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FICHA DE LEITURA: MISSE, Michel. Sobre a acumulação social da violência no Rio de Janeiro. In: Civitas: Porto Alegre, V.8, n. 3, p. 371-385, set.-dez. 2008.
João Matheus Acosta Dallmann.
A acumulação social da violência é um fenômeno resultante de um processo histórico, cuja
duração pode ser delimitada dos anos 1950 aos dias atuais.
Michel Misse estuda esse fenômeno na cidade do Rio de Janeiro, porém o conceito pode ser
aplicado nas grandes cidades e capitais do Brasil.
Até meados dos anos 70, a academia não estudava o tema da violência. Existia um
pensamento, quase unânime, de que o país era pacífico, cordial. Nos anos 80 muitas famílias
ainda sentiam o peso da herança escrava.
Hoje sabemos, passados 30 e tantos anos, que havia muito de ilusão nessa auto-concepção que se tinha do país. Afinal, nela, nós recalcávamos, como se estivessem superados, séculos de escravidão, séculos daquela escravidão que permaneceu vigente como uma das últimas do mundo a ser abolida. (MISSE, 2008, p. 372)
Na segunda metade do século 19 a força de trabalho escrava é substituída pela imigração de
europeus. Já no curto período de 1950-70, o esvaziamento da zona rural caracteriza-se pela
movimentação demográfica em direção às grandes cidades, a população passa de rural à
urbana. Em apenas uma geração o país passa de agrário para urbano. Resultante desse
processo, é o inchaço dos já existentes bolsões de pobreza no conurbano das capitais, bem
como da ocupação irregular e crescimento de favelas.
Somente no final da ditadura de Getúlio Vargas (1945) e do pós-guerra é que são tomadas
iniciativas de integrar essa população marginalizada ao mundo urbano. Tal ação vem de
setores da igreja católica e políticos populistas. Essa iniciativa é interrompida pela ditadura
civil-militar (autor não usa esse termo) em 1964, que pôs fim ao populismo no Brasil.
O autor apresenta a tese e o problema de sua investigação dizendo que durante todos esse
tempo acumulamos violência.
Cordiais e violentos, conseguimos de algum modo conviver nessa antinomia, nosso atual dilema civilizatório.(p. 373)
Misse precisa delimitar o conceito polissêmico que é o termo “violência”. Sua preocupação
é em não cometer uma contra-violência ao objeto que pesquisa. Violência, nesse sentido,
não é uma categoria de acusação, é uma categoria analítica de distanciamento. “Fora da
violência”.
Deve-se evitar um contra-método, visto que todas as categoria postas e entrecruzadas pelo
tema da violência, podem ser palavras acusátorias. O autor lembra Étienne Balibar (MISSE
apud BALIBAR, 2008, p. 373):
o uso da violência é também performático, ele convoca sempre uma contra-violência e, portanto, participa do conflito que se quer investigar ou compreender.
Um 2º problema que ocorre ao autor, é que no Brasil nunca houve um monopólio total do
uso legítimo da violência, assevera que sempre restou uma incompletude na modernização
do país com efeito histórico tanto no Estado quanto na sociedade, que de alguma maneira é
parte dos efeitos da violência assistida hoje. Baseado em José Murilo de Carvalho (2005),
Misse escreve que o Brasil não trilha um caminho clássico (direitos civis, políticos e por fim
sociais), o país inverte essa lógica para um contrário (direitos sociais na era Vargas, direitos
políticos nos fôlegos de 45 e 1988 em diante com a conquista de direito sociais via
constituinte).
As formas de resolução dos problemas sociais, via Estado, podem ser exemplificadas pelo
“esquadrão da morte”. Tais problemas sociais (crimes) dos anos 50 eram as lesões
resultantes de brigas com armas de baixo calibre ou armas branca, crimes cometidos por
paixão, adultério, incentivo a prostituição, estelionato, entre outros.
ANOS 1950- ? → (MIGRAÇÕES + BOLSÕES DE POBREZA + ESQUADRÕES DA
MORTE) → ACUMULAÇÃO SOCIAL DA VIOLÊNCIA (primeiro a experiência do Rio de
Janeiro e depois grandes cidades)
Misse situa a violência urbana brasileira, no momento em que surgem os esquadrões no Rio.
Existe, portanto, um local/espaço e um período histórico. O Rio não era um “privilegiado”
mas era lá que estavam concentradas as redes de meios de comunicação do país, que através
da TV e do rádio difundiam uma ideia de Brasil.
A mudança lenta, porém gradativa do país desde o final do século 19, provoca sintomas
característicos nos brasileiros. Essa normalização provinda das imigrações, do sistema
educacional aplicado as camadas burguesas e médias e a repressão às classes subalternas,
cria uma sociedade tradicional baseada na internalização de valores, diferentes de uma
escolha racional de conduta. O Brasil é/era um país desigual, hierárquico, tradicional, mas
não havia uma demanda forte (popular) por igualdade, pressão por acesso a direitos nem
mesmo sensibilidade para a violência (não era tomada como um problema). (p. 376).
Ainda nos anos 50, ocorre uma mudança nas formas de crime. Frequentemente acontecem
assaltos a mão armada, roubos a postos de gasolina, bancos, residências, temos o “início” do
crime organizado com bicheiros e contrabandistas. A polícia da época decide criar o “Grupo
de diligências especiais”, comanda pelo ex-agente da ditadura Vargas, LeCocq, ficam
conhecidos por “Esquadrão motorizado-EM” e logo depois, com o sucesso de suas ações,
tornam-se o EM “Esquadrão da morte”.
O que acompanhamos é uma banalização da violência, a justiça feita com as próprias mão
por pessoas comuns que se inspiram nesses esquadrões que populam o país. Nem mesmo a
censura prévia do regime de 64 podia esconder as notícias dos assassinatos de suspeitos de
crime qualquer que tinham por epitáfio “bandido bom é bandido morto”.
A tortura de suspeitos de crimes é aplicada aos opositores políticos do regime e isso passa a
chamar a atenção das classes médias que vão nas eleições de 1974 e 78 fortalecer a oposição
e anunciar um possível fim da ditadura.
Paradoxo de uma abertura democrática, acompanhada de uma crescente vertiginosa da
violência.
Sendo a acumulação social da violência uma conjunção de fatores, é preciso isolá-los. Tarefa
nem sempre fácil, visto que é preciso ir além da norma do Estado, dado o laxismo presente
no cumprimento das leis brasileiras, do enviesamento da moral, da tradição e do corte de
classe. A delimitação/isolamento dos conceitos, é importante pois reúnem diferentes
contribuições teóricas.
São 4 momentos do processo de criminalização:
1. Criminalização tradicional;2. Crimes, processos efetivos de norma legal;3. Criminação;4. Incriminação;
O que resulta dessa análise é que existe uma “sujeição criminal”, oposta à incriminação
racional-legal. A incriminação se antecipa à criminação, o sujeito criminal é um sujeito
propenso ao crime, pois pertence a um tipo social estigmatizado. Portanto a incriminação
baseada no racional-legal
realiza a fusão plena do evento com seu autor, ainda que esse evento seja apenas potencial e que efetivamente não tenha se realizado. É todo um processo de subjetivação que segue seu curso nessa internalização do crime no sujeito que o suporta e que o carregará como a um “espírito” que lhe tomou o corpo e a alma. (MISSE, 2008, p.380)
Sobra para esse sujeito a conversão religiosa. Diferente do que pensava Hegel, nosso
“criminoso” já perdeu a liberdade antes de cometer qualquer crime, e ao cometê-lo procura a
liberdade no crime novamente e torna-se sujeito potencial do crime. O sujeito criminoso em
potencial tem sua prisão preventiva decretada, seu antecedente (pobre, preto, puta) é a prova
para declarar a suspeita.
Segundo Misse, todo esse processo é acompanhado por um espectador virtual, a pessoa de
bem. Esse defende a tortura no outro (pesquisa suvey), a lei não é para mim!
A acumulação social da violência é contínua. Baseia-se numa ideia de “outro” (sujeito
criminal), na insegurança, na naturalização das desigualdades. O uso da violência contra o
sujeito criminal corrobora com a certeza de impunidade (da policia) e com a corrupção no
seu sentido mais positivo, o do arrego, dar ao corrupto para não entregar ao Estado. Misse
fala de uma mercadoria política, no sentido amplo das relações sociais.
No final do artigo cita Agamben para dizer que a indiferença social ao sujeito criminal
(estigma da sociedade) é expressa em Homo Sacer pela frase: “que pode ser morto”. (p. 384)