÃO ADVENTISTA: OBJETIVOS, CARACTERÍSTICAS DO EDUCADOR E DOS EDUCANDOS

Adolfo Semo Suárez

91 EDUCAÇÃOAS RELAÇÕES INTERPESSOAIS NA ESCOLA SOB O OLHAR PSICOPEDAGÓGICO

Marinalva Imaculada Cuzin

99 RESENhAOS TEXTOS HIPOCRÁTICOS E A HISTÓRIA DA SAÚDE

Milton L. Torres

1.º semestre – 2007 Volume 1, Número 12

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A IDEOLOGIA DA CULTURA

VANDERLEI DORNELESEDITOR

Thomas Kuhn gerou uma revolução ao propor que a ciência é produto de uma época, e que reflete a visão de mundo e suas técnicas de captação de dados. Sua noção de paradigma foi nas décadas posteriores incorporada com muita avidez em pesquisas ao redor do mundo.

A idéia de que a ciência não tem um desenvolvimento linear, mas é produzida a partir de seu contexto, oferece uma ferramenta adequada para o entendimento das teorias pós-modernistas, dos Estudos Culturais e de outras metodologias contemporâneas. O contexto das mesmas é a revolução cultural pela qual passa o Ocidente desde os anos 1960, conhecida como a contracultura. Culturas ditas periféricas, minoritárias ou subalternas, em contato com as culturas tidas como dominantes, provocam uma exploração cultural, com a gera-ção de inúmeros textos, que eventualmente circulam e seduzem leitores e consumidores em todos os estratos sociais. Os ritmos oriundos da cultura afro, espalhados pelo mundo, especialmente através do rock, é um dos exemplos dessa explosão. Mas também ideologias feministas, homossexualistas e de outras minorias conseguem se difundir por meio da cultura de massa.

Esse movimento de emancipação cultural contrariou diversas metodologias estrutu-ralistas e marxistas que consideravam o processo de dominação política e econômica como tendo sua contrapartida cultural. Deu impulso para o surgimento de outras abordagens que vêem a cultura como uma rede de práticas e experiências nas quais o papel do indivíduo está em primeiro plano, em detrimento do papel das superestruturas. Antonio Gramsci entendeu que, no plano cultural, as classes sociais podem alternar-se na hegemonia. O paradigma dos Estudos Culturais, de origem britânica, entende que os diversos grupos sociais se articulam ativamente na produção e reprodução da cultura. Por sua vez, para a semiótica da cultura, de origem russa, os textos da cultura têm uma inteligência própria, por meio da qual eles se reproduzem e modelizam indefinidamente, muitas vezes, acima da intervenção da vontade dos indivíduos que os produzem.

Na era da diversidade e do pluralismo cultural, firmam-se modelos metodológicos também pluralistas e, portanto, relativistas, dos quais o pós-modernismo é uma espécie de

EDITORIAL

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Editorial�

matriz. Terry Eagleton é um marxista inquieto com a proliferação do relativismo no panora-ma do pensamento. Em seu livro Depois da Teoria (Civilização Brasileira, 2005), ele lança um olhar ostensivamente crítico sobre as metodologias fundadas na autonomia da cultura, que para ele proporcionam condições relativistas e um vazio epistemológico que beneficiam a pretensão globalizante do capitalismo ocidental. Os estudos relativistas, baseados na noção de autonomia da cultura, pretendem que agora seja a cultura o fundamento do mundo, não mais Deus, nem a natureza, nem o capitalismo. A cultura, então, torna-se a nova natureza, que não pode ser posta em questão assim como não se pode parar uma cachoeira.

É verdade que a ciência é conhecimento relativo, de uma época. Mas será verdade que nenhuma ciência seja capaz de captar vislumbres de verdades universais?

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A CIÊNCIA NA PÓS-MODERNIDADE: A FA-LÊNCIA DAS METANARRATIVAS E SUAS IM-

PLICAÇõES NA CONSTRUÇÃO DO PARADIG-MA CIENTíFICO CONTEMPORâNEO

ALLAN MACEDO DE NOVAES, jornalista, mestrando em Comunicação Social na Umesp e professor do curso de Comunicação Social do Unasp, Campus Engenheiro Coe-lho (SP), [email protected].

Resumo: Este artigo pretende traçar um breve panorama da pós-modernidade, como compreendida por Jean-François Lyotard, na história da filosofia da ciência. Su-gere uma relação de causa e efeito entre as discussões epistemológicas decorrentes do conceito de falência das metanarrativas, do próprio Lyotard, e o fortalecimento de concepções como crise da ciência, retorno do sobrenatural e ascensão das pseudoci-ências, desenvolvidas por autores como David Lyon, Aldo Terrin, João Batista Libânio, Marcelo Coelho e Francesco Bellino, entre outros.

PalavRas-chave: Filosofia da ciência, pós-modernidade, metanarrativas, pseudociência

SCIENCE IN POSTMODERNISM: COLLAPSE OF THE META-NARRATIVES AND THEIR IMPLICATIONS IN CONTEMPORARy SCIENTIFIC PARADIGM

abstRact: This articles intents to draw a brief viewing of the postmodernism as understood by Jean-François Lyotard in the Science Philosophy History. Suggest a cause and effect connection between epistemological discussions which derive from Lyotard’s metanarratives failure concept and the reinforcement of conceptions as the Science crisis, supernatural return and pseudoscience ascension, developed by au-thors as David Lyon, Aldo Terrin, João Batista Libânio, Marcelo Coelho and Francisco Bellino, among others.

KeywoRds: Science Philosophy, Postmodernism, metanarratives, pseudoscience

FILOSOFIA DA CIÊNCIA

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A Ciência na pós-modernidade...10

Introdução

A ciência surge da necessidade de o ser humano compreender os fenômenos da natu-reza com critérios além daqueles estabelecidos pela fé medieval. Enquanto a ciência utilizava métodos rigorosos de observação e experimentação para explicar a realidade, o misticismo e a religião serviam-se da crença no sobrenatural e revelação como critério de verdade. O início da chamada Idade Moderna e o surgimento do positivismo preconizaram uma espécie de rejeição ao sobrenatural e ao religioso de modo que conceitos como “fé” e “revelação” foram relegados ao status de relatos fictícios e infantis da realidade, ao passo que à ciência coube formar um novo discurso sobre a natureza, a vida e o universo.

É, no entanto, com o surgimento do que se chama de pós-modernidade, mais especi-ficamente após a compreensão do conceito de falência das metanarrativas desenvolvido por Jean-François Lyotard (1979), que até mesmo o discurso da ciência sobre a realidade passa a ser questionável - os princípios epistemológicos da ciência, outrora sólidos, são abalados. O motivo é que o novo fenômeno sociocultural declara guerra contra tudo o que advoga para si a qualidade de universal, totalizante ou absoluto – e isso inclui a ciência.

O fenômeno pós-moderno parece criar uma espécie de base para o surgimento de idéias anticientíficas e pseudocientíficas, pelo menos no que se refere ao conceito positivista de ciência. Dessa forma, este artigo pretende traçar um breve panorama do papel da pós-mo-dernidade, como compreendido por Jean-François Lyotard (1998), na história da filosofia da ciência, a fim de sugerir uma relação de causa e efeito entre as discussões epistemológicas de-correntes do conceito de falência das metanarrativas, do próprio Lyotard, e o fortalecimento de conceitos como o de crise da ciência, retorno do sobrenatural e ascensão das pseudociên-cias, desenvolvidos por autores como David Lyon (1998), Aldo Terrin (1996), João Batista Libânio (1998), Marcelo Coelho (1996) e Francesco Bellino (1998), entre outros.

A formação da ciência moderna

A busca pela compreensão dos fenômenos naturais remonta aos primórdios da huma-nidade - o ser humano sempre procurou compreender o que ocorria ao seu redor. Tanto a ciência praticada na Antigüidade quanto a ciência medieval ocidental enfatizavam um conhe-cimento contemplativo e abstrato da realidade, muito afeito ao misticismo e à mitologia, com uma conseqüente desvalorização da prática e da técnica. Especificamente no período medie-val, a relutância ou mesmo inviabilidade de “experimentação e matematização das ciências da natureza” sem dúvida alguma aconteceu devido, em grande parte, à excessiva “preocupação com a vida após a morte” e a prevalência exagerada do “interesse pelas discussões religiosas” (ArAnhA e MArtins, 1995, p. 144).

Porém, foi na chamada modernidade que a procura por explicações não-religiosas do que ocorria na natureza tornou-se não somente a mola propulsora da sociedade, mas a essência do pensamento coletivo. De acordo com CotriM (1999, p. 39) e Grenz (1997, p. 94), já na Renas-cença foram lançados os fundamentos da mentalidade moderna. Os pensadores renascentistas, entre eles o filósofo e cientista inglês Francis Bacon, estabeleceram o fundamento da “moderna

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empresa científica”, ao reacenderem “o interesse pelas obras do mundo à sua volta” (Ibidem). Bacon, precursor do método científico ao enfatizar a experiência, cria que a ciência

dotava os homens com poder de dominar a natureza e que “as pessoas olhariam para a ciência como provedora da chave para a felicidade” (Ibid., p. 95). Isso implicava certa rejeição a menta-lidade medieval e suas explicações místicas e sobrenaturais sobre o mundo físico-natural.

Desde o Renascimento, o pensamento científico passou a ser baseado no racionalis-mo e na mentalidade crítica diante da realidade, a qual só a razão seria capaz de perscrutar (ArAnhA e MArtins, 1995, p. 148). O saber contemplativo, por sua vez, dá lugar a um saber ativo, uma vez que “o conhecimento não parte apenas de noções e princípios”, como pen-sava boa parte dos cientistas medievais, “mas da própria realidade observada e submetida a experimentações”. É dessa forma que se inicia “a aliança da ciência com a técnica” (Ibid., p. 149). Nesse período, temos a figura do italiano Galileu Galilei que estabelece os funda-mentos da física moderna, juntamente com Isaac Newton, o homem que realizou “a maior síntese científica sobre a natureza do mundo físico”, cujo pilar seria a teoria da gravitação universal (Ibid., p. 159).

Apesar de lançar os fundamentos da mentalidade científica moderna, a Renascença não foi responsável por sua solidificação. Grenz afirma que coube ao Iluminismo essa função.

Os teóricos renascentistas foram os pioneiros do método científico, entretanto, não reconstruíram a busca pelo conhecimento consoante a visão científica. O espírito renascentista solapou a autoridade da igreja, mas não entronizou a autoridade da razão. (...) Talvez pudéssemos dizer que a Renascença foi a avó da modernidade, ao passo que o Iluminismo foi seu verdadeiro pai (1997, p. 97).

O Iluminismo foi marcado pela crença no poder da razão para produzir a liberdade e a felicidade humanas, substituindo a cosmovisão teológica medieval pelo racionalismo como árbitro da verdade e da compreensão da realidade. Assim, o mundo físico-natural seria mais bem compreendido pelos dados da experiência dos cincos sentidos do que pelas autoridades externas à razão. Para Lyon, a mentalidade medieval, que entendia a realidade e a natureza sob o conceito da “Providência”, foi substituída. Com a ascensão da razão, uma “variante secular da Providência” ganhou espaço: “a idéia de Progresso” (1999, p. 14).

Abandonando o discurso medieval sobre a natureza e ressaltando as aplicações ló-gico-matemáticas para compreender os fenômenos naturais, os pensadores iluministas, in-fluenciados pela física newtoniana, compartilhavam “uma comum confiança na racionalida-de humana, no progresso e na liberdade” (QuintAniLLA, 1996, p. 211). A confiança na razão humana, contudo, ainda não havia proposto romper em definitivo com a religiosidade e o sobrenatural. Filósofos do Iluminismo como David Hume e René Descartes, entre outros, desenvolveram uma concepção religiosa segundo uma ótica mecanicista, o que admitia a necessidade do divino para compreender a realidade e a natureza (Ibid., p. 217).

Foi, no entanto, com o positivismo de Augusto Comte que a ciência intensificou a separação entre o natural e o sobrenatural, o que se consolidou mediante pensadores e te-orias posteriores. Comte acreditava que o positivismo não era somente mais uma corrente

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A Ciência na pós-modernidade...12

filosófica, mas uma cosmovisão que “acompanha, promove e estrutura o último estágio que a humanidade teria atingido, fundado e condicionado pela ciência” e que, por isso, rejeita a metafísica e valoriza a ciência (siMon, 1986, p. 120). A exaltação da ciência leva ao cientifi-cismo, segundo o qual a “ciência é considerada o único conhecimento possível”, e o método científico é considerado o único válido entre os métodos das ciências da natureza (ArAnhA e MArtins, 1995, p. 116).

A concepção positivista da realidade não propôs apenas mudanças políticas, cien-tíficas e sociais, mas também no próprio sistema religioso. A visão comtiana “privilegia o positivo como última fase de uma evolução iniciada pelo estado teológico, considerado o mais arcaico e infantil da humanidade” (Ibid., p. 118) e ambiciona implementar uma religião positivista.

A preocupação de Comte com a reforma moral e intelectual da humanidade, obje-tivando a reorganização de toda a sociedade, realiza-se plenamente na nova religião criada por ele, a religião da Humanidade como Grande Ser que consiste em ordenar cada natureza individual e religar todas as individualidades. Fortemente influencia-do pelo modelo do catolicismo romano (...) formula um novo calendário, cujos meses recebem nomes de grandes figuras da história do pensamento, como Moisés, Descartes, etc. Tal como o católico, o calendário positivista tem também os seus dias santos, nos quais se deveriam comemorar obras de Dante, Shakespeare, Adam Smith, etc (siMon, 1986, p. 128).

A concepção positivista da ciência, rejeitando a metafísica, acentuou a dicotomia ciên-cia/religião e levou “às últimas conseqüências o papel reservado à razão de descobrir as relações constantes entre os fenômenos” (ArAnhA e MArtins, 1995, p. 117). A união entre ciência e posi-tivismo representou a expulsão dos mitos, da religião, das crenças em geral e da metafísica.

A falência das metanarrativas e a crise da ciência

Uma vez que a mentalidade moderna fundamentava-se na razão e na ciência para explicar a realidade, em uma simplificação conceitual, o pós-modernismo pode ser definido como uma rejeição da mentalidade moderna, da cosmovisão iluminista e também positivista, isto é, “o pós-modernismo se relaciona com o colapso do modernismo” (LeMert, 2000, p. 43). Os modernos, fundamentados essencialmente na razão, acreditavam compreender a rea-lidade “isentos da dependência pré-moderna dos mitos e histórias que explicavam o mundo” (Grenz, 1997, p. 75).

No entanto, na perspectiva pós-moderna, todos os mitos dominantes perdem seu apelo legitimador, inclusive os “ismos” construídos na modernidade. Os pensadores pós-modernos entendem que a História pode ser encarada como uma constante troca de meta-narrativas. Grenz explica essa condição com propriedade:

O que torna nossa condição “pós-moderna” não se restringe somente ao fato de que as pessoas não se agarram mais aos mitos da modernidade. A perspectiva pós-

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moderna implica o fim do apelo a qualquer mito legitimador dominante, seja ele qual for. As principais narrativas predominantes não somente perderam sua cre-dibilidade, como também a idéia de uma narrativa grandiosa já não desfruta de crédito algum. Tornamo-nos não apenas cientes de uma pluralidade de histórias legitimadoras de conflitos, como entramos igualmente na era da morte da meta-narrativa. Na era pós-moderna, todas as coisas são “deslegitimadas”. Conseqüen-temente, a perspectiva histórica pós-moderna requer uma investida contra tudo o que reivindica para si a universalidade – ela requer na verdade, uma “guerra contra a totalidade” (1997, p. 76).

É por isso que LyotArd imortalizou a descrição do pós-modernismo com a frase que o define como “a incredulidade em relação aos metarrelatos” (1998, p. xvi). Obviamente, essa quebra de paradigmas provocada pela falência das metanarrativas atingiu também o saber científico. Diante da ótica totalizante do projeto positivista, a ciência assumia ares de verdade incontestável e absoluta. Os cientistas eram como avatares do progresso da humani-dade em busca da solução dos problemas que assolavam as pessoas e o mundo.

Reagindo a essa mentalidade, os pós-modernos afirmam que a ciência não passa de uma metanarrativa dentre tantas outras, tais como a igualdade comunista, a redenção cristã, o progresso iluminista e o racismo nazista, (Lyotard, 1998; Grenz, 1997; Anderson, 1999; Lyon, 1998) cujo enfraquecimento e relativização são inevitáveis. Explicando Lyotard, Le-Mert inclui a ciência entre um dos pilares da mentalidade moderna que se desintegram com a chegada do pós-moderno:

A ciência e outras formas de conhecimento dependem da legitimidade em que a cultura as mantém. A modernidade é, assim, a cultura que acredita em certas metanarrativas ou histórias amplamente partilhadas, sobre o valor e a “verdade” da ciência (...). A pós-mo-dernidade é uma cultura em que essas metanarrativas são consideradas completamente ilegítimas e, assim, não são universalmente tidas como críveis por completo (2000, p. 61).

Além de Lyotard, outro pensador abordou as limitações epistemológicas da ciência como sistema absoluto e totalizante de explicação da realidade. Embora não-alinhado ao conceito de falência das metanarrativas, o livro A estrutura das revoluções científicas, de Thomas Kuhn (2000), já definia o saber científico como um paradigma, enfraquecendo a idéia de que a ciência é uma observação imparcial de dados empíricos, como queria a ótica moderna. Ele acreditava que a história da ciência não está ligada ao acúmulo e sobreposição de descobertas científicas, mas a substituições de paradigmas por meio de processos mutantes e contraditó-rios no pensamento científico, que ele designou como revoluções científicas. As “revoluções científicas” ou “cortes epistemológicos” seriam, portanto, termos cunhados para designar determinados fenômenos de ruptura ou descontinuidade constatados na história não só da ciência, como do pensamento filosófico e mesmo do saber, na forma de algumas práticas discursivas (epstein, 1988, p. 11).

O conceito de revolução científica, juntamente com outras teorias a respeito da evolução histórica e filosófica da ciência, enfraqueceu a concepção moderna absolutista

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A Ciência na pós-modernidade...14

e positivista ao instituir um discurso questionador quanto à validade da própria ciência e do pensamento científico como entendido até então. Não é toa que epstein afirma que as revoluções científicas são “temas de discursos metacientíficos ou, melhor dito, sobre ciência” (Ibid., p. 14).

A queda do véu de infalibilidade da ciência na pós-modernidade gerou estudos iden-tificando que as mudanças nos sistemas filosóficos são correlatas às mutações realizadas no pensamento científico. Citando Gaston Bachelard, epstein afirma existir três grandes perío-dos históricos na evolução do pensamento científico:

o primeiro, representando o “estado pré-científico”, até os séculos XVI, XVII e XVIII; o segundo, representando o “estado científico”, se prepara no fim do sé-culo XVIII e se estende até no início do século XX; o terceiro, o do Novo Espírito Científico, tem seu início fixado em 1905, no momento em que “a relatividade eins-teiniana vem deformar os conceitos primordiais que se acreditava imobilizados para sempre” (Ibid., p. 24).

A nomenclatura de Bachelard – “Novo Espírito Científico” – de fato representou um novo impulso para a crise da ciência moderna. Nesse período, ocorreram descobertas que colo-caram em xeque o conceito inquestionável mantido pela ciência até então, – o de que o universo apresentava “uma ordem interna consistente, facilmente compreensível e imaginável pela mente humana” (Grenz, 1997, p. 83). Autores como Bellino (1998), Modin (1981) e Terrin (1996) acre-ditam que a teoria geral da relatividade, a ascensão da física quântica e a consolidação da teoria da entropia ou segunda lei da termodinâmica mudaram a mentalidade de cientistas e mesmo a própria noção de ciência diante da descoberta de um universo imprevisível e imensurável.

Diante desse novo quadro, no qual “o mundo complexo dos novos físicos é totalmen-te diferente do universo simples, estático e objetivo de Galileu e Newton” (Ibid., p. 87), é a entropia que estabelece a idéia de que “o mundo é dirigido pelo acaso e pela desordem inter-na” (terrin, 1996, p. 58). Para Francesco BeLLino, a “crise da certeza produziu a ‘certeza do acaso’” (1998, p. 578) e Edgar Morin é mais um dos grandes pensadores da atualidade que discursa sobre as extensões dessa crise científica: “Hoje em dia podemos dizer: não há nenhum fundamento único, último, seguro do conhecimento” (1999, p. 22).

O que ocorre com a ciência na pós-modernidade é uma “necessidade de reavaliação do conceito de ciência, dos critérios de certeza, da relação entre ciência e realidade, da validade dos modelos científicos” (ArAnhA e MArtins, 1995, p. 163). E é por ocasião dessa reavaliação da validade da ciência que o sobrenatural surge como alternativa altamente viável e satisfatória para a compreensão da realidade e para a resolução de seus problemas, funções antes ampla-mente atribuídas à ciência e que agora parecem encontrar novos ares epistemológicos.

O retorno do sobrenatural

O retorno do sobrenatural como fruto da crise da razão e, por conseguinte, da ciên-cia, é identificado por David Lyon (1998), Aldo Terrin (1996), João Batista Libânio (1998) e

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Francesco Bellino (1996). Para Lyon (1998), as idéias medievais fundamentavam-se no con-ceito da Providência, na qual Deus estava sob o comando do destino e da compreensão da realidade. Na modernidade, a Providência é substituída pelo Progresso, quando a certeza dos sentidos superou a crença na divindade. Mas as contradições e decepções da modernidade fazem com que o divino retorne ao centro das atenções, fazendo com que o conceito me-dieval da Providência volte à tona, como o próprio Lyon afirma: “a Providência, afinal, não era uma idéia tão ruim assim” (1998, p. 131). Para terrin, o retorno do sagrado pertence à seguinte seqüência: “crise da razão; renascimento da intuitividade e do imediatismo; redesco-berta de Deus no mundo; mística natural e de caráter oriental” (1996, p. 77).

Outros autores também identificaram o fenômeno do retorno do sagrado ao disser-tarem sobre a crise da ciência. BeLLino (1998, p. 568 e 571) entende que a modernidade, na tentativa de dessacralizar a compreensão do mundo, caracterizou-se pela dissociação entre razão e fé, entre ciência e religião. Enquanto a religiosidade medieval se baseava na incapacidade do ser humano em determinar seu próprio destino, deixando-o sob a respon-sabilidade da vontade divina, a ciência moderna lutou para esfacelar esse sentimento de temor com que os seres humanos enfrentavam a vida, levando-os a acreditar que podiam antecipar, compreender e até dominar as leis e os fenômenos que regem o mundo. Con-tudo, os efeitos do progresso e da tecnologia aceleraram a identificação da ciência como mais uma metanarrativa em vias de extinção. A humanidade passou a se decepcionar com as promessas feitas pela era da razão.

Sem se iludir com os enormes progressos no campo da tecnologia, da pesquisa científica, do desenvolvimento econômico, do progresso material, a pós-moder-nidade decepcionou-se com os efeitos nefastos da razão. Critica-lhe a colonização da razão comunicativa, convivial, a poluição e destruição da natureza, o tipo de urbanização extremamente desumanizante, a monstruosa desigualdade social, a in-dústria de morte de armas e da droga, a construção de campos de concentração, a confecção e explosão das bombas atômicas sobre o Japão, a hedionda bomba Na-palm, etc. Enfim, a ladainha dos crimes da razão moderna é interminável (LiBânio, 1998, p. 66).

Curiosamente, a tentativa do cientificismo de diluir e exterminar o sagrado na socie-dade moderna acabou por preparar seu reaparecimento de uma forma mais sutil e imanente (Ibid., p. 62). A crise da razão e a decepção com a ciência imbuíram a geração pós-moderna um profundo pessimismo, impulsionando o homem a uma sede desesperada de segurança e de certeza, levando a uma “busca generalizada pela transcendência”, pois “no vazio deixado pela pretensão científica, ressurge todo o tipo de crença e a recorrente busca pelo sobrena-tural” (dorneLes, 2003, p. 40 e 46).

A própria ausência de Deus, a descoberta do absurdo que envolve a ciência huma-na, as interrogações sem resposta sobre as causas primeiras e sobre os fins últimos, a existência do mal e do sofrimento, a presença do acaso e do caos na natureza e

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A Ciência na pós-modernidade...16

nos negócios humanos, depois da queda das pretensões que o cientificismo tinha de responder a todas as nossas perguntas, podem abrir espaço para a invocação, lançar as bases da autêntica experiência religiosa e, ao mesmo tempo, redimensio-nar as várias formas fundamentalistas e gnósticas da religiosidade e purificar a fé (BeLLino, 1998, p. 578).

Com o “desmoronamento da velha pretensão da ciência de ser a única via de acesso à verdade objetiva”, a razão é obrigada a “interrogar-se sobre si mesma” (Ibid., p. 578). Assim, o mundo pós-moderno tende a desestabilizar a dicotomia outrora criada entre fé e razão. Na pós-modernidade, a inimizade de séculos e séculos entre ciência e religião abre espaço para uma cooperação, na qual ambas procuram um diálogo muito mais amistoso e solidário entre as par-tes (Ibid., p. 569). No entanto, o retorno do sobrenatural na pós-modernidade não trata apenas de corrigir o enfoque antimetafísico ou anti-sobrenatural da ciência, mas também renovar sua epistemologia – dar-lhe um novo conceito, uma nova roupagem. A ciência, portanto, entra em uma nova fase de abertura ao metafísico (terrin, 1996, p. 63; dorneLes, 2003, p. 40).

O físico teórico Fritjof Capra é um dos defensores dessa nova fase da ciência, com ên-fase no metafísico. Em seu livro O Tao da física, citado por Terrin (1996), Capra propõe que as descobertas científicas, em especial a teoria da relatividade de Einstein, promoveram uma nova visão das leis que regem o universo: a relatividade das variáveis tempo e espaço se assemelha com a que acontece nas concepções místicas do yin e yang do taoísmo. Nesse encontro da ciên-cia física com a experiência mística, a metodologia científica entra em falência, pondo em crise também o pensamento cartesiano e reducionista. terrin explica que Capra é um dos principais expoentes da “misticalização” da ciência ao crer no dever que a ciência pós-moderna possui de “adotar ‘cânones’ místicos em sua interpretação do mundo” e na missão da física atual de aproximar-se do misticismo se quiser “compreender a realidade” (1996, p. 62).

Ascensão das Ciências Humanas e das pseudociências

Outra conseqüência da abertura da ciência ao metafísico, fruto do retorno do sobre-natural na pós-modernidade, foi a contestação da distinção clássica modernista entre ciên-cias naturais (exatas e biológicas) e as ciências humanas e sociais. A concepção positivista da ciência defende a legitimidade exclusiva das ciências naturais – o método das ciências da natureza deveria ser estendido a todos os campos da atividade humana (ArAnhA e MArtins, 1995, p. 116). Com o positivismo, “não somente as ciências naturais, mas também as ciências humanas – política, ética, metafísica e até filosofia e teologia – foram submetidas ao escrutí-nio científico” (Grenz, 1997, p. 105).

Entretanto, com a nova fase da ciência e o enfraquecimento do viés positivista, as ciências humanas ganham força. O mecanicismo e o determinismo da ciência positivista esbarram na complexidade e subjetividade dos fenômenos humanos e sociais. O veto posi-tivista às ciências humanas, isto é, a negação do caráter de cientificidade àquilo que não per-tence às ciências naturais, é questionado, entre outros autores, por Abraham MoLes (1995). Ele contesta essa classificação tradicional e defende a reformulação da noção de ciência

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dentro do conceito que ele chama de “ciências do impreciso”. Para ele, “a ciência tal como a conhecemos não nos fala quase do que é impreciso, do que é flutuante, do que muda e só se repete aproximativamente”, pois prefere “as correlações fortes entre as variáveis ao invés das correlações fracas da vida” (1995, p. 16). MoLes questiona a ênfase exata e objetiva da ciência, ao exigir respostas para o porquê da restrição científica tradicional e o confinamento da mesma às ciências convencionais.

Quando devemos tratar de todas estas grandezas imprecisas: o amor de nossa mu-lher, a dureza do inspetor de impostos, a sedução do argumento publicitário, a sabedoria do chefe, a fragilidade do social? Por que ninguém os estudou? Certa-mente. Mas ainda por quê? A “categoria” dos fenômenos imprecisos não tem – ou quase não tem – “ciência” nem métodos que lhe sejam próprios. (...) De fato, isto é, desviar-se das idéias vagas, dos conceitos fluidos, confundindo-os, superficialmente com as idéias falsas e abandonando “tudo isto” a uma família de disciplinas mal separadas ainda da filosofia-mãe que as engendrou e que se classifica sob o nome – também totalmente impreciso – de “ciências do homem” ou “ciências sociais” (MoLes, 1995, p. 17).

Esse direcionamento de ênfase das ciências exatas para as ciências humanas reflete

as mudanças geradas pela abertura científica ao metafísico e ao sobrenatural, que por sua vez foram produzidas pela crise da ciência como metanarrativa. Se a ciência deixa de ser vista como verdade absoluta, passando a ser enquadrada dentro de um relativismo histó-rico e cultural, cuja legitimação depende da cultura a qual está inserida, não há validação das características da ciência. Na pós-modernidade, a ciência triunfalista e mecanicista do positivismo com todos seus postulados não são melhores do que a ciência grega ou mes-mo medieval – todas as teorias científicas são consideradas válidas, dentro do seu respec-tivo paradigma, cuja importância é mais histórica-cultural do que propriamente científica (rouAnet, 1996, p. 294).

Portanto, a verdade científica, em última instância, seria também social e ideológica, e não somente lógico-matemática ou exata. Todo resultado científico obtido e toda experiência científica realizada “repousa sobre uma rede de teorias, idéias, palavras, tradições”, fazendo com que o conhecimento científico não seja mais “uma compilação de verdades universais objetivas”, mas antes uma “coleção de tradições investigadoras amparadas por comunidades específicas” (Grenz, 1997, p. 90-91).

O historiador da ciência que examinar as pesquisas do passado a partir da perspecti-va da historiografia contemporânea pode se sentir tentado a proclamar que, quando mudam os paradigmas, muda com eles o próprio mundo. Guiados por um novo paradigma, os cientistas adotam novos instrumentos e orientam seu olhar em novas direções. E o que é ainda mais importante: durante as revoluções, os cientistas vêem coisas novas e diferentes quando, empregando instrumentos familiares, olham para os mesmos pontos já examinados anteriormente. É como se a comunidade pro-fissional transportada para um novo planeta, onde objetos familiares são vistos e

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a eles se apegam objetos desconhecidos. Certamente não ocorre nada semelhante: não há transplante geográfico; fora do laboratório os afazeres cotidianos em geral continuam como antes. Não obstante, as mudanças de paradigma realmente levam os cientistas a ver o mundo definido por seus compromissos de pesquisa de uma maneira diferente. Na medida em que seu único acesso a esse mundo dá-se através do que vêem e fazem, poderemos ser tentados a dizer que, após uma revolução, os cientistas reagem a um mundo diferente (Kuhn, 2000, p. 145-146).

Sendo a ciência, em última instância, um paradigma social-ideológico, fruto da ação da sociedade e da cultura sobre as comunidades científicas, o fortalecimento da ênfase das ciên-cias tidas como humanas e sociais é uma conseqüência inevitável. O pós-moderno recorre às ciências do ser humano em detrimento das ciências matemáticas e físicas para compreender e definir as descobertas científicas.

Contudo, essa nova ênfase humanístico-social da ciência, somada ao fenômeno de abertura ao metafísico e ao sobrenatural, é marcada pelo que muitos autores consideram como uma intrusão de práticas místicas e religiosas. Terrin (1996) acredita que a Nova Era, e toda sua carga de esoterismo e misticismo, aproveitou-se da crise da visão positivista e me-canicista da ciência para propor um novo diálogo entre o mundo físico e espiritual. Para ele, as perguntas cruciais “O que é o homem, o que é o mundo?”, que a ciência havia usurpado da filosofia e da religião, antes acusadas de inverossimilhança e incompetência, são agora devolvidas ao conhecimento metafísico – porque a racionalidade e o cientificismo exigiram respostas que eles mesmos não puderam dar.

Assim, terrin compreende que o método científico analítico e reducionista agora deve juntar-se a um “método holístico, totalizante, ‘místico’” – o que implica o nascimento de uma “epistemologia da Nova Era” (1996, p. 32 e 33). Logo, a ciência abandona o suporte positivista e se lança em direção a uma compreensão espiritual e religiosa da realidade, da natureza, do mundo e do ser humano.

De fato, o crescimento das terapias e medicinas alternativas, astrologia, tarô, quiro-mancia, poder de cristais, yoga, meditação, bebidas e alimentos místico-medicinais, entre outras práticas de origem mística, atestam para uma inserção espiritualista na visão e práxis científica. A pseudociência, portanto, pode ser caracterizada como a faceta mística da ciência na pós-modernidade. É a parte da ciência que se entrega ao irracional, ao metafísico, mas não abandona de tudo a roupagem científica e racional. Marcelo CoeLho amplia essa idéia com um tom de protesto.

Sou dos que com mais impaciência assistem a um processo crescente de irraciona-lismo, de proliferação de seitas, de superstições alternativas. Anjos, duendes, reen-carnação, horóscopo, terapias de cristais e de vidas passadas, o mercado está aberto para todo o tipo de charlatanices e para a clássica atitude irracionalista do “por que não acreditar?”. Crise da razão, certamente: acredita-se que com amuletos e cristais se podem curar doenças, numa contrafação manipulatória da ciência. Mais pseudo-ciência do que religião e misticismo (1996, p. 346-347).

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Conclusão

O pós-modernismo, definido por LyotArd como “a incredulidade em relação aos metarrelatos” (1998, p. xvi), provocou um enfraquecimento da compreensão posi-tivista da ciência. Enquanto a modernidade foi marcada por grandes narrativas que ex-plicavam a realidade de maneira absoluta e exclusivamente racional, tais como evolu-cionismo, o marxismo, o positivismo, entre outros, na perspectiva pós-moderna todas as grandes narrativas perdem seu apelo legitimador e totalizante. Tal mudança afeta a ciência, que também é considerada na pós-modernidade como mais uma metanarrativa a ser questionada. Isso se dá pelo fato da construção do conceito de ciência ter sido resultado histórico-cultural das narrativas da modernidade, destacando-se entre elas o iluminismo e o positivismo.

Diante da ótica totalizante do projeto positivista, quando a ciência assume uma blindagem de verdade incontestável e absoluta, ocorre o fortalecimento da dicotomia ciência/religião, na qual o sagrado e o sobrenatural são considerados embustes ao co-nhecimento legítimo da realidade. No entanto, o paradigma pós-moderno reconstrói a visão da ciência, enfraquecendo sua autoridade como legitimadora da realidade e como única fonte segura do conhecimento, e abrindo espaço para a participação do sagrado e do sobrenatural na procura da verdade. Na pós-modernidade, percebe-se a “necessidade de reavaliação do conceito de ciência, dos critérios de certeza, da relação entre ciência e realidade, da validade dos modelos científicos” (ArAnhA e MArtins, 1995, p. 163). Logo, a ascensão do sobrenatural e do sagrado surge como alternativa para su-prir as lacunas epistemológicas identificadas pela reavaliação do conceito de ciência na pós-modernidade. Autores como Terrin (1996), Libânio (1998) e Bellino (1998), entre outros, identificam essas mudanças como uma crise da ciência. Diante desse quadro, a compreensão do fenômeno da morte ou falência das metanarrativas, a qual se refere Jean-François Lyotard em sua obra A condição pós-moderna, parece ser um conceito indis-pensável para se entender as mudanças e desafios que a ciência enfrenta. É com a com-preensão da pós-modernidade e da crise das metanarrativas que se revela uma ligação entre o enfraquecimento da ciência como um discurso absoluto e infalível da realidade e a ascensão do misticismo e do sobrenatural no discurso e na práxis científica, por meio do que se chama de pseudociência.

Estudos posteriores podem demonstrar a intencionalidade ou não dessa relação nos escritos de Lyotard, bem como a existência ou inferência de sua opinião sobre o tema. De qualquer forma, a pós-modernidade, ainda longe de representar uma ameaça mortal à longa galeria de triunfos da ciência, já é um fenômeno amplo e forte o suficien-te para exigir, cada vez mais, uma reavaliação epistemológica da ciência – um exame de seu papel, desafios, limites e, acima de tudo, de seu discurso absoluto e autolegitimador. Faz-se necessário, portanto, delimitar até que ponto a ciência deve despir-se do conceito de único conhecimento confiável e irrevogável sem comprometer a natureza, a função e a aplicabilidade responsável do conhecimento e métodos científicos.

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Notas1 Embora não haja consenso entre os estudiosos da pós-modernidade para identificar quem primeiro

designou o termo, há um consenso de que ele tenha aparecido por volta da década de 1930 (Grenz, 1997, p. 34). Enquanto alguns atribuem a criação do termo ao escritor Federico de Onis, em sua obra intitulada Antologia de la poesia española e hispanoamericana, como uma reação dentro do modernismo, o primeiro uso do termo é mais freqüentemente atribuído a Arnold Tonybee em sua obra Estudos de história. “Tonybee estava convencido de que havia iniciado uma nova época, embora, tudo indica, tivesse mudado de opinião quanto a ser a Primeira Guerra Mundial ou já a década de 1870 como seu marco inicial” e acreditava que a transição da era moderna para a pós-moderna “se deu quando a civilização ocidental desviou-se para a irracionalidade e para o relativismo”, cedendo lugar para “as culturas não-ocidentais e para uma nova cultura mundial pluralista” (Ibid, p. 35). No entanto, embora tenha surgido na década de 1930, o pós-modernismo como fenômeno sociocultural só ganhou força “três ou quatro décadas mais tarde”, cativando na década de 1960 “artistas, arquitetos e pensadores que buscavam propor alternativas radicais à cultura moderna predominante” e penetrando “a cultura tradicional” na década de 1970 (Ibid, p.36). Porém, a consolidação da noção do pós-moderno foi atribuída a Jean-François Lyotard, por sua obra La condition postmodern, em 1979.

2 “A Providência é o cuidado que Deus tem com o mundo depois de sua criação, supervisionando o pro-cesso da história de modo que esta avance numa linha em direção de um objetivo específico” (Lyon, 1998, p. 14).

3 O mecanicismo compara a natureza e o homem a uma máquina, “um conjunto de mecanismos cujas leis precisam ser descobertas” (ArAnhA e MArtins, 1995, p. 152). “As explicações são baseadas em um esquema mecânico cujo modelo preferido é o relógio” (Ibidem). Deus, portanto, seria “o ser supremo que desenha a máquina do universo” (QuintAniLLA, 1996, p. 217).

4 A grande ruptura no pensamento científico que potencializou ou mesmo até produziu o questiona-mento da legitimidade da ciência moderna se deu na passagem da era do estado científico para a do Novo Espírito Científico, isto é, da substituição da mentalidade newtoniana pela einsteiniana. “Não se vai do primeiro (sistema de Newton) ao segundo (sistema de Einstein), acumulando conhecimentos, redobrando os cuidados nas medidas, retificando ligeiramente os princípios. É preciso, pelo contrário, um esforço de novidade total”, são as palavras de Bachelard, citadas por epstein. “O pensamento newtoniano era, de saída, um tipo maravilhosamente transparente de pensamento fechado; dele não se podia sair a não ser por arrombamento” (1988, p. 26).

5 Segundo a Wikipédia (português), pseudociência é “qualquer tipo de informação que se diz ser baseada em factos científicos, ou mesmo como tendo um alto padrão de conhecimento, mas que não resulta da aplicação de métodos científicos”. As pseudociências geralmente misturam alegações metafísicas com empíricas, sendo as mais conhecidas: a medicina Ayurvedica, alquimia, astrologia, iridologia, grafologia, entre outras.

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O NOME DA ROSA: (DES)CAMINHOS DA VERDADE PÓS-MODERNA

CRERIANE NUNES LIMA, licenciada em Letras e pós-graduada em Docência Universitária, professora do curso de Letras do Unasp, Campus Engenheiro Coelho (SP), [email protected].

Resumo: Este artigo apresenta uma reflexão sobre a obra O nome da rosa (1983) de Umberto Eco. Tem o propósito de investigar a presença de um discurso questiona-dor da pós-modernidade dentro da obra, baseando-se em alguns conceitos teóricos de Maria Lúcia Guelfi, Stanley J. Grenz, Jair Ferreira dos Santos e Leyla Perrone-Moisés. Destacamos a estrutura lingüística, a construção labiríntica da narrativa e seus concei-tos implícitos. Assim, o artigo considera a intenção de questionar os valores pós-mo-dernos da cultura ocidental como uma mensagem real em O nome da rosa.

PalavRas-chave: Pós-modernismo, análise literária, ideologia

thE NAME Of ROSE: (DI)VERSION OF THE POST MODERNISM TRUTH

abstRact: This article presents a reflection about The name of the rose (1983) from Umberto Eco. Its purpose is to investigate the presence of a questioning speech from post modernity based on some concepts of Maria Lúcia Guelfi, Stanley J. Grenz, Jair Ferreira dos Santos e Leyla Perrone-Moisés. We highlight the linguistic structure, a la-birintic construction of the narrative and its implicit concepts. Thus, this article also considers the intention of questioning the post moderns’ values of the western culture as a real message in The name of the rose.

KeywoRds: Post modernism, literary analysis, ideology

Introdução

O presente trabalho tem o objetivo de analisar a obra O nome da rosa (1983) de Umberto Eco, para evidenciar a hipótese de que há, nessa obra, uma intenção de ques-tionar os valores pós-modernos da cultura ocidental.

LITERATURA

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As análises que se seguirão partem de uma moldura histórico-filosófico-lite-rária. O embasamento teórico-metodológico que norteia esta pesquisa é retirado de pensadores da pós-modernidade como Maria Lúcia Guelfi, com o texto Narciso na sala de espelhos (1994), Stanley J. Grenz, com Pós-modernismo (1997), Jair Ferreira dos Santos, com O que é pós-moderno (1986) e Leyla Perrone-Moisés, com Altas literaturas (1998).

O nome da rosa (Il nome della rosa) é uma obra que narra fatos ocorridos em 1327. Seu autor, o italiano Umberto Eco, nascido em 1932 na cidade de Alessandria, publicou a obra pela primeira vez na Itália, em 1980, e, em 1983, nos EUA. Hoje, ela é um best-seller com mais de 4 milhões de cópias vendidas, traduzida para 24 línguas e vencedora de vários prêmios literários ao redor de todo mundo. Contudo, um questionamento se levanta: por que lançar em 1980 uma obra com cenário pertencente “ao findar do ano do Senhor de 1327”? Quais as características comuns ao século 20 e à época retratada no livro? Ao analisarmos O nome da rosa, contextualizaremos estas questões dentro de uma abordagem pós-moderna, partindo de uma análise literária que compara as filo-sofias e visões de mundo tanto do momento histórico retratado (Idade Média) quanto da pós-modernidade, época em que a obra foi escrita. Essa moldura de análise é chave importante para entendermos a situação narrativa desse best-seller.

Uma das especificidades do texto literário é a heterogeneidade de significados que veicula. Vale lembrar que esses significados contêm bifurcações. Uma das mais importantes questões levantadas em O nome da rosa é: onde está e o que é a verdade? Aparentemente, a obra constrói-se na transparência dos caminhos que nos conduzem à decifração do enigma da verdade. O fato de ela estar relacionada aos nossos tempos, prova que esses caminhos não são muito simples.

Propomo-nos a percorrer os caminhos da obra, dentro do jogo de espelhos e labirintos nela contidos. Entretanto, passa-se, primeiramente a uma abordagem sinte-tizada do pós-modernismo para depois analisarmos a presente obra de arte.

Pós-modernismo: a marca de uma cultura

Elaborar um conceito de pós-modernismo é uma tarefa bastante complexa. Quan-do falamos de pós-modernismo, precisamos nos remeter ao contexto da cultura ociden-tal a partir da década de 1950. Essa época marcou o início de uma contracultura, que explodiu através da rebeldia nos anos 1960. Havia, na verdade, uma atitude de ruptura, própria das vanguardas. Quanto à arte literária, conforme sAntos (1986, p. 39), o com-portamento era o seguinte:

Os pós-modernistas querem a destruição da forma romance (...). Ou então querem o pastiche [uma obra que imita o estilo de outra], a paródia [segundo Bakhtin, um discurso que estabelece um diálogo com outro assumindo uma postura irônica com relação ao primeiro], o uso de formas gastas (romance histórico) e de massa (romance policial, ficção científica) (...). Há, portanto, uma desde-finição de romance (...). E são comuns uma história dentro de outra que está dentro de outra... sem fim (...). Quase sempre os textos vêm recheados com

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citações, colagens e referências à própria literatura. Isto é, a literatura pós-moderna é intertextual; para lê-la, é preciso conhecer outros textos.

Embora muitos especialistas e estudiosos trabalhem sempre reformulando seu próprio conceito de pós-moderno, GueLfi (1994, p. 3) afirma que “alguns teóricos (...) definem pós-modernidade como a crise das narrativas mestras, ou seja, dos sistemas totalizantes”. Jean-François Lyotard (apud Grenz, 1997, p. 77) confirma: “Simplificando ao máximo, defino ‘pós-moderno’ como incredulidade em relação às metanarrativas.” Mas a própria autora Guelfi reconhece mais à frente que “o desejo de tentar encontrar um significado totalizador para o conceito não é nada pós-moderno”. Dessa forma, há uma pluralidade de conceitos do pós-modernismo.

Lyotard (apud Moisés, 1998, p. 180), um dos primeiros a teorizar a pós-moderni-dade, considera que a palavra pós-modernismo

designa o estado da cultura depois das transformações que afetaram as regras dos jogos da ciência, da literatura e das artes a partir do fim do século 20 (...). Nossa hipótese é que o saber muda de estatuto ao mesmo tempo que as sociedades entram na era dita pós-industrial e as culturas na era dita pós-moderna. Essa passagem começou desde pelo menos o fim dos anos 50.

Nicolau sevCenKo (1995, p. 45), por exemplo, faz a seguinte afirmação: “Pós-moderno, como está evidente, é um conceito que supõe uma reflexão sobre o tempo, antes de mais nada.” E eCo (1985, p. 55) complementa: “Pós-moderno não é uma ten-dência que possa ser delimitada cronologicamente, mas uma categoria espiritual, um modo de operar.” Nesse sentido, um escritor do século 19, como, por exemplo, Machado de Assis, pode ser considerado pós-moderno, e alguns lugares, mesmo que distantes no tempo, podem, de certa forma, conter circunstâncias e situações pós-modernas.

Assim é que sAntos (1986, p. 19) desconcerta ao dizer que “para dor dos corações dogmáticos, o pós-modernismo por enquanto flutua no indecidível”. Não há possibilidades de decisões nem sobre a sua própria definição.

O certo é que a cultura ocidental, a partir dos anos 50, passou a vivenciar novas formas de pensar e agir. O autor Proença fiLho (1995) destaca algumas características desse momento: desenvolvimento da sociedade de consumo, valorização da prevalência do impulso e da espon-taneidade sobre a razão, superação crescente da paixão sobre o racionalismo, presença marcante da informação na caracterização da visão de mundo dos indivíduos, desmaterialização do mundo real, que se converte em signo, simulacro, atuação política assumida por grupos setoriais represen-tativos, como as etnias minoritárias, eliminação de fronteiras entre arte erudita e popular.

Partindo desse princípio, sAntos (1986, p. 108) resume, consistentemente, as prin-cipais características do pós-moderno: “desreferencialização do Real, desmaterialização da Economia, desestetização da Arte, desconstrução da Filosofia, despolitização da Sociedade, dessubstancialização do sujeito”.

Com relação à área social pós-moderna do mundo ocidental, sua caracterização é feita por GueLfi (1994, p. 10), que lembra: há “gigantescos monopólios [que] concentram

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o controle da informação, gerando enormes dificuldades para aqueles que procuram auto-determinação e autonomia política”; entretanto, “um espaço crítico é aberto”. E esse espaço tem um nome: arte.

É por meio dela que vêm os questionamentos e releituras de nosso tempo. Em uma sociedade onde até o homem é dessubstancializado, uma voz se levanta, paralelamente aos acontecimentos sociais e políticos, não para criticar, mas para repensar e revelar o que não foi dito. Confirmando essa idéia, GueLfi (1994, p. 3) ressalta: “Valorizando grupos mino-ritários e excêntricos, pensadores e artistas pós-modernos tendem a questionar os sistemas totalizadores.” Os grupos excêntricos em questão, dizem respeito às classes que ficam à mar-gem do centro e do enfoque social como, por exemplo, mulheres, homossexuais, crianças, negros etc. Na mesma direção, sAntos (1986, p. 71) declara que o objetivo da arte pós-moderna é “pôr a nu o não-dito por trás do que foi dito, buscar o silenciado (reprimido) sob o que foi falado”.

Dentro do pós-modernismo, a obra O nome da rosa foi lançada num contexto em que a geração anterior à década de 80 estava “cansada de tanta experimentação, fecha-da num beco sem saídas, porque a arte se desdefiniu e não tem mais para onde ir (...). A solução, assim, é voltar ao passado pela paródia, o pastiche, o neo-expressionismo” (sAntos, 1986, p. 55).

Por outro lado, como o pós-modernismo, atualmente, não procura criticar o moder-nismo, seu objetivo “não é superar as contradições, mas mantê-las explorando as tensões e os paradoxos” (GueLfi, 1994, p. 4).

Umberto Eco, um autor desse período pós-moderno, representa bem todas essas ca-racterísticas acima analisadas. Segue-se uma apresentação da narrativa de O nome da rosa.

O nome da rosa: a obra singular

O tempo em que decorrem os fatos relatados no romance – início do século 14 – é um tempo de grandes controvérsias filosóficas. Era a baixa Idade Média, o fim da época medieval e o início do Renascimento. A desintegração do feudalismo e o surgimento do capitalismo na Europa Ocidental criaram condições para mudanças na esfera econômica (crescimento do comércio monetário), social (projeção da burguesia), política (formação das monarquias na-cionais) e até religiosa (consumadas por Martinho Lutero na Alemanha a partir de 1517).1

Nessa época, a luta entre Igreja e Estado era baseada em duas concepções teóricas: de um lado o catolicismo, que acreditava ter o domínio sobre o Estado; e do outro, o Estado, que esperava a submissão da Igreja a seu poder.

Os fatos narrados em O nome da rosa ocorrem em um mosteiro beneditino, localizado nos Alpes marítimos do norte italiano, no ano de 1327. A narrativa se desenrola numa abadia solitária, fria, nebulosa e, principalmente, misteriosa. Em estilo policial, o enredo centra-se na investigação das mortes ocorridas dentro do mosteiro.

O protagonista é Guilherme de Baskerville, um inglês de 50 anos, formado em Paris e Oxford, “apaixonado no gesto, persuasivo na voz, fascinante no sorriso, claro e conseqüente no raciocínio” (NR, p. 389).2 Era franciscano e, por isso, “proclamara como verdade de fé a

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pobreza de Cristo” (NR, p. 23). Discípulo fiel das idéias de Roger Bacon3 e muito amigo de Guilherme de Occam.4 O que podemos saber de seus ensinos e pensamentos nos é transmi-tido por meio de Adso de Melk – o narrador da obra –, jovem, alemão, noviço da ordem de São Bento e que vivia no mosteiro de Melk. Entretanto, seu pai, um barão dessa localidade, quis que ele acompanhasse um grande sábio franciscano, frei Guilherme de Baskerville, a fim de conhecer a Itália e também ver a coroação do imperador que aconteceria em Roma. Assim, ele se tornou escrivão e discípulo de frei Guilherme. Entretanto, Adso só narra os acontecimentos quando se torna um idoso ancião no mosteiro de Melk. Tanto tempo depois ele sente-se instigado a escrever a narrativa sobre a qual ele tanto refletiu e que agora articula. Como afirma Walter Benjamim (apud sAntiAGo, 1989, p. 40): “O conselho tecido na substân-cia viva da experiência tem um nome: sabedoria”. É exatamente o que esse narrador reflete em sua obra: sabedoria. É bem certo que ele apresenta a narração dos fatos sob um ponto de vista privilegiado, pois viveu, experimentou e compartilhou os últimos anos da história da biblioteca mais famosa da Idade Média.

A fábula

O narrador relata que Guilherme de Baskerville chegara ao mosteiro a fim de jun-tar-se aos seus amigos, frades franciscanos, para a conferência que haveria na abadia. Esse grupo discutiria com a delegação do papa João 22 (1316 a 1334), que era inimigo do impe-rador Luiz 2 da Baviera, a questão da pobreza de Cristo.

Na época da conferência, o mosteiro vivia um momento de turbulência. Monges eram assassinados misteriosamente. A maioria deles era efeminada e apareciam com os de-dos e a língua roxos. Os beatos acreditavam ser maldição espiritual e Guilherme, que três anos atrás havia desistido do ofício de inquisidor, é convidado pelo abade para decifrar o mistério antes da chegada da delegação papal.

Se Guilherme não resolvesse o mistério, o atual inquisidor, Bernardo Guidoni, in-vestigaria o caso com seus métodos inquisitoriais – extorsão, ameaças, intimidação –, os quais repugnavam a Guilherme.

Biblioteca: o labirinto do saber

A biblioteca da abadia era “maior biblioteca da cristandade” (NR, p. 551), considera-da, também, uma imagem do mundo daquele tempo. Ela dividia-se em três andares: o infe-rior onde funcionava a cozinha ou refeitório; o segundo andar, local de trabalho dos monges (scriptorium), onde copiavam à risca os manuscritos emprestados de outros lugares, e o último andar, onde ficavam guardados os livros.

O terceiro andar era um labirinto. De cada sala partiam corredores que não per-mitiam ao aventureiro sair com vida ou encontrar o livro desejado por todos – a Poética, de Aristóteles. Na verdade, o próprio enredo de O nome da rosa se mostra de forma labiríntica. É certo que o tempo pós-moderno não é linear e eCo (1985, p. 48) assegura: “É impossível uma história.” Essa frase revela a verdadeira estrutura deste romance: uma história de labirintos.

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Michel Foucault (2004) na obra Arqueologia do Saber questiona as categorias utilizadas pelo discurso histórico: noções de influência, causa e efeito, finalidade, para ele não passam de discursos que encontram sua especificidade na dispersão, nas rupturas. O analista deve centrar-se na dispersão, segundo ele.

Em O nome da rosa, o objetivo do labirinto era guardar o saber e o conhecimento. Fa-zendo assim, a biblioteca estaria preservando seu status, prestígio, e privilégios ante o mundo cristão. A relação da biblioteca com o poder pode ser explicada nas palavras de Foucault (apud Grenz: 1997, p.195):

O poder produz saber (...) poder e saber estão diretamente implicados (...) não há relação de poder sem constituição correlata de um campo de saber, nem saber que não suponha e não constitua ao mesmo tempo relações de poder.

Por meio de uma construção labiríntica, diz o abade, “a biblioteca defende-se por si, insondável como a verdade que acolhe, enganosa como a mentira que encerra. Labirinto espiritual é também labirinto terreno. Poderíeis entrar e poderíeis não sair” (NR, p. 55). A biblioteca labiríntica é um retrato da cultura ocidental calcada no saber enciclopédico. Mas a personagem Alinardo de Grotaferrata adverte: “A biblioteca é um grande labirinto, signo do labirinto do mundo. Entras e não sabes se sairás” (NR, p. 187). Assim é a visão de mundo proposta pelos pós-modernistas e essa é uma metáfora do labirinto. Não uma visão unilateral dos fatos, sob o ponto de vista pós-moderno. Assim como um labirinto, só podemos analisar os fatos sob o nosso ponto de vista e, mesmo assim, ignorando muitos pontos periféricos numa infinita formação de simulacros – caminhos sem saída. sAntos (1986, p. 111) comple-menta: “Na condição pós-moderna a vida não é um problema a ser resolvido, mas experiên-cias em série para se fazer.” Entretanto, havia caminhos que levavam à verdade, ao saber, mas por outro lado, havia também o controle sobre quem pode ter acesso a essa verdade.

A biblioteca, à noite, era, assim como a abadia à qual pertencia: confusa e dúbia. Mon-ges conseguiam acesso ao scriptorium e mulheres eram introduzidas pela muralha. Em outras palavras, existia uma abadia diurna e outra noturna, e, segundo Guilherme de Baskerville, “a noturna parece desgraçadamente mais interessante” (NR, p. 310).

Isso acontecia porque os monges eram seduzidos pela busca do conhecimento e pelo questionamento da verdade. “Eles eram dominados pela biblioteca, por suas promessas e por suas proibições. Viviam com ela, por ela e talvez contra ela, aguardando culposamente o dia de violar todos os seus segredos” (NR, p. 216). Os monges não se contentavam mais com apenas copiar manuscritos, queriam produzir e ser donos do conhecimento, interpretá-lo. Fazendo assim, estariam utilizando-se de um modo de compensar a raridade do enunciado e suas possibilidades de interpretação. Pouco era dito, muito se repetia, isso acontecia porque, como hoje, havia controle sobre o que é dito, então, o que mais almejavam era a liberdade de interpretar e criar.

Os monges eram, principalmente, apaixonados por textos que falassem de “uma ver-dade diferente, uma diferente imagem da verdade” (NR, p. 328). Lyotard (apud Grenz, 1997, p. 81) aprova: “A condição pós-moderna fomenta a invenção porque é fruto da dissensão, e não do consenso”, e George Yúdice (apud GueLfi, 1994, p. 2) complementa: “Abrir fendas e

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ampliar espaço entre discursos hegemônicos, repensando seus limites (...), é o que constitui um dos mais importantes aspectos da pós-modernidade.”

A verdade passava a ser questionada pelos monges e até mesmo o protagonista Gui-lherme de Baskerville concorda: “Nem eu mesmo acredito possuir a verdade” (NR, p. 234) e, mais à frente: “me sinto tão incerto da minha verdade” (NR, p. 242). A mesma voz racional da obra e, portanto, o conhecimento científico, afirma: “Os livros não são feitos para acre-ditarmos neles, mas para serem, submetidos a investigações” (NR, p. 361). E questionando a verdade daquela época, o mestre satiriza: “Talvez a tarefa de quem ama os homens seja fazer rir da verdade, porque a única verdade é aprendermos a nos libertar da paixão insana pela verdade” (NR, p. 552).

Essa postura de Guilherme corresponde à relação do cientista pós-moderno diante de verdades absolutas. Tal postura, evidentemente, reflete uma totalidade prática científica, uma vez que a pluralidade de formas do saber caracteriza o momento, ou seja, a prática comprova a teoria.

A vez da cegueira

Destacam-se entre as personagens, um monge idoso cego que conhece todos os enig-mas da biblioteca: Jorge de Burgos. Certamente ele “era, em suma, a própria memória da biblioteca e a alma do scriptorium” (NR, p. 157). É o contraponto do pensamento racional de Aristóteles. Jorge de Burgos opunha-se radicalmente às idéias de frei Guilherme de Basker-ville. Essa luta entre dogmatismo religioso e o racionalismo é o guia que, por fim, explica todos os mistérios da abadia.

No desfecho da obra, Guilherme de Baskerville e Jorge de Burgos encontram-se den-tro do lugar mais recôndito da biblioteca, onde estava o livro de Aristóteles. O diálogo entre ambos ocorre representando duas visões do saber: Jorge de Burgos assume a posição de conservador e, assim, torna-se representante da Igreja; Guilherme de Baskerville, no entanto, defende a completa liberdade em relação à busca pelo conhecimento, representando a razão e a ciência que desbancavam as outras formas do saber.

Por fim, Guilherme de Baskerville perde para Jorge de Burgos e, ao mesmo tempo, o vence. Perde porque não consegue estudar a obra que tanto almejara: Jorge de Burgos come as páginas envenenadas do livro e morre. E vence porque desvenda, afinal, o mistério da bi-blioteca – a existência da Poética naquele lugar e o enigma que fechava o seu esconderijo. Esse desfecho confirma a asseveração de GueLfi (1994, p. 4) de que o objetivo do pós-modernis-mo “não é superar as contradições, mas mantê-las explorando tensões e os paradoxos”.

Ninguém tem acesso pleno ao objeto do saber. Não há, nessa visão, a possibilidade de acesso ao conhecimento por meio de uma única forma de busca. Qualquer totalização nesse sentido é cega, é fatal. Não é nosso objetivo, entretanto, provar que não exista um discurso mais fidedigno que outro.

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(Des)caminhos da verdade

Somando-se a esses fatos, há o mistério das mortes para ser descoberto. O ob-jetivo de Guilherme de Baskerville seria, por fim, trazer a paz novamente ao mosteiro. Acerca dessa meta, Lyotard (apud Grenz, 1997, p. 77) declara: “O herói do conhecimen-to trabalha em prol de um fim ético-político – a paz universal”, ainda que em detrimento de classes desfavorecidas.

Guilherme descobre a existência de monges homossexuais e são justamente esses os responsáveis por guardar a biblioteca e seus livros. Surge, então a alternativa de seguí-los a fim de desvendar as mortes. Entretanto, pouco a pouco, torna-se evidente que a obra é recheada de pistas falsas em direção à verdade e que os vícios carnais dos monges não são a causa das mortes, mas apenas parte de uma troca de favores.

Ao ceder a guarda do saber aos homossexuais, O nome da rosa sugere a inclusão daqueles excêntricos, digamos, na busca pela verdade, como um caminho moralista a ser seguido. É uma postura de democratização do saber. O poder maior, ou seja, o conheci-mento está nas mãos de dois monges: Berengário, o ajudante bibliotecário e Malaquias, o bibliotecário. Sobre este último Adso afirma: “havia em sua fisionomia como que traços de muitas paixões que a vontade disciplinara” (NR, p. 93). Ambos deixam transparecer traços efeminados e, dessa forma, os outros monges, que querem ter acesso ao conhecimento dos livros, aproveitavam as suas tendências para manter um relacionamento suspeito em troca do acesso à biblioteca e, principalmente, em troca de acesso ao livro proibido.

Frei Guilherme, por outro lado, pode seguir outro caminho que pode ser denominado de caminho profético: a ordem apocalíptica em que as mortes acontecem. Cada tipo de mor-te é anunciada por Alinardo de Grotaferrata, antes de aparecerem os cadáveres. Alinardo, segundo Guilherme, “goza da divina loucura dos centenários. Difícil distinguir o verdadeiro do falso em suas palavras” (NR, p. 186). Interessante percebermos, aqui, um descentramento da busca da verdade, um louco começa a acompanhar, perifericamente, o enredo da história e a influenciar no seu desenrolar. Isso coincide com pós-modernidade, na qual todos os fatos e vozes, mesmo os periféricos, merecem relevância ao analisar a realidade.

O frade Guilherme e seu noviço, a princípio, desmerecem as profecias do velho Alinardo e desconfiam de Berengário de Arundel, monge de aspecto feminino, ajudante do bibliotecário e que tinha “os seus olhos – como os de Adelmo – pareciam os de uma mulher lasciva” (NR, p. 104). Assim, o narrador, Adso de Melk, provoca o leitor a seguir pistas falsas, pois além das suspeitas sobre Berengário, em cada um dos crimes, algumas circunstâncias coincidem com as profecias do louco Alinardo.

Em certa altura, a seqüência apocalíptica das mortes é muito clara e, acerca de Ali-nardo, Guilherme “perguntou-se se nas palavras do ancião não haveria algo de verdadeiro” (NR, p. 296). Depois de uma conversa sobre uma profecia com o ancião, Adso e Guilher-me tiveram a idéia de procurar o corpo de um dos monges nas banheiras e foi certo: lá estava Berengário de Arundel, a segunda vítima.

Ainda que dissociassem as profecias das mortes anteriores, a voz do louco fez-se ouvir. Não só a voz do louco como o discurso religioso também. Assim é, também, na

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teoria da pós-modernidade: todos os grupos sociais devem ser ouvidos. O pós-moderno poderia ser caracterizado como o discurso do silenciado. Todos têm sua voz a influenciar a normalidade dos fatos e, conforme sAntos (1986, p. 18) o homem pós-industrial, “dedi-ca-se às minorias – sexuais, raciais, culturais – atuando na micrologia do cotidiano.” Essa presença relevante de um louco é explicada por Linda Hutcheon (apud GueLfi, 1994, p. 6): “Trata-se, antes de uma prática discursiva, envolvendo uma multiplicidade de expressões do pensamento, constatadas em diferentes áreas da cultura e da produção artística (...). É uma tentativa de encontrar brechas na modernidade e trabalhar nelas”.

Verdade universal

Após a morte do tradutor Venâncio, a terceira vítima, chega à abadia a delegação papal para a conferência. O inquisidor Bernardo Gui, com sua mentalidade dogmática que não aceita críticas nem discussões, resolve solucionar o mistério. Ele chega à con-clusão de que as mortes tão sinistras eram obra do diabo. Conclui isso porque vê dentro do mosteiro, uma mulher campesina, um galo e um gato pretos, além de dois ovos já quebrados e viscosos.

O inquisidor logo os associa à existência de bruxaria feita pela mulher, que foi cognominada bruxa, concluindo que ela seduzira o monge Salvatore para fazerem um ritual de bruxaria, a fim de matar outros monges do mosteiro. Ele induz o pensamento de todos os personagens da obra no sentido de acreditar no caminho da superstição para desvendar o mistério das mortes.

Além do mais, o fato de a camponesa não saber falar a língua dos monges colaborou muito para que, definitivamente, ela fosse condenada à morte na fogueira. Além disso, Bernardo descobre que essa e outras mulheres adentravam as muralhas da abadia a fim de suprir as necessidades carnais do despenseiro Remigio. Bernardo usa seus métodos inquisitoriais e força o despenseiro a confessar que havia matado seus colegas monges. Declara, dessa forma, o caso encerrado.

Dos pressupostos que fundamentam a mentalidade de Bernardo, o inquisidor, verificamos que eles se contrapõem à visão racional de Guilherme. Porém, Bernardo volta para Avignon, onde estava o papa, certo de que havia decifrado a causa das mortes.

A obra O nome da rosa, por meio dessa atitude do inquisidor, declara que a verdade é uma questão de discurso. Essa é uma das fundamentais questões das discussões pós-modernistas: a verdade como um simulacro. Ela existe somente segundo os pressupostos que a sustentam. Ela subsiste apenas no discurso, sendo uma crítica à base de toda cultura ocidental a partir do iluminismo. O diabo é a oposição, aquilo que não está no cânon das metanarrativas.

A verdade em si, nesta perspectiva, apenas acentuou as diferenças e provocou mortes sem razão. Esses são os resultados da interincompreensão constitutiva da linguagem. Lyotard (apud Grenz, 1997, p. 77) adverte: “A regra do consenso entre o transmissor e o destinatário com referência a uma afirmação com valor de verdade é considerada aceitável se elaborada como uma possível unanimidade entre as mentes

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racionais: essa é a narrativa do Iluminismo.”O pós-modernismo assimila idéias díspares, ou seja, defende a existência de uma

não-verdade universal, pois a verdade, imposta pela força do poder dominante, privilegia um pensamento e rejeita outro. Por isso, na obra, Bernardo Gui e Guilherme acreditam ter encontrado a verdade e, por isso mesmo, ambos são perdedores aos olhos do outro.

(Des)ordem e caos racional

Embora quatro monges tivessem sido mortos (durante a estada de Bernardo, morrera o herborista) seguindo a seqüência das trombetas do Apocalipse, todas as pistas passam a indicar Malaquias, o bibliotecário, como autor dos crimes. O narrador diz acerca dele: “por muito tempo eu o acreditei culpado de todos os crimes” (NR, p. 479).

Entretanto, Malaquias de Hidelsheim, a quinta vítima, morre por envenenamento no meio de um culto, e a sexta vítima, o abade, acaba por morrer durante o incêndio, pois estava preso no labirinto da biblioteca. Importante notar que a sexta trombeta do Apocalipse falava de fogo. Finalmente, a sétima trombeta em que o anjo ordenava ao apóstolo que tomasse o livro e o devorasse é cumprida na pessoa do monge cego, Jorge de Burgos. Ele mesmo enve-nenara o livro proibido para que ninguém se apoderasse de seu conteúdo e, por fim, ele come o livro ao perceber que Guilherme de Baskerville tomaria posse de seu conhecimento.

Como podemos verificar, as sete mortes do mosteiro seguem a ordem das sete trom-betas do Apocalipse, mas por mera circunstância e não realmente por razões espirituais. Tal-vez essa seja uma crítica à crença na Bíblia como o discurso único da verdade. Até o racional frei Guilherme acaba por se enganar com as pistas falsas e ele mesmo confessa: “Estava convencido de que a série dos crimes seguia o ritmo das sete trombetas do Apocalipse.”

Interessante analisarmos o motivo desses (des)caminhos. Pistas falsas, mas que se seguidas, levariam à solução parcial do problema. Guilherme confessa a Jorge, o ancião cego: “Fabriquei um esquema falso para interpretar as manobras do culpado, e o culpado adequou-se a ele. E foi precisamente este esquema falso que me pôs na tua pista” (NR, p. 528).

Isso significa que frei Guilherme acreditou nas profecias do apocalíptico Alinardo a fim de alcançar o culpado – Jorge de Burgos. E, casualmente, Jorge de Burgos adequou-se a esse falso esquema apocalíptico e caiu no cumprimento da profecia quando comeu o livro e morreu envenenado. Ou seja, Guilherme desvendou o mistério e encontrou o culpado seguindo caminhos essencialmente falsos como ele próprio afirma: “Não havia uma trama, e eu a descobri por engano” (NR, p. 552). Numa perspectiva pós-moderna, na verdade, as orientações em busca da realidade dos fatos podem estar nos caminhos desconsiderados pela visão racionalista do Iluminismo.

É certo que ao trabalhar com essas pistas falsas, Guilherme descobrira muitos fatos reais que ninguém havia descoberto antes dele. As pistas eram falsas, embora lógicas. Os “ví-cios carnais” dos monges, que eram um problema espiritual, não estavam diretamente ligados aos diversos crimes, ainda que fosse homossexual a maioria dos que morreram. As mortes seguiram uma seqüência apocalíptica, mas casualmente. O problema não era a presença de um satã na abadia, o problema da abadia era o conhecimento que ela monopolizava.

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No contexto pós-moderno não existe apenas um caminho que leve à verdade. Entre-mentes, a existência de uma verdade está diretamente ligada à existência de uma narrativa. Lyotard (apud GueLfi, 1994, p. 6) conclui: “A multiplicidade dos jogos de linguagem [de narrativas ou verdades] refina a sensibilidade pós-moderna.”

Umberto eCo (1985, p. 45) afirma que O nome da rosa é “um romance policial onde se descobre muito pouco, e o detetive acaba derrotado [ao descobrir a verdade].” Importante notarmos que Eco classifica sua obra como um romance policial, ou seja, um gênero popular de linguagem falsa. Ele estabelece em O nome da rosa um tempo histórico medieval com carac-terísticas de um romance policial, estilo literário próprio do século 20. Como isso é possível? É que, no pós-modernismo, coexistem segundo eCo (1985, p. 59) “realismo e irrealismo, formalismo e conteudismo, literatura pura e engajada, literatura pura ou de massas”.

Relevante, também, é perceber que o herói do romance aparece quase de forma pi-caresca. Essa característica fica bem visível na personagem Guilherme, uma vez que, no desfecho da obra, ele declara:

Cheguei a Jorge através de um esquema apocalíptico que parecia reger todos os crimes, contudo era casual (...). Cheguei a Jorge seguindo o desígnio de uma mente perversa e raciocinante, e não havia desígnio algum, ou seja, Jorge mesmo fora do-minado pelo próprio desígnio inicial e depois se iniciara uma cadeia de causas, e de concausas, e de causas em contradição entre si, que procederam por conta própria, criando relações que não dependiam de qualquer desígnio. Onde está toda minha sabedoria? Comportei-me como um obstinado, seguindo um simulacro de ordem, quando devia bem saber que não há uma ordem no universo (NR, p.553).

Assim é que Guilherme afirma a Adso ironicamente: “Menos estúpidos como eu e um par de estúpidos como nós dois teriam um sucesso nas feiras. É isso que devíamos fazer, e não tentar resolver mistérios” (NR, p. 419). E pouco depois conclui: “Bernardo nos derro-tou” (NR, p. 443), e ainda “Jorge venceu” (NR, p. 552). Como a citação de Harvey se refere a personagens, vale ressaltar aqui frases que demonstram a confusão reinante na mente da personagem Remigio, o despenseiro: “É verdade, no entanto, que aqueles eram tempos obs-curos em que um homem sábio precisava pensar coisas contraditórias entre si” (NR, p. 29). E ainda Remigio: “Nem mesmo os cardeais de Avignon [papado] são modelos de virtudes” (NR, p. 315).

A escritora Hutcheon (apud Moisés, 1998, p. 184) afirma: “Os narradores na ficcção (pós-moderna) se tornam desconcertantemente múltiplos e difíceis de localizar.” Adso é o narrador de O nome da rosa e, em certa altura, assevera: “Sempre acreditara que a lógica fosse uma arma universal, e percebia agora como sua validade dependia do modo como era usada” (NR, p. 304). Não há nessa visão a crença de valores universais.

Simulacro e verdade

A palavra simulacro vem do latim simulacru e hoje tem, entre os escritores, uma conotação de imitação, simulação, reprodução imperfeita ou grosseira do real.5 Em O

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nome da rosa a verdade como simulacro é um tema constante. Quanto a isso, sAntos (1986, p. 12) declara:

A cultura ocidental foi uma corrida em busca do simulacro perfeito da reali-dade. Simular por imagens como na TV, que dá o mundo acontecendo, signi-fica apagar a diferença entre real e imaginário, ser e aparência. Fica apenas o simulacro passando por real. Mas o simulacro, tal qual a fotografia, embeleza, intensifica o real. Ele fabrica um hiper-real, espetacular, um real mais real e mais interessante que a própria realidade.

A existência da biblioteca apóia essa questão em O nome da rosa. Ela própria é um mi-crocosmo, um labirinto, um simulacro do mundo, da cultura e do saber. Só não é um espelho do mundo porque segundo Guilherme, “para que seja espelho do mundo é preciso que o mundo tenha uma forma” (NR, p. 146). Os pós-modernos não crêem nessa possibilidade, como declara Lyotard (apud Grenz, 1997, p. 81): “A era pós-moderna nasceu da perda da idéia moderna de ‘universo’. Os pós-modernos não aceitam mais a validade da visão de um mundo único e integral.”

sAntos (1986, p. 77) confirma que os pós-modernistas acreditam que a linguagem cria as suas próprias referências:

Um livro é feito de signos que falam de outros signos, os quais por sua vez falam das coisas. Sem um olho que o leia, um livro traz signos que não produzem concei-tos, e portanto, é mudo.

O narrador de O nome da rosa trabalha com os signos com bastante propriedade: “A idéia é signo das coisas, e a imagem é signo de uma idéia, signo de um signo” (NR, p. 362). Para os monges alcançarem o livro secreto, seria necessário decifrar um enigma onde há or-dem dos signos, mas não dos significantes. Além do mais, “nome da rosa” é uma expressão medieval que significa o infinito poder das palavras. O local que mais possuía o poder das palavras era, também, o mais proibido e inacessível: a biblioteca. Ela é a rosa porque repre-senta o signo, a palavra. É perfume e é morte. O fato de que o acesso à biblioteca, e às pala-vras, revelaria outra forma de verdade, deixa claro que o pós-modernismo não crê no poder absoluto das palavras, tão defendido pelas vanguardas e pelo modernismo.

É conveniente lembrarmos que o lugar mais importante da biblioteca estava guar-dado por um espelho. Esse espelho refletia a imagem real da pessoa, mas de forma irregular. Assim, o aventureiro em busca do livro proibido, que já estava impressionado com o cheiro das ervas, assustava-se com o espelho, pois ele devolvia um simulacro de sua aparência real. Assustado e envolvido pelo cheiro das ervas, não conseguia ter pensamento claro para decifrar o texto enigmático que fechava o espelho. Essa é uma representação da sociedade ocidental no século 20, assume-se o discurso do outro, mas sem sair da sua posição (institucional, sociológica), ademais, os cidadãos pós-modernos estão tão envolvidos com os simulacros da verdade que não conseguem ter liberdade ou um referencial de vida.

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Quando o narrador e Guilherme estavam no seio da biblioteca, o narrador teve repentinamente a impressão de ter visto um gigante de grandes proporções, parecido com um fantasma, um monstro. Entretanto, Guilherme afirma que era o espelho “que devolve a tua imagem aumentada e distorcida” (NR, p. 202). Para alcançar o Finis Africae, a razão de Guilherme fez com que ele e Adso enfrentassem o “gigante” e interpretassem o texto que dizia para colocar a mão por cima da imagem ou espectro refletida pelo espelho (NR, p. 364).

Tamanho poder continha esse espectro da realidade, que Adso, ao retornar sozi-nho para o labirinto, não temia a sala dos perfumes, mas a dos espelhos, justificando: “tamanha é a magia dos espelhos, que mesmo que saibas que são espelhos, eles não param de inquietar-te” (NR, p. 279). Essa experiência com o espectro da realidade dentro do labirinto fez com que Adso exclamasse: “Como é belo o mundo e como são horríveis os labirintos” (NR, p. 209).

Quando Adso estava explorando a biblioteca proibida, parou os olhos sobre um livro que lhe chamara atenção: “‘Speculum amores’ de frei Massimo de Bolonha, e trazia citações de muitas outras obras, todas sobre o mal de amor” (NR, p. 368). Com a referência a uma outra obra, esse incidente mostra que O nome da rosa contém outro atributo pós-moderno: destotalização ou dialogismo.

Como declara Bakhtin (apud GoMes 2006, p. 480): “todo discurso é dialógico”. Na pós-modernidade não se pode conceber um discurso ou uma obra que não dialo-gue com outra. E esses diálogos podem acontecer com fatos, textos ou experiências anteriormente conhecidos pelo autor ou que façam parte do seu repertório.

Como percebemos, na obra de Eco tudo está em constante troca de informa-ções, em constante diálogo de forma implícita (com a temática pós-moderna ambien-tada em 1327), ou explícita (citando outras obras como é o caso de Speculum amores de frei Massimo de Bolonha). O próprio romance, conforme sAntos (1986, p. 57), é “um livro sobre outro livro – a parte perdida da Poética (inacabada), do filósofo Aristóte-les”, o que evidencia a impossibilidade de o conhecimento ser patrimônio de alguém. O próprio eCo (1985, p. 46) afirma que O nome da rosa “ramifica-se em muitas outras histórias, todas elas histórias de outras conjecturas, todas girando em torno da estru-tura da conjectura, enquanto tal”.

O romance estabelece um diálogo com muitos monumentos culturais e clássi-cos da história literária. fiLho (1995, p. 6) declara sobre O nome da rosa: “Seu autor, intencionalmente, aproveita-se, na composição da obra, de textos de Thomas Mann (Doutor Fausto) de James Joyce (Ulisses), de passagens bíblicas, de textos medievais e de obras de Conan Doyle, o criador de Sherlock Holmes”.

Nessa parte é interessante ressaltarmos que, às vezes, Guilherme se dirigia a Adso com a seguinte expressão: “Elementar, caro Adso” (Watson); “caro Adso” (NR, p. 114); “ah, pobre Adso” (NR, p. 231); e ainda: “Sim, meu bravo guerreiro” (NR, p. 202). E Adso se dirige a Guilherme como “Mestre” (NR, p. 446). Com relação a Doy-le, segundo fiLho (1995), há nítida referência a uma obra chamada O cão de Baskerville, já que o protagonista recebe o nome de Guilherme de Baskerville.

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Vários temas imbricam-se intencionalmente na obra tais como a racionalidade: “a ciência não consiste só em saber aquilo que se deve ou se pode fazer, mas também em sa-ber aquilo que se poderia fazer e que talvez não se deva fazer” (NR, p. 120). Esse questio-namento é confirmado por Lyotard (apud Grenz, 1979, p. 79): “na verdade, a ciência deve, inevitavelmente, voltar-se ao próprio empreendimento que procura destruir – a narrativa – a fim de legitimar sua própria empresa.” A relação entre bem e mal só é possível dentro de uma narrativa, pois “o caminho da Ciência é difícil e é difícil distinguir nele o bem do mal” (NR, p. 111).

É certo que para muitos monges “a força iluminadora da razão tenha pouquíssima serventia” (NR, p. 27), mas alguns tentam se apoderar dela como faz Guilherme de Basker-ville. Entretanto, observamos que a razão não garante a descoberta dos crimes no romance. Adso diz acerca de seu mestre racional: “Pobre alegoria da impotência” (NR, p. 546).

E por fim, depois de todos os livros queimados, Guilherme “chorava” (NR, p. 547) representando, assim, a ineficácia da razão desvinculada de outras formas de conheci-mento. Como vimos, o pós-modernismo trabalha em cima de contradições, problematiza fronteiras e rasura os limites das dicotomias sociais. sAntos (1986, p. 57) sumariza esses aspectos no romance:

Muita coisa é pós-moderna aí. Uma delas é a volta ao passado. Outra, o romance policial – um gênero de massa. A intertextualidade, pela referência a outras obras literárias, e por ser um livro sobre outro livro (a Poética). O ecletismo, ao misturar o sério histórico documental com o divertimento (o policial, a fantasia). E trata-se de uma paródia, um pastiche do romance histórico, pois não faz sentido hoje escrever tão a sério, um romance baseado na Idade Média.

Outra característica, considerada por sAntos como importantíssima é

a progressiva desordem reinante no mosteiro (um lugar fechado, um sistema isolado que só pode receber vida de fora), até culminar na sua destruição. Isto espelha a situação atual: decadência de valores, ausência de sentido para a vida e a História, ameaça de destruição atômica. Mas reflete também uma idéia que está no coração da pós-modernidade: a entropia. (...). Pois bem, a literatura pós-moderna trata desse bode entrópico, seja na forma (a destruição do romance), seja no conteúdo (a destruição do mundo e dos valores), mas sem desespero: com riso ou frieza.

Considerações finais

Com o desenvolvimento desse trabalho, pode-se verificar que O nome da rosa é uma obra que tem a intenção de questionar e colocar em evidência os valores pós-modernos da sociedade contemporânea. Há marcas evidentes de pós-modernidade em toda obra. Manifesta-se clara-mente uma visão de mundo fragmentada, há a presença da desreferencialização, do clima de insegurança, de incertezas e o que se espera para o futuro próximo é o imprevisível.

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Inicialmente, o estudo procurou refletir sobre a definição de pós-modernismo o que se provou tarefa quase impossível, pois pós-moderno é um paradigma, uma condição, um estado que independe de um momento histórico específico ou de uma definição objetiva. O fato é que essa forma de ser e ver a vida se popularizou no ocidente e, mais especificamente, no Brasil depois de 1950. A partir daí, entram em crise todas as definições mestras, os siste-mas totalizantes e dá-se evasão à espontaneidade, à paixão, aos impulsos e às peculiaridades das diferentes classes sociais, bem como dos indivíduos.

Aparece então, a primeira semelhança entre os tempos da baixa Idade Média, época em que os fatos da narrativa ocorreram, com a pós-modernidade. Percebemos na época em que se passa a narrativa, uma forte divergência de opiniões, um clima de instabilidade, pois estavam em xeque as autoridades absolutas.

Outra relação muito clara é que o poder estava nas mãos de quem detinha o saber. A força que levava os monges a arriscarem a própria vida entrando na biblioteca labiríntica em busca de uma outra verdade é a mesma presente na pós-modernidade e que questiona as totalidades científicas, uma vez que a pluralidade de formas do saber caracteriza o momento presente. Além disso, ao ceder a guarda dos livros (ou seja, do saber) aos monges homosse-xuais, O nome da rosa sugere a inclusão dos grupos minoritários o que se prova uma postura de democratização do saber.

Os monges estavam morrendo misteriosamente no mosteiro e como uma obra re-presentante dos conceitos pós-modernos, em O nome da rosa a verdade pode ser encontrada seguindo-se vários caminhos. O inquisidor, Bernardo Gui, para alcançar a verdade dos fatos, usa métodos impositivos, uma atitude autoritária, mas ameniza tudo utilizando bem o poder das palavras. Prova de que na baixa Idade Média, como na pós-modernidade, a verdade pode ser apenas uma questão de discurso.

Para desvendar o mistério, pode-se seguir, também, os caminhos sugeridos por um louco, que nada mais é do que o descentramento da verdade. Isso coincide com a pós-modernidade, na qual todos os fatos e vozes, mesmo os periféricos, merecem relevância ao se analisar a realidade.

Dentro da narrativa, pode-se encontrar a verdade seguindo um caminho denominado caminho profético, ou o discurso religioso. Sendo assim, numa perspectiva pós-moderna, a realidade dos fatos pode estar nos caminhos desconsiderados pela visão racionalista e abso-luta do Iluminismo.

O local que dava acesso ao poder das palavras era, também, o mais proibido e inacessível: a biblioteca. Ela era o alvo dos monges e os livros eram a sua forma de libertação. Entretanto, o livro mais cobiçado estava envenenado e ao manuseá-lo e levar a mão à boca, o monge mor-ria envenenado. A biblioteca, fonte do saber, é a “rosa” porque representa o signo, a palavra, a verdade. Mas ela é perfume, e é morte. Essa biblioteca labiríntica é um símbolo da filosofia pós-moderna embasada nos saberes enciclopédicos que podem levar à verdade ou não.

Finalmente, todos esses (des)caminhos, simulacros, para chegar à verdade tornam-se escusos porque a biblioteca é incendiada e o único que consegue organizar todas as pistas (Gui-lherme de Baskerville) considera-se um perdedor. Mais uma vez a relação com a contempora-neidade torna-se nítida levando em consideração que a pós-modernidade não aceita o conceito de verdade absoluta. Sendo assim, o mundo cai aos pedaços e a verdade nunca vem à tona.

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A rigor, sabe-se que a literatura não se presta ao ensino de bons relacionamentos, de ética ou moral, mas ela põe em rotação tudo isso e tudo o mais que possa se relacionar com o homem. Sendo assim, a ficção constitui um espaço privilegiado para se desenvolver a reflexão sobre as relações humanas e as condições sociais. Em O nome da rosa, a ética e a estética en-trelaçam-se de tal modo que é possível analisar, não só a questão das técnicas literárias, como também a ética dos valores sociais. Sendo assim, o romance em estudo alimenta-se da história para nos dar a conhecer os conflitos e as grandes preocupações do pós-modernismo.

Através da análise da obra, pudemos ver a solidez de um mundo desmoronar. A sensação fragmentária se instala desde o início diante de uma ordem que passo a passo implodirá. O nome da rosa, embora possua uma construção completamente labiríntica, possui, também, uma mensagem do real. Há relação entre os dias medievais e os nossos dias, entre a pós-modernidade e a polifonia e ambigüidades da Idade Média. Tanto aque-les quanto estes são fonte de barbáries e escândalos.

Umberto Eco funde, portanto, o passado com o presente, social e existencial, a Idade Média e a pós-modernidade em sua obra. Podemos concluir que os acontecimen-tos narrados nesta obra são como uma parábola da história da cultura ocidental e que, por fim, permite que todos, leitores e personagens, sejam, ao mesmo tempo, perdedores e vencedores. Não há como digerir essa leitura sem pensar no mundo de nossos dias. Umberto Eco e Guilherme de Baskerville são realmente fontes de leituras do pós-mo-dernismo e da Idade Média. O desafio que nos cabe é alcançar no horizonte infinito dos simulacros e labirintos, um lugar onde se possa estar seguro e propenso a outras leituras das verdades da arte.

Notas1 Adaptado do site: www.ipv.p7/orumedia/3/3fe1.htlm2 O romance O nome da rosa (1983) será indicado por NR nas citações.3 Roger Bacon – filósofo inglês que lecionou em Paris sobre Aristóteles. Por volta de 1247, em Oxford,

completou seus estudos lingüísticos e científicos. Seus ensinos se destacam pela importância dada à matemática e à ciência experimental.

4 Guilherme de Occam – filósofo, teólogo e doutrinador político que ingressou na Ordem Franciscana e fez seus estudos em Oxford. Cumpriu as disciplinas do magistério em teologia, mas não chegou lecio-nar por causa da oposição de João Lutterell, que, em 1323, o denunciou ao papa acusando-o de heresia por má interpretação da pobreza de Cristo.

5 Ver MAINGUENEAU, Dominique. Gênese dos discursos. Trad. Sírio Possenti. Curitiba: Criar Edições, 2005.

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LITERATURA

A NARRAÇÃO DA HISTÓRIA E O CONCEITO DE TEMPO EM BENJAMIN1

AFONSO LIGÓRIO CARDOSO, doutor em Estudos Lite-rários pela Unesp de Araraquara (SP), diretor acadêmi-co do Unasp e professor de Teoria Literária do curso de Letras do Unasp, Campus Engenheiro Coelho (SP).

Resumo: Este trabalho tem o objetivo de mostrar a relação entre o tempo, a his-tória e as práticas sociais, conforme tese de Walter Benjamin.

PalavRas-chave: Tempo, história, narração, Benjamin

THE NARRATION OF THE HISTORy AND THE CONCEPT OF TIME IN BENJAMIN

abstRact: This work has the objective of showing the relationship among the time, the history and the social practices, according to thesis of Walter Benjamin.

KeywoRds: Time, history, narration, Benjamin

Introdução

O objetivo deste artigo é apresentar o conceito de tempo na concepção de Walter Ben-jamin nos textos “Sobre o conceito de história” e “O narrador”, publicados no livro Magia e técnica, arte e política (1994), e mostrar como a narração da história se insere nesta perspectiva. Para a leitura desses dois textos, de grande valia são as reflexões de Jeane Marie Gagnebin em Memória e libertação (s/d) e História e libertação em Walter Benjamin (1994), além do livro Édipo e o anjo: itinerários freudianos em Walter Benjamin (1990), de Sérgio Paulo Rouanet no texto.

O conceito de história em Benjamin está contido numa noção de tempo diferente da tradição ocidental, seja ela helênica ou cristã. Em virtude disso, antes de se cuidar do autor de “O narrador”, uma breve incursão na história do tempo é útil para situar a posição benja-miniana no contexto universal do tema em questão.

Não há como falar da história sem tocar na idéia de tempo e da vida em sociedade. De Bosi (1997, p. 20) tira-se este pensamento: “O ato de narrar paga tributo ao deus Chronos”.

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Por sua vez, Le Goff (1996, p. 12) sumariza: “a matéria fundamental da história é o tempo.” E. BiGnotto (1992, p. 179) afirma que “a história diz respeito necessariamente à vida em sociedade e guarda laços indissolúveis com a política”. A história, portanto, inclui-se numa temporalidade e é indissociável da vida humana e da prática política.

Três figuras servem para definir o tempo: o círculo, a linha e a constelação. Até a época de Benjamin, o tempo foi representado pela figura do círculo, de acordo com o con-ceito defendido pela corrente helênica, e pela da linha, segundo o conceito embasado na concepção agostiniana.

No mundo ocidental, pelo filtro grego, desde a Antigüidade até o quinto século da era cristã, a metáfora geométrica do círculo referida à questão do tempo é tributável a Aris-tóteles. MArrAMAo (1995, p. 38) retoma a tese helênica, nas próprias palavras de Aristóteles, para mostrar o registro embrionário da idéia dos círculos e ciclos históricos. Segundo ele, a metáfora geométrica do círculo,

remonta aos próprios textos de Aristóteles (ou de derivação aristotélica): “o tempo parece ser o movimento da esfera, porque é este movimento que mede os outros movimentos e mede até mesmo o tempo (...) e também o tempo parece ser uma es-pécie de círculo... pelo que, então dizer que as coisas geradas constituem um círculo é dizer que há um círculo no tempo.

As “coisas geradas” e o “tempo” inserem-se num círculo. Sobre essa concepção aristotélica da ação cíclica, Le Goff (1996, p. 303) afirma: “Nunca se encontra nele a idéia de um progresso linear, no universo cósmico ou no universo cultural, político ou moral. Pode-se dizer que a sua concepção da história era uma ‘teoria da ondulação eterna’”.

Acreditava-se, com essa visão de mundo cíclica, que a vida era um constante renovar de coisas, numa seqüência de novas fases, até o dia em que tudo voltaria à era original da paz e da felicidade eternas. Esse conceito de história, baseado num tempo circular, impera absoluto no ocidente até o surgimento do Cristianismo.

Santo Agostinho foi o expoente intelectual da defesa do novo sentido de história. A metáfora geométrica para a questão do tempo passa a ser a da linha, ou a imagem da flecha, no dizer de BenjAMin (1994, p. 229). O novo mundo, assim, não será o velho retornado. A história teve sua gênese (“no princípio”), após a queda, e terá indubitavelmente o seu fim (“no último dia”). Refutando o conceito grego na obra A cidade de Deus, AGostinho (1961, p. 184) afirma:

Se (...) a alma se encontra redimida, como nunca antes esteve, para não mais re-tornar à miséria, então nela advém algo que antes nunca havia acontecido, algo de maravilhosamente grande, e precisamente uma felicidade eterna que jamais terá fim. Mas se a nossa natureza imortal é afetada por algo, de tão inteiramente novo, que não é nem será o repetir-se de um ciclo, por que não poderia isto verificar-se também com as coisas mortais?

Captam-se os traços de linearidade e de irreversibilidade nos segmentos: “alma redi-

mida”, “não mais retornar”, “algo nunca acontecido”, “felicidade eterna”, “algo inteiramente

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novo” e “não será o repetir-se de um ciclo”. A história ganha um sentido e um condutor. O sentido de redenção, na pessoa do Messias – salvador da história humana – e de um condutor – Deus. Todos os movimentos da história estão dentro dos desígnios divinos para a salvação do homem dotado de livre-arbítrio. Deus conduz a história, mas não a põe dentro de uma forma chamada destino, como queriam os estóicos (AGostinho, 1990, p. 200-204).

Sendo assim, diz BiGnotto (1992, p. 180): “contrariamente às filosofias helênicas, que concebiam o tempo fechado num círculo sem saída e sem fim, o cristianismo atribui ao tempo o máximo de potencialidades e de significação”.

Criação, queda, aparecimento do Messias, ressurreição, juízo final e vida eterna no pa-raíso constituem as fases da história na visão agostiniana. A história segue numa progressão contínua e ininterrupta.

A adoção dessa fórmula pela burguesia – já nos tempos modernos –, com o objetivo de justificar sua prática social de progresso automático, é que será desprezada nas “teses” de Benjamin, como estão em “Sobre o conceito de história”. Essa forma adotada para conceber a história recebe o nome técnico de historicismo.

No lugar do conceito de história cíclica – calcado na doutrina do eterno retorno – e em vez do tempo linear, BenjAMin (1994, p. 229-230) propõe a figura da constelação para designar a história: “A história é objeto de uma construção cujo lugar não é o tempo homo-gêneo e vazio, mas um tempo saturado de ‘agoras’ (…) sob o livre céu da história”.

O tempo saturado de “agoras” é repleto de atualidades, isto é, cheio de pontos descon-tínuos como as estrelas no céu. O brilho de cada uma delas ajuda a compor a configuração do espaço sideral. Assim, o conceito de tempo, de acordo com os postulados benjaminianos, não é representado nem pelo círculo nem pela linha contínua. Com efeito, uma outra história pode vir à tona, pois há quebra da continuidade e os fatos não deslizam mais numa seqüência temporal. Eles, dentro dessa visão, saltam, em vez de deslizarem. A reflexão de Benjamin sobre história, antes de qualquer outro pensamento, parte dessa noção de tempo.

flecha e constelação: acumulação e construção dos fatos

A crítica benjaminiana ao historicismo, conforme GAGneBin (s.d., p. 61), leva a uma análise da história (Urgeschichte, em alemão), no duplo sentido do termo: como conjunto dos fatos do passado e como sua própria narração.

O historicismo era a filosofia da história mais influente no início do século 20. Essa concepção filosófica, identificada com a história dos historiadores burgueses, reivindicava a singularidade de cada momento da história humana, num curso contínuo, cujo fim não se pode prever.

rouAnet (1990, p. 21) lembra que, na base dessa concepção, Benjamin propõe a visão da história como um quadro temporal homogêneo e vazio. Isso significa que o tempo histórico assemelha-se a um espaço desprovido de conteúdo, uma linha infinita que os acontecimentos vêm preencher (GAGneBin, s.d., p. 62), como se vê em “Sobre o conceito de história”.

O ideal dessa concepção é criar uma história universal: “O historicismo culmina legi-

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timamente na história universal”. Seu método consiste em “apresentar uma imagem ‘eterna’ do passado”, isto é, utilizar “a massa dos fatos, para com eles preencher o tempo homogêneo e vazio” (BenjAMin, 1994, p. 230).

Desse modo, seria possível conhecer todos os pontos do continuum histórico e formar deles uma imagem sempre exata. A verdade do passado não poderia escapar à visão do historiador.

A noção de tempo linear adotado pelos vencedores para construir a história se caracteriza pela indiferença e pela infinitude, correndo sempre igual a si mesmo e en-golfando o sofrimento, o horror e, mais desgraçadamente, o êxtase e a felicidade (GAG-neBin, 1994, p.111). Enquanto sucessão de etapas num quadro temporal homogêneo, a história é sempre a narração dos vencedores, do mesmo pelo mesmo, silenciando a “cor-véia anônima” que participou na construção da sociedade. A falha do historicismo está nesse ponto, ou seja, o vencedor narra os fatos sem explicar o projeto “dos oprimidos” e a desigualdade de condições no momento da sua vitória.

A historiografia, que se baseia na concepção de tempo como cronologia linear, opera com o princípio básico da causalidade histórica, como se a sucessão cronológica fosse sinônimo de uma relação substancial e necessária. No apêndice 1 das “teses” de BenjAMin (1994, p. 232), lê-se: “O historicismo se contenta em estabelecer um nexo causal entre vários momentos da história. Mas nenhum fato, por ser causa, é só por isso um fato histórico”.

Está subjacente a esse procedimento a idéia de que, por ser a história um contínuo linear, haveria também um progresso contínuo. Conforme notam Kothe e fernAndes (1991, p. 16), o agravante do estabelecimento desse nexo causal é que

de um jeito ou de outro, sem que nada se precisasse fazer, automaticamente se estaria navegando a favor da corrente da história. Isso acabava não sendo mais do que um tipo de conformismo (…) com as piores barbaridades, um conservadorismo sob a aparência de espírito progressista, uma ideologia de classe dominante adotada pelo proletariado.

Em oposição a tal metodologia, BenjAMin (1994, p. 229) afirma que a “história é objeto de uma construção cujo lugar não é um tempo homogêneo e vazio, mas um tempo saturado de ‘agoras’”, isto é, “repleto de atualidade”. Com tal postura diante da concepção de tempo, é possível pensar não só “o movimento das idéias, mas também sua imobiliza-ção” (Ibidem). Imobilizar um acontecimento, e não acumular a massa dos fatos, deve ser a base para se nomear e conhecer a várias facetas da história da humanidade.

Na verdade, BenjAMin (1994, p. 223) vê no método cumulativo, com a aparência de pesquisa objetiva, uma forma de mascarar-se a luta de classes e de se consolidar constantemente a história dos vencedores. Ele considera moral e eticamente correto o método de tomar-se o partido dos vencidos, bem como seu ponto de vista. Da po-sição destes, o que será visto é uma sucessão de desastres, sem nenhuma legalidade imanente, sem nenhum telos, sem nenhuma ordem (rouAnet, 190, p. 20). Portanto, o pensamento benjaminiano considera que a história real humana está baseada na des-continuidade, na ruptura, na catástrofe, na ruína.

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Remissão do passado

Artisticamente, essa idéia da descontinuidade é expressa numa leitura que Ben-jAMin (1994, p. 226) faz de um quadro de Klee, que se intitula Angelus Novus, da qual se recorta um trecho:

Representa um anjo que parece querer afastar-se de algo que ele encara fixamen-te. Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma sucessão de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumu-la incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa sobre nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos de progresso.

A visão de Benjamin da história como ruína e ruptura está metaforicamente sinteti-zada nesse texto. A postura do anjo caracteriza uma atitude revolucionária e redentora. Na figura do projeto angelical (juntar os fragmentos), a história é objeto de uma construção, cujo lugar não é um tempo homogêneo, mas cheio de agoras, através do qual, cada presente se comunica com os diversos passados.

Cada época provocadora de mudanças constitui um presente que não se entende como a culminação de um processo histórico, mas como um momento encarregado de abolir esse processo, de fazer saltar pelos ares o continuum da história, salvando o passado (rouAnet, 1990, 22). Só se consegue tal objetivo, se, primeiramente, o historiador evitar a empatia com o vencedor (“o investigador historicista estabelece uma relação de empatia […] com o vencedor”) e, em segundo lugar, se ele “escovar a história a contrapelo” (BenjAMin, 1994, p. 225). Isso significa postar-se na posição do oprimido.

Nessas primeiras considerações da reflexão benjaminiana, observa-se que há uma reviravolta no conceito de história. A história não consiste nem na reencarnação no sen-tido helênico, nem na salvação no sentido agostiniano, mas na redenção dos fragmen-tos, desconsiderados pelo continuum historicista. No conceito benjaminiano de história, especialmente nas “teses” 14 e 15, fica claro que a força messiânica é a revolução: “é o salto dialético da Revolução”, é a “consciência de fazer explodir o continuum da história própria às classes revolucionárias no momento da ação” (Ibid., p. 229-230).

A postura da classe revolucionária não é liberar as gerações futuras, como afirma o historicismo socialista, mas, num certo sentido, o passado, no momento em que se liberta como presente. O historiador deve promover a redenção dos escravizados do passado, e não dos descendentes liberados, afirma BenjAMin (Ibid., p. 228 e 230); deve “lutar por um passa-do oprimido”, como é dito na “tese” 16.

Concomitantemente a essa postura, a classe revolucionária, que está sob os pés daque-les que “desfilam com os despojos”, deve descrever a história presente dos vencedores

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como desmantelamento (…) das várias unidades tradicionais ou “naturais” [Na-turwüchsige] (grupos sociais, instituições, relações humanas, formas de autoridade, atividades de uma natureza cultural e ideológica, bem como produtiva) (…), com vistas à sua (…) reorganização (jAMeson, 1992, p. 233).

O conceito de salvação subjacente em todos os estudos de Benjamin, desde seus pri-meiros trabalhos, não é, segundo rouAnet (1994, p. 22), o conceito messiânico tradicional, nem em sua forma teológica, nem em suas versões secularizadas. sAnto AGostinho (1961, p. 184) que via a redenção como o telos do processo histórico, assim se expressa a respeito em A cidade de Deus: “a nossa natureza imortal é afetada por algo, de tão inteiramente novo”.

Para GAGneBin (s.d., p. 77), a redenção da história em Benjamin “não consiste em uma recriação inteiramente nova, mas em um longo e paciente recolhimento” dos cacos, do amontoado de ruína, vistos pelo Angelus Novus de Klee. A autora (Ibid., p. 80) ressalta, da alegoria do anjo, o anúncio de duas advertências, no mínimo: em primeiro lugar, a história poderia ser completamente diferente, algo que poderia ter sido e não foi. Aquilo que não se realizou tem uma causa para o impedimento, não a fraqueza ou incapacidade, mas a ordem imperiosa da dominação. As ruínas acusam o silêncio dos mortos, por isso o historiador da corrente burguesa procura não “deter-se para acordá-los”, porquanto isso significaria fazer justiça a eles.

Outra advertência diz respeito àquilo que Benjamin chama ironicamente de “vento que sopra do paraíso”. A despeito de sua resistência, o anjo da história é empurrado à frente pelo vento do progresso. Isso significa que o historiador não pode se contentar em recolher os fatos do passado, “deve ser fiel à história presente, porque é apenas através dela que o passado poderá talvez, algum dia, alcançar sua libertação” (Ibid., p. 80).

Narração da História

“Escovar a história a contrapelo” significa encontrar, para escrever, aquilo que não está relatado nos registros e documentos oficiais. Significa buscar o que é “ilegal” dentro da legalidade. Na narrativa cumulativa, coerente, do historicismo, têm-se silêncios e, olhando para eles, devem-se buscar elementos da história dos oprimidos. Em si, os documentos e monumentos culturais denunciam uma história da barbárie.

GAGneBin (Ibid., p. 115) expõe de modo singular um dos métodos para se buscar a construção da história que clama constantemente para ser liberta:

Na sua (de Benjamin) teoria da narração e em sua filosofia da história em particular, o indício de verdade da narração não deve ser procurado no seu desenrolar, mas, pelo contrário, naquilo que ao mesmo tempo lhe escapa e esconde, nos seus trope-ços e nos seus silêncios, ali onde a voz cala e retoma o fôlego.

O historiador não deve, no entanto, incorrer na mesma falha do historicismo. Não é seu objetivo elaborar uma contra-história idílica para consolar a classe oprimida. BenjAMin (1994, p. 230), constantemente, adverte o historiador de que o passado não se constitui numa

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“imagem eterna”. Portanto, não se trata de “consolar os humilhados de hoje pela evocação de gloriosos amanhãs” (GAGneBin, 1994, p. 120-121). A corrente marxista caiu nesse erro.

Faz-se necessária a experiência histórica que consiga instituir o passado escondido e, ao mesmo tempo, a atualidade. Esse conceito de experiência (Enfharung, como se lê em alemão) “tem, na teoria benjaminiana, uma origem literária: é tomado à procura proustiana e ao modelo da narração” (GAGneBin, s.d., p. 67 – grifos nossos).

No estudo “O narrador” (1994) em que Benjamin examina as narrativas de Niko-lai Leskov2 ele elabora importantes reflexões sobre o ato de narrar. Apresenta possíveis causas da falência da arte de contar e aponta alguns elementos próprios dos relatos orais presentes em certas narrativas escritas que as aproximam daquela que ele crê ser a verda-deira narrativa.

A verdadeira narração, segundo a concepção benjaminiana, procede da tradição, apre-senta conselhos em forma de sugestão, é transmitida por narradores anônimos, evita explica-ções totalmente acabadas, não deixa o ouvinte expectante quanto ao sentido da vida, consti-tui como seus representantes básicos o viajante que vem de longe e o camponês sedentário, mostra personagens humanizadas e a serviço da transformação da realidade, não descreve pedagogicamente o destino alheio, pode ser renovada, não exige verificação mantendo-se ligada ao passado, ao presente e com projeções para o futuro, têm as raízes fincadas na ex-periência, etc.

Assim, Benjamin atrela a narrativa a um modelo de sociedade “em que sua organiza-ção coletiva reforça a vinculação consciente a um passado comum, permanentemente vivo nos relatos dos narradores” (Ibid., p. 68), o que é impossível de ocorrer na sociedade capita-lista em virtude das modernas formas de produção e organização das classes.

Na sociedade pré-capitalista, a história se baseava na narração de relatos orais, que se mantinham vivos de geração em geração, constituindo uma ponte entre o passado e o presente. O narrador contava a partir da própria experiência e da experiência dos que lhe comunicavam a narrativa e se dirigia à experiência dos ouvintes (rouAnet, 1990, p. 50), na cidade, na oficina, no campo, ou em casa. Com efeito, os pequenos relatos fortaleciam os fios de uma memória coletiva, social e comum. BenjAMin (1994, p. 221) apresenta a questão nos seguintes termos:

A reminiscência funda a cadeia da tradição, que transmite os acontecimentos de ge-ração a geração. Ela corresponde à musa épica no sentido mais amplo. Ela inclui todas as variedades da forma épica. Entre elas, encontra-se em primeiro lugar a encarnada pelo narrador. Ela tece a rede que em última instância todas as outras constituem entre si.

Os representantes arcaicos desse tipo de narrador podem ser concretizados nas figuras do camponês sedentário e do marinheiro comerciante. O primeiro contava as his-tórias e tradições, que aprendeu sem sair do país, para a comunidade, em especial, no momento do trabalho de fiação, tecelagem e olaria, durante o dia ou à noite, nas oficinas artesanais ou em casa. O segundo contava as narrativas que aprendeu em lugares estra-nhos, em terras longínquas.

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Esses dois estilos de narrador interpenetram-se e se concretizam no estilo de narração do artífice: “Se os camponeses e os marujos foram os primeiros mestres da arte de narrar, foram os artífices que a aperfeiçoaram”. (Ibid., p. 199)

Uma das características das histórias dos artífices – narrativas da esfera do dis-curso vivo –, que não constavam em livros, era o seu senso prático. Elas tinham em si, de forma latente, uma dimensão utilitária que podia consistir em um ensinamento mo-ral, um provérbio, uma norma de vida, enfim, um conselho nos moldes de sugestão. Isso significa que uma mesma história podia conter dezenas de conselhos, aplicáveis a qualquer época e ouvinte. Cada pessoa, ou geração, apreendia um ensinamento dife-rente de um mesmo relato. Nisso consiste a “natureza da verdadeira narrativa”. Mas essa bela imagem está em vias de extinção: “Assim essa rede se desfaz hoje por todos os lados, depois de ter sido tecida, há milênios, em torno das mais antigas formas de trabalho manual” (Ibid., p. 205).

A implicação disso é o declínio de um tipo de fala, de experiência, de memória e de atividade produtiva comuns, em que o isolamento praticamente inexistia. O homem contava, ouvia e trabalhava num mesmo tempo. Nenhuma dessas três atitudes era mais importante que outra. Em “O narrador”, lê-se:

O mestre sedentário e os aprendizes trabalhavam juntos na mesma oficina (…) (Ibid., p. 199). Ela (a arte de contar) se perde porque ninguém mais fia ou tece enquanto ouve a histó-ria. Quanto mais o ouvinte esquecer a si mesmo, mais profundamente se grava nele o que é ouvido. Quando o ritmo do trabalho se apodera dele, ele escuta e ouve histórias de tal maneira que adquire espontaneamente o dom de narrá-las (Ibid., p. 205).

Já outros modelos de comunicação, como o romance e a informação, tomam o lu-gar da verdadeira narrativa e alimentam outro tipo de sociedade criada pela vida moderna, enquanto “Nas sociedades arcaicas ele (o artista profissional) não se diferencia sempre cla-ramente de outros papéis, correspondentes a outras funções, porque a arte, notadamente a poesia, não se encontra ela própria diferenciada de outras manifestações culturais” (CAndi-do, s.d., p. 28).

No entanto, com a rapidez do acontecimento das coisas e com a fragmentada forma de produção imposta pela sociedade moderna, a memória refugia-se na interioridade do indi-víduo. Não havendo possibilidade de comutação de experiência, de (con)vivência em grupo, o ato de contar definha-se, o homem emudece, enquanto ser coletivo.

O que está em jogo, na realidade, é a questão da fratura da identidade do homem nessa nova sociedade e o conceito da história humana. A preocupação de Benjamin é com a importância “da narrativa para a constituição do sujeito” (GAGneBin, 1994, p. 20) e com a “experiência que supõe uma relação com sua própria história” (rouAnet, 1999, p. 166).

As novas narrativas criadas tentam suprir a carência da memória coletiva para ques-tões essenciais do novo homem, agora, esfacelado. Em “O narrador” (BenjAMin, 1994, 201-203), são apontados dois tipos de narrativas que procuram substituir a verdadeira narrativa: o romance e a informação, que se ligam ao isolamento do indivíduo na sociedade burguesa.

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O romance “nem procede da tradição oral, nem a alimenta” e a sua origem “é o indivíduo isolado”. Já a informação se preocupa com “a maior exatidão” (Ibidem), por isso procura trans-mitir todos os dados da novidade. Sua razão de ser é “o culto do sempre novo” tentando mostrar que algo “extraordinário e miraculoso” acaba de acontecer (Ibid., p. 203). Mas, como o romance, a informação é também um produto de consumo. Não é de estranhar-se a propaganda, na pro-gramação do dia, das informações que aparecerão na próxima edição do jornal falado ou escrito.

Ao contrário disso, está a narrativa que não encerra o relato “numa única versão”, pelo contrário “permanece irredutível a interpretações posteriores” (GAGneBin, s.d., p. 70). Ela “não se entrega. Ela conserva suas forças e depois de muito tempo ainda é capaz de se de-senvolver” (BenjAMin, 1994, p. 204). Isso só é possível numa experiência coletiva. Enquanto a informação (novidade) apaga a tradição, diariamente, imprimindo, no homem, uma espécie de amnésia coletiva, a verdadeira narrativa favorece-a possibilitando-lhe a continuidade.

Esse conceito enfático de experiência permite, assim, a escritura de uma anti-história, porque, ao invés de encerrar o passado numa interpretação definitiva, reafirma a abertura de seu sentido, seu caráter inacabado. No entanto, articula-se a estruturas sociais atualmente extintas, o que torna necessária uma reconstrução voluntária de suas condições de possibili-dade (GAGneBin, s.d., p. 70).

Nesse ponto, nasce a importância da memória coletiva. Benjamin (1994, p. 224) im-puta ao historiador a função de congelar imagens do passado e as articular com o presente, para viabilizar a construção da história inacabada, que corresponde ao capítulo da vida da classe dos oprimidos.

Com efeito, o apelo de Benjamin é contra o esquecimento, pois as histórias não rela-tadas (escondidas pelo historicismo) podem conter verdades que explicam a desorientação atual do homem. As histórias que devem ser buscadas transcendem, portanto, a memória particular do indivíduo e uma época pontual. A Urgeschichte (história, em alemão) assume, dessa forma, um sentido mais profundo.

A imagem da História

Na mesma linha de pensamento, BoLLe (1998, p. 28-29) propõe que o ideal seria não traduzir o termo Urgeschichte, mas apenas incorporá-lo ao português, a fim de se apreender melhor o sentido que ele carrega. Segundo o ensaísta, tal termo difere, em Benjamin, da noção de proto-história que designa a fase documentada da transição para a pré-história. O método benjaminiano assumiria, além do que já se apresentou neste artigo, uma dimensão teórica e especulativa da história e seria inspirado no modelo mnemônico de Freud:

Enquanto um indivíduo é capaz somente a partir de uns cinco anos de reproduzir suas experiências vividas como cadeias contínuas, o tempo anterior, decisivo para a sua formação, permanece nas trevas do esquecimento, com raros lampejos de memória, comparável à Urgeschichte dos povos, articulada em mitos e lendas.

As conseqüências da aproximação desses dois modelos (benjaminiano e

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freudiano) de imagem são: (1) a história passa a ser um discurso não-linear, mas constituído de fragmentos arrancados do continuum e reveladores do processo his-tórico-social; (2) Urgeschichte torna-se um conjunto de imagens, in- ou semicons-cientes, que pertencem aos domínios de imagens arcaicas; (3) o historiador assume o papel de intérprete dos sonhos coletivos, traduzindo as imagens arcaicas em imagens dialéticas, isto é, tornando-as legíveis, enquanto informações históricas.

A partir dessa leitura da Urgeschichte, BoLLe (Ibid., p. 35) defende a idéia de que as ciências político-sociais têm (e de fato precisam ter) recursos da ficção para explicarem suas teorias. Tal prática foi adotada, por exemplo, por rousseAu (1968, p. 144-145, 204), ao afirmar que suas teorias políticas não se fundamentavam em verdades históricas, mas em “raciocínios hipotéticos” – expressão sinônima, segundo BoLLe (1998, p. 35), de fic-ção. Na conclusão das suas teses sobre o contrato social, Rousseau afirma mesmo que “a imaginação de modo algum” sugeriu-lhe mais argumentos para continuar formulando suas proposições. Melhor dizendo, o pensador explorou a imaginação até onde sua mente per-mitiu que ele fosse para a elaboração de suas teses. Isso significa que as teses não resultam de dados observados, mas de “conjecturas” (Ibid.) ou de imaginação somente.

Na verdade, a prática de se fazer uso da ficção na teoria política não é novidade em Rousseau. Antes dele, na antigüidade grega, por exemplo, “A necessidade do historiador de misturar relato e explicação fizeram da história um gênero literário, uma arte e ao mesmo tempo uma ciência” (Le Goff, 1996, p. 12). A “mistura” de explicação e relato remete à retó-rica. AristóteLes (1964, p. 306) já afirmava não haver diferença entre o historiador e o poeta por escreverem verso ou prosa e considera a poesia algo superior à história.

Em “O narrador”, no tópico 12, BenjAMin (1994, p. 209) pergunta-se “se a historio-grafia não representa uma zona de indiferenciação criadora com relação a todas as formas épicas”. Ambas as formas escritas – historiografia e épica – dependem da memória para poderem concretizar a narração da história.

Consideração final

O conceito de tempo é importante, pois orienta a construção do relato da história que, por sua vez, influi nas práticas sociais. Nesse sentido, a linguagem escolhida para a narração da história é fundamental, pois ela cria a realidade que se deseja ter para se justiçar as relações entre os homens.

No texto “O narrador” (1994), há uma preocupação com o formato e com o tipo de discurso e de linguagem responsáveis pelo registro dessa narrativa, que tenta construir imagens da história soterrada. No ensaio, destacam-se duas orientações a respeito desse pro-blema: primeiramente, o narrador não deve ter a preocupação “com o encadeamento exato de fatos determinados”. Em segundo lugar, tal discurso pode conter as características dos provérbios, pois eles são “uma espécie de ideograma de uma narrativa (…), são ruínas de an-tigas narrativas, nas quais a moral da história abraça o acontecimento” (Ibid., p. 209 e 221).

Tais orientações comportam os expedientes da “mobilização” e da interrupção do fluxo do “movimento das idéias” (Ibid., p. 231). Em outras palavras, o registro do discurso

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deve evitar a coerência do historicismo. rouAnet (1990, p. 155) afirma a esse propósito:

poderíamos concluir que a linguagem contribui para a ruptura da temporalidade infernal, regida pelo eterno retorno. Graças aos restos verbais – fósseis acústicos, sobreviventes de uma fala e de uma escuta original – a origem se comunica com o novo, permitindo a produção do novo.

A antilinearidade histórica caracteriza a narração de tal história. Os fatos relatados não são obrigados a um encadeamento sem obstáculo, eles não têm a missão de tampar as falhas, os silêncios, os vazios da nova história que estão desenhando no discurso que tentam constituir. Assim como se arrancam os fatos do contínuo, as palavras também precisam ser arrancadas do seu curso normal para que, despojadas do seu fluxo cômodo, auxiliem no “movimento de idéias”.

A linguagem poética é apontada por GAGneBin (1994, p. 118) como a ideal para essa missão redentora da narrativa que, por dolorosa que seja, deve vir à tona. Com isso concor-dam as palavras de Bosi (1997, p. 146):

A poesia resiste à falsa ordem, que é, a rigor, barbárie e caos, “esta coleção de ob-jetos de não amor” (Drummond). Resiste ao contínuo “harmonioso” pelo descon-tínuo gritante; resiste ao descontínuo gritante pelo contínuo harmonioso. Resiste aferrando-se à memória viva do passado; e resiste imaginando uma nova ordem que recorda no horizonte da utopia.

Os relatos da história são fruto da decisão dos homens, logo, está nas mãos des-ses, sob a orientação divina, o fazer e o realizardas práticas sociais, numa linguagemque amplie a justiça e paz.

Notas1 Este artigo é parte do primeiro capítulo de sua dissertação de mestrado, A história e as histórias na Festa de

Manuelzão, aprovada em 2001 na Unesp de Araraquara (SP).2 Escritor russo do século 19, cujas narrativas sobre os camponeses interessam a BenjAMin (1994, p. 197).

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UM COPO DE CÓLERA: NARRAÇÃO, DISCURSO E ESPETÁCULO – UMA OBRA PÓS-MODERNA

TANIA STURzBECHER DE BARROS, mestre em Estu-dos Literários pela Universidade Estadual de Londrina (UEL), professora de Língua Portuguesa e Literatura no Instituto Adventista Paranaense, e docente de Co-municação Empresarial e Metodologia de Pesquisa na Faculdade Adventista Paranaense, [email protected]. SéRGIO FERNANDES DE LIMA, graduado em Letras pelo Unasp e professor de inglês na Tai Po Sam yuk Seconda-ry Scholl Ltda, em Hong Kong, [email protected].

Resumo: Neste artigo, pretendemos fazer uma análise de uma obra considerada pós-moderna: Um copo de cólera, de Raduan Nassar, escrita em 1978. O termo pós-modernidade tem atraído grande número de estudiosos e pesquisadores, que se po-sicionam das mais variadas formas a seu respeito. Como embasamento teórico, busca-remos alguns críticos que enxergam o fenômeno de maneira distinta, como Silviano Santiago, Flora Süssekind e Noé Jitrik. Como todo texto contemporâneo, a novela de Nassar apresenta a minimalização da ação externa se contrapondo ao aumento da ação no plano interno. Isso acontece já na estrutura narrativa do texto, quando o leitor se depara com uma história aparentemente banal da rotina de um dia na vida de um casal. No plano interno temos discussões deveras importantes como a disputa dos gêneros, o engajamento político, a intertextualidade, a fragmentação do indivíduo e a linguagem do espetáculo, o que caracterizaria a obra como pós-moderna. PalavRas-chave:Pós-moderno, discurso, espetáculo, narrativa

LITERATURA

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UM COPO DE CÓLERA (A CUP Of WRAth): NARRATION, DISCOURSE AND SPEC-TACLE – A POST-MODERN NOVEL

abstRact: The present article is an attempt to analyse a novel considered post-modern: Um copo de cólera (A cup of Wrath), by Raduan Nassar, written in 1978. The term post-modern has attracted a great number of scholars and researchers, all of whom hold different viewpoints regarding its definition. As theoric basis, we will use critics who have expressed different opinions on the topic under focus here, such as Silviano San-tiago, Flora Süssekind and Noé Jitrik. Just like any other contemporary text, Nassar’s novella presents a sharp decrease in the external action as opposed to an increase in action in the internal plan. This happens also in the narrative structure of the text, when the reader comes across a story, apparently banal, of an ordinary couple’s daily routine. In the internal plan we find discussions downrightly important, such as the discussion of gender, political commitment, intertextuality, the fragmentation of the individual and the language of spectacle, which characterises the novel as post-modern. KeywoRds: Post-modern, discourse, spectacle, narrative

Introdução

Partindo da atual discussão sobre o pós-moderno como sendo uma corrente de pen-samento que atinge não só o campo das artes em geral, mas da história e da sociologia, com um reflexo na teoria e prática políticas do mundo contemporâneo, este debate permeia tam-bém os estudos literários.

O termo “pós-modernidade” tem atraído grande número de estudiosos e pesqui-sadores, que se posiciona das mais variadas formas em relação ao tema. Neste artigo, não se pretende tomar um único ponto de vista crítico, pois é dentro de um contexto de idéias múltiplas que buscaremos construir nossa análise.

Nosso trabalho partirá da análise de um romance, ou mais caracterizadamente, de uma novela de Raduan Nassar, Um copo de cólera, publicada em 1978, a qual foi o segundo e último livro do autor.

Como toda obra contemporânea, a novela de Nassar apresenta desde o seu início algumas peculiaridades que a caracterizam como literatura pós-moderna. Já na estrutura nar-rativa do texto, nota-se que a narração é feita de forma diferenciada das demais, pois o leitor se depara com uma história aparentemente banal, própria do cotidiano da vida de um casal. No entanto, no nível interno, aparecem discussões deveras importantes como a disputa dos gêneros, o engajamento político, a intertextualidade, a fragmentação do indivíduo e a lingua-gem do espetáculo, temáticas abordadas com freqüência nesse tipo de literatura.

No contexto interno, temos uma narrativa quase tradicional, com início, meio e fim. No entanto, a inovação acontece quando percebemos o mesmo título dado ao primeiro ca-pítulo também no último: a chegada. Esse elemento destaca a circularidade, a continuidade da vida do casal.

A narração transcorre em ritmo de fluxo de consciência, ressaltando os pensamentos

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e ações dos personagens, marcada pela ausência de pontuação. Porém, o texto está organiza-do em diálogos e dividido em capítulos, à saber: “a chegada”, “na cama”, “o levantar”, “no banho”, “o café da manhã”, “o esporro”, “a chegada”.

É importante ressaltar a importância do leitor, já que este se percebe sugado para den-tro da enxurrada de pensamentos do protagonista, estreitando a relação do narrador com o leitor, numa espécie de jogo de convencimento. Isso acontece porque o narrador toma um posicionamento autodiegético, que compromete a confiabilidade do discurso e gera certa desconfiança por parte do leitor, que dessa forma, transforma-se num espectador do univer-so privado e subjetivo dos personagens.

Sobre isso, vale ressaltar o que disse Flora süsseKind:

E é nesse lugar especial entre o segredo e a exposição, nesta vitrine que parece se mover a prosa literária brasileira na década de 80 [...] mesmo quando o assunto em questão parece íntimo demais, mesmo aí há visitação pública. [...] Porque é via des-dobramento teatral, via segunda parte que em geral os personagens se relacionam (1993, p. 245).

A narrativa se inicia com a mulher esperando pelo protagonista numa espécie de sítio, um local isolado. Com a chegada do homem, trava-se um diálogo de “surdo e mudo”: “...ela pergunta ‘que que você tem?’ [...] pela insistência da pergunta que respondi ‘você já jantou?’ ‘mais tarde’. Percebe-se que, embora exista uma relação amorosa, no campo do diálogo os dois não se compreendem muito bem. Em todo o texto aparece um conflito de idéias entre o casal, que parece só se relacionar perfeitamente apenas no plano físico, sendo a linguagem corporal a única possível entre eles.

Após o capítulo “o esporro”, trava-se uma guerra verbal e ideológica, ressaltando o que foi dito antes pelo protagonista: eles estão sempre de lado opostos. Entretanto, essa cer-teza é quebrada no último capítulo com a inversão do foco narrativo, que antes era centrado nele e que passa a ser situado nela. Tem-se a aparente impressão de que tudo será diferente, visto que temos um segundo enfoque, mas isso não acontece, pois temos apenas uma con-tinuidade, um recomeço.

Desta forma, a narrativa de Raduan Nassar se entretece num vaivém constante de aparente falta de conexão, rumo a metaficção de posicionamento crítico, tomado a partir do olhar externo para o interno, ou como diz Silviano sAntiAGo é a:

Ficção que existe para falar da incomunicabilidade de experiências: a experiên-cia do narrador e do personagem. A incomunicabilidade, no entanto, se recobre pelo tecido de uma relação, relação esta que se define pelo olhar. Uma ponte, feita de palavras, envolve a experiência muda do olhar e torna possível a narra-tiva (1989, p. 44, 45).

O objetivo principal deste trabalho é mostrar algumas das questões e temáticas abor-dadas pelo pós-modernismo, a fim de perceber a influência destas na sociedade moderna e a compreensão de uma obra literária que exige antes de tudo reflexão crítica. Uma vez que

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aborda aspectos sociais, políticos e por que não, trata principalmente da história de cada um de nós e também da nossa história, enquanto cidadãos pertencentes à mesma pátria.

Disputa dos gêneros, engajamento político e alegoria

O enredo torna-se uma tensão constante a partir da constatação, pelo protagonista, de um buraco na cerca, limite do espaço da narrativa (granja) e que até então só tinha uma pas-sagem e o portão, que permanecia sempre fechado. O tempo (não exatamente determinado) é a época da ditadura militar, fato esse bem significativo para o entendimento da discussão entre uma jornalista engajada e um aparente alienado, “ermitão.” É a partir deste instante que se trava um conflito de idéias entre os dois personagens:

vai repete que não é o ermitão que te imagino (nAssAr: 1992, p. 48).vá pôr a boca lá na tua imprensa, vá lá pregar lições, denunciar a repressão, ensinar o que é justo e o que é injusto, vá lá derramar a tua gota de enxurrada de palavras; desperdice o papel do teu jornal, mas não mete a fuça nas folhas do meu ligustro (Ibidem).

Este tipo de texto é uma forma alegórica para a ficção falar da realidade vivida sem, contudo, restringir a narrativa a contar vivências, experiências dessa época. Pode-se perceber que a discussão entre os dois personagens se torna mais intensa a partir do momento em que o protagonista se sente invadido.

O rombo na cerca-viva, causado pelas formigas saúvas, representantes de toda ordem social, levam o narrador a ficar irritado. As formigas representam tudo o que o protagonista diz odiar e querer distância: exatamente os valores de um sistema social já estabelecido.

Reacionário e alienado, esse é o protagonista que se quer apresentar (na fala dela), mas paradoxalmente, numa marca neobarroca, é ele que é avesso à ordem, anarquista:

força escrota da autoridade necessariamente fundamenta a “ordem”, palavra por sinal sagaz que incorpora a um só tempo a insuportável voz de comando e o presumível lugar das coisas (...) entenda, pilantra, que toda “ordem” privilegia (Ibid., p. 58).não aceito, pois nem a pocilga que está aí, nem outra “ordem” que se instale (Ibid., p. 59).

Enquanto que ela, militante contra a ditadura como uma possível revolucionária, se posiciona paradoxalmente em defesa da ordem: “entenda, seu delinqüente que toda desor-dem também privilegia, a começar pela força bruta ...” (Ibidem). E como conclusão da pos-tura incoerente dela:

Traindo-se por sinal, feito um travesti de carnaval, nos grossos pêlos da sua ideologia, ela trombeteava o protesto contra a tortura enquanto era ao mesmo tempo um descara-do algoz do dia-a-dia, igualzinha ao povo, feito à sua imagem, lá nos estádios de futebol, igualzinha ao governo, repressor, que ela sem descanso combatia (Ibid., p. 69).

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Os protagonistas, que vivem nesse clima de contradições pós-modernas, são antes de qualquer coisa, anônimos na narrativa. Prova disso é que são caracterizados da maneira tra-dicional, abrindo caminho para uma leitura mais abrangente, uma alegoria da situação vivida por muitas pessoas em uma época de repressão.

O personagem principal é um exemplo de cidadão que se recusa a aceitar as normas impostas pela sociedade, por isso vive isolado e sozinho. Ele se sente um excluído, já não acredita nos valores que sustentam as relações sociais, abomina toda ordem e toda norma imposta. É a militância dela, a atuação da mulher na comunidade e a sua crença em um mun-do melhor que o irrita:

já foi o tempo em que via a convivência como viável, só exigindo deste bem comum, piedosamente, o meu quinhão, já foi o tempo em que consentia com um contrato, deixando muitas coisas de fora sem ceder contudo no que me era vital, já foi o tempo em que reconhecia a existência escandalosa de imagi-nados valores, coluna vertebral de tida ‘ordem’; mas não tive sequer o sopro necessário, e, negado o respiro, me foi imposto o sufoco; é esta consciência que me libera, é ela hoje que me empurra, são outras agora minhas preocu-pações, é hoje outro o meu universo de problemas; num mundo estapafúrdio – definitivamente fora de foco – cedo ou tarde tudo acaba se reduzindo a um ponto de vista, e você, que vive paparicando as ciências humanas, nem suspei-ta que paparica uma piada: impossível ordenar o mundo dos valores, ninguém arruma a casa do capeta; me recuso pois a pensar naquilo em que não mais acredito, seja o amor, a amizade, a família, a igreja, a humanidade; me lixo com tudo isso! Me apavora ainda a existência, mas não tenho medo de ficar sozinho, foi consciente que escolhi o exílio, me bastando hoje o cinismo dos grandes indiferentes (Ibid., p. 55).

O narrador é um homem magoado, frustrado e desiludido. Pode-se depreender que an-tes fora alguém atuante na sociedade, mas que já não acredita em mudanças, por isso o envolvi-mento dela o incomoda: “...já disse que a margem foi um dia meu tormento, a margem agora é a minha graça, rechaçado quando quis participar, o mundo hoje que se estrepe!” (Ibid., p. 59).

Linguagem do espetáculo e fragmentação do indivíduo

Percebe-se também um outro nível em que a narrativa é estruturada, a do espetáculo. Os protagonistas sobem no palco e forjam uma encenação ao longo da trama. Eles são ato-res e têm plena consciência disso, pelo menos é o que o discurso de ambos se faz saber:

Por alguns momentos lá no quarto nós parecíamos dois estranhos que seriam observados por alguém, e este alguém era sempre eu e ela, cabendo aos dois ficar de olho no que ia fazendo (Ibid., p. 12).e eu, sempre fingindo (Ibid., p. 13).eu na rusticidade daquele camarim (Ibidem).eu puxava ali pro palco quem estivesse ao meu alcance, pois não seria ao gosto

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dela, mas sui generis, eu haveria de dar espetáculo sem platéia (Ibid., p. 34).(ela sabia representar bem seu papel) entrou de novo em cena me dizendo (Ibid., p. 38).fiquei parado (...) um ator sem platéia, sem palco, sem luzes, debaixo de um sol já glorioso e indiferente (Ibid., p. 79).

Dessa forma, o narrador brinca com o espetáculo confundindo o leitor que não sabe se a fala dos personagens é verdadeira ou apenas encenação. O texto dialoga abertamente com o cenário e com a imagem teatral organizada por eles para expor (às claras e para todos) sua fragmentação. É sua subjetividade posta em questão, sintetizada nas palavras de Flora süsseKind:

onde protagonistas e intriga, propositadamente hesitantes, dialogam, críticos, com aquele que narra, dobradiça este também, cujo ombro olha o outro que lhe rasura as certezas, num verdadeiro abismo narrativo-ensaístico; seja na teatralização da lin-guagem do espetáculo, convertendo-se a prosa em vitrine onde se expõem e obser-vam personagens sem fundo, sem privacidade, quase imagens de vídeo num texto espelhado onde se cruzam, fragmentárias, velozes, outras imagens, outros pedaços de prosa igualmente anônimos, igualmente pela metade (1993, p. 240).

Paródia, pastiche, intertextualidade, ou ainda, uma espécie de carnavalização se faz presente na obra em várias referências que vão desde a Bíblia, passando por Aristóteles e seu “mundo das idéias” (Ibid., p.77), chegando ao complexo de culpa, o que nos lembra um pouco da teoria freudiana e recomeçando tudo novamente, numa eterna circularidade.

Em nenhum momento da narrativa os personagens discutem a sua relação, aparen-temente baseada no contato físico. A discussão entre eles começa a partir da constatação da destruição da cerca-viva pelas formigas, lembrando-nos do que diz Noé jitriK sobre o romance contemporâneo:

duas ou mais personagens põem-se a falar a partir de uma circunstância qualquer, geralmente irrelevante, e quase de repente, em lugar de examinar suas relações, ou de realizar a clássica confidência ou de urdir uma nova situação, fixam os limites, alcances e repercussões de questões filosóficas, às vezes árduas (1979, p. 240).

Os personagens formam a sua identidade por intermédio do discurso do outro. As crenças e ideologias de cada um são colocadas em evidência e questionadas a todo instante pelo interlocutor. O olhar do outro é importante, pois é por intermédio dele que o indivíduo constrói a sua própria identidade. É o discurso que leva à desconstrução dos seres e também ao rompimento amoroso no penúltimo capítulo. Quem domina a discussão é o protagonista, é ele que está em destaque e é o detentor do discurso. No entanto, quando a mulher vai em-bora e o narrador se sente sozinho, percebe que só consegue existir por intermédio dela:

e ali, no meio daquela quebradeira, de mãos vazias, sem ter onde me apoiar, não tendo a meu alcance nem mesmo a muleta de uma frase feita, eu só sei que de re-pente me larguei feito um fardo, acabei literalmente prostrado ali no pátio, a cara

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enfiada entre as mãos, os olhos formigando, me sacudindo inteiro numa tremenda explosão de soluços (eram gemidos roucos que eu puxava lá do fundo) (Ibid., p. 81).

Após a saída da mulher, o protagonista se vê novamente sozinho e já não precisa de máscaras. O espetáculo acabou, está só novamente e é então que ele se mostra frágil, deixan-do claro que o que mais rejeita é o que na verdade mais deseja: amor, família, etc.

Quando a mulher retorna, no último capítulo, junta simbolicamente os fragmentos dele, devolvendo-lhe a identidade perdida. Agora é ela que detém o poder, não por meio do discurso, mas por suas ações:

até que desloquei entre aqueles fragmentos e atravessei a peça toda, e só fui cruzar o corredor pra eu alcançar a porta ali do quarto, boiando vagamente à luz duma vela: deitado de lado, a cabeça quase tocando os joelhos recolhidos, ele dormia, não era a primeira vez que ele fingia esse sono de menino, e nem seria a primeira vez que me prestaria aos seus caprichos, pois fui tomada de por uma virulenta vertigem de ternura, tão súbita e insuspeitada, que eu mal continha o ímpeto de me abrir inteira e prematura pra receber de volta aquele enorme feto (Ibid., p. 85).

O que fica de toda essa discussão e análise é que a construção do processo narrativo por Raduan Nassar não está só na estrutura da narrativa ou na sua representação, mas em algo de mais difícil apreensão que é a arte de narrar. O autor nos coloca frente a frente com nós mes-mos e também com o nosso passado histórico, nos fazendo não apenas ler o que está escrito, fazermos uma reflexão crítica do nosso passado e que reflete, sem dúvida, no nosso presente. Um copo de cólera apresenta ainda um registro lingüístico excepcional, fazendo com que esta nar-rativa se torne “uma obra singular da literatura brasileira”, “um clássico dos nossos tempos”.

Referências bibliográficas

HUTCHEON, Linda. Poética do Pós-modernismo. Rio de Janeiro: Imago, 1991.

JAMESON, Fredric. Pós-modernismo: a lógica do capitalismo tardio. 2ª. edição. São Paulo: Ática, 1997.

JITRIK, Noé. “Destruição e formas narrativas”. In MORENO, César Fernández (ed.) América Latina em sua literatura. São Paulo: Perspectiva, 1979.

NASSAR, Raduan. Um copo de cólera. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

SANTIAGO, Silviano. “O narrador pós-moderno”. In: Nas malhas da letra. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

SüSSEKIND, Flora. “Ficção 80 – dobradiças e vitrines”. In: Papéis colados. Rio de Janeiro: UFRJ, 1993.

__________. Literatura e vida literária. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992.

VILLAÇA, Nízia. Paradoxos do pós-moderno: sujeito e ficção. Rio de Janeiro: UFRJ, 1996.

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AS NOVAS TECNOLOGIAS E A IN(EX)CLUSÃO SOCIAL, LINGÜíSTICA

E DIGITAL

ANA MARIA DE MOURA SHÄFFER, doutoranda em Lin-guística Aplicada pela Unicamp, docente e coordenado-ra do curso de Tradutor e Intérprete do Unasp, Campus Engenheiro Coelho (SP), [email protected].

Resumo: O texto pretende considerar algumas conseqüências das tecnologias modernas de informação, discutindo como elas podem se converter em um novo fator de exclusão, ou em uma ferramenta poderosa a serviço de uma proposta de inclusão social, lingüística e digital. PalavRas-chave: in(ex)clusão social, lingüística e digital – tecnologia da informação

THE NEw TECHNOLOGIES AND THE SOCIAL, LINGUISTIC AND DIGITAL IN(EX)CLUSION

abstRact: The text intends to consider some consequences of modern technologies, discussing how they can transform into a new exclusion factor or into a powerful tool to social, linguistic and digital inclusion. KeywoRds: digital, social and linguistic in(ex)clusion – information technology

Introdução

Este texto pretende discutir sobre como as tecnologias modernas oferecem novas e interessantes oportunidades de acesso ao conhecimento, ao mesmo tempo que podem também se converter em um “novo fator” de exclusão. Essa discussão se pautará em auto-res como Pierre Lévy (1996, 1999), Jean Baudrillard (2002), Zygmunt Bauman (1999), Ian Hutchby (2001), Sherry Turkle (1996), Mark Warschauer (2003), entre outros, os quais têm

TECNOLOGIA

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discutido as conseqüências, sejam positivas, sejam negativas das novas tecnologias de infor-mação e comunicação (as conhecidas TIC’s) sobre os indivíduos.

Começamos com o histórico da Teoria da Informação, em mente. A partir dele po-demos afirmar que o conhecimento tende a se concentrar cada vez mais sobre si mesmo levando estruturas mais ricas, por terem mais potencial, a acumularem a nova informação com mais facilidade; já as “pobres em informação”, normalmente continuam mais pobres. Em outras palavras, é mais provável que a distância entre os que sabem muito e os que sabem pouco aumente, já que os primeiros acumulam informação com mais rapidez. Este acúmulo de informação com estruturas cada vez mais complexas parece ser uma tendência geral dos sistemas, desde a história da formação das sociedades humanas até os ecossistemas.

É justamente este contexto que tomamos como base para abordar dois pontos de vis-ta, claramente opostos, sobre o papel que as novas tecnologias desempenham nas sociedades contemporâneas: (1) elas podem se converter em um fator de exclusão a mais que se junte a fatores clássicos como idade, pobreza, etc. Nesse aspecto, a tendência é um agravamento de problemas já existentes; ou (2) elas podem se tornar uma ferramenta importante para a superação de formas de exclusão já antigas, uma vez que abrem caminhos para novas formas de aprendizagem, vindo a beneficiar grupos sociais marginalizados.

Embora opostas, as duas idéias, cada uma ao seu modo, encerram certo grau de verdade. Entretanto, é importante determinar os fatores que levam ao predomínio de uma ou de outra em certo grupo ou contexto social. No escopo deste texto, delimitaremos o ambiente de ensino e buscaremos discutir em que extensão o papel das novas tecnologias, mais especificamente o ambiente digital da Internet, pode se converter em fator de exclu-são ou inclusão social e digital.

As novas tecnologias de informação e comunicação, sem dúvida, nos convidam a pensar não só nas conseqüências para o ensino de modo geral dessa invasão desmedida das novas tecnologias, mas também nos resultados da mesma para a vida social e privada dos indivíduos imersos neste mundo “tecnologizado”. Por isso abordaremos aspectos gerais re-lacionados às novas tecnologias e às conseqüências provocadas em ambientes diversificados, a partir das reflexões que autores contemporâneos têm levantado, como resultado de suas pesquisas nesta área.

Parece pertinente considerarmos também que a abrangência da tecnologia nos remete a outras realidades as quais o otimismo eufórico que a tecnologia provoca pode nos impedir de ver e de pensarmos de forma mais conscienciosa. Referimo-nos às assimetrias constantes implícitas nas chamadas novas tecnologias e que têm se mostrado no ato em si de fetichiza-ção da Internet, às vezes não tão visível nos discursos veiculados pelas mídias.

BAuMAn (1999, p. 8), ao refletir sobre as faces da globalização, diz: “a globalização (que se tornou possível via tecnologia) tanto divide como une; divide enquanto une – e as causas da divisão são idênticas às que promovem a uniformidade do globo”. Assim, conforme o autor, para uns, globalização é sinônimo de liberdade; para outros não passa de localização, destino cruel e indesejado, aprisionando cada vez mais o ser.

Nesta guerra moderna pelo espaço “comum”, desvendam-se cada vez mais as dife-renças no espaço público, que são removidos para além do alcance da vida localizada, pois

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o local, que nesta reflexão, a partir da leitura de BAuMAn se coloca como sinônimo de indi-vidual, perde o direito de gerar e negociar sentidos e se torna cada vez mais dependente do global que traz, para não dizer impõe, sentidos nem mesmo tangenciados pelo individual. Há então, um alargamento ascendente, uma ruptura no âmbito da comunicação — eis mais acentuada a polarização. Para BAuMAn (1999, p. 9), ao mesmo tempo em que há liberdade de movimento e de ação no centro, há limitação, restrição e impossibilidades à margem. Assim, o destino inevitável é que as novas tecnologias em vez de buscarem simetria no trato da condição humana, por não considerarem as distâncias temporais, espaciais e sociais, entre outras, tendem a polarizá-la.

Em contrapartida, hutChBy (2001, p. 5) propõe e defende a “interação tecnologiza-da” possível graças ao rápido avanço da Internet, na qual as pessoas podem se envolver (grifo meu) com todo tipo de comunicação mediada por computador e sem sair de casa ou do es-critório. Segundo ele, sociólogos da área, no geral, têm-se posicionado contra a noção de que o “tecnológico” seja sinônimo de “associal”; ele se justifica evidenciando que tal “interação” não passa de uma conseqüência natural do estar imerso no mundo capitalista desenvolvido, nas mais recentes propriedades das novas tecnologias, principalmente das tecnologias de informação e de comunicação.

Em primeiro lugar, seria pertinente pensarmos o que envolve “interação”. Bem, se formos aos dicionários, veremos que não é possível se falar de “interação”, sem nos reme-termos à “reciprocidade”, relação “mútua, coletividade”. No atual estágio tecnológico, as pesquisas parecem apontar para uma “interação solitária, homem-máquina”, que na verdade não comporta nada de interativo, no sentido de humanidades.

BAudriLLArd, em Tela total: mito-ironias da era do virtual e da imagem, discute realistica-mente o que ora presenciamos com êxtase: “não há interatividade com as máquinas (tam-pouco entre os homens, de resto, e nisso consiste a ilusão da comunicação). A interface não existe. Sempre há, por trás da aparente inocência da técnica, um interesse de rivalidade e de dominação” (1997, p. 117). Já para o autor AuGé (1998), que ao falar do “teatro das opera-ções virtuais” aborda “a passagem do imaginário ao tudo ficcional”, não é difícil perceber o relativo isolamento que a relação com a imagem provoca. Ele mostra o ambiente tecnológico como um lugar propício às evasões solitárias, sejam elas pela simples consulta a um horós-copo, pela audição ininterrupta de música, seja pelo esforço em reunir num site da Internet, interlocutores sem voz e sem rosto.

Deparamo-nos, já de início, com possíveis conseqüências que as novas tecnologias trazem para as relações humanas. Em O tempo virtual (1999, p. 97), QuéAu diz:

Esta realidade (referindo-se às novas tecnologias) possui inegáveis vantagens – cog-nitivas, expressivas, lúdicas – mas ela apresenta também novos riscos. O perigo mais aparente é de acreditar tanto nos simulacros que se acaba por tomá-los por reais. Formas diversas de esquizofrenia ou de solipsimo poderiam sancionar um gosto demasiado pelas criaturas virtuais com as quais cada vez mais devemos conviver. A fuga do verdadeiro real e o refúgio num real de síntese vão sem dúvida permitir às nossas sociedades invadidas por um desemprego estrutural fornecer a milhões de ociosos forçados alucinações virtuais, drogas visuais capazes de ocupar espíritos e

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corpos, ao mesmo tempo em que se desenvolverão novos mercados mas também sem dúvida novas formas de controle social.

De fato, redizendo Poster (op. cit. hutChBy, p. 6), a natureza da subjetividade humana vive um processo de mudança fundamental. As novas tecnologias de comunicação levam a uma separação do corpo físico da “presença” em um grau tão elevado que a nossa noção de senso comum do self se fragmenta; a identidade do “eu” se perde nesse emaranhado tecnoló-gico — é o “determinismo tecnológico” discutido por Hutchby que nos parece calar, além de nos apassivar. Será mesmo esse tipo de “interação” dessa “moda tecnológica” que determina inclusão social ou digital?

BAudriLLArd (2002, p. 129), com o seu “niilismo irônico”, nos faz um convite à refle-xão apurada e comedida sobre as teias (web1) que nos enredam e nos fascinam sem percep-ção; há em Tela total um jogo de palavras, que conjuga tanto a idéia de dominação das telas (televisão, cinema, computador, etc.) como também um protetor para a pele contra os raios solares (e catódicos). Devemos nos perguntar em que extensão “o ser humano” tem sido levado em conta e encontrado espaço nesse discurso de “tela-total”; estamos mesmo inclu-ídos nas dimensões que as novas tecnologias têm alcançado, nós, “parcela de privilegiados”, por termos acesso a reflexões sobre o assunto, gerando idéias que contribuam para uma problematização mais realista da panacéia que envolve o avanço tecnológico? Não corremos o risco de, achando-nos incluídos, sermos enredados e anestesiados imperceptivelmente por esta “teia” da Web? Podemos, ao achar que estamos incluídos, nos excluirmos de questionar e considerar as possibilidades de inclusão que temos à mão para a transformação e benefício de outrem em toda a sua potencialidade.

As novas tecnologias no ambiente educacional

Neste tópico, refletiremos sobre o impacto das novas tecnologias no âmbito do en-sino, a partir da ótica de quatro autores. Iniciamos com LAuriLLArd (2002), que na obra Re-thinking university teaching expõe a possibilidade de haver conseqüências pedagógicas positivas dignas de serem imitadas, caso a inovação tecnológica seja empregada como apoio, como uma ferramenta a mais disponível aos estudantes. Estes, segundo a autora, devem ser cons-cientizados de que o envolvimento com os novos dispositivos eletrônicos tem como meta o aperfeiçoamento do processo de aprendizagem no qual se inserem. No entanto, se os meios tecnológicos se colocam apenas para que a instituição apregoe estar atualizada, sem qual-quer preparo dos educadores e sem a conscientização dos alunos para receberem os novos dispositivos, pouco ou nada terá a instituição para contar sobre os resultados do emprego tecnológico no ensino.

Já para Alexandre M. Rangel, coordenador executivo da ONG Sociedade Digital (So-cid)2, a informatização das escolas, sem a capacitação dos professores, pode ser uma “faca de dois gumes”. Os números do mapa da exclusão digital, divulgados pela Fundação Getúlio Vargas (FGV, 2003), mostram que, praticamente, metade dos profissionais de educação do ensino básico no país, cerca de 48%, não tem acesso à informação digital. Para Rangel, a

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tentativa de inclusão digital sem orientação adequada, irá construir uma sociedade da infor-mação torta, sem munição contra as desigualdades e sem poder educacional. Será exatamente o que aconteceu com a comunicação, através do advento da televisão, que deveria ser um instrumento importante para a educação e cultura, mas que, de modo geral, está a serviço da opressão e da massificação.

Warschauer, cujo foco de pesquisa visa à integração das tecnologias de informação e de comunicação nas escolas, bem como o impacto das novas tecnologias na prática lingüística e de letramento, aponta em Technology and Social Inclusion: Rethinking the Digital Divide, os mesmos tipos de problemas em projetos de emprego de tecnologias ao redor do mundo, no âmbito não só educacional, mas em outras esferas. Segundo ele, problemas decorrentes da ineficiência na relação tecnologias da comunicação e âmbito educacional, com freqüência têm se manifestado porque na maioria de projetos nesse campo, a ênfase maior recai sempre sobre os equipamentos, (hardware e software), as máquinas e em como provê-las. Segundo WArsChAuer (2003, p. 46), pouca ou nenhuma atenção tem sido dada aos sistemas sociais e humanos que também precisam mudar para que a tecnologia faça diferença e impacte positivamente no indivíduo. Logo, para esse autor, “a questão chave (da exclusão digital) não é a desigualdade no acesso a computadores, mas a desigualdade nas maneiras de usar o computador”.

Já para Lévy (1996), referência básica da cibercultura, a educação em todas as suas dimensões é a grande arma a favor do emprego produtivo das novas tecnologias no âmbito educacional. Tanto para Lévy quanto para Warschauer, os conteúdos, a linguagem, a inclusão via letramento digital, o ensino, a estrutura comunitária e institucional formam um todo que deve ser levado em conta, caso haja o desejo de acesso produtivo às novas tecnologias. Do contrário, estamos perdendo tempo e encenando um discurso cujo objetivo é impressionar e chamar a atenção para nós mesmos.

Portanto, as mudanças nas tecnologias de informação nos abrem outras possibilida-des, mas com elas há responsabilidades e necessidades: desenvolver competências básicas para acompanhá-las. As tecnologias de informação, Internet e as conexões de banda larga estão transformando a sociedade e sem dúvida, para que a transformação seja de dentro para fora e não apenas um modismo passageiro e irrefletido, é preciso que as mudanças tecnoló-gicas causem impacto positivo e transformador na coletividade. Então, um primeiro passo seria a busca de alternativas para superar o “apartheid digital” que se mostra evidente em várias partes do mundo, não só no Brasil, conforme já apontam pesquisas de órgãos nacio-nais (IBGE, 2003). Uma segunda possibilidade envolveria a organização e o planejamento do emprego de mecanismos, atitudes e práticas necessárias para que a sociedade tire vantagem do mundo conectado e seja agente e não vítima.

Pois, segundo Lévy (1999) e Warschauer (2003) há uma imensa lacuna, uma disparida-de entre os que se beneficiam das tecnologias de informação e os que não têm benefício al-gum. Por haver incontáveis formas de buscar informações, pensam alguns que haja também incontáveis oportunidades às quais “todos” têm acesso. Além disso, consideram estes que ao colocarem à disposição este novo mundo, muitos problemas de desigualdade e pobreza serão remediados. Entretanto, como mencionamos no terceiro parágrafo do trabalho, é provável

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que aumente a distância entre os que sabem muito e os que sabem pouco, pois os primeiros acumulam informação e têm acesso a ela com maior rapidez. Este acúmulo de informação com estruturas cada vez mais complexas parece ser uma tendência geral dos sistemas, desde as sociedades humanas até os ecossistemas. Logo, a exclusão cada vez mais evidente pode ser o resultado, ao contrário do que se esperava.

Para WArsChAuer (2003, p. 162), há pelo menos três aspectos responsáveis pela exclu-são digital, ou pelo digital divide, conforme terminologia do autor, que têm impedido que mui-tas sociedades tirem proveito do poder da tecnologia da informação, da Internet, e de outros recursos na educação: (1) linguagem - os que dominam a linguagem sabem identificá-la para usar a Internet e os que não a dominam; (2) letramento digital - os que sabem fazer uso do potencial da Internet e usam-na para transformar sua vida para melhor e os que não sabe; (3) acesso à Internet - os que têm acesso por terem condições financeiras e os que não têm.

Ao fazermos referência à lacuna existente, conforme Warschauer, às diferenças entre os que têm e os que não têm acesso a computadores e à Internet, e pensarmos nas impli-cações lógicas implícitas neste discurso de poder, de “ter e não ter”, perguntamo-nos se os problemas sociais e educacionais que dão suporte a esse “apartheid digital” se resolvem sim-plesmente disponibilizando computadores, contas gratuitas na Internet ou organizações de telecentros/infocentros3, que se acham espalhados em muitos estados do Brasil atualmente.

Além disso, esta idéia de uma divisão dicotômica entre “os que têm e os que não têm” mostra-se inadequada a uma reflexão que deseja se pautar em valores transformadores; ao contrário, ela pode ter conseqüências desastrosas, à medida que falha em avaliar os recursos sociais que os diversos grupos colocam em pauta.

O objetivo de se usar tecnologias da informação com grupos marginalizados, não deveria ser o de dominar uma situação de divisão digital, mas proceder a um processo de inclusão social; daí a importância de se enfatizar a transformação e não a tecnologia. Segun-do WArsChAuer (2003, p. 163), não há soluções digitais (computadores e telecomunicações) sem o envolvimento de um conjunto de recursos e intervenções complexas que apóiem a inclusão social.

Cremos que a questão da exclusão/inclusão digital, seja social, seja educacional, en-contra-se em outros patamares, e as lacunas não deixarão de existir pela liberação de mais máquinas, contas gratuitas — pensar apenas nessa dimensão, nos faz cair em soluções que já se mostraram problemáticas e insustentáveis. Pois o filósofo Lévy (1999, p. 44) nos lembra que inclusão digital não significa premiação com equipamentos de informática, linhas de crédito ou Internet grátis. É tudo isso e muito mais. Esses devem ser meios, que somados a outros, como por exemplo, capacitação e participação da sociedade, vão se constituir numa solução; isto sim se pode chamar de inclusão digital.

Lévy acredita, por exemplo, que o Brasil não é um excluído digital do mundo mo-derno. Para ele, os números da informatização apontados pelo IBGE no censo 2000 são animadores; para a inteligência coletiva, o principal obstáculo à participação não é a falta de computador, mas o analfabetismo e a falta de recursos culturais’’ (1999, p. 46). Entretanto, os números não condizem com a realidade prática das escolas que temos observado no inte-rior, principalmente, do estado de São Paulo; daí concluirmos que é provável que Lévy esteja

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sendo otimista em relação aos resultados do próprio IBGE. É evidente que a ‘medida’ da exclusão digital sempre vai ser muito difícil de ser estabelecida, mas a direção do esforço em favor da inclusão parece ter na escola o ponto de partida.

Entre os três aspectos responsáveis pela exclusão digital, segundo Warschauer, está a falta de conhecimento da língua inglesa: para o autor, há os que dominam a língua e sabem identificá-la e os que não a dominam, o que faz a diferença quanto ao potencial de acesso às informações disponíveis na rede.

Língua inglesa: fator de exclusão digital?

Caso consideremos a afirmação de Warschauer como verdadeira, podemos já res-ponder afirmativamente a pergunta que dá início ao tópico. Sim, a língua inglesa é um forte fator de exclusão digital. Por que e como? Tomemos como ponto de partida as informações estatísticas oriundas de siLvA (2002, p. 51), para quem “a falta de conhecimento da língua inglesa tem afastado milhares de indivíduos de novidades tecnológicas e de literatura espe-cializada do mundo da informática e da tecnologia da informação em geral”. É uma espécie de exclusão digital causada pelo idioma e se configura como mais um daqueles processos que passam despercebidos, mas cujos efeitos deixam marcas profundas.

Conforme estimativa de Silva, aqueles que falam somente a língua portuguesa são excluídos de 98% do conteúdo da Internet; ou seja, um monoglota (leitor só do português) pode aproveitar apenas uma parte dos 2% do conteúdo da Internet que ainda estão divididos entre dezenas de idiomas e isso não diz respeito só ao conteúdo do mundo cibernético.

A fim de ratificar as estimativas do autor, fizemos uma busca na Internet – modalidade pesquisa avançada – no site Google (www.google.com), na área de “exclusão”, filtrada para português. Encontramos 1,6 milhões de entradas para o assunto; já no inglês “inclusion”, encontramos 63 milhões de entradas – 97% a mais.

Tais resultados indicam, primeiramente, que a falta de conhecimento de inglês nos priva-ria de acessar quase 63 milhões de entradas da Internet sobre “exclusão”. Percebe-se, com este exemplo simples, que há exclusão digital pelo idioma que se fala e esta passa despercebida por ser um processo muito rápido e silencioso. O que se sabe é que o número de sites em inglês se avoluma e chega aos milhares, ao passo que em outras línguas o progresso ocorre em velocida-de menor. O que fica evidente é que a exclusão pela língua torna-se uma das grandes ameaças à disseminação do conhecimento hoje, porque ela impede o acesso ao espaço cibernético a um grande número da população mundial não-falante da língua inglesa.

Trazendo isso para a realidade brasileira, segundo o mapa da exclusão digital veiculado pelo IBGE (2003), os usuários de Internet brasileiros, devido à barreira lingüística, acham-se inevitavelmente em desvantagem competitiva na sua busca por informação e conhecimento via Internet; embora possamos admitir que as opções de programas de tradução disponíveis são cada vez mais numerosas, o que não deixa de ser uma boa estratégia para combater a exclusão pela linguagem e tornar a Internet uma rede verdadeiramente multilingual.

Em segundo lugar, a falta de conhecimento de inglês tem também afastado milha-res de seres humanos de novidades tecnológicas e literatura especializada do mundo da

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informática e da tecnologia da informação em geral, sem contar as outras áreas e novas profissões que também requerem proficiência leitora em inglês. Há ferramentas que aju-dam bastante, mas não chegam a substituir o conhecimento da língua. Mais uma vez, é a exclusão a partir do idioma, um daqueles processos que embora imperceptíveis, têm efei-tos devastadores nos indivíduos.

Na verdade, ninguém sabe ao certo no atual estágio do desenvolvimento da Internet quais serão as conseqüências acumuladas em longo prazo dessa evidente privação de acesso devido à barreira lingüística. Temos certeza de que a linguagem é uma ferramenta tão indis-pensável quanto o são os PCs para a própria sobrevivência no ciberespaço. A prosperidade ou a pobreza no ciberespaço, seja individual seja coletivamente como nação, será determina-da, afinal, pela capacidade do indivíduo em usar a ferramenta em toda a sua potencialidade, para benefício de si mesmo.

A fim de se alcançar um nível de Internet multilingual que atenda às necessidades do usuário, em um novo sentido do termo, o uso da Web precisa ser ampliado de duas formas básicas: a primeira, expandir as bases de dados nas línguas vernáculas para se incluir informação e conhecimento de interesse, principalmente, mas não de modo ex-clusivo, em nível nacional; a segunda sugestão é que os investimentos em tecnologias de tradução sejam contínuos para que se subverta o problema lingüístico que atualmente aflige e domina o ciberespaço.

Lembremo-nos de que assim como a exclusão digital tem impedido a inclusão de pes-soas de baixa renda no ciberespaço, a exclusão lingüística igualmente pode relegar indivíduos não-falantes do inglês a usuários de baixa categoria. Importante trazermos a conclusão de pudo (2004, p. 3), para quem “o domínio do uso do computador e da língua inglesa são ne-cessários igualmente para minimizarmos os prejuízos ocasionados pela exclusão digital, que é justamente reflexo da exclusão social em nosso país”.

Portanto, a Internet, se bem administrada, pode ampliar o contato com a língua ingle-sa, gerar mais motivação para estudos e pesquisas e ajudar a atenuar a barreira da exclusão digital. Nesse sentido, se o aluno aprende o inglês mediante o uso dos recursos que a internet oferece, estará, conforme Pudo, aperfeiçoando as oportunidades de uso da língua alvo. Mas ao mesmo tempo, também tem oportunidade de aprimorar sua capacidade de usar o com-putador para se comunicar, amenizando a problemática da falta de letramento digital que colabora para reforçar a exclusão digital e, conseqüentemente a exclusão social.

Entretanto, ressalvemos que o computador e a Internet não têm utilidade sem apli-cativos e conteúdos que sirvam às necessidades dos alunos e que promovam algum tipo de inclusão. Para que os dispositivos eletrônicos à disposição exerçam influência positiva e pro-dutiva, é preciso que professores e alunos aprendam a utilizar esses dispositivos em benefício próprio e coletivo.

Além disso, o domínio de língua inglesa, tanto pode contribuir para a inclusão de modo geral, quanto auxiliar os indivíduos em seu processo de auto-afirmação, recuperação e afirmação da auto-estima. Paralelamente, a superação do sentimento de impotência que tão freqüentemente acomete aqueles das classes populares nos processos educativos na realidade brasileira será também uma conseqüência.

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Daí serem realmente importantes as iniciativas que contemplem, entre seus objeti-vos, o alargamento deste campo de conhecimento (tecnologias de informação e internet) a uma parcela maior da população. Que as novas tecnologias sejam postas a serviço do bem social e se transformem em ferramentas para a superação da exclusão social e digital, além de promover novas alternativas de inclusão, seja pela língua, seja pelo acesso facilitado a esse “novo” campo de conhecimento.

Pois, segundo sChWArtz (2002), exclusão não é ficarmos sem computadores, mas é nos tornarmos incapazes de pensar, criar e organizar novas formas, mais justas e dinâ-micas, de produção e distribuição de riqueza simbólica e material. É ainda, parafraseando frAnçA (2004), nos sentirmos impossibilitados de tomarmos consciência sócio-política e cidadã, a qual pode ser resgatada com o acesso ao universo da informação.

Notas1 Interessante refletirmos sobre a significação de Web, como teia ou rede. O que acontece com os insetos

que se aproximam da Web aracnídea? Ficam fascinados e quando se dão conta, estão sendo devorados, exterminados. Não estamos nós, à semelhança do inseto, sendo vitimados nessa WEB, ao mesmo tem-po fascinante, mas que anestesia?

2 http://www.socid.org.br. 3 Os telecentros são espaços de uso livre que possuem entre dez e 20 computadores. Além de Internet, os

alunos têm acesso a oficinas de criação de sites, agências de notícias e projetos culturais. Esses espaços são resultado do Plano de Inclusão Digital (ou e-cidadania) da Coordenadoria do Governo Eletrônico, que faz parte da Prefeitura de São Paulo. O objetivo da coordenadoria é diminuir a exclusão social atra-vés do combate à exclusão digital, que aumenta a desigualdade entre ricos e pobres pela desigualdade tecnológica e o acesso restrito à informação. Endereços, sites e telefones dos telecentros podem ser encontrados no site: http://www.telecentros.sp.gov.br.

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EDUCAÇÃO ADVENTISTA: OBJETIVOS, CARACTERíSTICAS DO EDUCADOR E DOS

EDUCANDOS1

ADOLFO SEMO SUÁREz, bacharel em Teologia e licen-ciado em Pedagogia, mestre em Teologia e em Ciências da Religião, doutorando em Ciências da Religião pela Umesp, professor da área de Ensino Religioso no Unasp, Engenheiro Coelho (SP), [email protected].

Resumo: Este trabalho tem como objetivo discorrer sobre três elementos fun-damentais da prática educacional, contextualizados à educação adventista: os ob-jetivos gerais que norteiam a prática pedagógica, o perfil do(a) educador(a) que está envolvido(a) no processo e o tipo de educando que se pretende formar.

PalavRas-chave: Educação, objetivos educacionais, educação adventista

ADVENTIST EDUCATION: OBJECTIVES AND EDUCATOR AND STUDENTS’S CHARACTERISTICS

abstRact: The purpose of this paper is to comment three basic elements of edu-cational practice, concerning to the Adventist Education: the general objectives that direct the pedagogical practice, the educator’s profile that is involved in the process, and the kind of student that we intend to graduate.

KeywoRds: Education, educational objectives, and Adventist Education

Introdução

A prática educacional tem diversos componentes, entretanto, três podem ser conside-rados fundamentais: (1) os objetivos gerais que norteiam a prática pedagógica; (2) o perfil do (a) educador(a) que está envolvido(a) no processo e; (3) o tipo de educando que se pretende formar. Este trabalho tem como objetivo discorrer sobre esses três elementos fundamentais da prática educacional adventista.

EDUCAÇÃO

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Educação adventista...�2

Para compreender plenamente os objetivos da educação adventista, é necessário repor-tar-se aos escritos de Ellen Gould White. Ela foi co-fundadora da Igreja Adventista do Sétimo Dia (IASD), juntamente com seu marido Tiago White e José Bates (douGLAss, 2001, p. 253).

White descreveu aquilo que o sistema educacional adventista tem considerado como o conceito e objetivo fundamental da verdadeira educação cristã. Ela afirma:

A verdadeira educação significa mais do que a preparação para a vida presente. Visa o ser todo, e todo o período da existência possível ao homem. É o desenvolvimento harmônico das faculdades físicas, intelectuais e espirituais. Prepara o estudante para o gozo do serviço neste mundo, e para a aquela alegria mais elevada por um mais dilatado serviço no mundo vindouro (2003, p. 13).

A citação acima – um valioso conceito sobre educação – levanta algumas questões funda-mentais norteadoras para a formulação dos objetivos educacionais das escolas adventistas, a saber: (1) a educação adventista deve preparar o estudante para os desafios deste mundo; (2) to-davia, a educação adventista não deve limitar-se ao preparo de cidadãos deste mundo; ela deve prepará-los, também, para a eternidade; (3) a educação adventista deve preocupar-se em trabalhar os estudantes como um todo; não deve privilegiar apenas alguns aspectos; (4) a educação adventista deve preparar os estudantes para o serviço.

George KniGht, notável educador adventista da atualidade, esquematizou os objetivos da educação adventista na figura abaixo (2001, p. 215). Esse esquema sintetiza os propósitos que fundamentam ou deveriam fundamentar os afazeres pedagógicos do sistema educacio-nal da IASD, e enfatiza que a verdadeira educação significa mais do que a preparação para a vida presente; ela também se preocupa com o transcendente.

Como se pode observar na fiGurA 1, a educação adventista se caracteriza por sua clara orientação religiosa, o que a identifica como uma instituição educacional confessional que se preocupa em preservar seus objetivos religiosos, mas que de maneira alguma ignora ou negligencia o atendimento às demandas acadêmicas da educação formal.

Figura 1

Objetivos primários Alvos secundários Resultado final

Conduzindo jovens a um relacionamento salvífico com Jesus Cristo

Desenvolvimento do caráter

Desenvolvimento de uma mente cristã

Desenvolvimento da respon-sabilidade social

Desenvolvimento da saúde física

Desenvolvimento para o mundo do trabalho

Serviço a Deus e a outras pessoas, ambos aqui e no porvir

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A Confederação das Uniões Brasileiras da IASD, representando todo o sistema de Educação Básica adventista em nível nacional, elaborou, em 2004, o primeiro docu-mento oficial, intitulado Pedagogia Adventista, o qual atualmente serve de parâmetro para a prática pedagógica nas escolas do Brasil. Entre as páginas 48 a 68, esse documento apresenta uma postura oficial a respeito do tema ora abordado. Usando essa e outras fontes bibliográficas, discorre-se a seguir sobre a mencionada temática que, entendemos, é de fundamental importância, especialmente nesta época em que, devido à proliferação de teorias educacionais, urge voltar às origens, revisando as razões pelas quais nascemos como movimento educacional.

Objetivos gerais da educação adventista 1. Levar o estudante a conhecer e praticar a vontade de Deus, enfatizando o relacio-namento com Ele

Ellen White afirma que “todo o saber e desenvolvimento real têm sua fonte no co-nhecimento de Deus” (2003, p. 14). Sobre este objetivo repousa o arcabouço educacional adventista, pois se entende que a prática educacional significativa é aquela que fundamenta suas ações na divindade. White argumenta que a educação que se baseia em Deus é capaz de renovar a mente e transformar o espírito, além de colocar o estudante diante das grandes lições da vida, pois Ele é a sabedoria (1994b, p. 171).

Fundamentar a educação em Deus não significa dar um passo no escuro – como al-guns entendem nesta época de descrença e ceticismo – mas possibilitar ao estudante “a mais alta educação que é dado aos mortais receber”, pois assim ele estará “edificando sua expe-riência (...) em princípios eternos” (White, 2000, p. 36). Também não significa se esconder na espiritualidade, ignorando o preparo acadêmico. Deve ser aproveitada cada oportunidade para fortalecer o intelecto. No entanto, deve-se atentar para o seguinte:

Embora o estudo das ciências não deva ser negligenciado, deve ser obtida maior instrução mediante ligação vital com Deus. Tome cada estudante sua Bíblia e po-nha-se em comunhão com o grande Mestre. Que a mente seja adestrada e discipli-nada para lutar com os problemas difíceis na pesquisa da verdade divina (White, 1994b, p. 174,175).

2. Promover a Bíblia como sendo a Palavra de Deus, tendo em seus princípios o refe-rencial de conduta

Se bem que o atual sistema educacional adventista brasileiro conte com uma editora que produz livros didáticos nas diversas áreas do Ensino Básico, a Bíblia constitui a base de estudo e pesquisa, pois ela “contém todos os princípios que os homens necessitam compreender a fim de se habilitarem tanto para esta vida como para a futura” (White, 2003, p. 123).

A Bíblia não deveria ser importante apenas para o crescimento moral ou espiritual dos estudantes. Entende-se que mesmo no aspecto cognitivo há um grande benefício em seu estu-do. White assim expressa o benefício intelectual da leitura bíblica:

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Como meio para o preparo intelectual, a Bíblia é mais eficaz do que qualquer ou-tro livro, ou todos os outros livros reunidos. A grandeza de seus temas, a nobre simplicidade de suas declarações, a beleza de suas imagens, despertam e elevam os pensamentos como nada mais o faz. Nenhum outro estudo poderá transmitir tal poder mental como o faz o esforço para se compreenderem as verdades estupendas da revelação. A mente, elevada assim em contato com os pensamentos do Infinito, não poderá deixar de expandir-se e fortalecer-se (Ibid., p. 124).

Nesse sentido, o texto bíblico é insuperável em seu poder educador, posto que “ne-nhuma obra científica é tão apropriada para desenvolver a mente, como a contemplação das grandiosas e essenciais verdades e lições práticas da Bíblia” (White, 1996a, p. 84). Da mesma maneira, “nenhum outro livro pode satisfazer às indagações do espírito, ou aos anelos do coração” (White, 2001, p. 91).

O estudo das Escrituras Sagradas é de fato importante; por isso as escolas e colégios adventistas dedicam entre duas a quatro aulas semanais para a disciplina de Ensino Religioso, as quais, basicamente, consistem no diálogo sobre temas bíblicos em conexão com a realida-de e necessidade dos alunos. Todavia, reconhecemos o fato de que é necessário fortalecer e dar maior sentido ao ensino da Bíblia, a fim de melhor alcançar os estudantes.

Além das aulas de Ensino Religioso, professores de todas as disciplinas são incentiva-dos a praticar a “Integração Fé e Ensino”, que consiste no diálogo entre a razão e a fé, entre a ciência e a religião.

3. Estimular o estudo, a proteção e a conservação da natureza criada por Deus

Na filosofia adventista de educação é fundamental entender que as coisas criadas apre-sentam sinais de Deus (White, 2003, p. 99). A natureza, então, pode tornar-se um gigantesco compêndio de ensino-aprendizado, no qual os estudantes podem ver “uma expressão do amor e da sabedoria de Deus” (Ibid., p. 102).

Valorizando o papel da natureza e o impacto que ela causa especialmente nas crianças, White afirma:

A única sala de aula para as crianças de oito a dez anos, deve ser ao ar livre, entre as flores a desabrochar e os belos cenários da Natureza, sendo para elas o livro de es-tudo mais familiar os tesouros da mesma Natureza. Estas lições, gravadas na mente das tenras crianças por entre as agradáveis e atrativas cenas campestres, jamais serão esquecidas (1996a, p. 21).

A valorização da natureza não se limita à contemplação, mas se requer que os estudan-tes se envolvam com o cuidado da terra:

O trabalho na horta e no campo será uma mudança agradável na rotina tediosa das lições abstratas a que nunca deveriam circunscrever-se as mentes juvenis. À criança nervosa, ou ao jovem nervoso, que acha cansativas e difíceis de lembrar as lições do livro, será isto especialmente valioso (White, 2000, p. 187).

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Em cumprimento a este objetivo, algumas escolas adventistas brasileiras, especial-mente as que funcionam em regime de internato, inserem no currículo uma ou duas aulas semanais teóricas e práticas para o cuidado de hortas. Nelas, os alunos são ensinados a cuidar de canteiros, justamente para incentivar o cuidado e preservação da natureza. As escolas que não tem essa possibilidade deveriam planejar ações apropriadas para a operacionalização deste objetivo.

4. Incentivar a utilização das faculdades mentais na aquisição e construção do conhe-cimento

O objetivo primordial da educação adventista é resgatar no indivíduo a imagem do Criador. Mas, compreende-se que esse processo também envolve o desenvolvimento de uma inteligência vigorosa. White afirma:

O intelecto humano precisa expandir-se, e adquirir vigor, agudeza e atividade. Deve-se obrigá-lo a fazer trabalho árduo, pois do contrário tornar-se-á débil e ine-ficiente. É necessário energia cerebral para pensar com mais afinco; deve-se exigir do cérebro o máximo a fim de resolver e dominar problemas difíceis, se não haverá um decréscimo de vigor mental e da capacidade de pensar. A mente deve idear, trabalhar e esforçar-se a fim de dar solidez e vigor ao intelecto (1996a, p. 226).

Embora a escola deva incentivar os alunos na aquisição de vigor mental, os estudantes precisam se esforçar para isso acontecer. White argumenta:

O verdadeiro sucesso em cada setor de trabalho não é o resultado do acaso, ou acidente ou destino. É a operação da providência de Deus, a recompensa da fé e a prudência, da virtude e perseverança. Superiores qualidades mentais e elevado caráter moral não se adquirem por casualidade. Deus dá oportunidades; o êxito depende do uso que delas se fizer (2001, p. 100).

Para o desenvolvimento mental saudável, a escola adventista também valoriza a boa leitura, pois “a leitura limpa e sã será para o espírito o que é para o corpo o alimento saudável” (Ibid., p. 107). Os estudantes são orientados a tomar cuidado especial com lite-ratura de ficção banal, narrativas frívolas e excitantes, pois podem conduzir a uma vida de fantasia, minando da mente a capacidade de “contemplar os grandes problemas do dever e do destino” (Ibid., p. 111).

Tudo isso nos leva a pensar que a escola adventista não deveria se “esconder” num cur-rículo escolar pretensamente moral e espiritual, apenas. Deve desenvolver alunos intelectuais, assim como uma fé inteligente, evitando que seu cristianismo seja classificado como anti-inte-lectualismo. Afinal, “pensar bem é parte integral do agir corretamente” (sire, 2005, p. 11).

Entretanto, se bem que o desenvolvimento mental deva ser encarado com respon-sabilidade, isso nunca deve acontecer em detrimento do desenvolvimento moral e espiri-tual, pois é pelo crescimento harmonioso que se atinge a mais alta perfeição do indivíduo (White, 1996b, p. 374).

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5. Promover a aquisição de hábitos saudáveis através do conhecimento do corpo e das leis que o regem

Não é possível desenvolver o espírito e a mente de maneira apropriada num corpo enfer-mo. Por isso, o cuidado da saúde física impacta no desenvolvimento de espírito, caráter e mente robustos. Assim sendo, “um conhecimento de fisiologia e higiene deve ser a base de todo esforço educativo” (White, 2003, p. 195).

Atendendo a este objetivo educacional, a IASD publica livros, revistas, didáticos e paradi-dáticos que valorizam a saúde física, enfatizando o cuidado preventivo, a fim de que as pessoas se-jam influenciadas “com o conceito de que o corpo é um templo em que Deus deseja habitar; que deve ser conservado puro, como a habitação de pensamentos elevados e nobres” (Ibid., p. 201).

Por sua vez, as escolas devem ter o cuidado de promover uma alimentação saudável, seja nas reuniões de professores, em eventos sociais ou nas cantinas e lanchonetes, selecionando crite-riosamente o tipo de alimento servido nesses locais.

6. Promover o desenvolvimento do senso crítico e do pensamento reflexivo, tornando o estudante pensador e não mero refletor dos pensamentos alheios

A educação adventista valoriza e promove o desenvolvimento do pensamento refle-xivo, e procura – mediante as diversas metodologias e técnicas pedagógicas – a formação de estudantes com um elevado senso crítico, formadores de opinião. Assim é expressa essa intencionalidade:

Cada ser humano criado à imagem de Deus, é dotado de certa faculdade própria do Criador - a individualidade - faculdade esta de pensar e agir. Os homens nos quais se desenvolve essa faculdade são os que encaram responsabilidades, que são os diri-gentes nos empreendimentos e que influenciam caracteres. É a obra da verdadeira educação desenvolver esta faculdade, preparar os jovens para que sejam pensantes e não meros refletores do pensamento de outrem. Em vez de limitar o seu estudo ao que os homens têm dito ou escrito, sejam os estudantes encaminhados às fontes da verdade, aos vastos campos abertos a pesquisas na natureza e na revelação. Que contemplem os grandes fatos do dever e do destino, e a mente expandir-se-á e forta-lecer-se-á (Ibid., p. 17).

De fato, o processo ensino-aprendizagem é encarado como muito mais do que um sim-ples adestramento ou disciplina mental. Sua intenção é “produzir homens fortes para pensar e agir, homens que sejam senhores e não escravos das circunstâncias, homens que possuam amplidão de espírito, clareza de pensamento, e coragem nas suas convicções” (Ibid., p. 18).

7. Incentivar o desenvolvimento dos deveres práticos da vida diária, assim como o exercício de uma verdadeira cidadania

Os alunos precisam ser instruídos nos diversos campos do saber, mas deve se ter o cuidado de também ensiná-los no cumprimento dos deveres práticos da vida diária, pois “essa é a educação de que tanto se necessita” (White, 2000, p. 88). Tão importante quanto

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aaquisição de informação em qualquer ramo da ciência, é orientar os estudantes nas ativida-des corriqueiras, com as quais se deparam no dia-a-dia (White, 1997, p. 444).

Os deveres práticos da vida diária são as ocupações domésticas, auxilio aos pais nas pequenas coisas que devem ser feitas em casa e na formação de hábitos de utilidade no lar, deveres estes apropriados à sua idade (White, 2000, p. 149).

Quanto à cidadania, a escola precisa despertar nos estudantes as “sensibilidades morais no que respeita a ver e sentir os direitos que a sociedade tem sobre eles” (Ibid., p. 84). Assim sendo, os estudantes podem tornar-se, por preceito e exemplo, uma influência positiva para a sociedade.

A escola adventista deveria possibilitar aos estudantes o aprendizado de atividades práticas, através de aulas de culinária, educação artística e encontros de cultura geral (chama-das capelas) nas quais poderiam ser abordadas questões de cunho prático, como cuidados elementares com a própria saúde, etiqueta, cortesia, primeiros socorros, entre outras.

Na questão da cidadania, os estudantes deveriam ser incentivados a se envolver em trabalhos comunitários, seja visitando e ajudando creches e asilos. Poderia também promover a participação em outros programas de cunho comunitário e cidadão, como o grupo chama-do clube de desbravadores – uma espécie de escoteiros – aberto para juvenis e adolescentes de qualquer denominação religiosa.

8. Promover a autonomia e a autenticidade alicerçadas nos valores bíblico-cristãos

A educação adventista pretende, gradualmente, conduzir o estudante do estágio de “jogador” a “treinador” de si mesmo. Portanto, com base em princípios discutidos e clari-ficados em sala de aula, os alunos aprendem a resolver suas dúvidas e conflitos, pois se en-tende que “o espírito que confia no juízo de outrem, mais cedo ou mais tarde será por certo corrompido” (White, 2003, p. 231).

Para tanto, valoriza-se o bom uso da vontade própria. A este respeito, White escreveu:

O que deveis compreender é a verdadeira força da vontade. Esta é o poder que governa a natureza do homem, o poder da decisão ou de escolha. Tudo depende da reta ação da vontade. O poder da escolha deu-o Deus ao homem; a ele compete exercê-lo (1990, p. 47).

Desse modo, o processo ensino-aprendizado é mais do que mera assimilação de uma informação:

A educação que consiste no exercício da memória, com a tendência de desencorajar o pensamento independente, tem uma influência moral que é pouco tomada em conta. Ao sacrificar o estudante a faculdade de raciocinar e julgar por si mesmo, torna-se incapaz de discernir entre a verdade e o erro, e cai fácil presa do engano (White, 2003, p. 230).

Desta maneira, objetiva-se formar um estudante autônomo, que saiba fazer boas esco-lhas, assim como administrar suas decisões e assumir a responsabilidade por elas.

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Educação adventista...��

9. Favorecer o desenvolvimento da auto-estima positiva, do sentimento de aceitação e de segurança

Maxwell Maltz (apud pArrot, 2003, p. 236) afirma que 95% das pessoas sentem-se inferiores, o que contribui para a manifestação de distúrbios de ansiedade, falta de adaptação social, mau desempenho escolar, expulsão da escola, delinqüência, etc. Em outras palavras, muitos conflitos pessoais acontecem devido à baixa auto-estima e em decorrência da pouca expectativa que as pessoas colocam sobre si mesmas.

Ao contrário, crianças autoconfiantes e seguras em relação ao seu rendimento podem ter melhor desempenho acadêmico e em todas as áreas da vida. Por isso, a educação adven-tista favorece em suas escolas um ambiente de valorização das pessoas, independentemente de raça, religião ou sexo. A este respeito, White afirma:

Tanto quanto possível, deve cada criança ser ensinada a confiar em si mesma. Pon-do em exercício as várias faculdades, aprenderá onde é mais forte e em que é defi-ciente. O sábio instrutor dará especial atenção ao desenvolvimento dos traços mais fracos, para que a criança possa formar um caráter bem equilibrado e harmonioso (1996c, p. 156).

10. Resgatar os bons relacionamentos interpessoais, assim como o espírito cooperativo

Tanto no ambiente escolar quanto no familiar, a educação adventista deveria falar da importância de se ensinar, por preceito e exemplo, lições de delicadeza, compaixão, amabi-lidade, piedade, cortesia, alegria e afeto (White, 1996c, p. 143), como características funda-mentais que possibilitam a boa convivência entre as pessoas.

Deveria ser valorizada, também, a disposição de cooperação entre os alunos, o que inibe a formação de estudantes egoístas, interessados apenas em seu bem-estar. Quanto a isso, White assevera:

A cooperação deve ser o espírito da sala de aulas, a lei de sua vida. O pro-fessor que adquire a cooperação de seus discípulos consegue um auxílio im-prescindível na manutenção da ordem. Nos serviços da sala de aula muitos rapazes, cujo estado irrequieto acarreta desordem e insubordinação, encon-trariam vazão à sua energia supérflua. Que os mais velhos ajudem aos mais novos, os fortes aos fracos; e, quanto possível, seja cada um chamado a fazer algo em que se distinga. Isso fomentará o respeito próprio e o desejo de ser útil (2003, p. 285 e 286).

Características do professor

E. M. CAdWALLAder, pesquisador adventista, fez um estudo profundo a respeito da filosofia básica da educação adventista, na qual dedica várias páginas para falar do professor e do aluno (1993, p. 181-270; 1995, p. 1-45). Nesse trabalho, foram selecionadas as caracterís-ticas mais importantes do professor e do aluno, as quais orientam o processo ensino-apren-dizado conforme compreendido pela filosofia educacional adventista.

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É inegável a importância do educador. Na verdade, ele “preenche um lugar de im-portância fundamental”. E por isso, “deveria ser tanto um cristão adventista autêntico como um modelo das graças cristãs e competência profissional” (roBinson-ruMBLe, 2002, p. 16). Assim sendo, espera-se dele as seguintes características e objetivos:

1. O professor deve aprender com o mestre

A educação adventista deveria valorizar e promover o ensino que se fundamenta nos métodos de Jesus, conforme relatados no texto bíblico. Um estudo detido dos Evangelhos da Bíblia revela práticas pedagógicas simples, porém eficazes, no magistério de Jesus. J. M. priCe argumenta que

Jesus não tinha maneira fixa de dar lições. Ele não se amarrava a rotinas, nem se es-cravizou a nenhum sistema. Ao contrário, era senhor de sistemas e rotinas, variando seu processo de ensino conforme a situação que se lhe apresentava, segundo o ob-jetivo que tinha em mente, e conforme o método que então lhe parecesse melhor. Agia e ensinava da maneira que melhor lhe parecesse no momento (s.d., p. 99).

Justamente pela observação do magistério de Jesus, White afirma:

O professor pode entender muitas coisas com relação ao universo físico; poderá ter conhecimentos quanto à estrutura da vida animal, às descobertas da ciência natural, às invenções da mecânica; não poderá, no entanto, chamar-se educador, não é apto para seu trabalho como instrutor de jovens, a menos que tenha na própria alma o conhecimento de Deus e de Cristo. Não pode ser verdadeiro educador enquanto não se tornar, por sua vez, discípulo na escola de Cristo, recebendo educação do divino instrutor (2000, p. 65).

2. O professor exerce uma forma de ministério

Conforme White, o principal objetivo da educação é restaurar no homem a imagem de Deus (2003, p. 15). Dessa maneira, a educação pode ser compreendida como um ato de redenção. “E se a redenção é vista neste aspecto, então o papel do professor é ministerial e pastoral no sentido de que o professor é um agente de reconciliação” (KniGht, 2001, p. 209). Nesse sentido, a obra do professor é de grande importância, e “cumpre-lhe sentir a santidade de sua vocação, e a ela entregar-se com zelo e dedicação” (White, 2000, p. 229).

O exercício desse ministério só se torna verdadeiramente eficaz “com o auxílio divino aliado a sincero e abnegado esforço” (White, 2000, p. 231). De maneira que – con-forme a compreensão da IASD – o magistério é uma obra executada pelo ser humano, mas dirigida por Deus.

3. O professor é responsável diante de Deus

A escola adventista considera que o professor exerce um trabalho de grande impacto, sendo ele responsável não apenas diante da instituição ou da família do aluno, mas diante do

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próprio Deus. Daí a necessidade de fazer um trabalho consciente. As palavras de White são solenes a este respeito:

Todo professor deve considerar que realiza sua obra à vista do Universo Celestial. Toda criança com que o professor é posto em contato foi adquirida pelo sangue de Filho Unigênito de Deus, e Aquele que morreu por essas crianças quer que sejam tratadas como Sua propriedade. Certificai-vos, professores, de que vosso contato com cada uma dessa crianças seja de tal natureza que não tenhais de envergonhar-vos quando vos encontrardes com elas no grande dia em que toda palavra e ação passar em revista diante de Deus e, com o seu fardo de resultados, patentear-se perante vós individualmente. Comprados com preço — Oh! Que preço. Só a eternidade o poderá revelar! (1996a, p. 261).

4. O professor deve ter preparo cuidadoso e completo

Informar e ser instrumento de transformação na vida de crianças, adolescentes e jovens não é tarefa simples. É, de fato, uma obra importante, para a qual o professor deve entrar com preparo cuidadoso e completo, pois quanto maior conhecimento possuir, melhor realizará o seu trabalho. “A sala de aulas não é lugar para obra superficial. Professor algum que se satisfaça com um conhecimento de superfície atingirá alto grau de eficiência” (White, 2000, p. 229).

5. O professor deve ser escolhido dentre os melhores profissionais

Um professor deve ser escolhido com o máximo cuidado, por causa dos alunos e por causa da seriedade do ministério. White orienta:

Essa escolha deve ser feita por homens sábios, aptos a discernirem caracteres, pois para educar e moldar o espírito dos jovens e desempenharem-se com êxito das muitas atividades que deverão ser desenvolvidas pelo professor de nossas escolas, necessitam-se os melhores talentos que se possam conseguir. Não se deve pôr à tes-ta dessas escolas qualquer pessoa de uma disposição de espírito inferior ou estreita. Não se ponham as crianças a cargo de jovens e inexperientes professores, destitu-ídos de aptidões para dirigir, pois seus esforços tenderiam para a desorganização (2000, p. 186 e 187).

6. O professor deve saber lidar com a mente humana

Sendo que o processo ensino-aprendizagem requer mais do que apenas transmitir informações, é necessário que o professor tenha mente equilibrada e caráter simétrico a fim de impactar a vida dos estudantes. Neste sentido, White argumenta que o trabalho do ensi-no não deve ser confiada a pessoas “que não sabem como tratar com as mentes humanas” (1996a, p. 266).

7. O professor precisa do constante auxílio do Espírito Santo

O preparo pessoal é fundamental, mas só é eficaz quando aliado à orientação do Espírito Santo, pois lidar com a mente humana é uma tarefa extremamente delicada, “e os

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professores necessitam constantemente do auxílio do Espírito de Deus, a fim de executarem devidamente sua obra” (White, 2000, p. 264).

8. O professor deve formar homens e mulheres de sólidos princípios

Cabe ao professor o desafio de conduzir os estudantes não apenas pelos caminhos do conhecimento intelectual, fornecendo-lhes informações, mas possibilitando que os alunos sejam “homens e mulheres de sólidos princípios, habilitados para qualquer posição na vida” (2000, p. 76). White assevera:

O verdadeiro ensinador não se satisfaz com trabalho de segunda ordem. Não se contenta com encaminhar seus estudantes a um padrão mais baixo do que o mais elevado que lhes é possível atingir. Não pode contentar-se com lhes comunicar ape-nas conhecimentos técnicos, fazendo deles meramente hábeis contabilistas, destros artistas, prósperos homens de negócio. É sua ambição incutir-lhes os princípios da verdade, obediência, honra, integridade, pureza - princípios que deles farão uma força positiva para a estabilidade e o reerguimento da sociedade (2003, p. 29 e 30).

O professor também tem parte na formação do caráter de seus alunos (White, 2000, p. 95). Assim sendo, seu caráter deve ser exemplar; ele deve ser digno de confiança, de fé sólida, possuidor de paciência e tato, uma pessoa que ande com Deus e evite a própria apa-rência do mal (Ibid., p. 187).

9. O professor deve ser exemplo, tornando-se o que deseja que os alunos sejam

A este respeito, White reconhece que o professor tem uma pesada responsabilidade a enfrentar. E o peso da responsabilidade não é meramente pelo desafio de transmitir conhe-cimento, mas porque deve ser em palavras e caráter o que espera que seus alunos se tornem: “homens e mulheres que temam a Deus e obrem a justiça” (2000, p. 47).

10. O professor deve controlar seu temperamento

Tão importante quanto às palavras do professor, é a sua postura diante da classe, es-pecialmente no que se refere à questão emocional. Paciência, generosidade e compaixão são importantes, porque é assim que Deus lida com as pessoas (White, 2000, p. 97).

Características do aluno

A escola existe por causa dos alunos. Sem eles, não faria sentido existir escolas. Por-tanto, os alunos são a razão da existência de todo o sistema educacional adventista. De maneira que

Cada estudante, por ser criatura de Deus, constitui o centro de atenção de todo o esforço educacional e, conseqüentemente, deve sentir-se aceito e amado. O propósito da educação adventista é ajudar os alunos a alcançar seu máximo potencial e a cum-

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prir o propósito que Deus tem para sua vida. Os alvos atingidos pelos estudantes, uma vez que se formam, constituem um critério importante para avaliar a eficácia da instituição educacional da qual se formaram (roBinson-ruMBLe, 2002, p. 160).

Espera-se que ao sair da escola adventista, a fim de enfrentar a vida corriqueira com os desafios da profissão, o aluno deva possuir um perfil característico, trabalhado e moldado ao longo de sua passagem pelas salas de aulas. Alguns desses traços característicos ideais, conforme apontados por CAdWALLAder (1995, p. 1-45) e pelo documento Pedagogia Adventista (2004, p. 53-56), são:

1. Lealdade para com Deus e valorização das questões espirituais

Acima da valorização do conhecimento secular, a escola adventista prioriza o cultivo da “retidão de coração e lealdade para com Deus” (White, 2000, p. 496), em consonância com seu objetivo principal, que é “o desenvolvimento harmônico das faculdades físicas, in-telectuais e espirituais” (White, 2003, p. 13).

Para este fim, deve ser dedicado tempo diário à leitura da Bíblia, momentos de reflexão e oração, assim como diversos projetos que enfatizem a importância do espiritual na vida diária. Na atualidade, um desses projetos, talvez o mais impactante, é chamado de “semana de oração”, e consiste em dois momentos no ano, um a cada semestre, nos quais, durante uma semana, se concentra a atenção em pregações diárias, geralmente feitas por convidados especiais que abordam temas espirituais apropriados às faixas etárias.

As escolas adventistas deveriam fortalecer as semanas de oração, convidando orado-res que tenham boa comunicação com os estudantes, envolvendo toda a escola, assim como criando um clima espiritual apropriado.

2. Caráter íntegro

A escola adventista deve se preocupar em criar condições para que o aluno desenvolva conduta reta, na expectativa de que se torne alguém útil, possuidor de valor moral e inte-gridade inabalável (White, 1996a, p. 248). Essa é uma questão fundamental no pensamento educacional adventista, mais importante até que o cumprimento do currículo escolar, embo-ra uma coisa não substitua a outra.

White assim se expressou a esse respeito:

A maior necessidade do mundo é a de homens - homens que se não comprem nem se vendam; homens que no íntimo da alma sejam verdadeiros e honestos; homens que não temam chamar o pecado pelo seu nome exato; homens, cuja consciência seja tão fiel ao dever como a bússola o é ao pólo; homens que permaneçam firmes pelo que é reto, ainda que caiam os céus (2003, p. 57).

Tal integridade de conduta se constituirá na melhor demonstração de que o currículo e a vivência no ambiente escolar foram eficazes.

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3. Equilíbrio emocional

A escola adventista entende que os sentimentos e emoções são também educáveis, sendo possível desenvolvê-los e controlá-los. Então, o aluno pode aprender a dominar suas emoções, controlar suas atitudes e pesar seu julgamento, agindo sempre com bondade, a despeito da injustiça. White sugere:

Cedo deve ficar a juventude acostumada à submissão, renúncia e consideração pela felicidade de outrem. Devem ser ensinados a subjugar seu temperamento repenti-no, a conter a palavra apaixonada, a manifestar invariável bondade, cortesia e domí-nio próprio (1994a, p. 124).

O cuidado com o aspecto emocional dos alunos, hoje melhor conhecido como inte-ligência emocional, é fundamental e significativo para seu sucesso e felicidade (GottMAn e deCLAire, 2001, p. 17), justificando assim a importância desse treinamento na sala de aula.

4. Capacidade de fazer escolhas e tomar decisões

O aluno precisa conviver com situações pedagógicas que o motivem e ensinem a to-mar decisões mediante escolhas sábias. Gabriel ChALitA afirma:

As escolhas revelam o caráter de cada pessoa, pois tornam visíveis os julgamentos interiores de cada um, suas opiniões sobre o mundo e sobre a forma de compor-tamento que considera adequada. As escolhas revelam, enfim, conceitos e precon-ceitos (2003a, p. 73 e 74).

Compreende-se, então, como é importante orientar o aluno em seu processo de esco-lha e decisão. Usando a lente intelectual da cosmovisão cristã, a educação adventista precisa orienta o educando nas escolhas e decisões sábias. Neste intento, deve ser valorizada a capa-cidade de raciocinar, pois “todo ser humano dotado de razão tem o poder de escolher o que é reto” (White, 2003, p. 289).

Como caminho para desenvolver o raciocínio, o qual permitirá ao aluno fazer escolhas e tomar decisões, a escola adventista deve promover o diálogo, pois se entende que é difícil desenvolver a capacidade de escolha e decisão sem a promoção da participação e do diálogo. A este respeito, Miguel Arroyo afirma:

É chocante entrar em uma escola onde convivem mais de mil crianças, adolescentes e adultos e encontrar um clima de profundo silêncio só perturbado pela repetida chamada: “menino cala a boca”; “menina silêncio”. Por vezes me atrevo a pergun-tar ao diretor ou à diretora se dispensou as aulas, diante desse silêncio sepulcral. “Faço questão, professor, de que em minha escola reine o silêncio e a ordem”. Bons candidatos para a direção de um cemitério, penso com tristeza (2002, p. 165).

Avaliando criticamente a prática de impossibilitar o diálogo em sala de aula, o mencio-nado autor argumenta ainda:

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Manter os alunos silenciados é a negação de uma matriz educativa elementar: só há educação humana na comunicação, no diálogo, na interação entre humanos. Escola silenciosa é a negação da vida e da pedagogia. No silêncio os alunos poderão apren-der saberes fechados, competências úteis, mas não aprenderão a serem humanos. Não aprenderão o domínio das múltiplas linguagens e o talento para o diálogo, a capacidade de aprender os significados da cultura (Ibid., p. 165).

Sendo que a escola adventista tem a intenção de desenvolver no aluno a capacidade de escolher e decidir, precisa então promover o diálogo, pois é no diálogo que emoção e razão se encontram, elementos estes muito importantes para o processo de escolha e decisão, as-sim como para o estabelecimento de juízos de valor.

5. Pensamento crítico e reflexivo

O aluno precisa ter a competência de refletir em suas decisões e escolhas, assim como emitir julgamento crítico sobre tudo aquilo que vê ao seu redor – na pesquisa e no dia-a-dia – sempre fundamentado em argumentos sólidos e com espírito de aprendizado.

Por essa razão, mais do que receber informações prontas, o aluno deve ser ensinado na arte de pensar, criticar, refletir. Porque “se a pedagogia se propõe a capacitar os seres hu-manos para ir além de suas predisposições ‘inatas’, deve transmitir ‘a caixa de ferramentas’ que a cultura tem desenvolvido para fazê-lo” (Arroyo, 2002, p. 181). Essa caixa de ferramen-tas permitirá ao educando lidar com todo tipo de questionamentos, sem correr o risco de perder tempo com fórmulas, nomes e esquemas que rapidamente ficam obsoletos.

White endossa este objetivo ao afirmar:

Os professores devem induzir os alunos a pensar, e a entender claramente a verdade por si mesmos. Não basta ao mestre explicar, ou ao aluno crer; cumpre suscitar o espírito de investigação, e o aluno ser atraído a enunciar a verdade em sua própria lin-guagem, tornando assim evidente que lhe vê a força e faz a aplicação. Por trabalhosos esforços, as verdades vitais devem assim ser gravadas no espírito. Talvez isto seja um processo lento; é, porém, mais valioso do que passar correndo sobre assuntos impor-tantes, sem a devida consideração (1994a. p. 140).

6. Obediência consciente aos princípios e normas

Na filosofia educacional adventista é importante desenvolver no aluno a disposição de obedecer. É por isso que se deve lidar com bastante rigor com as questões que envolvem desobediência e afronta à autoridade. Todavia, não se deve exigir obediência cega, e nem mesmo deve-se impor a obediência, sob o princípio de que “é melhor pedir do que ordenar; aquele a quem assim nos dirigimos tem oportunidade de se mostrar leal aos princípios retos. Sua obediência é o resultado da escolha em vez de o ser da coação” (White, 2003, p. 290).

7. Conhecimento e vivência das leis da saúde

A escola adventista precisa se preocupar em promover no aluno a aquisição de bons hábitos de saúde, evitando o culto ao corpo, mas valorizando-o como templo de Deus. Whi-

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te adverte sobre o excessivo tempo dedicado ao cultivo da mente, enquanto se negligencia o conhecimento do próprio organismo, na crença de que o corpo cuidará de si mesmo. Suas palavras a este respeito são claras:

Todo estudante deve saber cuidar de si mesmo de tal maneira que conserve a saúde nas melhores condições possíveis, resistindo à debilidade e à doença; e se por qual-quer causa sobrevém a enfermidade ou ocorrem acidentes, deve saber enfrentar as emergências comuns. (1996a, p. 426 e 427).

8. Relacionamentos saudáveis

O aluno precisa desenvolver a inteligência interpessoal, relacionando-se apropriadamen-te com pequenos e grandes grupos, cooperando com todos, fortalecendo a união entre a fa-mília e os amigos. Por causa disso, a escola adventista deve oferecer as condições necessárias e apropriadas para que ele desenvolva relacionamentos saudáveis, sem o preconceito de raça, partindo do respeito de si mesmo, para respeitar a dignidade das pessoas, e finalmente conside-rando a todos como membros “da grande fraternidade humana” (White, 2003, p. 240).

9. Comprometimento e responsabilidade

Alguns pais, no intuito de demonstrar amor aos filhos e de protegê-los, acabam in-correndo no que se conhece como superproteção materna e paterna. Essa atitude pode prejudicar os filhos porque a superproteção muitas vezes implica em facilitar-lhes as coisas ao máximo e assim evitar-lhes traumas e perturbações (CAMps, 2003, p. 23).

Uma educação que segue essa prática pode originar crianças, juvenis e adolescentes sem compromisso e irresponsáveis, levando alguns professores a queixar-se de que seus alu-nos não fazem tarefa ou são irresponsáveis em diversos momentos.

Para evitar esse problema, a escola adventista objetiva desenvolver compromisso e res-ponsabilidade no aluno, pois há satisfação pessoal quando se usa as próprias mãos, o intelecto e as aptidões no cumprimento dos diversos deveres (ChALitA, 2003b, p. 119).

White afirma que “os que estão sempre ocupados e que animosamente cumprem suas tarefas diárias, são os mais felizes e gozam a melhor saúde”, de maneira que “o mais puro e elevado gozo vem aos que fielmente cumprem os deveres que lhes cabem” (1996b, p. 603).

10. Desprendimento de si mesmo e solidariedade

A escola adventista deve se preocupar em desenvolver nos alunos o interesse pela comunidade, assim como cultivar neles o espírito filantrópico. Com essa finalidade, podem ser executados projetos de visita a asilos e creches, arrecadação de donativos para as pessoas carentes do bairro, e mesmo a ajuda a colegas que tenham necessidades materiais.

A esse respeito, White afirma claramente:

Desde bem cedo, deve-se ministrar à criança a lição da prestimosidade. Logo que suas forças e a faculdade de raciocínio estejam suficientemente desenvolvidas, de-vem-se-lhe confiar deveres a desempenhar em casa. Deve ser estimulada a tentar

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auxiliar o pai e a mãe, estimulada a ser abnegada e a dominar-se a si mesma, a colo-car a felicidade e o bem-estar dos outros acima dos seus, a estar atenta às oportu-nidades de animar e ajudar os irmãos, os companheiros, e a mostrar bondade para com os velhos, os doentes e os desditosos. Quanto mais profundamente o espírito de verdadeiro serviço penetrar o lar, tanto mais profundamente ele se desenvolverá na vida das crianças. Elas encontrarão prazer em servir e sacrificar-se pelo bem dos outros (1997, p. 401).

White também afirma que “a satisfação das crianças por serem úteis e praticarem atos de abnegação para ajudar a outros, será o prazer mais salutar que já experimentaram” (1996a, p. 36).

Considerações finais

Os objetivos e características acima apresentados, referentes à educação, ao professor e ao aluno, representam o ideal no sistema educacional adventista. Administradores escola-res, professores, professoras, pais e estudantes deveriam tomar essas orientações como guia para o processo educacional das instituições adventistas. O quadro abaixo sintetiza o exposto nesta breve pesquisa.

A educação pretende: O professor precisa: O aluno deve:

1. Levar o estudante a conhecer e praticar a vontade de Deus e o relacionamento com Ele.

1. Aprender com o mestre.

1. Ser leal a Deus e valorizar o que é espiritual

2. Promover a Bíblia como a Palavra de Deus, tendo em seus princípios o referencial de conduta.

2. Ter consciência de que exerce uma forma de ministério.

2. Desenvolver caráter íntegro.

3. Estimular o estudo, proteção e conservação da natureza criada por Deus.

3. Ser responsável diante de Deus.

3. Ter equilíbrio emocional.

4. Incentivar a utilização das faculdades mentais na aquisição e construção do conhecimento.

4. Ter preparo cuidadoso e completo.

4. Desenvolver a capacidade de fazer escolhas e tomar decisões.

5. Promover a aquisição de hábitos saudáveis pelo conhecimento do corpo e das leis que o regem.

5. Ser escolhido dentre os melhores profissionais.

5. Desenvolver pensamento crítico e reflexivo.

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6. Promover o desenvolvimento do senso crítico e do pensamento reflexivo, tornando o estudante pensador e não mero refletor dos pensamentos alheios.

6. Saber lidar com a mente humana.

6. Obedecer conscientemente os princípios e normas.

7. Incentivar o desenvolvimento dos deveres práticos da vida diária, assim como o exercício de uma verdadeira cidadania.

7. Requerer o auxílio do Espírito Santo.

7. Conhecer e vivenciar as leis da saúde.

8. Promover a autonomia e a autenticidade alicerçadas nos valores bíblico-cristãos.

8. Formar homens e mulheres de sólidos princípios.

8. Desenvolver relacionamentos saudáveis.

9. Favorecer o desenvolvimento da auto-estima positiva, do sentimento de aceitação e de segurança.

9. Ser exemplo, tornando-se o que deseja que os alunos sejam.

9. Desenvolver compromisso e responsabilidade.

10. Resgatar os bons relacionamentos interpessoais, assim como o espírito cooperativo.

10. Controlar seu temperamento.

10. Possuir desprendimento de si mesmo e solidariedade.

Ao encerrar, uma palavra referente à extraordinária sensibilidade de Ellen White como educadora. Como pesquisador, tenho nos últimos anos estudado os mais diversos teóricos da educação e da filosofia, e cada vez admiro ainda mais Ellen White e suas propostas edu-cacionais, pela sua solidez religiosa e sua clareza conceitual.

As diversas instituições educacionais adventistas devem continuar lendo e usando outros referenciais teóricos, pois uma das funções da escola é pesquisar. Todavia, estou plenamente convencido que os conceitos que Paulo Freire, Vygotsky, Wallon, Piaget e outros propuseram e exploraram, já foram ditos - em essência - por Ellen White. Na realidade, então, a educação ad-ventista não precisa de novos teóricos. É necessário, sim, pôr em prática a belíssima e completa “teoria” que Ellen White descreveu por inspiração divina. Esta é uma questão de sabedoria, compromisso e sobrevivência das instituições educacionais adventistas.

Concluo com um parágrafo extraído do documento oficial intitulado “A filosofia da educação adventista”, produzido pelo departamento de educação da Associação Geral dos Adventistas do Sétimo Dia. Suas palavras indicam o ideal que as escolas adventistas devem perseguir a todo custo, sob pena de serem apenas escolas medíocres:

Nenhuma instituição pode sobreviver, nenhuma estrutura prevalecer, a menos que seus alicerces estejam solidamente construídos e sejam assim mantidos. A educação adventista do sétimo dia não faz exceção a essa regra. Sua razão de ser está baseada num sólido alicerce filosófico de crenças fundamentais. Identificar claramente essas crenças e elaborar um currículo escolar consistente com as mesmas, é a responsabi-lidade urgente de cada educador adventista (1983, p. 1).

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Notas1 Este trabalho é um excerto da dissertação de mestrado do autor, A influência da educação adventista na iden-

tidade e na fé de adolescentes, defendida em agosto de 2005 na Umesp. A obra completa pode ser consultada na biblioteca central do Unasp, Campus Engenheiro Coelho (SP).

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AS RELAÇõES INTERPESSOAIS NA ESCOLA SOB O OLHAR PSICOPEDAGÓGICO

MARINALVA IMACULADA CUzIN, doutoranda em Psicolo-gia da Educação pela Unicamp e docente do curso de pós-graduação em Psicopedagogia do Unasp, Campus Enge-nheiro Coelho e Hortolândia, [email protected].

Resumo: Esse artigo procura refletir sobre as relações interpessoais no ambiente educacional. Trabalha os múltiplos olhares carregados de valores, cultura e afetividade, bem como a diferença lingüística entre enxergar e olhar e entre ouvir e escutar, o contraste entre os monólogos e os diálogos. Apresenta o paradigma probalístico e o paradigma cartesiano numa perspectiva psicopedagógica, o papel do psicopedagogo frente à escola e as dificuldades de aprendizagem da criança. Caracteriza a escola enquanto informativa, formativa e normativa. Defende a relevância do trabalho preventivo do psicopedagogo em parceria com o professor, família e sociedade, objetivando amenizar alguns dos conflitos e dificuldades de aprendizagem presentes na instituição educacional. PalavRas-chave: Relações interpessoais, psicopedagogia, educação, indivíduo, sociedade, valores

THE INTERPERSONAL RELATIONSHIP UNDER A PSyCHOPEDAGOGIC VIEw

abstRact: This article deals with the interpersonal relationships in the educational institution within social context, working with different views full of values, culture and affectivity. The difference of seeing and viewing, hearing and listening, the contrast between the monologues and the dialogues, shows the Probability paradigm and the Cartesian paradigm in a psichopedagogic perspective. The function of psichopedagogue in the school, the difficulties of child learning, characterizing the school as a formative, informative and normative and the relevance of the preventive works of psichopedagogue in partnership with the professor, parents and society aim to minimize some of the conflicts and difficulties of learning in the educational institution. KeywoRds: Interpersonal relationship, psichopedagogic, education, person, society, values

EDUCAÇÃO

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As relações interpessoais...�2

O homem tem uma tendência inata para viver em uma sociedade constituída por seus semelhantes, recebendo dela o amparo de que necessita e utilizando-a para desenvolver suas capacidades. Por isso se diz que o homem é um ser social. (Jacob Moreno).

Introdução

Esse estudo é resultado das reflexões da autora sobre os seus estudos de doutorado, os quais têm realimentado o interesse da mesma pela temática que envolve as relações inter-pessoais, as dinâmicas de grupo, o psicodrama e a imensurável relevância do educador para os alunos e a sociedade em geral.

No decorrer da docência das disciplinas do curso de pós-graduação em Psicopedagogia no Unasp percebi que tal relevância se estende também ao psicopedagogo, e tenho me certifi-cado de que a formação acadêmica oferecida a esses profissionais realmente os habilita para um atendimento adequado aos seus pacientes. Haja vista que, a preocupação com o diálogo entre as áreas de Saúde e Educação se faz presente em todo o período de formação dos alunos.

O primeiro desafio a mim apresentado, proposta desse artigo, foi o de olhar a temática das relações interpessoais e as demais registradas no início do texto, sob a ótica do psicope-dagogo, buscando observar até onde o diálogo entre as áreas de Educação e Saúde realmente acontecem na prática psicopedagógica.

A metodologia de pesquisa se caracteriza como qualitativa, através de pesquisa biblio-gráfica, observações, reflexões, comentários e sugestões num processo contínuo marcado pelo diálogo com o corpo discente.

Esse artigo não tem como propósito esgotar o tema apresentado e a pesquisa que ainda não foi dada como encerrada, mas sim, como um início de muitas outras descobertas e motivações para se continuar a “olhar” para essa temática enquanto pesquisadora desejante do saber e do aprender. Será apresentado um ensaio motivador e extremamente prazeroso do que tem sido trabalhar com a Psicopedagogia.

“Olhar psicopedagógico”. Quando nos referimos ao termo “olhar”, falamos de di-versas interpretações, já que um único olhar carrega em si valores, culturas variadas e ao mesmo tempo específicas de cada ser. Tratamos de um ser humano completo e complexo, sem “divisórias” ou “gavetinhas”, sem divisão estanque entre razão e emoção, vida familiar e escolar. Se um olhar envolve várias questões, reflexões e riqueza de detalhes, muito mais se pode esperar de múltiplos olhares. Ademais, a expressão pelo olhar consegue ser tão sincera a ponto de contradizer as expressões orais, criteriosamente selecionadas pelo nosso cons-ciente, nosso superego.

Homem: um ser social

Vivemos sempre atentos às nossas responsabilidades, como se a vida girasse em torno de um grande tratado, um “negócio” enquanto negação do ócio, gerando comportamentos individualizados e interesses isolados. Como se dedicar parte do nosso tempo sem a preo-

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cupação restrita com a produtividade - valorizando os momentos envoltos de afeto, carinho, alegria, fé, harmonia, solidariedade e interação relacional - fossem inquietações secundárias.

Esse comportamento individualizado está diretamente relacionado à maneira como pensamos e vivemos as relações interpessoais, quer seja na esfera familiar, profissional, inte-lectual/cognitiva, matrimonial ou social.

Do nascimento até à morte, nossa vida é um permanente exercício de sociabilidade. O homem é um ser grupal, e está em contínuo processo de interação com o outro. Por isso é um ser de relações, de inter-relações, de diálogo, de participação e de comunicação. O ser humano se traduz no cotidiano. Por meio da convivência, ele concretiza a sua existência, produzindo, recriando e se realizando nas suas relações com o outro.

Na vida, na família, nas escolas, nos grupos de trabalho ou lazer, nas empresas, seja qual for a atividade a ser desenvolvida, as ações isoladas dificultam o alcance dos objetivos. Ninguém é bom sozinho. Há sempre um referencial, um suporte, uma estrutura, que incen-tiva e impulsiona para a realização do trabalho a ser efetuado.

No nosso dia-a-dia, enxergamos tudo e a todos ao mesmo tempo, mas não olhamos para quase ninguém enquanto ser humano que sente, pensa e age, nem sequer nos damos conta da representação lingüística diferenciada entre as palavras “enxergar” e “olhar”, da mesma maneira que não distinguimos as expressões “escutar” e “ouvir”.

Costumamos estar prontos a enxergar, mas não a olhar. Antônio houAiss traz as se-guintes definições sobre tais verbetes. “Enxergar” é definido como “distinguir, perceber pela visão, alcançar com a vista” (2001, p. 1154). E “olhar”, como “dirigir os olhos para alguém, algo ou para si, ver-se mutuamente, mirar, contemplar, prestar atenção, aspecto dos olhos, ocupar-se intensamente de, considerado como reflexo do sentimento” (2001, p. 2058).

Olhar exige mais do que perceber pela visão, requer perceber com o coração, destitu-ído do egoísmo e do individualismo que leva à cegueira social. Uma sociedade é constituída por indivíduos e o indivíduo só se faz enquanto ser humano em comunhão com a sociedade em que está inscrito, com sua cultura, seu credo, seus valores.

Ainda segundo houAiss (2001), o verbete “escutar” é definido como “estar consciente do que está ouvindo, ficar atento para ouvir, dar atenção” (Ibid., p.1213), enquanto que “ou-vir” é definido como “perceber (som, palavra) pelo sentido da audição” (Ibid., p.2094).

Diante disso, a maioria dos diálogos poderia ser denominado monólogos. Prova disso é que, por vezes numa conversa, nos mostramos interessados a dar respostas prontas, do que a ouvir quem nos fala, nos tornamos “pseudosurdos”. Geralmente, num diálogo, o emissor quer mais ser ouvido do que receber soluções ou respostas do seu receptor.

Tal comportamento dificulta a comunicação, a compreensão, as relações interpes-soais e a convivência em grupo. Sem olharmos e sem ouvirmos aos que nos cercam, se torna impossível pensarmos num mundo mais justo, mais humano, com valores mais construtivos, no qual a vida valha mais do que objetos materiais, em que a fé e a Palavra de Deus sejam onipresentes.

Quando conseguimos refletir sobre nossos comportamentos, observando como nos relacionamos, vamos além de nossas compulsões, de nossas neuroses, nos tornamos indiví-duos que, vão além de si mesmos, gerando uma sinergia num único ser harmonioso.

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A psicopedagogia e o modelo probabilístico

Diante da importância dos relacionamentos interpessoais para a aprendizagem, o olhar psicopedagógico se faz muito importante no ambiente escolar. Renata ferreirA (2002) de-fende que a psicopedagogia educacional se preocupa com a reflexão dos profissionais da área da educação quanto ao papel da escola frente às dificuldades de aprendizagem da criança.

Eulalia BAssedAs et al (1996, p. 42) se refere à escola como uma instituição social, que compartilha funções e que se inter-relaciona com outros sistemas, dentre eles, o familiar, numa ligação contínua. Nessa interação, nem sempre são obtidas atuações adequadas, já que, muitas vezes, esses sistemas se fazem compostos, ao invés de complementares.

De acordo com Terezinha zorziM (2006, p. 3):

A relação família - escola e a intervenção da psicopedagogia necessitam ter objeti-vos comuns constantes, estimulando e instigando o educando a crescer e tornar-se autoconfiante em suas possibilidades. Isto requer a existência do conhecimento mútuo e o estabelecimento e vínculos saudáveis que permitam que a criança se sinta segura e vá em frente.

Essa postura psicopedagógica está alinhada com o novo paradigma da ciência, o pro-balístico, o qual contrapõe o modelo cartesiano. Fritjof CAprA (1996, p. 25) define o paradig-ma probalístico da seguinte maneira:

O paradigma probalístico também chamado de novo paradigma pode ser chamado de uma visão de mundo holística, que concebe o mundo como um todo integrado, e não como uma coleção de partes dissociadas. Pode também ser denominada visão ecológica, se o termo ecológico for empregado num sentido muito mais amplo e mais profundo que o usual. A concepção ecológica profunda reconhece a interde-pendência fundamental de todos os fenômenos, e o fato de que, enquanto indivíduos e sociedade estão todos encaixados nos processos cíclicos da natureza (e em última análise, somos dependentes desses processos).

Já quanto ao modelo cartesiano, o autor assim o define:

O paradigma cartesiano consiste em várias idéias e valores entrincheirados entre os quais a visão do universo como um sistema mecânico composto de blocos de cons-trução elementares, a visão do corpo humano como uma máquina, a visão da vida em sociedade como uma luta competitiva pela existência, a crença no progresso material ilimitado, a ser obtido por intermédio de crescimento econômico e tecno-lógico, é uma sociedade que segue uma lei básica da natureza (Ibidem).

A escola se constitui em uma organização sistêmica aberta, conjunto de elementos, que interagem e se influenciam mutuamente. Conjunto esse relacionado, na forma de troca de influências, ao meio em que se insere. Dessa maneira, quaisquer mudanças em qualquer dos elementos da escola produz mudanças em outros âmbitos sociais, mudanças essas que

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provocam novas alterações no elemento iniciador, e assim sucessivamente. Por isso, o mo-delo probabilístico se mostra mais coerente com o trabalho do psicopedagogo, pois propõe uma visão mais ecológica, holística da realidade.

Para Joana di sAnto (2006, p. 2), a atuação do psicopedagogo se dá em equipe:

A ação profissional do psicopedagogo, jamais poderá ser isolada, mas integrada à ação da equipe escolar buscando em conjunto, vivenciar a escola, não só como espaço de aprendizagem de conteúdos educacionais, mas de convívio, de cultura, de valores, de pesquisa e experimentação, que possibilitam a flexibilidade de atividades docentes e discentes.

A escola tem apresentado dificuldades para incluir e despertar o interesse cognitivo dos alunos com dificuldades de aprendizagem. Esses alunos são geralmente rotulados de preguiçosos, desatentos, desinteressados, irresponsáveis e “alunos-problema”. É com esses alunos que o psicopedagogo terá que trabalhar.

O trabalho preventivo do psicopedagogo

As dificuldades de aprendizagem se manifestam em áreas específicas, como a lingua-gem, leitura, escrita, compreensão da matemática e nos transtornos de conduta, porém, elas estão diretamente relacionadas umas as outras.

Um aluno com transtornos de conduta moderado ou severo apresentará déficit de atenção nas aulas, nas relações interpessoais com os colegas de classe, quando não com os pais e com o grupo social mais próximo. É provável também que, apresentará um quadro preocupante em relação à auto-imagem, autoconceito, auto-estima e auto-eficácia. Esse impacto emocional pode se refletir no aprendizado cognitivo dele, que na maioria das vezes resulta no convite formal da es-cola aos pais desse aluno para que o mesmo seja transferido compulsoriamente, leia-se expulso.

A escola muito mais do que informativa e formativa é a instituição que melhor do que qualquer outra exerce a função de normativa. É com o ingresso da criança na escola que a educação oferecida pelos pais vem a ser questionada, principalmente quando o aluno se de-para com diferentes valores, culturas, crenças, tradições e regras. Esse processo nem sempre facilita o ingresso e a permanência do aluno na escola.

Com um trabalho preventivo do psicopedagogo, em parceria com os professores, pais dos alunos, e sociedade em geral se torna possível, ao menos amenizar alguns dos conflitos e dificuldades de aprendizagem no ambiente escolar.

fritzen (2005, p. 7) defende que:

Uma das necessidades ou realidades psicológicas, melhor psicossociais, é a de cada um precisar do outro para realizar-se. A precisão que as pessoas têm um do ou-tro subentende a contemplação no sentido de ninguém ser auto-suficiente, de se bastar a si mesmo. Subentende o encontro com o outro e com os outros para a maturação mútua da sua personalidade. Subentende ainda a superação do isola-mento vivencial e existencial.

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O psicopedagogo recebe a formação acadêmica que o qualifica para ser o elo entre as áreas de Educação e de Saúde, o que o diferencia dos demais profissionais aos quais são encaminhados os alunos que de alguma maneira não se adequaram ao modelo institucional educacional.

A intervenção psicopedagógica pode ser muito significativa para os envolvidos no processo de aprendizagem, inclusive para o próprio psicopedagogo. Quando essa prática se dá por meio de um olhar transdisciplinar, caracterizado por um vínculo in-ter-relacional saudável e humilde do profissional, reconhecendo que não tem respos-tas prontas para tudo e nem soluções para todos os problemas existentes na escola, mas que está interessado em fazer o melhor de si, aberto a sugestões, ao olhar e à escutar todos ganham.

Conclusão

A escola, enquanto instituição normativa oferece-nos a oportunidade de participarmos do processo de construção/formação de cidadãos mais conscientes de seus papeis sociais, enquanto indivíduo social. Quando nos referimos aos alu-nos, estamos nos remetendo a seres humanos criados a semelhança de Deus e per-feitos aos olhos do pai. Dignos de serem muito amados, respeitados, repreendidos quando necessário e educados.

O psicopedagogo tem a obrigação de estar consciente de que atua como pro-tagonista na formação de seus alunos/pacientes e, que somente com um trabalho em conjunto com os demais profissionais, pais e com a sociedade, teremos melhores alunos e cidadãos, e acima de tudo um mundo melhor.

Vivemos num mundo extremamente estressante e carente de valores positivos, onde o valor à vida, o amor, o respeito ao próximo e a si mesmo e a presença de Deus nos corações, na educação da família e nos comportamentos éticos e morais enquanto exemplo aos filhos e demais adultos, tem deixado de ser prioridade.

Numa sociedade em que tais pré-requisitos deixam de ter relevância não podemos esperar uma convivência com crianças, adolescentes e futuros adultos com comporta-mentos minimamente saudáveis e “normais” ou que venham a apresentar o aprendizado sócio-cognitivo esperado. Existe uma co-relação muito direta entre os aspectos afetivo, cognitivo-intelectual, neural, mental, psicológico, social, moral e ético, numa perspectiva intrinsecamente relacional.

Diante do quadro apresentado envolvendo princípios básicos e o que te-mos presenciado, salvo em alguns lares, podemos concluir que o psicopedagogo deve investir na formação continuada e comprometida, apostando num aumen-to de oportunidades no mercado de trabalho. Sem a maximização dos valores positivos apresentados se torna impossível escapar dos transtornos, problemas ou dificuldades de aprendizagem e principalmente dos transtornos de condutas comportamentais ou comprovadamente neurológicas. Não é por acaso que se tornou tão popular e ao mesmo pejorativo devido à “febre de diagnóstico” o ter-

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mo hiperatividade e déficits de atenção, e tão divulgado pela imprensa o aumento de receituário para crianças de pouca idade, de medicamentos como a “ritalina” e “antidepressivos”.

Toda instituição educacional cristã ou laica, privada ou pública deveria ter em seu quadro funcional um psicopedagogo em tempo integral, que circulasse pelas salas de aula, pelas quadras de esporte, pátios utilizados nos intervalos entre as aulas e outros espaços físicos da escola, enquanto profissional com formação adequada para atender aos alunos com necessidades curativas e principalmente preventivas, como também, orientar os pais, professores e demais profissionais da instituição, mediante aos transtornos, dificuldades e problemas de aprendizagem e comportamento. Esperemos que em breve possamos comemorar por essa vitória.

Referências bibliográficas

BASSEDAS, Eulália; et al. Intervenção educativa e diagnóstico psicopedagógico. Porto Alegre: Artes Mé-dicas, 1996.

CAPRA, Fritjof. Ponto de mutação. São Paulo: Cultrix, 1996.

DI SANTO, Joana Maria Rodrigues. “A ação psicopedagogia e a transformação da realidade escolar”. Disponível em: <www.centrorefeducacional.com.br> Acesso em: 24 mai. 2006.

FERREIRA, Renata Tereza da Silva. “A importância da psicopedagogia no ensino fundamental de 1ª a 4ª séries”. Disponível em: <www.psicopedagogia.com.br> Acesso em: 16 fev. 2007.

FRITZEN, Silvino José. Relações humanas interpessoais: nas convivências grupais e comunitárias. 15ª edição. Petrópolis, RJ: Vozes, 2005.

HOUAISS, Antônio e SALLES, Mauro. Dicionário Houaiss de Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.

MORENO, Jacob Levy. Psicodrama. São Paulo: Cultrix, 1997.

ZORZIM, Terezinha J. I. “As inter-relações educadores e educandos: um enfoque psicopedagógico”. Trabalho de Conclusão de Curso (lato-sensu em Psicopedagogia) - Unasp. Hortolândia, SP: 2006.

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OS tExtOS hiPOCRátiCOS E A HISTÓRIA DA SAúDE

MILTON L. TORRES, bacharel em Teologia e Letras, mestre em Lingüística (UFBA) e doutor em Arqueologia pela Universidade do Texas. é diretor acadêmico da Fa-culdade Adventista da Bahia, [email protected].

CAIRUS, Henrique F.; RIBEIRO JR., wilson A. textos hipocráticos: o doen-te, o médico e a doença. Coleção História e Saúde. Rio de Janeiro: Fio-cruz, 2005. 251 pp.

A obra de Henrique Cairus e Wilson Ribeiro Jr. vem preencher uma lacuna de longa data: a tradução para o vernáculo de alguns dos mais importantes tratados do Corpus hippocra-ticum, a coletânea de obras médicas (em sua maioria, atribuídas pelos antigos à Hipócrates de Cós, o “pai da medicina”).

A primeira parte da obra, sob a responsabilidade de Cairus, inclui três tratados (“Da do-ença sagrada”, “Ares”, “Águas e lugares” e “Da natureza do homem”), elencados pelo tradutor a fim de demonstrar a relevância do Corpus hippocraticum para a história da medicina, filosofia e antropologia. A segunda parte, sob os cuidados de Ribeiro, traz os tratados deontológicos (o “Juramento”, a “Lei”, “Do médico”, “Do decoro” e os “Preceitos”) que estabelecem a “etique-ta” médica na antigüidade e lançam as bases da ética médica.

A tradução, embora apenas parcial, do Corpus hippocraticum é, indubitavelmente, uma contribuição notável aos estudos filológicos clássicos e à história da medicina. Embora os tra-dutores advirtam que “o estilo duro e visceralmente antiliterário dos tratados do Corpus hippo-craticum foi observado” (p. 41), notamos, com satisfação, que a tradução tem um fluxo agradável e é bastante elucidativa.

É provável, no entanto, que haja alguns pontos em que o observador atento note algu-mas discrepâncias. Nos poucos pontos em que comparei o texto grego com a tradução (com a finalidade precípua de verificar a acuracidade da mesma), notei, modestamente, apenas um pequeno descuido no fim do § 9 do tratado “Da natureza do homem”, no qual a tradução “e

RESENHA

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Os Textos Hipocráticos...100

emagrecendo os corpos” para kai ta sōmata leptunonta, embora literal, poderia ser menos ambígua se a expressão grega fosse vertida como “enquanto emagrecem os corpos”.

Algumas falhas tipográficas poderiam ter sido evitadas, no entanto, com uma revisão mais atenta. A título de exemplificação, menciono as seguintes incorreções: “carregada pus” em vez de “carregada de pus” (p. 48), o aparecimento inexplicável do número 17 quase no fim do § 15 de “Da natureza do homem” (p. 50), “doenças segradas” (p. 131), “marocéfalos” em vez de “macrocéfalos” (p. 139), “soemente” (p. 140), a palavra “partem” desnecessariamente grafada em caracteres gregos (p. 141), “cáuticos” em vez de “cáusticos” (p. 141), “ajuda” em vez de “ajudam” (p. 183), entre outros tantos erros.

Na seção sob os cuidados de Ribeiro, aparece um número consideravelmente alto de palavras desnecessariamente hifenizadas, como, para citar uns poucos exemplos, “evi-tando” (p. 152), “res-peitar” (p. 154), “apre-sen-tam” (p. 169), etc. Esses pequenos descuidos também ocorrem no texto grego: a palavra pana keian, por exemplo, aparece indevidamente separada (p. 152), e há uma frase aparentemente incompleta na nota 293 (p. 179).

A contribuição de Ribeiro será, provavelmente, mais útil uma vez que ele depende menos de Jacques Jouanna e Émile Littré e, principalmente, apresenta comentários para os tratados por ele traduzidos. Em vez de comentar seus textos, Cairus nos remete, invariavelmente, à discussões preliminares e de menor peso (como as questões de autoria e data) já empreendidas por outros au-tores, especialmente os francófonos (o que explica, por exemplo, sua preferência por chamar Dênis a Dionísio de Halicarnaso).1

Cairus, aliás, depende excessivamente de fontes secundárias, sendo “apud”, aparentemente, uma de suas palavras favoritas. Ribeiro é mais ousado, fornecendo-nos, de fato, interpretações úteis (e geralmente plausíveis) para as traduções que nos oferece. Um exemplo de sua preocupação em fa-cilitar as coisas para o leitor é sua decisão de incluir um pequeno esboço gráfico das ventosas (p. 189), instrumentos médicos descritos no § 7 do “Do médico”. No entanto, gostaria que ele tivesse toma-do mais tempo para desenvolver sua tese de que os médicos não cuidavam dos doentes nos templos de cura (p. 175), que me parece ir de encontro à opinião já estabelecida entre os classicistas.

Os tradutores demonstram um louvável respeito pela arte médica, mas duvido que tal respei-to tenha sido partilhado pelos contemporâneos da coleção hipocrática, afinal de contas, a medicina era uma technē e há documentação abundante de que a aristocracia greco-romana via, com desfavor, qualquer atividade que dependesse do uso das mãos.

Os autores demonstram certa relutância em aceitar a possibilidade da existência de escravos engajados na prática da medicina (p. 160), incorrendo mesmo na temeridade de usar o argumento do silêncio para declarar que só os escravos de médicos livres podiam atuar como médicos (mas sem prestar o juramento de Hipócrates!).

Os tradutores parecem, às vezes, defender a posição reducionista de que a medicina de-veria ter “a primazia entre as ciências” (p. 32). Numa época em que tão recentemente se discutiu o assim-chamado Ato Médico, não sei se os demais eruditos concordariam com os tradutores que os médicos teriam sido os primeiros a interrogar a natureza com o espírito aberto (p. 33). Isso explica também por que aplaudem “a valiosa contribuição de Littré” (p. 32) em demonstrar que a medicina era a arte do pharmakon, enquanto a mágica dos curandeiros dependia exclusivamente do encantamento (epaiodē). A literatura já demonstrou que os mágicos da Grécia Antiga faziam ampla utilização de pharmaka.2

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A diagramação e a qualidade visual do texto são excelentes. As deficiências da obra se limitam a alguns erros tipográficos, à falta de um comentário para a tradução dos tratados da primeira parte do livro e à ausência de um glossário para os principais termos médicos presen-tes no livro (os tradutores só fornecem um limitado glossário de personagens).

Apesar dessas limitações (compreensíveis, dada a dificuldade do empreendimento), a existência de uma tradução do Corpus hippocraticum em português e sua publicação, sob os auspí-cios da Fundação Oswaldo Cruz (em excelente edição bilíngüe), não podem ser subestimadas. A obra certamente desencadeará uma onda de estudos hipocráticos no Brasil que há de trazer para nossas letras clássicas preocupações já em voga entre os estudiosos estrangeiros, atuali-zando-nos frente a uma área de estudos que, embora importantíssima, vem sendo relegada a segundo plano em um país que nem sempre é amigo dos livros.

Notas1 Não estou plenamente convencido de que Cairus tenha conseguido escapar à tentação de produzir

“uma análise littreana après la lettre” (p. 93).2 Cf. TORRES, Milton Luiz . A mágica erótica de Simaeta no idílio 2 de Teócrito. Phaos: Revista de Es-

tudos Clássicos, Campinas, v. 2, p. 187-204, 2002.

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1. a Acta Científi ca tem como objetivo a divulgação de trabalhos de pesquisa originais ou observações inéditas, relacionadas às Ciências Humanas.

2. Os trabalhos podem ser enquadrados como:Artigo Científi co: é a publicação que se destina a divulgar resultados inéditos de estudos e pesqui-

sa, compreendendo os seguintes itens: título (em português e inglês); nome(s) do(s) autor(es) e sua(s) respectiva(s) qualifi cação(ões) e instituição(ões) a que pertence(m); resumo e abstract (no máximo 200 palavras) com até 5 palavras-chave em português e inglês; introdução; método; resultados (descrição e discussão); conclusões e referências bibliográfi cas. Não excedendo a 25 laudas ou cerca de 6.000 palavras, incluindo fi guras, tabelas e lista de referências.

Relato de Experiências: é a descrição de uma experiência observada, onde o(s) autor(es) caracteriza(m) cientifi camente as observações, permitindo a interpretação do ocorrido. Deverá conter: título (em português e inglês), nome(s) do(s) autor(es) e suas respectiva(s) qualifi cação(ões) e instituição(ões) a que pertence(m), resumo (no máximo 150 palavras) com até 5 palavras-chave em português e inglês, texto (com ou sem subdivisão) e referências bibliográfi cas, não excedendo a 15 laudas ou cerca de 3.500 palavras.

Artigo de Revisão: é o estudo analisado e discutido de matéria já publicada tendo em vista mostrar o estado da arte sobre determinado tema. A bibliografi a deverá ser a mais rica e atualizada possível, devendo o(s) autor(es) elaborar uma sistematização do estudo sobre o assunto pesqui-sado. Deverá conter: título (em português e inglês), nome(s) do(s) autor(es) e suas respectiva(s) qualifi cação(ões) e instituição(ões) a que pertence(m), resumo (no máximo 200 palavras) com até 5 palavras-chave em português e inglês, texto (com ou sem subdivisão) e referências bibliográfi cas, não excedendo a 15 laudas.

Resenha de Livros: resumo e balanço crítico de livros recentemente publicados na área das ciências humanas. Deverá conter: título do livro; autor; local de edição; editora e ano de publicação; nome do autor da resenha; sua(s) respectiva(s) qualifi cação(ões) e instituição(ões) a que pertence(m); não excedendo a 5 laudas ou cerca de 1.250 palavras.

3. Os artigos devem ser inéditos e podem ser publicados em português, inglês, francês ou espanhol, sendo que as idéias propostas nos artigos são de inteira responsabilidade do(s) seu(s) autor(es).

4. O título deve conter no máximo 15 palavras, em português e inglês de uma forma precisa.

5. O(s) nome(s) completo(s) do(s) autor(es) deve(m) aparecer, sendo identifi cado o autor res-

NORMAS PARA PUBLICAÇÃO

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Normas para publicação104

ponsável e o endereço, telefone e e-mail para recebimento de correspondências.

6. O texto deve ser editado em MS Word 98 ou superior, configurado em papel tamanho Carta (216 x 279 mm), fonte Garamond 12 e espaço 1,5 com páginas numeradas. Devendo ser encaminhado via E-mail ou correio. Neste último caso, deve ser encaminhada uma cópia impressa em folha Carta acompanhada de um disquete 3½ identificado com o nome do(s) autor(es) e nome do arquivo.

w7. Referências Bibliográficas: baseando-se pelas normas da ABNT - NBR 6023.No texto:Citações diretas curtas - Conter até 3 linhas devendo ser integradas ao parágrafo. Neste caso, usar

o sistema autor/data, ou seja, o sobrenome do(s) autor(es) em caixa baixa, seguido do ano em que a obra foi publicada, tal como:

Para 1 (um) autor - Rodrigues (1998), observou...Para 2 (dois) autores - Rodrigues e Veiga (1999), pesquisando...Para 3 (três) autores - os sobrenomes serão ligados por vírgula e seguidos pela data entre

parênteses: Rodrigues, Veiga e Pacheco (2000)....Para mais de 3 (três) autores: o sobrenome do primeiro autor deve ser seguido da expressão “et al.”: Royce

et al. (1998), constataram...Citações diretas longas - Conter mais de 3 linhas devendo ser destacado em relação ao parágrafo.

A citação deve ser em fonte 11 e espaço simples, justificada e centralizada em relação ao texto. Da mesma forma, a citação deve estar a 4 espaços das margens esquerda e direita.

Citações indiretas - colocar entre parênteses, o sobrenome do(s) autor(es) e a data, separados por vírgula: “Estas afirmações foram confirmadas em trabalhos posteriores (Rodrigues, 1995; Oliveira, 1997; Veiga, 1999).”

Citações eletrônicas - Rodrigues, Cássio (1997) - Ao final da citação.Lista de referências bibliográficas: deverão constar os nomes de todos os autores de um

trabalho consultado, separados por ponto e vírgula. As referências serão ordenadas alfabetica-mente pelo último sobrenome do autor e os pré-nomes abreviados por letra maiúscula e ponto. Havendo mais de uma obra com a mesma entrada, considerar a ordem cronológica, assim:

a) Para artigos de periódicos:Bertoni, L. M. Arte, Indústria Cultural e Educação. Cadernos CEDES - Centro de Estudos

Educação e Sociedade - UNICAMP. Ano 21, v. n.54, p.76-81, 2001.b) Para monografias, dissertações, teses e livros:Ferreira, L. M. Avaliação da Aprendizagem: Conflitos Emocionais, Desvirtuamento e Ca-

minhos Para a Superação. Engenheiro Coelho, 1999. Dissertação (Mestrado em Educação) - Departamento de Pós-Graduação

em Educação, Centro Universitário Adventista de São Paulo.c) Para publicações referentes a eventos: Congressos, Reuniões, Seminários, Encontros etc.Lima, P. G. Caminhos da Universidade Rumo ao Século 21: estagnação ou dialética da cons-

trução. Trabalho apresentado no 7º Simpósio Anual de Estudantes do Cesulon (Centro de Estudos Superiores de Londrina, PR) de 25 a 20 de outubro de 1999.

8. Procedimentos para seleção dos trabalhos – Os trabalhos serão encaminhados, sem o nome de seu respectivo autor para serem avaliados por três especialistas da área, sendo necessários pelo menos dois pareceres favoráveis para a publicação do trabalho. Os nomes dos pareceristas serão mantidos em rigoroso sigilo.

9. Os originais não aceitos para publicação serão devolvidos ao(s) autor(es).

10. Trabalhos que não seguirem estritamente estas normas serão devolvidos ao(s) autor(es).

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