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ISBN flS-7i4tD-mt-E 9ll798574ll601464ll BC COS 39 K96c KUP ciências BC ag 215516

Adam Kuper Parte 1

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Cultura

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ISBN flS-7i4tD-mt-E

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BCCOS

39K96cKUP

ciências

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215516

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Adam Kuper

Coordenação EditorialIrmã Jacinta Turolo Garcia

Assessoría AdministrativaIrmã Teresa Ana Sofiãtti

Coordenação da Coleção Ciências SociaisLuiz Eugênio Véscio

Culturaa visão dos antropólogos

T r a d u ç ã oMirtes Frange de Oliveira Pinheiros

caenoas sociais EDUSCEditora da Universidade do Sagrado Coração

Page 3: Adam Kuper Parte 1

00 S

EDUSCIa Universidade do Sagrado Coraçã<

K9678c

Kuper, Adam ,Cultura : a visão dos antropólogos / Adam

Kuper ; tradução Miites Fraiige; de Oliveira,.pinheiros. - Bauru/SP: EDUSC, 2002.

324 p. ; 21 cm. — (Coleção Ciências Sociais)

ISBN 85-7460-146-2Tradução de: Culture: the anthropologisfs

account.

1. Cultura. 2. Etnologia. 3. Civilização —Sociologia. I. Título. II. Série.

CDD. 306

ISBN 0^674-00.417-5 (original)

Copyright© Adam Kuper, 1999Copyright© (tradução) EDUSC, 2002

Tradução realizada a partir da edição de 1999Direitos exclusivos de publicação em língua portuguesa

para o Brasil adquiridos pelaEDITORA DA UNIVERSIDADE DO 'SAGRADO CORAÇÃO

Rua Irmã Arminda, 10-50CEP 17011-160 - Bauru - SP

Fone (14) 3235-7111 - Fax (14) 3235-7219e-mail: [email protected],br

para Jessica

Page 4: Adam Kuper Parte 1

l. sumario

9 Prefácio à edição brasileira

11 Prefácio

21 Introdução: guerras culturais

Parte 1. Genealogias

45 Capítulo 1. Cultura e civilização: intelectuais franceses,

alemães e ingleses, 1930-1958

73 Capítulo 2. A visão cias ciências sociaisfTalcott

Parsons e os antropólogos americanos

Parte 2. Experimentos

lOjv Capítulo 3. Clifford Géertz: cultura como religião e

como grande ópera

101 Capítulo 4. David Schneíder: biologia como cultura

207 Capítulo 5. Marshall Sahlins: história como cultura

259 ( Capítulo 6. Admirável mundo novo

287 Capítulo 7. Cultura, diferença, identidade

Leituras adicionais

317 Agradecimentos

319 índice onomástico

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l prefácio à edição brasileira

E,/m agosto cie 1999, pouco antes da publicação inicialcie Cultura., eu era professor convidado no Museu Nacionalcio Rio de Janeiro, oncle conduzi uma série cie seminários quesintetizavam, o assunto cio livro. As discussões foram umarevelação para mim.'Não é demais dizer que me sentia emcasa, tanto nas mas dó Rio quanto no anfiteatro cie conférên.-.cias. Os jovens brasileiros com os quais dialogava obviamenteentendiam muito, bem o quex eu tinha em mente. Meuprimeiro envolvimento com as questões cie identidade epolítica cultural se deu na década de 1950,, quando era estu-dante universitário na África do Sul. No Brasil, no final doséculo 20, jovens antropólogos intetessavam-se por questõesmuito similares, com a mesma intensidade. Tanto no Brasilcomo na África do Sul, a definição de cultura e a importânciadada às causas culturais não eram apenas questões acadêmi-cas abstratas, mas problemas com conseqüências políticas esociais imediatas. Essas questões estavam no âmago cios de-bates nacionais sobre raça, sobre o caráter e o.destino dos"povos indígenas", sobre as causas cia pobreza.

No Brasil, como tem muitos outros países, por vezes pare-cia que a idéia de cultura havia substituído a idéia cie raça no

discurso popular, mas falar de cultura freqüentemente eqüiva-lia a falar de raça, oferecendo uma razão para crer que asrelações econômicas, políticas e sociais eram determinadaspela natureza interior dos diferentes grupos na: sociedade.Para entendermos as implicações desse, tipo de pensamentobasta considerarmos alguns dos fatores que ele. rejeita: as con-seqüências das, políticas econômicas, o poder modeíador dapolíticajnternacional, a política dos grupos de interesse. Umaantropologia que se define como o estudo da cultura despre-zará fatores sociais, políticos, econômicos e também biológi-

! cos. Idéias e valores serão vistos como as causas cio compor-tamento — cio crime, das práticas trabalhistas, cias práticas edu-

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prefácio à edição brasileira

cacionais — e não como as conseqüências de outros fatores,tais como a prosperidade e a pfobreza relativas, as oportu-nidades de emprego, a exclusão cios processos políticos, a cor-rupção e assim por diante.

A primeira parte deste livro explora as genealogias inte-lectuais das diferentes noções de cultura. A segunda "parteexamina as quase sempre criativas e críticas aplicações deuma noção particular cie .cultura na antropologia cultural nosEstados Unidos durante a segunda metade cio século 20. Estaparte do livro denomina-se Experimentos, pois os maioresexpoentes da antropologia cultural moderna estavam na ver-dade testando o valor do conceito de cultura para a com-preensão do comportamento humano. Finalinente, discuto asversões mais recentes do determinismo cultural em antropolo-gia e levanto questões sobre o que poderia acontecer se fôsse-mos tentados à-adotar uma teoria cia história radicalmente ide-,'alista e relativista.

Escrevo este Prefácio uma semana após os ataques ter-roristas nas cidades de Nova York e Washington. As .reaçõesimediatas ciavam conta cie que o acontecido provava a tese deSamuel Huntington cie que os conflitos do século 21 seriamconflitos culturais e cjue as novas guerras seriam guerras entrecivilizações. Há um fatalismo trágico neste tipo de visão, assimcomo havia na idéia muito parecida, no início cio século 20,de que raça era destino, e que a$ grandes guerras por vir seri-am guerras entre raças. Até certo ponto, uma profecia dessetipo poderá, se concretizar. Vale a pena refletir muito sobre asteorias e a própria idéia cie cultura que fundamentam essamaneira de "pensar.

-Londres, 17 de setembro de 2001

Tradução cie Valéria Biondo

lio

(prefácio

JL álo neste livro sobre certa "tradição moderna dentrodo antigo discurso internacional em constante transformaçãoSobre cultura. Já em 1917, Robert Lowie declarou que cultura"é, na verdade, o único assunto da etnologia, assim como aconsciência é o assunto cia psicologia, a vida é o assunto clãbiologia e a eletricidade é um ramo cia física".' Palavras arre-batadoras. Boa parte dos catedráticos alemães, por exemplo,descreveu seu campo como ciência cultural, mas não comoetnologia. Os discípulos cie Mathew Arnold perguntaram seera possível encontrar qualquer cultura, que fizesse jus aonome além das fronteiras das grandes civilizações. É alguns-antropólogos contestaram, dizendo que o verdadeiro tema da_süà disciplina era a evolução hivmana.-JVías. Lowie falou emnome cie uma escola de antropologia cultural norte-america-na recém-criacla que decidiu desafiar as idéias comumehte'aceitas, Suas afirmações seriam, levadas mais a sério uma ge-ração mais tarde.' Depois da Segunda Guerra Mundial, as Ciên-cias sociais gozaram de um período de prosperidade e prestí-gio sem precedentes nos Estados Unidos. As várias disciplinasficaram mais especializadas e a antropologia cultural recebeuuma licença especial para atuar no campo cia cultura.

Os resultados foram bastante satisfatórios; pelo menos aprincípio, para os antropólogos. Stuart Chase comentou, em1948, que o "conceito cie cultura dos antropólogos e sociólo-gos está sendo considerado o alicerce das ciências sociais".2

Em 195t2,"a opinião respeitada cios maiores expoentes da an-tropologia norte-americana cia época, Alfred Kroeber e ClycleKluckhohn, era de que "a idéia -de cultura, no sentido antro-

1. LOWIE, Robert II. Culliíre and Ethnology. Nova York: McMur-trie, 1917. p. 5,

,2. CHASE, Saiait. TíyeProper Study ofMankind. Nova York: Harper,194S. p. 59.

H l

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prefácio prefácio

polõgico técnico, constitui, uma das principais noções do pen-samento americano contemporâneo".3 E eles estavam confian-tes cie que no "sentido antropológico técnico", cultura era umconceito de promessa científica cie grande vulto, "quase ilimi-tado. "Em importância explicativa e generalidade de aplicaçãoé comparável á categorias como a gravidade na, física, a doen-ça na medicina e a,evolução na biologia."

Hoje em dia as coisas estão muito diferentes. Poucos an-tropólogos afirmariam que a noção de cultura pode ser com-parada "em importância explicativa" com gravidade, doençaou evolução. Embora ainda se considerem especialistas no es-tudo cia cultura, eles precisam aceitar a idéia de quê não go-zam mais de uma posição privilegiada na galeria condensadae diversa cie autoridades em cultura. Além disso, -a natureza cla.área que eles reivindicam-sofreu uma mudança radical. Demodo geral, eles transferiram sua fidelidade intelectual dasciências sociais para as ciências humanas, e estão propensosa fazer uma interpretação prática, até mesmo uma desconstru-ção, e não uma análise sociológica ou -psicológica. Não obs-tante, ,os antropólogos modernos norte-americanos vêm siste-maciçamente aplicando as teorias culturais em uma grande va-riedade de estudos etnográficos, e creio que seus experimen-tos representam o mais intrigante e satisfatório teste do valor- e talvez da validade - das teorias culturais. O objetivo pri-mordial deste livro, por conseguinte, consiste em fazer uma

^avaliação do projeto-.central da -antropologia cultural norte-americana cio pós-guerra.

Cheguei à conclusão de que~quanto"mais se analisam osmelhores trabalhos modernos cios antropólogos sobre cultura,mais aconselhável se torna abandonar cie vez a palavra hiper-

:_ referencial e passar a falar de forma mais precisa sobre conhe-cimento, convicção, arte, tecnologia, tradição ou até mesmoideologia (embora problemas semelhantes sejam levantadospor esses conceitos polivalentes). Existem problemas episte-mológicos fundamentais, e não vai ser tergiversando, sobre

3. KROEBER, A. L.; KLUCKHOHN, Clyde. 'Çulture: A Criticai Re-view of Concepts and Definitions. Cambridge, Mass.: Trabalhos cioPeabody Musèüm, 1952, p. 3. -'.-

cultura ou apurando definições que esses problemas serão re-solvidos. As dificuldades tornam-se maiores quando (.depoiscie todos os protestos em contrário) a cultura deixa cie ser algoa ser descrito, interpretado ou talvez até mesmo explicadopara ser tratada como uma fonte de explicação propriamentedita. Não quero GO m isso negar que alguma forma de explica-ção cultural possa ser bastante útil, em seu devido lugar, masapelos à cultura.só podem oferecer uma explicação parcial doque leva as pessoas a pensarem e a agirem de determinadaforma e cio que faz com que elas.mudem seu jeito cie ser. For-ças políticas e econômicas, instituições sociais e processosbiológicos não desaparecem como num passe de mágica ape-nas porque esse é o nosso desejo, nem podem ser assimila-dos em sistemas de conhecimentos e crenças. E esse, eu diria,constitui o principal empecilho no caminho da teoria.cultural,certamente em vista de suas pretensões atuais. -

Espero que os capítulos independentes deste livro pos-sam corroborar essas conclusões, persuadir o leitor de visão esemear dúvidas na mente dos mais crédulos. Entretanto, po-der-se-ia alegar que, antes cie iniciar esse projeto, eu tinha pre-conceitos contra a maior parte cias teorias sobre cultura. Soumembro integrante cia facção européia de antropologia quesempre teve muita cautela em reivindicar cultura como seutema exclusivo, ê mais, ainda de lhe conferir poder de explica-ção. Sem dúvida alguma, meu ceticismo inicial foi acentuadopor minhas visões políticas: sou. liberal, no sentido.europeu e.não americano, um homem moderado, um humanista sem ex-tremos; .mas apesar de ser bastante sensato, não posso dizerque estou livre de preconceitos. Um materialista moderado ecom convicções brandas sobre direitos humanos universais,sou refratário ao idealismo,e ao relativismo cia teoria culturalmoderna e não tenho muita simpatia pelos movimentos sociaisfundamentados em nacionalismo, identidade étnica ou reli-gião, exatamente os movimentos que exibem maior tendênciade invocar a cultura para motivar ação política.

Pouco antes cie começar a escrever este livro, tomei cons-ciência cie. que essas dúvidas teóricas e preocupações políticasestavam profundamente enraizadas em minha própria condi-ção cie sul-africano liberal. No estágio inicial cia recente trans-

12'

;13!

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prefácio

formação por que passou a África cio Sul, depois da eleição cieF. W, De Klerk para á presidência mas antes da libertação cieNelson Mandela da prisão, um momento imbuído de grandespossibilidades históricas, recebi uma carta de um eminente an-tropólogo americano. Ele havia siclo convidado a proferir umapalestra sobre liberdade acadêmica na Universidade da Cidadecio Cabo. Naturalmente, ele se perguntava de que maneira umantropólogo poderia contribuir para os seríssimos debates so^bre raça, cultura e história que arrebatavam a África cio Sul, eme pedia para lhe fornecer alguns subsídios sobre as discus-sões travadas nos círculos antropológicos locais.:Eu lhe envieijrevisòes dos principais argumentos cia antropologia culturalafricânder, e ele me escreveu novamente agradecendo. Ele es-capou por pouco de cometer uma grave impropriedacle, poisseu primeiro impulso tinha sido dedicar a palestra a um dis-curso boasiano clássico sobre cultura. Provavelmente ele teriaafirmado que raça e cultura eram independentes entre si, ,queera a cultura que tornava"as pessoas o que elas, eram e que.orespeito .pelas diferenças culturais deveria constituir a base cieuma sociedade justa. Um argumento edificante nos EstadosUnidos, mas que na África cio Sul teria soado como uma justi-ficativa desesperada para o apartheicl.

Esse paradoxo estava profundamente entranhaclo em mi-nha consciência e, sem dúvida, constituiu um dos motivospara a elaboração deste livro. Eu estava cursando a faculdadena África do Sul no final década cie f 950. Naquela época, umsistema africânder radical segurava firmemente as rédeas dopaís, e sua política coercitiva de segregação racial, o apar-theicl, estava sendo implementada com um tipo cie sadismo'moralizante. O governo parecia ser praticamente invulnerávele impérvio a críticas. Os movimentos de oposição africanaeram brutalmente reprimidos. E, no entanto, havia um campoem que aparentemente 'algumás"das convicções mais sagradasdesgoverno podiam ser expostas por argumentos sensatos eevidências irrefutáveis. .Embora muitas vezes estivessem en-voltas na linguagem da teologia, _as doutrinas oficiais sobreraça e cultura invocavam autoridade científica; o apartheicl es-tava fundamentado numa teoria antropológica. Não era poracaso que seu arquiteto intelectual,-W. W. M. Eiselen, tinhasido professor cie etnologia. L

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prefácio

Os nacionalistas africânderes suspeitavam da "missão ci-vilizaclora" proclamada, com boa ou má fé, pelos poderes co-loniais na África.4 Alguns acreditavam que os africanos não.podiam ser socializados, e que até mesmo uma tentativa nes-se sentido era contraproducente; ou, na melhor cias hipóteses,que levaria séculos para alcançar tal objetivo, e talvez apenasa um grande custo humano. Esse tipo cie argumento, em ge-ral, é motivado por um racismo torpe, e o pensamento racis-ta certamente era disseminado entre os brancos sul-africanos.Entretanto, alguns intelectuais africânderes, entre eles Eiselen,repudiavam os preconceitos populares. Não havia provas-cieque, a inteligência variava com a raça, afirmou Eiselen numapalestra em 1929, tampouco que uma raça ou nação privile-giada deveria conduzir o mundo para todo o sempre na civi-lização. Não era a raça, mas sim a cultura que constituía a ver-"cladeira base da diferença, o sinal do destino. E as diferençasculturais deveriam ser avaliadas. A troca cultural, até mesmoo progresso, não era necessariamente uma dádiva.-Seu custopodia ser demasiadamente alto. Se a integridade cias culturastradicionais fosse minada, haveria uma desintegração social.Eiselen achava que o governo deveria estimular uma "culturabanto mais elevada, e não produzir europeus negros". Maistarde, o slogan "desenvolvimento separado" passou a ser usa-do. A segregação era o curso adequado ^para a África cio Sul,pois só assim as diferenças culturais seriam preservadas.

A escola cie etnologia do apartheicl citava os antropólo-^gos culturais , norte-americanos com aprovação, embora emgrande parte em seus próprios termos; mas seus líderes eram'radicalmente contrários as teorias cia escola britânica de antro-pologia social, sobretudo às teorias cie A. R. Raclcliffe-Brown;primeiro a ocupar a cadeira cie antropologia social na África doSul, em Í921. Radcliffe-Brown, obviamente, não negava que

4. Para uma revisão da etnologia africânder e da carreira de Eise-len, ver GORDON, Robert. Apartheid's Anthropologist: The Gè-nealogy of Afrikaner Anthropology. American Ethnologist, v. 13,n. 3, p. 535-53, 1988, e para um relato mais geral sobre a antro-pologia sul-africana, ver HAMMOND-TOOKE, W; D. Imperfect tn-terpreters: South Africa's Anthropologists 1920-1990. Joanesburgo:Witwatersrand University Press1, 1997.

151

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prefácio

existiam diferenças culturais no país, mas rejeitava a política desegregação com base no argumento cie que a, África do. Sultransformara-se numa sociedade única. As instituições nacio-nais cruzavam as fronteiras culturais -e moldavam opções cievicia em todas, as aldeias e cidades no país. Todos os cidadãos(ou indivíduos) estavam no mesmo;barco. As, políticas de baseacerca de diferenças culturais representavam uma 'receita parao desastre. "A segregação é insuportável", afirmou ele à platéiaem uma de suas palestras. "O nacionalismo sul-africano tem cieser um nacionalismo composto poí pretos e brancos."

Em parte como resultado cia sua experiência sul-africa-.na, Radcliffe-Brown,, mais tarde, tinha a tendência cie tratartodos os assuntos ligados à cultura com reservas! "Não obser-vamos uma 'cultura'", comentou ele em seu discurso de pos-se como presidente cio Royal Antllrópological Institute, em

- 1940, "uma vez que essa palavra denota, não uma realidadeconcreta, mas uma abstração, e da forma com é usada comu-"mente, uma abstração vaga".5 Ele repudiava a opinião do seugrande rival, Bronislaw Malinowski, de que uma sociedadecomo a África cio Sul deveria ser estudada como uma arenaem que duas ou mais "culturas" interagiam. "Pois o que estáocorrendo na África cio Sul [explicou Radcliffe-Brown] não éa interação das culturas britânica, africânder (ou bôer), hoten-to'te, banto e, indiana, mas sim a interação cie indivíduos egrupos dentro cie uma estrutura social estabelecida que está.em processo cie mudança. O que está acontecendo numa tri-bo em Transkei, pôr exemplo, só pode ser descrito reconhe-cendo-se que a tribo foi incorporada num amplo sistema es-truturar político e econômico."6

Vindo da África do Sul, sem dúvida alguma eu estavapredisposto a aceitar esse tipo de argumento. Além do mais,quaisquer preconceitos iniciais que e-ú tivesse foram reforça-dos no meu curso de pós-graduação em antropologia estrütu^-ral e social na Universidade de Cambridge no início da déca-da, cie 196o. Todavia, alguns cios meus contemporâneos real-

.5. RADCLIFFE-BROWN, A. R. Ün Social Structure. Journal of the,Rayal Anthropological Institute, v. 70, p. 1-12, 1940.6. Icl., ibid.

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prefácio

mente se libertaram desse condicionamento inicial e'abraça-ram a escola cultural. Meu ceticismo sobre cultura era maisforte, em parte por ter ficado, tão impressionado com o abusoda teoria cultural na África do Sul. Mas não é de todo ruimabordar uma teoria profundamente arraigada com uma postu-ra cética. Ademais, as inclinações políticas não impedem, ne-cessariamente, alguém de avaliar os pontos fortes e fracos cios-contra-argumentos. Além disso, as teorias culturais geralmen-te trazem em seu bojo uma carga política, justificando unia crí-tica política. Mas embora minha experiência sul-africana tenhainfluenciado minhas indagações acerca da teoria cultural, es-pero que isso não determine as conclusões a que cheguei.Qualquer que seja o preconceito que eu tenha trazido paraesse projeto, fiz o melhor que pude para respeitar tanto os ar-gumentos como as evidências. ,

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Page 10: Adam Kuper Parte 1

Provavelmente, isso é tudo o que se pode pedir da his-tória, sobretudo da história de idéias: não solucionar asquestões, mas sim elevar o nível cio debate.

Albert O. Hirschman

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(introdução:(guerras culturais

Não sei -quantas vezes desejei nunca ter ouvido a malditapalavra.'

Raymond Williams

acadêmicos americanos estão travando-guerrasculturais. (Nem todas estão moitas). Os políticos conclamamuma revolução cultural. Aparentemente, é necessário .que haja ,uma mudança cultural sísmica para.resolver os problemas ciepobreza, consumo cie drogas, crime, ilegitimidade e competi-ção industrial. Fala-se sobre diferenças culturais entre sexos e-gerações, entre equipes de futebol ou entre agências cie pro-paganda. Quando uma fusão entre duas empresas não dá cer-to, dizem que suas culturas não eram compatíveis.:O bom-cietudo isso é cjue todo mundo entende. "Tentamos vender 'se-miótica', mas tivemos algumas dificuldades", declarou umaempresa londrina chamada Semiotic Solutions, "por isso agoravendemos 'cultura'. Essa todos conhecem e, portanto, dispen-sa explicações".2 Além disso, não há como subestimar a cultu-ra. "Ela fala- mais alto em termos de motivação cio comporta-mento do consumidor", afirma o folheto cia empresa, "é maispersuasiva do que a razão, mais 'massa' do que a psicologia"!Existe também um mercado secundário florescente no discur-so cultural. Em meados de 1990, as livrarias montaram seções-de "estudos culturais" em posições de destaque que anteseram,dedicadas à religião New Age e, antes disso, áps livros deauto-ajuda. O gerente da Olsson's em Washington, D. C., Guy

1. WILLIAMS, Raymond. Polüics and Letlers. Londres: New LeftBooks, 1979. p. 174T2. MACFARQUAHAR, Larissa. This Semiotieian Went to Market. Lín-gua Franca, p. 62, set./out. 1994.

21

Page 12: Adam Kuper Parte 1

. Introdução

Brussat, explicou: "As pessoas vêem sociologia e pensam: tex-to acadêmico árido. Elas vêem estudos culturais e pensam: Ah,cultura! Trata-se cie uma abordagem .psicológica sutil."1

Todo inundo está envolvido com cultura atualmente.Para os antropólogos, esse já foi um termo ligado às artes.Hoje, os nativos falam de suas culturas. "Cultura - a própriapalavra, ou algum equivalente local - está na boca cie todos",observou Marshall Sahlins.4 "Tíbetanos, havaianos, esquimós,cazaques, mongóis, aborígenes australianos, balineses, caxe-rriirenses, Ojibway, Kwakiutl e Maori neozelandeses: todosdescobrem cfue -têm uma 'cultura'." Os índios Caiapó que vi-vem na floresta tropical da América do Sul usam o termo cul-tura para descrever suas cerimônias tradicionais. Maurice Go-delier descreve um trabalhador emigrante que retorna para oseu povo na Nova Guiné, os Baruya, proclamando: "Precisa-mos fortalecer nossos costumes; precisámos nos basear naqui-lo que os brancos chamam de cultura." Outro habitante daNova Guiné diz a, um antropólogo: "Se não tivéssemos kas-tom, seríamos exatamente como os homens brancos." Sahlinsmenciona toclos esses exemplos para ilustrar uma proposiçãogeral: "A consciência cultural que se desenvolveu entre ás an-tigas vítimas cio imperialismo, no final do século 20, constituium dos fenômenos mais notáveis cia história mundial."

Essas vítimas podem até mesmo desenvolver uma cultu-ra crítica. Gerd Baumann mostrou que em Southall, subúrbiomultiétnico situado a oeste de Londres, em primeiro lugar aspessoas "questionam o significado dos termos 'cultura' e 'co-munidade'. Qs termos, por si só, tornam-se fundamentais paraa formação de uma cultura em Southall".5 Todavia, até mesmoos nacionalistas antiocidente podem simplesmente se apro-priar da retórica internacional dominante de cultura para afir-mar á identidade singular do seu próprio povo, sem medo dese contradizerem. "Achamos que a maior ameaça à nossa so-

3. MARSHALL, Jessica. .Shelf Life. Franca, p. 27, mar./abr. 1995.4. SAHLINS, Marshall. Goodby to Tristes Tropes: Ethnography in theContext of Moclern World Histoiy. Journal of Modem Histoiy, v. 65,p. 3-4, 1993.5. BAUMANN, Gerd, Contesting Culture: Discourses of Identity inMulti-Ethnic London. Cambridge: Cambridge University Press,1996T p. 145.

122

Introdução

ciedade atualmente", cliz um político iraniano fundamentalista,"é cultural".".(Mas certamente falar sobre identidade cultural émuito... americano?) Akio Morita, um cios fundadores da Sony,rebate as alegações cie que o Japão deveria, liberalizar seusacordos de,comércio para permitir uma maior competição cieempresas estrangeiras. "Reciprocidade", explica ele, "significa-ria alterar as leis para aceitar sistemas estrangeiros que podemnão ser adequados à nossa cultura".7 (Felizmente, vender tele-visores Sony para os-américanos e fazer filmes hollywoodiafiosestá perfeitamente de acordo com a cultura japonesa,) _

Talvez o futuro cie todo o mundo dependa cia cultura.Em 1993, Samuel Huntington anunciou num artigo apocalíp-tico para a revista norte-americana Foreign Affairs que a his-tória global iniciou uma nova fase, em que "as principais fon-tes cie conflito" não serão fundamentalmente econômicas ouideológicas. "As grandes divisões entre a humanidade e asprincipais fontes de conflito serão culturais."8 Ao discorrer so-bre essa tese recentemente num livro, ele afirmou que pode-mos esperar um gigantesco choque cíe civilizações, cada qualrepresentando uma identidade cultural primordial. As "princi-pais diferenças no desenvolvimento político e econômico en-tre as civilizações estão claramente enraizadas em suas cultu-ras distintas", e "a cultura e as identidades culturais... estãomoldando os padrões de coesão, desintegração:e conflito nomundo pós-Guerra Fria,.. Nesse novo mundo, a política, lo

• cal é a política da etnicidade; a política global é a política decivilizações, A rivalidade cias superpotências é substituídapelo choque de civilizações".9 , .

6. International H, p. 5, 1996. __7. Apud BURÚMA, lan, The Mtssionary and the Libertina Lovè andWar in East anel West. Londres: Faber, 1996. p, 235.8. HUNTINGTON, Samuel P. Foreign Affairs, p. 22, verão 1993-9. Id. The Clash of Ciinlization and the Remaking of World Or-der. Nova York: Simon and Schuster, 1996. p, 29- As observaçõesseguintes são das páginas 20 e 28. Observe-que o ensaio originalfazia a pergunta ("as principais fontes de conflito"). Agora, apa-rentemente, a pergunta foi respondida, de forma afirmativa.

231

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IntroduçãoIntrodução

Não é preciso dizer que cultura tem um significado bas-tante diferente para os pesquisadores de mercado em Lon-'dres, para um magnata japonês, para os habitantes da NovaGuiné e para um religioso radical de Teerã, sem falar em Sa-muel Huntington. Há, entretanto, .uma semelhança familiar

'. entre os conceitos que eles têm em mente" Em seu sentidomais amplo, cultura-é simplesmente uma forma de falar so-bre identidades coletivas. Porém, o status também está emjogo. Muitas pessoas, acreditam que, as culturas podem sercomparadas, e tendem a prezar mais a sua própria cultura.Elas-podem, até mesmo, acreditar que exista apenas uma ci-vilização verdadeira, e que o futuro não. apenas cia nação,mas do mundo, depende da sobrevivência da sua.cultura. "Adespeito dos multiculturalistas", insiste Roger Kimball, "a op-ção atualmente não é-entre uma cultura ocidentar'repressiva'e um paraíso multicultural, mas sim entre cultura e barbaris-mo. Civilização não é uma dádiva, mas sim uma conquista -uma conquista frágil que precisa ser constantemente reafir-mada e defendida interna e externamente contra sitiadores".10

Huntington diz-que o conflito de civilizações pós-Guerra Fria .não passa de um estágio no caminho da luta maior que estápor vir, "o conflito maior, o 'verdadeiro conflito' global, entreCivilização e barbarismo".11

Enquanto os patriotas da Civilização ocidental reivindi-cam a superioridade da grande tradição, os multiculturalistascomemoram a diversidade cia América e defendem a cultura-cios marginalizados, das minorias, cios dissidentes e cios colo-nizados. A cultura do establishment é denunciada comoopressiva. A&_culturas das minorias fortalecem os fracos: elassão autênticas; elas falam para pessoas cie verdade; elas man-têm variedade e escolha; elas alimentam a dissensão. Todas asculturas são iguais, ou deveriam ser tratadas como "tal. "Por-.-tanto, a cultura como tema ou tópico cie estudo substituiu asociedade como objeto geral de indagação entre os progres-

W. KIMBALL, Roger. Tenured Radicais, New Criterío.n, p.. 13, jan.1991. '•'(-•'•11. HUNTINGTON, Samuel P. op. cit. p. 321.

sistas", escreve Erecl Inglis, com um leve toque de ironia.12 Masembora os conservadores rejeitem esses argumentos, eles con-cordam que a cultura estabelece padrões públicos e determi-na o destino cia nação. E quando pessoas de nações e gruposétnicos distintos entram em contato, há um confronto total cieculturas. Alguém deve-ceder nesse conflito.

A cultura também é usada freqüentemente com outrosentido, para se referir à grande arte que é apreciada por pou-cos afortunados. Mas não se trata simplesmente cie uma reali-zação pessoal. Se a arte e a erudição forem ameaçadas, o bem-estar cie toda a nação estará em jogo. Para Matthew Arnold, averdadeira luta cie classes não era travada .entre ricos e pobres,mas sim entre os guardiões da cultura e as pessoas,a quem elechamava de filisteus, que serviam a Mamon. Escritores radicais,contudo, negam que a cultura da elite dissemina doçura ejuz.A alta cultura pode representar um instrurnento de dominação,um ardil cias castas. Em meio à elite, argumentou Pierre Bõur-dieu, o valor das altas culturas reside precisamente no fato cie'que a capacidade de avaliar obras de arte e fazer distinçõespor si só confere "distinção".13 A cultura é õ dom do gosto re-finado que diferencia unia clama ou um cavalheiro do'novo-rico. Para os adeptos da tradição marxista., a cultura tem seulugar numa luta de classes mais ampla. A alta cultura disfarçaas extorsões dos ricos. A cultura de massa de Ersatz confundeos'pobres. Apenas as tradições culturais populares podem'con-trapor-se à corrupção cia mídia de massa.,

Embora haja muita conversa em torno de cultura, discus-sões desse tipo obviamente não são novas. Todas elas aflora-ram durante uma explosão semelhante cie teorização cultural.que ocorreu entre as.décadas cie 1920 e de 1950, como mostrao próximo capítulo. (Talvez essa longa discussão apenas tenhasido interrompida.durante uma geração em virtude cljjs preocu-pações ideológicas cia Guerra Fria). Naquela época, assim comoagora, os autores mais reflexivos citavam seus precursores ciosséculos 18 e 19, reconhecendo que os discursos sobre culturatendem a se encaixar em categorias bem definidas.-

12. INGLIS, Frecl. Cultural'Studies. Oxford: Blackwell, 1993. p. 109.13. BOURDIEU, Pierre. Distinction: A Social Critique of the Judge-ment of Taste. Londres: Routledge, 1984.

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Introdução Introdução

Uma teoria francesa de cultura, uma alemã e uma Ingle-sa muitas vezes são identificadas cie forma vaga.- Da mesmaforma, e igualmente vaga, podem-se distinguir discursos ro-mânticos, clássicos e ilúministas. Tratam-se de rótulos toscospara constructos complexos que são regularmente separadose reagrupados em novos padrões, ^ adaptados, declaradosmortos, revividos, renomeados, remodelados e, em geral, su-jeitos a uma variedade de transformações estruturais. No en-tanto, apesar de grosseira, essa. classificação fornece umaorientação inicial. Até mesmo os pensadores mais imaginati- ,vos e originais podem encaixar-se em uma ou outra dessastradições centrais, cada uma delas especificando uma con-

; cepção de cultura e colocando-a em .ação dentro cie uma de-terminada teoria da história.

Na: tradição francesa, a civilização ê representada como« uma conquista progressiva, cumulativa e. distintamente, huma-

na. Os seres humanos são semelhantes, pelo menos em po-tencial. Todos-são capazes de criar uma civilização, o que de-pende do dom exclusivamente humano da razão. Não restadúvida, de que a civilização se desenvolveu mais na França,

-mas .em princípio ela pode ser usufruída, embora talvez nãocom a mesma intensidade, por selvagens, bárbaros e outrospovos europeus. Segundo Louis Dürripnt, um francês, portan- :íõ, vai "identificar inocentemente sua própria cultura com 'ci-vilisation' ou cultura universal"." Para ser exato, um francês

"reflexivo admitiria prontamente que a razão nem sempre pre-valece,' ela precisa lutar contra a tradição, a superstição e oinstinto irracional. Mas ele poderia ficar confiante na vitória;suprema dá civilização, pois ela pode convocar a ciência paravir-em seu auxílio: a. mais alta expressão da razão e, certamen-te, da cultura ou civilização, o conhecimento verdadeiro e efi-caz das leis que informam a natureza e a sociedade.

Esse credo secular foi formulado na França na segundametade do século 18, em, oposição ao que os phtiosophes con-sideravam como forças cie reação e irracionalidade, represen-tadas, acima cie tudo, pela igreja católica e pelo ancien regime. '

A medida que esse creçlo se espalhou pelo resto da Europa,sua maior oposição ideológica veio cios intelectuais alemães,amiúde ministros protestantes incitados a defender a tradiçãonacional contra a civilização cosmopolita; os valores espirituaiscontra o materialismo; as artes e os trabalhos manuais contra a

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ciência e a tecnologia; a genialidade .individual .e a expressãodas próprias idéias contra a burocracia asfixiante; as emoções,até mesmo as forças mais obscuras.do nosso íntimo contra arazão árida: em suma, Kultur contra Civilização:

Ao contrário cio conhecimento científico, a sabedoriada cultura é subjetiva. Suas reflexões mais profundas são re-lativas, e não leis universais. O que é válido em vim lado dosPireneus põcle representar um erro do outro lado. Mas quan-do a fé cultural é corroída, a vida perde todo o seu signifi-cado. Enquanto a civilização material está ganhando terrenoem toda a sociedade européia, as nações lutam para manteruma cultura espiritual, expressada acima cie tudo por inter-médio cia linguagem e das artes. A autêntica Kultur dos ale-mães certamente seria preferível à Civilização artificial deuma elite francófona cosmopolita e materialista. De qualquer

,forma, diferença cultural era normal. Não existe uma nature-za humana comum. "Tenho visto franceses, italianos, rus-sos", escreveu o contra-reyolucionário, francês de Maistre."Mas quanto ao homem', declaro que jamais o conheci; se eleexiste, desconheço."15 (Pode ser que Henry James tivesseesse aforismo em mente quando escreveu: "O homem não éum só - afinal, o americano tem características muito dife-rentes do francês, e assim por diante."16)

Essas duas correntes de pensamento sobre cultura se de-senvolveram em oposição dialética uma ã outra. Um tema im-portante dos pensadores iíuministas era o progresso cio serhumano,.ao passo que seus oponentes estavam interessadosno destino específico de uma nação. Na visão do Iluminismo,a civilização travava uma grande luta para vencer a resistên-cia cias culturas tradicionais,.com suas superstições", seus pre-

14. DUMONT, Louis. German Ideoldgy: From France to Germanyand Back. Chicago: University ôf Chicago Press, 1994. p. 3"'

15. MAISTREj Joseph de. Considerations on France. Cambrictge:Cambridge University Press, 1994 (publicação francesa, 1797). p. 53.16. Heniy James, carta a William Dean Howells, i de maio de 1890.

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Introdução

conceitos irracionais e suas lealclades temerosas a governan-tes sarcásticos. (Diderot disse que só descansaria em pazquando o último rei fosse estrangulado com as entranhas cioúltimo sacerdote.) Da parte cio contra-Iluminismo, a definiçãocie inimigo era civilização, racional, científica e uniyersal: opróprio Iluminismo. Associada a valores qiateriais, ao capita-lismo e muitas vezes à política externa e à influência econô-mica, essa civilização ameaçava a cultura autêntica e conde-nava artes seculares à obsolescência. O cosmopoli.tanismocorrompia a linguagem. O racionalismo perturbava a fé reli-giosa. Juntos, eles corroíam os valores espirituais dos quaisdependia a comunidade orgânica.

Essas ideologias contrastantes poderiam alimentar a retó-rica nacionalista e suscitar emoções populares em épocas, deguerra, mas até mesmo em sua faceta mais virulenta, elas nun-ca foram meramente discursos nacionais. Alguns intelectuaisfranceses simpatizavam com o contra-Iluminismo apenas por-que ele saía em defesa da religião contra a insicliosa subver-são cia razão. Depois da batalha de Seclan, em 1870 (vencida,assim disseram, pelos professores da Prússia), a idéia de umacultura naciqnah penetrou numa França humilhada, e "Ia cul-ture Française" foi cada"vez mais contrastada com "Ia cultureallemancle", embora sem necessariamente comprometer asreivindicações francesas de superioridade. (Ainda em 1938, oDicionário Quillet observou que o termo cultura podia serusado cie forma irônica, como na frase "Ia culture allemancle".)_.Na Alemanha, havia uma antiga tradição do pensamento ilu-minista que jamais submergiu completamente, embora algu-mas vezes assumisse formas estranhas, quase irreconhecíveis.Nietzche condenava seus compatriotas por sua caótica Bil-dung, ou formação cultural, corrompida por -empréstimos emoda, que ele contrastava com a Kultur orgânica da França,que, por sua vez, equiparava com a própria Civilização. Eleoptava' pela civilização — em outras palavras, pela França:,"berço da mais refinada e espiritual cultura européia".17 Umdissidente francês como Baudelaire, por outro lado, podia

17. NIETZSCHE, F. Jensetis von GutunâBôse. Munique: Golclmann,.1980. 254. p. 145.

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Introdução

chamar a França de "um país verdadeiramente bárbaro" e es-pecular que talvez a civilização "tenha se refugiado em algu-

'*ma tribo minúscula, porém ainda não descoberta".18 A Primei-ra Guerra Mundial foi travada por trás das bandeiras rivais ciaCivilização ocidental e da Kultur alemã, mas bem na sombrada guerra, os irmãos Thomas e Heinrich Mann se colocaramem lados opostos - o alemão e o francês - 'num famoso de-bate sobre cultura e civilização'.

Nessas duas tradições, cultura ou civilização representa-va os valores supremos. Aventou-se a hipótese de que. esses •-conceitos tenham sido propagados no século 18 porque a re-ligião estava perdendo seu domínio sobre muitos intelectuais.Essas tradições constituíam uma alternativa, fonte secular cievalor e significado. Cada uma delas, todavia, tinha afinidades'com uma determinada perspectiva cristã. A idéia de Civiliza-ção lembra as reivindicações universalistas da igreja católica.Comte e Saint-Simon criaram a religião do positivismo, paraa qual tomaram emprestados rituais católicos. Seu dogmacentral era o progresso, que representava a salvação nestemundo. As noções alemãs cie Bildung e Kultur, expressadas ,de forma característica numa linguagem espiritual, compro-metidas com as necessidades cia alma do indivíduo, que va-lorizam mais a • virtude interior do que a aparência exterior eencaram com pessimismo o progresso secular, por sua vez,

: estão impregnadas,dos valores da Reforma, e Thomas. Mannafirmou que a Reforma imunizara os alemães contra as idéiasda Revolução Francesa.

Qs ingleses, como sempre, mantiveram-se um tantoafastados desses argumentos continentais. John Stuart Milltentou reunir as tradições francesas, e inglesas em seus famo-sos ensaios sobre Bentham e Coleridge, mas os ingleses ti-

, nham suas próprias preocupações. À medida que a industria-lização'transformava a Inglaterra, os intelectuais identifica-vam uma crise espiritual, uma luta de vicia ou de morte entreo que Shelley chamou cie Poesia e Mamon. A" tecnologia e o

18. BAUDELAIRE. Apud STAROBINSKI, Jean. Blessings in Disguise:Or, The Morality of Evil. Cambridge, Mass.: Harvard UniversityPress, 1993. p. 54.

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Introdução

matérialismo da civilização moderna incorporavam o inimigo,contra o qual os intelectuais liberais lançavam valores cultu-'Tais eternos extraídos cia grande tradição da a'rte e da filoso-fia européias. Matthew Arnold definiu cultura como "o me-lhor de tuclo o que se teve conhecimento e foi dito",1' um câ-non cosmopolita duradouro. Adquirindo cultura, ficamos co-nhecendo "a história do espírito humano". Era ela que dístin-guia os eleitos dos bárbaros incultos.. Mas esse legado huma-nista estava sob o cerco dos.exércitos cia civilização indus-trial. A grande interrogação era se a cultura intelectual cia eli-te instruída poderia, cie alguma forma, sustentar os valoresespirituais cia sociedade. Talvez a cultura cedesse, esmagadapelo materialismo exacerbado cie homens compenetrados .que sabiam o preço cie tuclo, mas não sabiam o valor denacla. "À medida que as civilizações avançam", concluiu Ma-caulay, "há uni declínio quase inexorável da poesia".-9

No çntanto, de nada adianta exagerar o caráter distintoda tradição inglesa. Arnold recorreu a Coleridge, e este, aosromânticos alemães. As preocupações e os valores se sobre-.punham. Em todos os lugares, cultura representava a esfera .dos valores supremos, sobre os quais acreditava-se que seapoiava a ordem social. Como a cultura era transmitida atra-vés cio Cisterna educacional e exprimida de forma mais inten-

~ sã por intermédio cias artes, essas eram áreas essenciais queum intelectual deveria estudar para aprimorar-se. E como odestino de uma nação dependia da condição de sua cultura,essa era uma arena importantíssima para a ação política.

Os argumentos modernos não recapitulam cie forma pré- —cisa as controvérsias anteriores. Os contextos cia época dei-xam a sua marca. Cada ,geração moderniza o idioma do deba-te, via de regra adaptando-o à terminologia científica do mo-mento: evolucionismo no final do século 19, organicismo no

;início do século 20, relatividade na década de 1920. Metáforas

19. ARNOLD, Matthew, Ltíerature and Dogma. Londres: McMillan,1873.20. Thomas Babington Macaulay, "Milton". Publicado pela primei-ra vez em 1825; retirado de Criticai and Historical Essays, 1843;reimpressò por Everyman's Libraiy. Londres: Dent, 1907. p. 153.

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Introdução

emprestadas cia genética competem, hoje em clia, com o jar-gão cia teoria literária contemporânea. Entretanto, mesmo quefossem expressados em termos modernos, os discursos sobrecultura não são inventados livremente; :eles remontam a cleter-rninadas tradições intelectuais que persistiram por gerações,disseminando-se da Europa para todo o mundo, impondoconcepções da natureza humana é da história, provocandouma série cie debates recorrentes. Vozes ancestrais perseguemos escritores contemporâneos. Novas formulações podem serestabelecidas numa longa genealogia, mesmo que estejam re-lacionadas com as necessidades cio momento.

À medida que as ciências humanas se consolidavam, es-colas de pensamento rivais recorriam a essas perspectivasclássicas. Temas centrais da visão iluminista do mundo ou daideologia francesa ressurgiram no positivismo, no socialismoe no utilitarismo cio século 19. No século 20, a idéia cie umacivilização mundial científica progressiva foi traduzida parada

.teoria cia globalização. A curto prazo,-a cultura representouuma barreira à modernização (ou industrialização, ou globali-zação), mas no final a civilização moderna passaria por cimadas tradições locais menos eficazes. A cultura foi invocada 'quando tornou-se necessário explicar por que as ..pessoas es-tavam adotando metas irracionais e estratégias auto-clestruti-vas. Projetos cie desenvolvimento-eram derrotados pela resis-tência cultural. A democracia desmoronava porque estavaalheia às tradições da.'..nação. Teorias de opções racionais nãopodiam explicar o que os economistas -desesperaclamentechamam cie. "apego", formas cie pensar e agir tão arraigadasque resistem aos argumentos mais convincentes. A cultura re-presentava o retrocesso, para explicar o"comportamento apa-rentemente irracional. Ela também foi responsável pelo resul-tado, desapontadqr de muitas reformas políticas. A tradição erao refúgio dos ignorantes e receosos, ou o recurso cios ricos, epoderosos, que temiam perder .seus privilégios.

Vista sob outro prisma, -a resistência cias culturas locaisa globalização provavelmente é respeitada e até mesmo co-memorada. Essa era a perspectiva cios herdeiros cio contra-Huminismo. A tradição romântica, ou alemã, também não fi-cou estática. • Ela passou por suas próprias transformações,

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Introdução

..embora exibisse sempre uma afinidade eletiva com idealis-mo, relativismo, historicismo,_.um estilo hermenêutico de aná-lise e o que chamamos atualmente cie identidade política. Ri-charcl A. Shweder tentou, até mesmo, fazer uma genealogialigando p movimento romântico cio século 19-ao que ele cha-ma cie "rebelião romântica contra o íluminismo"21 dos antro-pólogos contemporâneos.

Mesmo crue vestissem novas roupagens, as idéias clássi-cas sobre cultura não eram soberanas, Elas enfrentavam novasrivais, e a maior delas surgiu com a -publicação de A origemdas Espécies de Darwin, em 1859. Até mesmo o pensador me-.nos científico não podia ignorar o desafio depois que Darwinestendeu seu argumento aos seres humanos em-^4 Descendên-cia do Homem, em 1871. Era preciso encarar a possibilidadecie que os padrões cie comportamento humano e as diferen-ças humanas podiam ser explicadas em termos biológicos. Acultura segue leis naturais. Não obstante, a teoria darwinianaíião tornava necessariamente obsoletas as idéias clássicas. Ateoria cie que todos os seres humanos tinham uma origem emcomum reafirmava a crença do íluminismo ha unidade cia hu-manidade, A civilização ainda pode ser considerada o traço,que define a característica humana. A evolução cia. vida tam-bém pode fornecer um modelo para a evolução da civilização.Os seres humanos representavam uma evolução dos macacos,e'raças superiores - ou civilizações superiores - representa-vam, da mesma forma, uma evolução cie raças inferiores e dêsuas civilizações. O próprio Darwin compartilhava dessa opi-nião, mas alguns dos seus seguidores foram recrutados para acausa do cõntra-Iluminismo. Disparidade cultural pode seruma expressão de diferenças raciais mais-fundamentais. A pu-reza racial podia ser um imperativo político, ligada inextrica-vélmente à defesa de uma identidade cultural. A história pode-ser escrita com sangue, tendo como tema a luta pela sobrevi-vência entre as raça-s.

21. SHWEDER, Richard A. Anthropòlogy's Romantic RebellionAgainst the Enlightenment. In: SHWEDER, Richard-A. ; LEVINE, Ro-bert A. (Ed.X Culture Theory: Essays bn Mind, Self, and Emotion.Cambriclge: Cambridge University Press, 1984.

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Introdução

O desafio cie uma teoria biológica cie progresso huma-no e diferenças humanas levou ao desenvolvimento daquiloque, sob alguns aspectos, representava uma nova concepçãode cultura, que passou a ser considerada o oposto da biolo-aia. Era a cultura que diferenciava os seres humanos cios ou-tros animais e clistinguia as nações umas cias outras. E ela nãoera herdada biologicamente, mas sim assimilada, adquirida e.até mesmo emprestada. Christopher Herbert afirmou queessa noção cie cultura também nasceu de uma controvérsiareligiosa. Ele a associarão movimento cie revivificação evan-gélica do início do século 19 na Inglaterra, que propagouuma noção do pecado original que ele chama cie "o mito de.um estado de desejo humano inçontrolado". A idéia de cul-tura oferecia a esperança redentora de salvação secular: acultura era a nossa defesa contra a natureza humana. Os se-res humanos deixavam sua condição de pecadores pelas gra-ças dos tabus e das, leis. Herbert argumenta que "pode-seconsiderar as idéias de cultura e desejo livre como dois ele-mentos recíprocos complementares de um único padrão ciediscurso, embora um padrão repleto cie conflitos e necessa-riamente instável".22 Talvez Herbert esteja certo e essa con-cepção cie cultura tenha nascido em resposta a preocupaçõesreligiosas, mas ela amadureceu em reação à revolução darwi-

1 niana, que ameaçava conferir autoridade científica a algocomo a doutrina do desejo humano inçontrolado.

Em nenhum outro lugar, o argumento contra o darwinis-mo foi formulado com maior premência e intensidade do quenos idos de 1880, em Berlim. O mais proeminente darwinistacia Alemanha, Ernst Haeckel, aduziu conclusões políticas dateoria darwinista que cleixou o próprio Darwin bastanteapreensivo. Segundo Haeckel, Darwin apresentara arguijten-tos científicos irrefutáveis para o livre comércio e contra aris-tocracias hereditárias. Sua teoria também podia ser usada parademonstrar a superioridade da raça prussiana e para subscre-ver as políticas cie Bismarck, que demonstravam os efeitosmaravilhosos da luta e da seleção.

22. HERBERT, Christopher. Culture and Anomie: EthnographicImagination in the Nineteenth Centuiy. Chicago: University of Chi-cago Press, Í991. p. 29.

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Introdução

O dogma de Haeckel espantou seu ex-professor, Rudolf- Virchow, maior patologista alemão, político proeminente cievisões liberais e mentor cia Sociedade cie Antropologia cie Ber-lim. Do ponto de vista metodológico, sua objeção era quantoa uma conclusão teórica prematura. O grande número de aca-sos da mudança eyolucipnaria ainda não podia ser reduzido áleis. Rudolf mostrava-se especialmente hostil em relação aodeterminismo racial -de Haeckel e ao nacionalismo culturalcom o qual este estava associado. Raças eram categorias ins-táveis com fronteiras móveis, e a mistura racial era amplamen-te disseminada, senão universal. Traços biológicos passavampor cima das classificações raciais convencionais, que em to-ei os os casos eram influenciadas por fatores ambientais locais.Diferença cultural nào representava indício de diferença ra-cial. Raça, cultura, língua e nacionalidade não coincidiam ne-cessariamente. Os refugiados huguenotes, insistia Virchow,"estão germanizados, assim como os numerosos judeus queacolhemos da Polônia e da Rússia, e [que]... contribuíram so-bremaneira para o nosso progresso cultural".23

O colega de Virchow, Adolf Bastian (que em 1886 setornou o primeiro diretor cio grande museu cie etnologia deBerlim), tentou demonstrar que, assim como as raças, as cul-turas são híbridas. Nào existem culturas puras, distintas epermanentes': Toda cultura recorre a diversas "fontes, depen-de de empréstimos e está em constante mudança. Os sereshumanos são bastante semelhantes, e toda cultura está enrai-zada numa mentalidade humana universal. As diferenças cul-turais eram causadas pelos desafios apresentados pelo am-biente natural local é pelos contatos entre as populações. Oempréstimo era o mecanismo primário da mudança cultural.:E como as mudanças culturais eram resultado de processoslocais imprevistos — pressões, ambientais, migrações, comér-cio -— conseqüentemente, a história não tem um padrão fixode desenvolvimento.

25. Apuei ACKERKNEGHT, Erwin H. Rudolf Virchow: Doctor, Sta-tesman, Anthropologist. Madison: .University of Wisconsin Press,1953. p. 215-6.

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Introdução

Essa antropologia liberal berlinense foi caracterizada comoum misto de idéias iluministas e românticas, mas na realidadebaseava-se numa rejeição dupla. Se as culturas são abertas, sin-créticas e instáveis, obviamente não podem expressar identida-des essenciais imutáveis ou um caracter racial subjacente. E seas mudanças culturais são resultado de fatores locais imprevis-tos, por conseguinte não existem leis gerais cie história. Acimade tudo, entretanto, a escola berlinense insistia em afirmar quea cultura funciona de uma forma bastante distinta cias forçasbiológicas - e pode até mesmo sobrepujá-las.

Franz Boas, aluno.de Virchow-e Bastian, introduziu essaabordagem na antropologia americana. À medida que esta sedesenvolvia numa disciplina acadêmica organizada no iníciodo" século 20, ela era definida pela luta épica entre Boas e suaescola e a tradição evolucionista, representada nos EstadosUnidos pelos discípulos de Lewis Hemy Morgan, cujas narra-tivas 'triunfalistas de progresso utilizávamos metáforas da teo-ria de Darwin. Os boasianos eram céticos em relação às leis.universais da evolução. Além disso, eles repudiavam explica-ções raciais de diferença, um assunto -de grande importânciapolítica nos Estados Unidos. A tese fundamental boàsiana erade que à cultura é que nos faz, e nào a biologia. Nós nos tor-namos o que somos ao crescer num determinado ambientecultural; não nascemos assim. Raça, e também sexo e idadesão constructos culturais, e -não condições naturais imutáveis.Isso quer dizer que podemos nos transformar em algo melhor,talvez aprendendo com o pçvo tolerante cie Samoa, ou comos balineses perfeitamente equilibrados.

Essa era uma idéia bastante atraente na América do sé-culo 20, mas a compreensão racial alternativa de diferençacultural continuava a ser um grande desafio. A idéia de cultu-ra podia realmente reforçar uma teoria racial cie diferençarCultura podia ser um eufemismo para raça, estimulando umdiscurso sobre, identidades raciais enquanto aparentementeabjurava o racismo. Os antropólogos podiam distinguir siste-maticamente raça e cultura, mas na .linguagem popular ''cultu-ra" se referia a uma qualidade inata. Á natureza cie um grupoera evidente. a olho nu, expressada igualmente pela cor dapele, pelas características faciais, pela religião, pelos princí-pios morais, pelas aptídqes, pelo sotaque, pelos gestos.e pe-

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Introdução

Ias preferências de alimentação. Essa confusão obstinada per-. siste, Na clécacía de 1980, Michael Moffatt, etnógrafo que esta-

va realizando um estudo'sobre os alunos brancos e negrosque "dividiam um -dormitório na Rutgers University, relatouque os alunos literalmente se recusavam a falar sobre raça,mas acreditavam que falar sobre diferenças culturais era mo--derno e politicamente correto.21 Na prática, todavia, eles fa-. ziam uma distinção entre brancos e negros, embora a diferen-ça entre esses alunos parecia ser essencialmente no que tan-ge ao gosto por grupos .pop e fast fpod.

''Cultura sempre é definida em oposição a algo mais.Trata-se da forma local autêntica cie ser diferente que resisteà sua inimiga implacável, uma civilização material globali-zante. Ou o domínio cio espírito armado contra o materialis-mo. Ou a capacidade que o ser humano tem cie crescer es-piritualmente e que sobrepuja ~sua. natureza animal. Dentrodas .ciências sociais, a cultura aparecia em outro conjunto ciecontrastes: ela era a consciência coletiva, em oposição à psi-que individual. Ao mesmo tempo, representava a dimensãoideológica cie vicia social que se contrapunha à organizaçãocomum de governo, fábrica ou família. Essas idéias foramdesenvolvidas pelos fundadores da sociologia européia e in-troduzidas na sociologia americana, tradicionalmente empí-rica e utilitária, por Talcótt Parsons.

_- ' Jamais," nem antes nem depois, as ciências sociais ou' "eomportamentais" receberam tantos incentivos financeiros, fo-,ràm mais bem organizadas e, de modo geral, estiveram com o

' moral tão alto como nas décadas cie 1950 e 1960 nos EstadosUnidos, e seus líderes estavam convencidos cie que o futuro —cjue só podia ser ainda melhor --reservava grandes projetoscientíficos que apresentariam um plano racional para um mun-do ainda melhor. Talcótt Parsons, o grande expoente das ciên-cias sociais naquele período, insistia que o,.progresso exigiauma divisão mais eficaz cie trabalho, tanto no campo das ciên-cias sociais como cie qualquer empreendimento moderno. A

24. MOFFATT, Michael. Corning of Age in New Jersey: College andAmerican Culture. New Brunswick, N.J.: Rutgers University Press,1989,

136

psi

^

e obviamente, era estudada pelos psicólogos. O sistemaique jj-tica e a economia estavam sendo administrados ,

""'especialistas da área, o que--era satisfatório contanto que'°!os os envolvidos concordassem que a sociologia tinha prio-°1 lê A cultura, contudo, foi confiada tempo demais às mãostnadoras dos humanistas. Daí em diante, ela deveria ser en-

tregue aos antropólogos, que finalmente poderiam transforma-Ia em ciência, se eles pudessem ser persuadidos a se concen-trar nessa tarefa e abandonar seus hobbies pitorescos.

Nem todo antropólogo ficou satisfeito com esse prospec-to Alguns consideravam um rebaixamento ser um efiteridicloem cultura, em vez de, digamos, especialista em todos os as-sunto- pertinentes a uma comunidade tribal ou até mesmo uma

' autoridade na história cia evolução humana. Além disso, ás dis-putas clé demarcação com outros cientistas sociais persistiam.Não-obstante, a idéia' de que cultura era um assunto cie preo-cupação científica e que os antropólogos eram autoridade noassunto passou a ser amplamente aceita na clécacía cie 1950.Em 1952, os dois decanos cia antropologia americana', AlfredKroeber, de Berkeley, e Clycle Kluckhohn, de Ilarvard, publi-caram um relatório dogmático sobre a concepção antropológi- -

= ca científica cie cultura, confiantes de que ela tornaria obsole-tas as abordagens tradicionais. •" Duas décadas mais tarde, RoyWagner -pôde introduzir um ensaio sobre cultura com a obser-vação cie que o conceito "ficou cie tal forma associado ao pen-samento antropológico que... podíamos definir um antropólo-.go como alguém que usa a palavra 'cultura' habitualmente".26

Na década cie 1990, o tema da cultura foi tão difundido que nadefinição de Wagner praticamente todo mundo que escreviasobre questões cie ciências sociais teria de ser considerado an-tiopólogo. Entretanto, um comentarista ainda poderia observarque um antropólogo moderno que não crê em cultura de cer-ta forma é uma contradição cie termos".2"

5. KROEBER, A. L. • KLUCKHOHN, Clyde: Culture: A Criticai Re-view Of Concepts and Detinitions. Cambridge, Mass.: Papers of

eabocly Museum, Harvard University. v. 47, n. l, 1952.- . WAGNER, R0y. "lhe Invention ofCullitre. Chicago: University ofChicago Press, 1975. p i.

27. HERBERT. Culture and Anomie. p. 20.

37 i

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Introdução

Mas antes que os antropólogos pudessem fazer investi-gações científicas sobre cultura, eles tinham clé chegar a umacordo quanto ao significado desse termo. Kroeber e Kluc-khohn realizaram uma intensa pesquisa na literatura e, no fi-nal, tiveram cie concordar que' Parsoiis encontrara a definiçãocorreta de cultura, para os propósitos da ciência. Tratava-se deum discurso simbólico coletivo sobre conhecimentos, crençase valores. Não era sinônimo de arte de elite, como os huma-nistas acreditavam, pois todo membro de uma sociedade tinhauma parte nessa cultura. Além disso, era bastante distinta dacivilização humana universal, que havia dado ao mundo aciência, a tecnologia e a democracia, pois tocla comunidade ti-nha a sua própria cultura, com seus valores específicos, que adistinguia.cle todas as outras.

Se isso era cultura, então até que ponto ela era importan-te? Segundo Parsons, as pessoas concebem um mundo simbó-lico a partir cie idéias recebidas, e essas idéias chocam-se comas escolhas que elas fazem no mundo real No entanto, ele ti-.nha certeza cie que idéias sozinhas dificilmente determinamação. De forma semelhante, os símbolos coletivos entram naconsciência individual, mas não a tomam completamente. En-tretanto, quanto mais os antropólogos se entregavam à suanova especialidade, mais convencidos ficavam cie que a cultu-ra era muito mais poderosa cio que Parsons tinha levado a crer.As pessoas não apenas constróem um mundo cie símbolos; naverdade, elas vivem nesse mundo. Os mais importantes antro-pólogos americanos cia 'geração seguinte, Clifford Geertz, Da-vicl Schneider e Marshall Sahlins, criaram uma galeria cie per-sonagens nativos de espiritualidade sem paralelo. Esses perso-nagens pareciam viver somente para as idéias, fossem sacerdo-tes havaianos, cortesãos balineses ou cidadãos cia classe média ;cie Chicago. No livro de Geertz, Negara, o negócio é a repre-sentação teatral - ou melhor, o que ele chama de óperas ciacorte são a síntese do próprio modo cie vida. A política e aeconomia são meros ruídos de bastidores. Para Schneider, pa-rentesco, advém da idéia que as pessoas têm sobre prôcriação.A biologia está na mente, ou não é nada. Para Sahlins, a his-tória representa a encenação incessante cie um velho roteiro, arepresentação teatral de uma saga. Terremotos, invasões bru-tais de conquistadores e^até mesmo o capitalismo precisam ser

Introdução

traduzidos em termos culturais e transformados.em mitos paraque tenham influência na vicia das pessoas.

O problema seguinte era .como proceder a investigaçãocie cultura. O próprio Parsons forneceu pouca orientação aesse respeito, mas em meados cio século surgiram dois mocle-los nos Estados Unidos, um velho e um novo. O primeiro re-comendava explorar com simpatia a visão de mundo de umnativo, traduzi-la e interpretá-la. O nome de Weber foi evoca-do e a palavra Verstehen pronunciada com reverência, mesmoque nem sempre cie forma acurada. Geertz escolheu esse cur-so, que identificou inicialmente como parsoniano, depoiscomo weberiano, e, inais tarde, como uma forma cie herme-nêutica. Aos poucos, ele ficou menos ansioso para alegar queVera um procedimento científico, pois chegou à conclusão deque embora a cultura podia ser interpretada, ela não poderiaser explicada (e certamente não podia ser justificada). A cul-tura não contava com leis gerais nem interculturais. Podia-se,talvez, calcular o que uma representação simbólica significa-va para os espectadores, mas não se podia separá-la do seusignificado no vernáculo e tratá-la como sintoma cie uma cau-sa biológica ou econômica mais fundamental e livre de cultu-ra cia qual o paciente não tinha consciência.

A abordagem alternativa, em contraste, era científica, re-ducionista e generalizadora. Ela partia da premissa cie que acultura — um discurso simbólico - era muito semelhante à lin-guagem. Conseqüentemente, o estudo da cultura devia seguiro caminho que-estava sendo indicado pelos lingüistas moder-nos, que estavam prestes a descobrir as leis universais. da lin-guagem, "Durante séculos as ciências humanas e as ciênciassociais se resignaram a contemplar o mundo das ciências na-turais e exatas como um tipo cie'paraíso no qual eles nuncaentrariam", observou Claude Lévi-Strauss numa conferênciasobre lingüística e antropologia em Blomingtpn, Indiana, em1952. "De repente, uma pequena porta está se abrindo entreos clois campos, e isso foi obra cia lingüística."28 Essa porta'

.

28. LEV-I STRAUSS, Claude. Structural Antbropology. Nova York:Basic Books, 1903. p. 70-1. Alterei ligeiramente a tradução da se-,guncla 'citação.

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Introdução

conduzia à fonte original .cia linguagem e clã cultura. Havia"uma .intrusa sentada ao hòsso lado "durante toda. a eonferên-

^ cia, a mente humana", disse ele aos participantes-. Se umanova ciência de cultura fosse conduzida pela lingüística, en-

'tão, juntas, no final essas ciências estabeleceriam a estrutura,•profunda que todas as línguas e culturas partilhavam e que(certamente) era esboçada no próprio cérebro. Uma antropo-logia científica.cartesiana estava esperando para nascer.

Isso tudo era bastante empolgante, mas era preciso ad-mitir que os próprios lingüistas não tinham chegado a consen-so sobre a niélhor rota para atingir a. sua grande meta. Lévi-Strauss fora apresentado à lingüística por um companheiro deexílio nos Estados Unidos durante a guerra, Roman Jakobson.Seu modelo estava em conformidade com a fonologia estru-tural ista desenvolvida pela Escola cie Praga. Ele aplicou- es.semodelo primeiramente ao sistema do casamento, depois a

-métodos cie classificação e, por fim, a mitos. Os estruturalistasamericanos preferiram se deixar conduzir pela. gramática de.transformação cie v Chpmsky. A faculdade cie Yale de Louns-buiy e Goodenough (que recrutou vários doutores do Depar-tamento de Relações Sociais de Harvarcl) iniciou uma investi-gação científica formal cias estruturas subjacentes que gera-

1 vam- terminologias de parentesco, classificações botânicas,-sintomas de doenças e .outras taxonomias. folclóricas queconstituíam domínios semióticos especializados.

Esses programas estruturalistas floresceram durante umcerto tempo, produzindo relatos notáveis de corpos específi- -

. cos de pensamento nativo, mas no final da década de 196(3(precisamente em maio cie 1968, afirmou Lévi-Strauss), o estru-turalismo francês perdeu seu encanto, dando'lugar a uma va-riedade de "pós-estnituralismos" cie uma casta decididamenterel.atívista. Seus adeptos abandonaram as ambições científicascio estruturalismo clássico, insistindo na qualidade indetermi-nada das palavras e dos símbolos. A etnociência americana fi-cou fora cie moda na mesma época, mas alguns antigos entu-siastas descobriram uma promessa científica alternativa naciência cognitiva. Reprodução dos processos cio cérebro porcomputador, esquemas cie conhecimento e. redes de conexãopassaram a ser procurados, em vez das regras gramaticais nas

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Introdução

quais os praticantes da nova etnografia tinham depositado asua fé anteriormente. Outra facção se apoderou dos novos de-senvolvimentos da lingüística e se determinou a adaptar apragmática, ou a teoria do discurso, ao-estudo cia cultura. .

Os geertzianos rejeitavam sistematicamente qualquerafirmação de que podia haver uma ciência da cultura. A cul-tura, na verdade, era bastante semelhante à linguagem, !mas;--o modelo cie cultura cjue eles preferiam era o de texto. Con-seqüentemente, eles recorriam à. teoria literária, é não à lin-güística.. Foi essa abordagem que, se desenvolveu, e o iníer-pretativismo se transformou na ortodoxia cia principal corren-te cia antropologia cultural americana. Embora os geertzianosmais- novos se rebelassem contra o pai, em vez de optarempor um projeto mais científico, eles tomaram a mesma dire-ção dos pós-estruturalistas franceses. Uma cultura não podia :ser tão prontamente compreendida por um, estranho solidá-rio como Geertz sugerira. Cultura pode ser um texto, mas éum texto fabricado, uma ficção escrita pelo etnógrãfo. Alémdisso, a mensagem clara de desconstrução é" que os textosnão produzem mensagens inequívocas. Vozes discordantesdisputam a linha oficial. A cultura é contestada, como diz onovo slogan. .Assim como não há um texto canônico, não háleitores privilegiados. Os antropólogos pós-modernistas pre-ferem imaginar o domínio da cultura como algo mais seme-lhante a lima democracia ingovernável cio que a um estadoteocrático ou a uma monarquia absolutista. Apreensivos acer-ca das insinuações totalitaristas cio termo cultura, alguns pre-

- ferem escrever sobre hábito, ideologia ou discurso, embora,como salienta Robert Brightmãn, o efeito final dessas estraté-gias cie retórica seja "(re)construir um conceito cie cultura es-sencializacla nos antípodas das orientações teóricas contem-porâneas".29 Ainda há a pressuposição de quê as pessoas vi-vem num_ mundo cie símbolos. Os atores são dirigidos e a his-tória é moldada (talvez inconscientemente) pelas idéias. Acorrente predominante cia antropologia cultural americana,em suma, ainda está nas garras cie .um idealismo difuso.

29. BRIGHTMAN, Robert. Forget Culture: Replacement, Tfanscen-dence, Relexification. Cultural Antbropology, v. 10, ri. 4,"p. 510,199*-

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O idealismo teve maior ascensão nas últimas décadas,1

juntamente com seu servo, o rèlativismó. Toda cultura era fun-damentada em premissas singulares. A generalização era im-possível e a comparação, extremamente probJemática/H(ouveuma tendência semelhante na filosofia, que encorajou sobre-modo os antropólogos. Até mesmo o marxismo ficou obceca-do pela ideologia. ("La fantaisie au pouvoir", cantavam os es-tudantes parisienses de 68, enquanto atiravam pedras nos po-liciais.) Mas nem sempre as coisas eram fácejs para idealistas eculturalistas. Pelo contrário, eles achavam que estavam senclositiados por grandes batalhões de rivais que marchavam portrás de bandeiras familiares: O Mercado Decide, A Classe Do-minante Governa, Somos Nossos Genes. Os argumentos dosculturalistas tinham de ser lançados contra os modelos estabe-lecidos de racionalidade econômica e determinismo biológico,mas^ um número crescente embora heterogêneo de -;estetas,idealistas e românticos concordava que a Cultura Nos Faz.

partelgenealogias

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capítulo l

cultura e civilização:intelectuaisfranceses, alemãese ingleses^1930-1958

Civilisation naít à son heure.1

([Ar"palavra] "civilização" nasceu na hora certa.)

Lucien Fébvre

«OJ. ara reconstruir a história da palavra francesa ' Civi-

lisation'",2 observou o historiador Lucien Fébvre, "seria" neces-sário reconstituir os estágios tia mais profunda de todas as re-voluções pela qualpassou o espírito francês-da segunda me-tade cio século 18.até os dias cie hoje". Este foi o tópico queele decidiu abordar num seminário cie fim de semana; organi-

1. FÉBVRE, Lucien. Ciyilization. In: ". et ai. Civilisation: Lê mote l'idée. Paris: Centre International cie Synthèse, La Renaissance cluLivre, 1930. p. ló. Tradução publicada em BURKE, P.eter (Ecl:>. ANew Kind of History: From the Writings ofFebvre. Londres: Rou-tledge e Kegan Paul, 1973. Burke também faz um breve relato dacarreira de Fébvre na introdução do livro.2. Ibicl. (tradução cie Burke, ligeiramente modificada), p. 219. •

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capítulo l

zado em 1929 sobre o tema "Civilisátion: Lê mot et Piclée" (apalavra e a idéia, deve-se ressaltar, e não a coisa em si). Esseera o assunto do momento. À medida que nuvens de tempes-tade se formavam sobre a Europa pela segunda vez no espa-ço cie uma geração, os intelectuais foram levados a repensaro significado cie cultura e, civilização, e a relação deles com o.destino de suas nações. O sociólogo alemão Norbert Elias,atraído para essas questões na .mesma época, observou queembora as teorias de cultura e civilização estivessem sendodiscutidas (com as palavras em si) desde- a segunda metadecio século 18, elas só passaram a despeitar o interesse geralem determinados momentos históricos quando "alguma coisano presente estado da sociedade encontra expressão na cris-talização do passado incorporado nas palavras"., r

Febvre (1878-1956) estudou na École Normale Supé-rietire, onde se formou em história e geografia. Durante aPrimeira Guerra Mundial ele serviu ativamente de metralha-dora ein punho, e quando veio a paz, foi chamado pela Uni-versidade de Strasbourg, que voltou a ser uma universidadefrancesa em 1919, quando a Alsácia foi devolvida à França,O jovem e brilhante corpo docente recrutado para a univer-.siclade incluía alguns cios maioresvcientistas sociais e histo-riadores da-geração seguinte, como Maurice Halbwachs,Charles Blóndel, Georges Lefebvre e, juntamente com o pró-prio Febvre, o'historiador Marc Bloch, com o qual iniciouuma longa colaboração que transformaria a historiografiafrancesa. Em 1929, eles fundaram a revista Annales, que setransformou no fórum cie uma escola de historiadores estrei-tamente; ligados às ciências sociais. Temas culturais, psicoló-gicos e sociais foram resgatados para uma historiografia quehavia siclo dominada pelo estudo de política, diplomacia e.guerra, e a história intelectual foi revivida.

x Na abertura do seminário sobre "Civilisátion", Febvrechamou a atenção para o fato cie que pouco tempo antes ha-via sido apresentada uma dissertação na Sorbonne sobre a "ci-vilização" cios tupis-guaranis da América do Sul, que, obser-vou ele; uma geração anterior teria chamado de selvagens."Mas há_ muito tempo o conceito de uma civilização formada

cultura e civilização

por pessoas incivilizadas tornou-se bastante.comum."3 (Ele co-mentou cie forma morclaz que se poderia imaginar um ar-queólogo "lidando tranqüilamente com' a civilização dos nu-.nosr que um dia nos disseram ter sido 'o flagelo da civiliza-ção'".) No entanto, muito embora os franceses admitissemprontamente que os tupis-guaranis, e até mesmo os hunos, ti-nham uma'civilização, eles ainda .tendiam a acreditar que ci-vilização implicava progresso. Aparentemente, a palavra de-signava duas noções bastante distintas. Uma delas Febvre ca-racterizava como emprego etnográfico e se referia ao conjun-to de características que um observador consegue registrar aoestudar a vida coletiva de um grupo de seres humanos, con-junto esse que englobava aspectos materiais, intelectuais, mo-rais e políticos da vida social. Esse emprego não implicava jul-.

, gamento cie valor. Na segunda acepção,, a palavra significavaa nossa própria civilização, que era éxtrerriamente-valorizadae à qual alguns indivíduos tinham acesso privilegiado. Comopodia uma língua famosa por sua clareza e lógica possuir umvocábulo com clüas acepções contraditórias?

Febvre não conseguira encontrar uma fonte que -usasseo termo civilisation em qualquer um cios seus sentidos mo-

-dernos antes de 1766. Civilisationxera empregado anterior-mente apenas como termo técnico legal, referindo-se .à passa-.gem de uma ação penal para a esfera civil. Entretanto, os ter-mos civilité, politesse e pdlice (significando observânc-ia da lei)remontam ao século 16. Durante o spculo, 17, os termos "sel-vagem" e, para os povos mais avançados, "bárbaros" eram co-muns em francês para descrever pessoas que não possuíam asqualidades de "civilidade, cortesia e sabedoria.administrativa".Com o tempo, civilisé substituiu o termo policé, mas no sécu-lo 18, afirmou Febvre, houve necessidade de um novo termoque descrevesse uma nova noção. Nascido a seu tempo, nadécada cie 1770, o neologismo civilisation "recebeu seus pa-péis cie naturalização", e em 1798 forçou as portas cio. Dicio-nário da Academia Francesa.

3. W., ibid., p. 220.

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capítulo l

Esse foi' um período cie .intensa atividade científica em to-das as áreas, bem como de sínteses teóricas audaciosas. O,grande leque'de materiais sobre culturas exóticas e o passadoremoto reunidos na Encydopédie 'suscitou reflexões sobre ogrande padrão cia história. A tendência do volume crescentecie literatura sobre exploração, a princípio, era reforçar a cren-ça na superioridade da civilização,. Os intelectuais francesescomeçaram a conceber o esboço de uma história universal emque a selvagerià levou ao barbarismo, e o barbarismo à civi-lização. Esse modelo de desenvolvimento cultural imitava arepresentação cie Lamarck cias relações entre as espécies emsua versão cia grande cadeia cios seres vivos. Logo, entretan-to, essa história triunfalista -de progresso começou a ser ques-tionada. Não apenas níveis de civilização, mas até mesmo es-tados cie civilização aos poucos foram clistinguiclos. O imensoimpério clã "Ia Civilisatión" foi dividido em províncias autôno-mas. Admitiu-se que maneiras características de ser civilizadohaviam-se desenvolvido em diferentes partes do mundo. Se-gundo ..Febvre, a forma plural, Civilisatíons,' foi empregadapela primeira vez em 1819.,

Febvre situou essa relativização cia noção cie civilizaçãono período compreendido entre 1780 e 1830, observando querepresentava o clímax de um longo e paciente esforço de do-cumentação e reflexão. Houve uma transição simultânea nasáreas cie biologia, história, etnografia e lingüística, cio univer-salismo do século 18 para uma perspectiva mais relativista. Ateoria de Lamarck também foi colocada em xeque. Cuvier in-sistia que não havia Lima cadeia dos seres vivos, mas sim vá-rias cadeias separadas. Essas mudanças no pensamento cien-tífico refletiram-se numa alteração do clima intelectual. O oti-mismo do período revolucionário entrara em declínio. Os so-breviventes da revolução aprenderam algo novo: que uma ci-vilização pocle morrer. ("E eles não aprenderam isso apenascom os livros", frisou Cuvier.) A fé numa filosofia de, progres-so e na perfecti.biliclacle da humanidade foi corroída. O apoioao pessimismo cie Rousseau e à sua preocupação com as ma-zelas cia civilização foi renovado.

Com a restauração cia monarquia, a crença otimistanuma civilização progressista ganhou nova força. Ela foi pres-sagiacla com maior intensidade nas obras De Ia civilisation en

cultura e civilização

Europe (1828) e De Ia civilisation en France (1.829) de Guizot.Febvre cita a audaciosa afirmação de fé de Guizot: "A idéia cieprogresso, de desenvolvimento, a meu ver, parece ser a idéiafundamental contida na palavra civilização." O progresso po-clia ser medido tanto no nível da sociedade como do intelec-to, embora ambos não andem necessariamente juntos. -A In-glaterra, segundo Guizot, alcançara progresso social, mas nãointelectual; na Alemanha, o progresso espiritual não tinha sidoacompanhado pelo progresso social; apenas ria França amboshaviam marchado lado a lado.

Febvre notou que uma linha diferente de. pensamento sedesenvolvera na Alemanha. No início, a noção de cultura erabastante semelhante à icléía francesa cie civilização, mas como tempo foi feita uma distinção entre os aspectos exteriores .da civilização e a realidade espiritual interior da cultura. Ale-xander von Humbolt, por exemplo, afirmou que uma tribo

. selvagem podia ter urna civilizarão, no sentido de ordem po-lítica, sem possuir um alto nível de "culture de.Pespfit" - e,certamente, vice-versa. Não obstante, ambas as correntes ciepensamento traziam em seu bojo um problema filosófico se-melhante.. Uma avaliação relativista das diferenças entre cultu-ras è compatível com "o -velho conceito de civilização humarna em geral"? A pergunta foi deixada no ar.

Em outro trabalho, apresentado no mesmo semináriosob o título "Lês Civilisations: Éléments et formes", o sociólo-

. go Mareei Mauss esboçou a concepção cie civilização que elee Emile Durkheim expuseram durante vários anos no AnnéeSociologique;' Mauss discorreu rapidamente sobre o que eledenominava usos vulgares em frases como: civilização fran-

, cesa, budista ou islâmica. O que estava em debate nesse ca-sos eram maneiras específicas cie pensar, posturas mentais,para as quais ele preferia usar a palavra .mentalité. Civiliza-ção também não devia ser restringida a sinônimo de artes,tampouco ser equiparada a Kultur, no sentido^cle aquisiçãocie cultura. Essas eram representações folclóricas desprovidasde valor científico.

4. MAUSS, Mareei. Lês Civilisations. In: FEBVRE, Lucien. op. clt. p.105-6.

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Do ponto de vista de um sociólogo, civilização é, primei-ramente, coletiva e distintiva. Mas esse conceito não eqüivale

.ao que os durkheimianos chamavam de "consciência :coletiva"de uma sociedade, pois ela não está confinada a unia. popu-lação em particular, Além disso, ao contrário das tradições cul-turais- puramente locais, a civilização é racional, universal e,acima de tudo, progressista. Por esse motivo, ela se dissemi-nou de forma irresistível por todo o mundo. Com a difusão in-ternacional da ciência e de novas tecnologias como o cinema,o fonógrafo,e a radiotelefonia, começava a nascer uma novacivilização, que "permeia todas( as formas de música, todos ossotaques, todas as palavras e todas as notícias, a despeito de

•todas as barreiras. Estamos apenas no início [desse proces-so]",5 O .avanço da civilização impõe sacrifícios. Não, há garan-tias de que vai proporcionar felicidade pessoal ou contribuirpara o bem comum. "Mas o capital da humanidade aumentacie qualquer forma... a tendência é de que todas as nações .écivilizações, na verdade, fiquem mais— mais poderosas, maisgerais e mais racionais."

Febvre iniciara esse ensaio com o famoso comentário deque o tempo despendido na descoberta da origem de uma pa-lavra nunca é perdido. Seu exemplo inspirou outros estudio-sos franceses a expandirem, mais tarde, sua investigação. Em1954, o lingüista Emile Benveniste afirmou ter descobertoatravés de uma pesquisa diligente que o termo civilisati&nfora usado pela primeira vez pelo fisiocrata Mirabeau, em1757.6 O.sentido era depolicé, no âmbito da política, mas nadécada cie 1700, o termo era usado geralmente com o signifi-cado cie "processo coletivo original que fez a humanidadeemergir cia barbárie, e esse uso, até mesmo naquela época, le-vava à definição cie civilisation como estado cia sociedade ei- _vilizacla". Ele observou também que antes da revolução pou-cas palavras francesas terminavam em -isation.

cultura e civilização

Num ensaio publicado em 1989* Jean Starobinski ressaltaque civilisation foi apenas um cios vários substantivos forma- •cios, durante aqueles anos revolucionários, com o sufixo -ation

- a partir cie verbos que terminavam em -iser. Em 1775, Diderotdefinira o novo termo em relação a outra cunhagem de -ation:"Emancipação (emancipation) ou, o que significa a mesmacoisa com outro nome, civilização (civilization), é um traba-lho longo e difícil."7 Quanto ao uso cie Diderot, Starobinski co-menta que "já há fartos indícios de que a civilização podemuito bem se tornar a substituta secularizacla cia religião, uma 'apoteose da razão". , .

O novo substantivo-reunia noções de requinte e refina-mento, bem como cie progresso intelectual e político. Contu-do, embora Febvre afirmasse que a palavra civilisation haviasido criada para designar uma nova idéia, ainda, que um tan-to vaga a princípio, Starobinski transforma a palavra em pre-cursora cia idéia. "Conseqüentemente, conforme o termo ga-nhou popularidade graças às suas qualidades sintéticas, eletambém se tornou objeto de reflexão teórica." Essa reflexãofoi estimulada pelo fato de que o uso da palavra civilização fi-cou corrente ao. mesmo tempo, que a palavra "progresso" emseu sentido moderno: "Ambas estavam destinadas a manteruma relação bastante íntima."8 Refletindo sobre esses doisneologisrnos, os philosophes concluíram que eles "descrevemtanto o processo fundamental da história como o resultado fi-nal deSse processo... o sufixo clé ação -ation nos força a pen-sar em um agente. Se esse agente for confundido com a pró-pria ação, ele se torna autônomo".'

• Mas o termo não sugeria apenas uma idéia. "Tão logo apalavra civilisation foi escrita...descobriu-se que ela encerravauma possível fonte de equívoco." O próprio Mirabeau escre-vera sobre "falsa civilização" e "a barbárie cias nossas civiliza-ções". O termo podia ''-referir-se tanto a civilizações modernas

5. Id., ibid.6. Esse ensaio foi publicado na tradução em BENYENISTE, Emile.Prpblems in General Linguistics. Coral Gables, Fia.: University ofMiami Press, 1971. p. 291.

7. STAROBINSKI, Jean. The Word Civilization. In: Blessings in Dis-giiise; or, 'lhe Morality ofEml; Cambridge, Mass.:lHarvarc1 UniversityPress, 1993 (publicado pela primeira vez em francês, 1989), p. 3.8. Icl., ibid.,- p. 4.9. Icl., ibid., p. 5.-..

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como ao idealide uma condição de vicia social civilizada. "Aavaliação, portanto, assumia duas formas: unia avaliação, decivilização e uma avaliação formulada em nome cia civiliza-ção."10 Em qualquer um dos sentidos, o termo implica contras-te; mas o contraste — natural, selvagem ou bárbaro - pode pa-recer preferível. A civilização pode ser decadente, e o remé-dio talvez seja a re-cristianização, como argumentaria Benja-min Constant, ou a- re-barbarização, cie modo que Rimbauclexigia "sangue novo... sangue pagão".11 Mas além de valoriza-da, civilização geralmente era identificada com progresso. Demodo geral, o termo assumiu uma aura sagrada. Representaralgo como contrário à civilização significava clemonizá-lo.

Alguns anos depois cio seminário cie Febyre, NorbertElias, judeu alemão exilado que escrevia em Londres às vés-peras, cia Segunda Guerra Mundial, comparou a evolução-danoção alemã de Kultur e da idéia francesa de Civilisation."

"Elias (1897-1990.) nasceu em Breslau e estudou sociologia emHeidelberg com Karl Marmheim e Alfred Weber. O irmão cieAlfred, Max Weber, morrera havia pouco tempo, "mas seu le-gado ainda estava muito vivo em sua antiga universidade. Em1929, Mannheim foi chamado para assumir a.cadeira cie socio-logia em Frankfurt e convidou Elias para .ser seu assistente. Lá,Elias se juntou aos principais representantes da "Escola deFrankfurt", um grupo criativo formado por intelectuais marxis-tas como Theoclor Adorno, com quem Elias fez amizade, ape-sar cio seu "ceticismo em relação à teoria Marxista.

Elias observou que os judeus, apesar cie ausentes ciocenário político, eram "ao mesmo tempo transmissores ciavida cultural alemã".1' "Eu estava .impregnado pela Kulturalemã", observou ele no final de sua longa existência, masfrisou que "é possível identificar-se fortemente com a tradi-

10. id., ibid, p. 8.11. Id., ibid.,.p. 25:12. Cf. MENNELL, Stephen. Norbert Elias: Civilisation and the Hu-man Self-Image. Oxford: Blackwell, 1989 e ELIAS, Norbert. Reflec-tions on a Life. Oxford: Polity Press, 1994.13. ELIAS, Norbert. Ibid. p. 18-9. .

r cultura e civilização

cão cultural alemã - como é o meu caso — sem ser, não va-mos dizer patriota, mas nacionalista". Todavia, como, judeu(ligado, além disso, ao radical Mannheim), ele foi obrigadoa deixar a Alemanha após a ascensão de Ilitler. Depois deuma curta estadia na França, ele mudou-se para Inglaterra e~passou os anos imediatamente 'anteriores à guerra no Salãode Leitura cio Museu Britânico, trabalhando em sua obra-pri-ma sobre o processo de civilização, que foi publicada naAlemanha em 1939. O reconhecimento-veio muito tarde,/apenas durante seu retiro prolongado, primeiro em Bielefelclna Alemanha, e depois, em Amsterdã foi que ele se tornouum ícone para uma nova geração de sociólogos .europeus.

Alfred. Weber e Karl Mannheim defendiam duas aborda-gens opostas ao estudo, da cultura. Para Alfred Weber, cultura^representava o munclo reservado cia arte e da religião, quenão servia a fins racionais e se opunha ao mundo material ciacivilização. Essa era a visão ortodoxa de cultura cie Heidel-berg, e ojilósofo Karl Jasper estimulou o jovem Elias a Descre-ver um trabalho sobre o debate entre Thomas Mann e a me-nosprezada Zívilisationsliterat. Para Mannheim, em. contrapar-tida, as produções culturais originavam-se de situações sociaise deveriam ser entendidas como expressões de determinadosinteresses políticos e econômicos.

No primeiro volume cie The Civilizing Process, Elias ex-plorou as relações entre a noção alemã de cultura e a idéiafrancesa cie civilização. Na tradição francesa, civilização eraconcebida como um todo complexo e multifacetado, queabrangia fatos políticos, econômicos, religiosos, técnicos, mo-rais ou sociais. Esse conceito amplo de civilização "expressaa conscientização cio Ocidente... Resume tudo o que a socie-dade ocidental cios dois ou três últimos séculos acreditam sersuperior às .sociedades anteriores ou às sociedades contem-porâneas 'mais primitivas'".'4 Para os alemães, contudo, civj-

14. Id. ThefivüizingProcess^he Development of manners. Chan-ges in the Code of,,Conduct and Feeling in Early Modem Times.Nova York: Urizen Books, 1978 (primeira edição alemã, Basel,1939). p. 3-4.

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lização era algo-exterior e utilitário, e, em muitos aspectos,alheio aos valores nacionais. A civilização é aprimorada como tempo e transcende as fronteiras nacionais, em contrastecom ,a Kultur, limitada no tempo e nó espaço e contérminacom uma identidade nacional. \ .

Quando os alemães expressavam orgulho por suas reali-zações, eles não falavam cia sua civilização, mas sim da suaKultur. Esse termo "refere-se essencialmente a fatos intelec-tuais, artísticos e religiosos"," e a Alemanha geralmente "traçauma clara linha divisória entre fatos dessa natureza e fatos po-líticos, econômicos e sociais". A Kultur não era só nacional,mas também pessoal. O termo fora introduzido no discurso;moderno por Hercler, que o extraíra da metáfora de Cícero,cultura animi, que, estendia a idéia de cultura agrícola paraaplicá-la ao espírito. Kultur, por conseguinte, significava, cul-tivo; Bildung, uma progressão pessoal rumo à perfeição espi-ritual. Um francês e ou um inglês podia dizer que era "civili-zado" sem que tivesse realizado alguma coisa, mas para osalemães todo indivíduo adquiria cultura por meio de um pro-cesso de educação e desenvolvimento espiritual.

x A noção de Kultur desenvolveu-se em tensão com oconceito cie uma civilização universal associada à frança. Oque os franceses consideravam civilização transnacional, naAlemanha era considerada fonte cie perigo para culturas lo-cais., Na própria Alemanha, a ameaça era bastante imediata.

-A Giuilisation estabelecera-se nos centros de poder político,nas cortes francófonas e nas cortes francófila.s alemãs. Num

' marcado contraste com os intelectuais franceses e ingleses,que se identificavam com as aspirações da classe dominante,os intelectuais alemães se definiam em oposição aos prínci-pes e aristocratas. Aos seus olhos, a classe'alta não possuíauma cultura autêntica. A civilização cia elite francófona eraemprestada; ela não era internalizada, mas sim uma questãocie formas e de aparência^exterior. Os princípios morais ciaaristocracia aclvinham de um código cie honra artificial. Ex-cluídos dos círculos que detinham o poder, os intelectuaisalemães decidiram reforçar as reivindicações de integridade

15. Id., ibicl, p. 4.

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cultura e civilização

pessoal e cie realização, científica é artística. O crescimentoespiritual era mais valorizado do que o status herdado e ossinais exteriores artificiais cio estilo palaciano. A base cios. in-telectuais era a universidade, "o equilíbrio cia classe mécliaem relação à corte",16 e eles fomentavam uma cultura literáriae filosófica alemã, adquirida, interior.

, Seguindo Mannlieim, Elias identificou razões sociais portrás dessas diferenças ideológicas. O conceito cie civilizaçãouniversal, por motivos óbvios, apavorava as classes dominan-tes de Estados imperiallstas, como a França e a Inglaterra, en-quanto "o conceito de Kultur espelhava a consciência de umanação [como a Alemanha] que tinha de lutar constantementepara constituir.novas fronteiras, tanto num sentido- políticocomo espiritual". Atreladas às circunstâncias políticas/essasidéias oscilavam com as mudanças históricas. Na esteira da re-volução francesa, a antítese entre uma civilização aristocráticafalsa e uma cultura nacional genuína foi projetada numa opo-sição entre a França e a Alemanha. Essa antítese ganhou novaforça depois cia derrota cia Alemanha na Grande Guerra, umaguerra que fora declarada contra eles em nome de uma civi-lização universal. A idéia de Kultur entrou em jogo na lutasubseqüente para redefinir a identidade e o destino cia Alema-nha. Kultur e Zivilisation resumiam os valores rivais que (na.visão cie alguns alemães) dividiam Alemanha e França: virtu-de espiritual e materialismo, honestidade e artifício, moralida-de genuína e mera cortesia exterior,

Mas ao contrário de Mannheim, Elias não. acreditava, queidéias fossem simplesmente produções ideológicas, instrumen-tos cie'dominação degradados por seus usos. Quaisquer quefossem suas origens e a forma como Tinham sido manipulados,conceitos como cultura e civilização podiam ter-um valor ana-.lítico. Assim como Mareei Mauss, Elias colocou a idéia de civi-lização em ação, e o segundo volume do seu trabalho ilustrouo que ele chamou cie processo cie civilização na história euro-péia. Aos poucos, as cortes européias refinavam suas manei-ras, submetendo o corpo e suas funções a uma série "de con-

16. Id, ibid, p. 24.

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troles cumulativos. As "limitações sociais que exigiam autocon-,'trote" ganharam força e surgiu o "limiar do constrangimento".Esse argumento foi desenvolvido, em The Court Society, publi-cado pela primeira vez em 1969 na Alemanha, mas escrito tam-bém em grande parte nos anos trinta. Em ambos os estudos,Elias retratou a clássica visão alemã do processo de civilização,como exterior, meramente costumeira e impondo .regras for-mais sobre os atos expressivos ou instintivos, um processo queele vinculava à extensão cio controle do Estado.

Elias observou que na época em-que.estava trabalhandoem seu livro ele era mais influenciado por Freud do -que porqualquer sociólogo, até mesmo por Mannheim.1" Freud publi-cara-recentemente dois livros sobre cultura ou civilização: The

f Future ofan Tllüsion (publicado pela primeira vez na Alema-nha,- em 1927) e Civilisatton and Its Discontents (1930). Neles,Freud discorria sobre "civilização humana, pela qual me refi-ro a todos os aspectos em que a vida humana se elevou aci-ma do seu status animal e difere cia vida das .feras — e me ré-,cuso a fazer-distinção entre cultura e civilização".18 Essa isen-ção talvez desculpe seu tradutor para o inglês, que usou sis-tematicamente Q. termo civilisation onde Freud usou Kultur,mas cie qualquer forma a oposição central proposta por» Freudfoi entre o ser humano educado e o animal instintivo. A cul-tura transforma um simples ser humano em deus (ainda que,'brinca ele, um deus com uma prótese). Mas esse poder é con-quistado com grande esforço. O processo cie educação do serhumano .é considerado puramente externo, imprimido pelaforça.. Assim como o indivíduo faz o sacrifício atroz das fanta-sias edipianas, "toda civilização eleve ser erguida sobre-coer-ção e renunciando instinto".19 A sublimação estimula a criativi-

17. MENNEIL, Stephen. op. cit. p. 111.18-1 FREUD, Sigmund. The Future ofan Illusion. Londres: HpgarthPress, 1.961 (Standard Editíon; publicado primeiramente em .alemãoem 1927). p, 5-6. .19. Id. Cívilísation and Its Discontents. Londres: Hogarth Press,,_1961 (Standard Edition; publicado primeiramente em alemão,em 1930). p. 7. As citações seguintes foram retiradas da me^smapágina.

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cultura e civilização

clade cultural, mas impõe grandes sacrifícios da liberdade se-xual e exige o controle da agressividade.

Talvez a ascensão do fascismo tenha impelido os intelec-tuais judeus da Europa central, como Freud e Elias, a questio-narem o poclér-de salvação da-cultura individual. Quandochegou o momento crítico, os controles frágeis, externos e hu-manos que a civilização havia fabricado não conseguiram re-primir as massas incultas, que Segundo palavras cie Freud são"inclolentes e ignorantes; elas não têm amor pela renúncia aosinstintos". As massas só aceitarão o sacrifício de uma liberda-de animal se forem compensadas em termos materiais. "Se aperda não for compensada economicamente, pode-se estarcerto cie que resultará em graves perigos."

Ao contrário de Elias e Freud, os escritores nacionalistasde direita preferiam não fazer diferença entre instinto e cul-tura. Eles reservavam suas desconfianças para a civilização. Ocrescimento da cultura é orgânico, o da civilização é artificial..Cultura e civilização tendem a entrar em conflito na mesmamedida em que .divergem-'suas formas de crescimento. A ci-vilização acaba se tornando uma concha vazia, destituída cieespírito animado, e desmorona. Esse tema - antigo - foi re-vivido pelos conservadores alemães à medida que o oportu-nismo dos hegelianos foi colocado em xeque pela catástrofe.

, da Primeira Guerra Mundial, Um expoente extremo foi Spen-gler, que possuía uma moral diametralmente oposta à. deFreud e à de Elias e.atacava violentamente "os intelectos,exangues cujas críticas corroem tudo o que resta cla; culturagenuína - ou seja - a cultura espontânea".20 Assim Como vá-rios intelectuais alemães,_Spengler acolheu os nazistas comoarautos de uma renovação cultural da raça, e como inimigoscie uma civilização artificial.

Muito embora Elias ressaltasse o papel das universidadesna criação desse discurso sobre cultura e civilização, ele nãodiscutia em detalhes as disciplinas acadêmicas que foram cria-das ria Alemanha para estudar os produtos cia cultura e cio es-pírito humano, o Geist (Kulturwissenschaften e Geisteswissens-

20. SPENGLER, Oswald. The Hour of Decision. Nova York: Kropf,1934. p. 88.

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chafieri). Fritz Ringer, em The Decline oftbe German Manda-rins (1969), estendeu a análise de Elias cie modo a abarcar odesenvolvimento desses campos cie estudo nos anos críticosapós a guerra franco-prussiana. A Alemanha desfrutou um pe-ríodo de crescimento econômico rápido, porém turbulento,

• que se acelerou por .volta de 1890. Os intelectuais, temerosos.d,o materialismo e do que Weber chamava cie racionalizaçãoda vida pública, enfrentaram o que concebiam como um- de-safio renovado, porém poderoso, à cultura de uma civilizaçãosein alma, e reagiram lançando mão cios recursos do idealis-mo filosófico è do romantismo e também estimulando o orgu-lho nacional. A civilização universal, racional ameaçava a cul-tura espiritual cie um Volk e invadia a liberdade-interior cio in-divíduo. As nações não deveriam permitir que seus valoressingulares fossem engolidos-por uma civilização comum. O.mundo é formado por "espíritos nacionais cpntenciosos... porculturas qualitativamente distintas".21

O materialismo científico constituía o agente mais insiclio-so cia civilização, uma vez que -corrói os valores morais, des-valoriza as descobertas espirituais e menospreza a.sabedoriatradicional. Os mandarins rejeitavam a noção de que idéias sãoimpressas na mente pelas sensações, cie que ps valores têmuma origem material. O Geist não deveria ser tratado como se'fosse parte da natureza. A ciência do espírito era completa-mente diferente de uma ciência natural. Na década cie 1880,Dilthey adaptou a noção he.geliana do "Geist objetivo". O tra-balho cio espírito coletivo era expressado e tornado públicoem documentos e formas cie linguagem e, portanto, podia serestudado, mas apenas por meio de uma abordagem intuitiva esubjetiva que levava a uma compreensão ampla. Os métodosdas ciências naturais não eram apropriados. O debate acirradoentre os positivistas e Dilthey e seus simpatizantes culminou,numa grande controvérsia metodológica,,.a Metbodenslreit,:queteve início em 1883 e, mais tarde, levou ao desenvolvimento.de uma-nova história cultural. Além disso, incitou Max Weber

21. TROELTSCH, Ernst. Apud RINGER, Fritz K. Tloe Decline of theGerman Mandarins The German Academic Community, 1890-1933. Carnbridge, Mass.T Harvard University Press, 1969. p. 101.

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a elaborar os princípios cia sua sociologia cultural numa sériecie afirmações metodológicas que surgiram entre 1903 e 1919.

Weber definia cultura como "o legado cie uma parcela fi-nita clã infinidade cie fatos do mundo sem significado, que temsignificado e importância cio ponto cie vista dos seres huma-nos".22 Sua expressão mais característica foi na vida religiosa.Embora cultura fosse uma questão de idéias, quase sempreimplícitas, que podiam ser apreendidas apenas por meio deuni exercício cie identificação da imaginação, Weber insistiaque "as convicções e os valores são tão 'reais' quanto as for-ças materiais" e que elas podem "transformar a natureza darealiclade social".23 A cultura, entretanto, era vulnerável. Seusalicerces estavam sendo minados pela civilização, pelas forçascorrosivas e irresistíveis da ciência, pela racionalização, pelaburocratização e pelo materialismo. Em sua defesa, a culturapode contar apenas as probabilidades caóticas de renovaçãocarismática e o trabalho defensivo cio intelectual.

Mais recentemente, Woodruff D. Smith aprimorou a ge-nealogia cie Ringer em Poliiics and the Sciences of Ciiltuve inGermany, 1840-1920(1991)- Ele extrai uma linha específicade reflexão acadêmica liberal sobre cultura, uma Kuitlirwis-senschaft distinta da Geisteswissenschaften da tradição herme-nêutica. Essa maneira de pensar se aproximava mais dasidéias liberais francesas e inglesas; e Smith afirma que Herdere Humboldt era-m mais solidários ao Iluminismo cio que pare-ciam. Os acadêmicos clã tradição liberal abordavam culturacom um espírito científico, buscando leis de desenvolvimen-to, Eles definiam cultura, observa Smith, num sentido antro-

: pológico: "Quer dizer, eles se interessavam principalmente pe-los padrões cie pensamento e comportamento característicoscie todo um povo, e não pelas atividades intelectuais e artísti-:,;cas cia elite.'"2?. Os destinos dessa tradição liberal - e cia tradi-ção hermenêutica mais conservadora - flutuavam com ps des-

22. Apud SCIIROEDER, Ralph. Max Weber and the Sociology ofCulture. Londres: Sage, 1992-. p. 6.23. Id, ibid,, p, 8.24. SMITH, Woodruff D. Polítícs and the Sciences Of Culture inGermany, 1840-1920.Nova York: Oxford University Press,'1991-;p. 3.

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tinos cios movimentos liberais e nacionalistas cia política ale-mfy. Os anos d.e 1848 e 1870 foram divisores de'água para am-

, bas as tradições cie pensamento, e Smith identifica o ressurgi-mento de uma preocupação com cultura um tanto científica e

- liberal por parte da escola etnológica criada por Rudolf Vir-chow em Berlim, nas décadas de 1870 e 1880.

.Na Grã Bretanha,-bem como na França e na Alemanha, acrise política européia da década cie 1930 suscitou novos e an-siosos debates em torno das questões cie cultura e civilização.Entretanto, os intelectuais recorriam cie forma mais direta auma tradição bastante inglesa de reflexões sobre a posição quea alta cultura ocupava na vicja de uma nação; o ponto cie re-ferência desses intelectuais era a tese de Matthew Arnold, queficou mais. conhecida ao ser apresentada em Culture andAnarchy (1869). A cultura, acreditavam- eles, estava ameaçadapor dois fatores: a civilização material e a cultura de massa.

Depois cia humilhação cie Munique, T. S. Eliot ficou bas-tante apreensivo, não tanto por uma aversão às políticas ciogoverno de Chamberlain, mas por algo mais profundo, "a dú-vida sobre a validade de uma civilização".25 (Quando.Eliot es-crevia sobre materialismo, ou finanças e indústria, ele preferiausar o termo "civilização" a "cultura".)

Será que a nossa sociedade sempre tão convicta de sua su-perioridade e retidão, tão confiante em seus pressupostos,in-questionáveis, configurou-se em torno de algo mais permanen-te cio que uma congérie de bancos, empresas de seguros, e in-dústrias, e teve alguma, convicção mais essencial cio que a dosjuros compostos e da manutenção cie dividendos?

v Refletindo sobre essas questões-logo após a guerra, Eliotfoi-levado a repensar toda a questão sobre cultura, Por cultu-ra, .disse ele a uma platéia alemã,

refiro-me, primeiramente, ao que os antropólogos .querem di-zer: o modo de vida de um determinado povo que vive junto

i num mesmo lugar. Essa cultura pode ser vista em suas artes,seu sistema social, seus hábitos e costumes e sua religião. Mas

25. ELIOT, T. S. Theldea ofa Chrlslian Society. iondon: Faber anelFaber, 1939. p. 64,

cultura e civilização

tudo isso junto não constitui a cultura...uma cultura é mais do.que s reunião de artes, costumes e crenças religiosas. Todas es-sas coisas agem entre si, e para compreender verdadeiramenteunia é preciso compreender todas.2'1

Em Notas para uma Definição de Cultura (1948), Eliotcontrastou essa idéia antropológica cie cultura ("como a usa-da, por exemplo, por E. B. Tylor no título cio livro PrimitiveCulture") com a visão humanista convencional, que está liga-da ao desenvolvimento intelectual ou espiritual cie. um indiví-duo,, grupo ou classe, e não ao modo de vicia cie toda uma so-

; cieclacle. A noção literária tradicional cie cultura era imprópria,pois "a cultura cio indivíduo-depende da cultura cie um grupoou classe", e "a cultura cie um grupo, ou classe depende ciacultura cie toda a sociedade".27 Cada classe "possui uma fun-ção, a cie manter essa parte cia cultura total da sociedade quepertence a essa .classe". A imagem de sociedade de Eliot erahierárquica, porém orgânica. "O importante é uma estruturade sociedade na qual haverá, do 'topo' à 'base', uma gradua-ção contínua cie níveis culturais."28

Em suma, cultura "inclui todas as atividades e interessescaracterísticos de um povo". Ela não estava confinada a umminoria privilegiada, como acreditava Matthew Arnold, masabarcava o majestoso e o humilde, a elite e o popular, o sa-grado e o profano. A título de ilustração, Eliot elaborou -umalista cios traços culturais ingleses: "o Derby Day, a regata cieHenley, a cidade de Cowes, o 12 cie agosto,, uma final cie cam-peonato, as corridas de cães, a mesa cie pinos, o alvo de dar-dos; o queijo Wensleydale, o repolho cozido e cortado em pe-daços, a beterraba em conserva, as igrejas góticas do século19 e a música de Elgar".*29

26. Palestras publicadas como um apêndice em Notei Towards theDefinitfon of Culture. Londres.: Faber anel Faber, 1948. p. 120)27. ELIOT. Notes Towards the Definition ofCitlture. p. "21.28. Id., ibid., p. 48.* Dérby Day, principal prova cie turfe inglesa; 12 cie.agosto, inícioda temporada de caça aos galos silvestres; mesa de pinos, jogotradicional nos pubs ingleses. (N.T.)29. Id., ibid., p. 31. Eliot provavelmente estava seguindo a lista deexemplos de Robert Lowie cios traços que formam a cultura ameri-

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Essa cultura nacional era um todo integrado. Amolei,Colericlge e Newman insistiam" - com base em pontos de vis-ta distintos - que a cultura está ligada à religião. "Podemosir além", escreveu Eliot, "e perguntar se o que chamamos decultura e o que chamamos de religião de um povo não sãoaspectos distintos da mesma coisa: a cultura sendo, essen-cialmente, a encarhaçãp (por assim dizer) cia religião de umpovo".30 (Conseqüentemente, afirmou "ele, "bispo§ fazem par-te cia cultura inglesa, e cavalos e cães fazem parte cia religiãoinglesa".)31 Cultura e religião podem servir ao mesnío gran-de propósito: "qualquer religião, enquanto dura, e em seupróprio nível, confere um significado,evidente à vida, ofere-ce a estrutura para uma, cultura e protege a massa cia huma-nidade do tédio e cio desespero".32 Mas é também função da

. cultura> imbuir a vida de propósito e significado. "Culturapode até mesmo ser descrita como aquilo que faz a vida va-ler a pena."33

Depois'da guerra mundial,. Eliot adotou um relativismoqualificado. Era verdade que a civilização ficara mais comple-xa, que os grupos sociais ficaram mais especializados e as ar-tes, mais sofisticadas; mas não ocorrera nenhum progresso-moral aparente. Além disso, ele insistia que as outras cultu-ras deviam ser tratadas em seus próprios termos. "Podemostambém aprender a respeitar qualquer outra, cultura como umtodo, por riíais inferior que ela pareça em relação à nossa, oupor mais que possamos desaprovar com razão algumas de

cana. Lowie havia comentado que a luz elétrica faz parte dessa cul-tura, da mesma forma que o estusiamo por beisebol, "assim comoos filmes, os thés dansants, as máscaras do Dia de Ação de Graças,os bares, os Ziegfeld Midnight Follies, as escolas noturnas, a im-prensa marrom de William Hearst, os clubes de sufrágio femininos,o movimento a favor do imposto único, as farmácias Riker, os sedasde luxo e Tammany ríall" (LOWIE, Robert. Culture and Etbnology.[19171. p. 7).30. Id, ibid.; p. 28.31., Icl., ibid., p. 32.32. Id,, ibid., p. 34.33. lei., ibid., p. 26.

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cultura e civilização

suas características: a destruição deliberada de outra culturacomo um todo é um erro-irreparável, praticamente tão per-verso quanto tratar seres humanos como animais."34 É exata-mente a diversidade das culturas que deve ser valorizada. Oideal de uma jcultura mundial comum, por conseguinte, éuma noção monstruosa: "uma cultura mundial cjue fosse sim-plesmente uniforme-não seria cultura. Teríamos uma huma-nidade des-humanizada". "Devemos aspirar, sim, a uma cul-tura mundial comum mas que não diminua a particularidadedas partes que a compõem." Ele também alertou para o fatode que. variedade cultural provocaria conflito. "Em últimaanálise, religiões antagônicas significam culturas antagônicas;e religiões,não podem'ser conciliadas."35

Uma década mais tarde, em 1958, Raymond Williamsproduziu uma genealogia dos teóricos ingleses sobre cultura,(paralela aos ensaios de Febvre Sobre a tradição francesa e cieElias sobre a Alemanha). Rejeitando o apelo de Eliot-a umaabordagem antropológica especializada, Williams o situavaexatamente dentro do .pensamento inglês tradicional de cultu-ra, uma tradição que ele insistia ser bastante distinta das ale-mãs e francesas.

Raymoncl Williams (1921-1988) vinha de uma classe ope-rária, cie um meio socialista na fronteira com o País cie-Gales.*Ele foi para a Universidade de Cambridge estudar inglês, masseus estudos foram interrompidos pela Segunda Guerra Mun-dial, em que serviu ativamente. Mesmo tendo sido membro cioPartido, Comunista por um breve período antes cia guerra,Raymoncl foi bastante influenciado pela teoria de literatura ecultura formulada por um dissidente carismático, porém pro-fundamente conservador (ainda que de forma sutil), que fazia .parte cio corpo docente da cadeira de inglês na Universidadede Cambridge,.F. R,Xeavis.

A despeito das inclinações políticas de ambos serem bas-tante distintas, suas abordagens tinham muito em comum, e adescrição que E. P. Thompson fez de Williams como "um mo-

34. . id, ibid, p. 65.35. Icl., ibid., p. 62.36. Cf. INGLJS, Precl. Raymond Williaws..Londres: Routledge, 1995.

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ralísta com hábito literário"37 podia ser aplicada também a. Lea-vis. Em 1948, Leavis publicara TheGreatTmdition, no qual de-finia um cânon cie textos cia moderna literatura inglesa que ofe-recia uma cultura alternativa "capaz cie contribuir para a melho-ria da vida" aos valores cia sociedade industrial moderna demassa! Em Cultura e Sociedade, 1780-1950, ...publicado em1958, Raymoncl Williams construiu uma tradição paralela de'in-telectuais literatos (incluindo Leavis .e Eliot) que haviam formu-lado teorias sobre o papel cie salvação da cultura na sociedadeindustrial - ou, mais precisamente, na Inglaterra moderna:

Na introdução de uma nova edição cio livro, em 1983,Williams disse que esse argumento havia se baseado na "des-coberta cie que a idéia de-cultura, e-a palavra propriamentedita em seus empregos mais tradicionais, passara a fazer par-te do pensamento inglês no período que normalmente chama-mos de Revolução Cultural".38 O termo havia entrado para odiscurso inglês juntamente com outras palavras: "indústria","democracia", "classe" e "arte". A noção cie cultura tomou for-ma por intermédio da sua relação com essas outras idéias. Emparticular, a idéia de cultura havia se desenvolvido em para-lelo ,ao que Carlyle chamou de "inclustrialismo".

Segundo Williams, o discurso inglês sobre cultura foiiniciado pelos poetas românticos, particularmente Blake,Wordsworth, Shelley e Keats. Muito embora reconhecesseque muitos dos temas desses poetas podiam ser encontra-dos em Rousseau, Goethe, Schiller e Chateaubriand, Wil-liams insistia que havia certa inclinação inglesa em suas for-mas cle_ pensar, moldada pela reação cios poetas à Revolu-ção Industrial, cujo lema era "A Poesia e ó Princípio do Ego,dos quais o dinheiro representa a encarnação visível, são oDeus e o Mamon cio muncló", de Shelley.39 Mas Williams ar-

37. THOMPSON, E. P; Making History: Writings on History and Cul-ture. Nova York: The Ffee Press, 1994. p. 244.38. WILLIAMS, Raymond. Culture and Society. ed. rev. Nova York:Columbia University Press, 1983 (publicado pela primeira vez emLondres: Chatto and Windus, 1958). p. vii. Esse argumento foi re-petido em Id. Keywords. Oxford: Oxford University Press, 1976.39. As citações de Shelley, Coleridge, Arnold, Eliot, Leavis e de ou-tros autores nestas páginas foram selecionadas por Raymond Wil-liams para ilustrar seu argumento em Culture and Society,,

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gumentava que essa oposição maniqueísta entre arte e co-mércio não podia ser Sustentada. "A conseqüência positivada idéia cie arte como uma realidade superior era que elaoferecia uma base imediata para uma .importante crítica aoinclustrialismo. A conseqüência negativa é que tendia...a iso-lar a arte...e, dessa forma, enfraquecer a função dinâmicaque Shelley propôs pára ela."

Coleridge e Carlyle fizeram uma crítica mais sofisticada àcivilização industrial. Civilização significava modernidade, ma-,terialismo, indústria e ciência: o mundo do progresso festeja-do pelos utilitaristas: Ela anunciava que as ciências positivasrepresentavam a única base confiável de conhecimento. Carly-le condenava a tese de que "não existem ciências verdadeiras,á não ser a externa; de que para o mundo interiorizado (se éque ele existe) o único caminho concebível é para fora; deque, em suma, o que não se consegue investigar e compreen-der mecanicamente, na verdade não pode ser investigado ecompreendido". Coleridge declara em itálico para chamar aatenção "a distinção permanente e o contraste ocasional entre'educação e civilização ".

Mas a própria civilização nacla mais é cio que um bem con-traditório [escreveu Coleridge], se não muito mais uma influên-cia corrompedora," uma doença que^consome, do que o viçoda saúde, e seria melhor dizer-de uma-nação assim caracteriza-da que ela é mais envernizacla que policia, pois que sua civili-zação não se fundamenta ha educação e no desenvolvimentoharmonioso das qualidades e aptidões que caracterizam a con-dição humana.

Matthew Arnold fez a declaração mais influente sobre aoposição entre os valores cia cultura e os valores da civiliza-ção moderna. A civilização industrial era "muito mais mecâni-ca e exteriorizacla cio que a civilização cia Grécia ou cie Roma,e a tendência é que essas características se intensifiquem". Osfilisteus estão, contentes com o progresso material que a civi-lização proporciona. Mas:

Diz a cultura: "Observe essas pessoas, seu moclo de vicia,.seus hábitos, seus costumes e seu tom cie voz; analise-as comatenção; observe o que lêem, o que lhes dá prazer, o que cli-

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zem, os pensamentos que povoam suas mentes. Valeria a penaser rico com a condição dê' se tornar como elas?"

Williams observou com, pesar que Arnold imbuiu a tradi-ção de-ura novo pedantismo e orgulho espiritual, reagindo- àvulgaridade cie uma forma, por si só, vulgar. Em sua opinião,Arnold estava infectado por "sentimentos de classe em grandeparte egocêntricos".* E se ele desprezava a burguesia de men-talidade estreita, Arnold estremecia diante das pessoas co-muns. A despeito da sua preocupação crescente com a educa-ção popular, ele estava pronto a invocar proteção ao Estado,contra as massas ameaçadoras, que "os amantes da cultura di-zem prezar, mas contra as quais empregam fogo e força".

Arnold podia ser descartado como reacionário, mas Wil-liams acreditava que, de modo geral, os grandes teóricos in-gleses não compreenderam a importância permanente cio in-clustrialismo e a natureza cia civilização que este criara. Ele de-dicou um longo capítulo aos clois ensaios de John Stuárt Millsobre as idéias de cultura e civilização de Bentham e Colericl-ge (ensaios que foram revisados por Leavis)." Mill havia ten-tado encontrar uma forma cie sintetizar a ciência cia vida prá-tica, representada por Bentham, com o que chamou de "filo-sofia cia cultura humana", cujo porta-voz foi Colericlge. Massua síntese, inevitavelmente, não alcançou seu objetivo, pois

^ele escreveu sobre "Civilização" de forma, geral, quando deve-ria ter abordado especificamente a questão cio "Industrialis-mo" (que para Williams representava realmente o capitalis-mo). Como Mill não compreendeu a natureza cias mudançasque ocorreram na .Inglaterra, ele não reconheceu que a rea-ção cie. Colericlge ao inclustrialismo transcendia as fronteiras'cio seu próprio "Utilitarismo humanizado".

Coleridge, segundo Williams, havia antecipado uma: críti-ca mais radical à sociedade capitalista, e as intuições de Cole-riclge foram desenvolvidas por Ruskin, Çarlyle e William Mor-ris. Williams identificava, Morris em particular como "a figura

40. WILLÍAMS, Raymond, op. cit. p. 117.41.-LEAVIS, E. R. (Eá.). Mill on Bentham and Coleridge. Cambrid-,.ge: Gambridge University Press, 1950.

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cultura e civilização

central cia tradição,",'12 pois ele começou a articular uma críticacio inclustrialismo proto-socialista,^-indicando a possibilidade cieum renascimento cultural .popular. Mais tarde, D. II. Lawrencese tornaria um porta-voz mais explícito de uma sensibilidadepopular, uma testemunha das possibilidades libertantes da ex-periência, da classe operária, Eliot, em contrapartida, represen-tava uma posição conservadora sobre cultura, mas foi originale importante,.pois analisou a posição que a cultura ocupavanuma sociedade clássica. ("Podemos dizer de Eliot o que Milldisse, de Colericlge, que um 'Radical ou Liberal esclarecido'deve 'exultar diante um Conservador assim'".)43 Williams tam-bém louvava Eliot por sua perspectiva anti-indiviclualista, mes-mo que seu ideal de uma sociedade integrada não pudesse serconciliado com a realidade da sociedade individualista atomi-zacla que o capitalismo inevitavelmente produzia.

Não obstante, Williams insistia em afirmar que a abor-dagem de Eliot à cultura -estava firmemente situada dentro ciatradição literária inglesa. Para Eliot, os principais componen-tes da cultura eram a religião e as artes, como haviam sidopara Coleridge e Arnold, e sua inimiga, como sempre, era acivilização moderna. Williams menosprezava p significado ciaintrodução da idéia de "cultura" cie Eliot como "todo ummoclo de vicia". Ele admitia que o uso do termo nesse senti-do "havia se destacado mais na antropologia e na sociologiado século 20"," mas afirmava que até mesmo o uso antropo-lógico não era novo.

O sentidodepende, na verdade, cia tradição literária. O de-senvolvimento cia antropologia social tendeu a herckir e a for-talecer os modos cie analisar a sociedade e a vida cotidiana quehaviam sido elaborados com base na experiência geral do in-clustrialismo. A ênfase em "todo um moclo de vida" vem desdeColeridge e Çarlyle, mas o que era uma afirmação pessoal devalor transformou-se num método intelectual generalizado.

42. Icl., ibid, p. 161.43. Icl., ibid., p. 227.,44. Essa citação e a seguinte são Icl,,- ibid., p. 232-3.

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Williams não estava familiarizado com as ciência sociais,mas-sua esposa, que estudara antropologia na London Schoolof Êcpnpmics, "fez com que ele lesse o trabalho dos sociólo-gos que constavam do programa de estudos da década ..de1930 dá LSE"45 enquanto ele escrevia Cultura e Sociedade. En-tretanto, ele admitia que duas lições podiam ser aprendidascom os antropólogos. A primeira era que uma mudança pocle-ser positiva, mas não pode ser fragmentada: "Um elemento cieum sistema complexo dificilmente pode ser alterado-sem afe-tar seriamente o todo." A segunda lição era que existiam ou-tras alternativas à Civilização industrial, além cio munclo me-dieval evocado por tantos autores ingleses que'escreviam so-bre cultura. Mas essa "talvez fosse cie valor mais duvidoso",uma vez que nem o primitivismo riem o meclievalismo repre-sentavam uma opção realista em nosso próprio caso.

A verdadeira importância .do discurso de Eliot, para Wil-liams, era seu argumento cie que a cultura varia de classe-paraclasse em sociedades complexas. Uma cultura de elite nãopode florescer isolada, tampouco pode ser estendida entre asclasses sem adulteração. Isso aponta para uma. questão bas-tante diferente. A cultura popular eleve contaminar a culturamais elevada, ou mais autêntica - ou poderia ser uma fontecie renovação? Leavis havia abordado a mesma questão emseu livro Mass Civilisation and Minoríty Culture (1930). Toda-via, ele aceitava a tese de Arnolcl cie que "a avaliação com dis-cernimento cie arte e literatura depende de uma pequena mi-noria". Essa pequena elite

.constitui a consciência da raça (ou um ramo dela) num cieter-. minado período... Dessa minoria depende a nossa capacidadecie lucrar com as melhores experiências do ser humano no pas-sado... Na sua conservação... está a linguagem, o idioma'emconstante transformação, do qual depende o bem viver, e semo qual a distinção do espírito é frustrada e incoerente. Por "cul-tura", refiro-me ao uso dessa .linguagem.

45.'INGLIS../?£?v/?jo«rf Williams~p. 130.

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Williams afirmou que enquanto Arnold confrontava o In-dustrialismo, Leavis identificava e desafiava outro monstro, queemergira da fumaça e da fuligem cías\fábricas satânicas: a Cul-tura de Massa. Esta foi representada por Leavis pela imprensapopular e, até mesmo, pelos semanários intelectuais, e epito^tríada por Middletown, comunidade de Illinois que havia sidodescrita por dois etnógrafos americanos, Robert e Helen Lyrid,nüfrr livro que trazia audaciosamente como subtítulo: A Studyof Contemporaiy Culture* Leavis ficou visivelmente estarreci-do com o quadro que os autores apresentaram, da vicia emuma pequena ciclacle no meio-oeste. A julgar pela cultura deMiddletown, o mundo contemporâneo certamente estava empéssimas condições. "Middletown é um livro assustador",*"concordou Williams, mas ele insistia que a cultura manufatura-da cios bairros elegantes cia classe média precisava ser diferen- •ciada-da cultura autêntica que emanava cia experiência da clas-se operária, uma experiência que estimula ã oposição a pa-drões estabelecidos e prefigura os valores sobre os quais uma

, sociedade melhor deve ser criada. Williams, conseqüentemen-te, estava impaciente com as referência nostálgicas cie Leavis auma época de ouro, quando, imaginava ele, a cultura inglesahavia se apoiado firmemente sobre a base de uma vida comu-nal orgânica. Socialista, ele não podia se juntar à lamentaçãode Leavis pela "grande mudança - essa desintegração vasta eaterrorizante... descrita comumente como progresso".

Os autores no cânon cie Williams haviam formulado umdiscurso nacional distintivo sobre cultura. Eni'contraste comos intelectuais alemães, eles não apelavam para uma culturaespecificamente nacional (e talvez isso tivesse sido mais pfò-blemático, pois o que teriam eles feito cia cultura galesa, es-cocesa ou irlandesa?). Ao contrário cios franceses, eles não es-tavam inclinados a celebrar os valores nacionais cie uma civi-lização científica e racional. Em Vez disso, eles escreveram so-bre urna alta cultura ao mesmo tempo européia e inglesa. O

.46. LYND, Robert ; LYND, Helen. Middletown: A Study in Contem-poraiy Culture. Nova York: Harcourt Brace, 1929: 47. WILLIAMS, RaymoncL.op. cit. p. 260.

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problema central desses escritores - a relação entre alta cultu-ra, cultura popular e progresso material na sociedade indus-trial — foi relançado pôr Williams em termos marxistas, comouma dimensão cie um conflito xle classe mais fundamental. ,

Na introdução cie uma nova edição do seu livro, publi-cada em 1983, Williams comentou cie forma um tanto defen-siva que os críticos haviam perguntado por que ele ignoravaos autores de outros países que escreviam sobre cultura. Umbiógrafo observa que ele "não sabia ler alemão e não lia fran-cês por diversão",48 mas Williams, cie qualquer forma, estavaconvencido de que o discurso inglês sobre cultura emergiracie uma experiência histórica bastante peculiar. A revoluçãoindustrial tinha começado na Inglaterra, e foi lá que seus efei-tos foram avaliados primeiro.

No início, e certamente durante duas ou três gerações, foi li-teralmente um problema encontrar uma linguagem que expres-sasse esses efeitos. Assim, embora seja verdade que outras so-ciedades passaram por mudanças comparáveis, e que novasformas cie -pensamento e arte surgiram em resposta a eles, mui-tas vezes cie maneiras tão penetrantes e interessantes quanto adesses escritores ingleses, ou mais, é importante analisar o quehouve oncle aconteceu primeiro.1''

Esse não é um argumento persjjasivo, pois prioridadenão garante intuição mais elevada, .e no final do, século 19 aexperiência inglesa cie industrialismo era amplamente partilha-da. De qualquer modo, os escritores com quem Williams esta-va envolvido muitas vezes eram profundamente influenciadospelos debates continentais. Worclsworth estava contaminadopela linguagem e pelas Idéias cia Revolução Francçsa; Colètíd-ge estava impregnado cia filosofia alemã (com efeito, Mill es-creveu sobre a "escola teuto-coleridgiaiia"); Mill talvez tenhasiclo o comentarista mais sofisticado do positivismo cie Comte;Carlyle escrevia mais extensamente, sobre Goethe e ps roniãn-

48. INGLIS, op. cit. p. 145.49. Introdução à segunda edição de' Culturé and Society, 1983, p.XJXÍ.

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ticos alemães; Arnold era insistentemente europeu, um tor-mento cie .insutaridade cultural inglesa; e Eliot baseava-se nasidéias do escritor católico francês de direita Charles Maurras.

O próprio projeto cie Williams certamente eleve ser vistocomo uma contribuição ao debate europeu mais amplo queocorreu em meados do século 20 sobre as origens e ó signi-ficado de cultura e civilização. Seus depoimentos são análo-gos aos cie Febvre e Elias; e assim como o próprio Williamsmais tarde veio a reconhecer, os argumentos que ele utilizoueram semelhantes aos que haviam siclo desenvolvidos pela Es-cola de Frankfurt na Alemanha e por Gramsci na Itália. À me-dia que a Europa enfrentou sua maior crise, um antigo discur-so europeu sobre cultura irrompeu novamente. Em toda a Eu-ropa, os mesmos temas reapareceram nos mais diversos deba-tes, atraindo radicais e reacionários — bem.como-hümanistas ecientistas sociais.

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