Adorno, Theodor- o Curioso Realista

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    trs vezes siegfried kracauer

    Nos ltimos anos, voltou a estar acessvel na Alemanha uma srie de escritos de Siegried Kracauer. Mas, a partir de taisescritos, bastante diversicados, a imagem do autor no se tornou at

    agora to clara ao pblico alemo quanto mereceria. Para comear aazlo e delinear algo da gura de Kracauer, creio estar qualicadopela mais simples razo: somos amigos desde minha juventude. Eu erasecundarista quando o conheci, por volta do nal da Primeira Guerra.Fomos ambos convidados por uma amiga de meus pais, Rosie Stern,proessora eetiva no colgio Philanthropin1, a cujo corpo docentepertencia o tio de Kracauer, o historigrao dos judeus de Frankurt.Como era certamente a inteno de nossa antri, estabeleceuse entre ns intenso contato. A partir de minhas recordaes desse tempo,consciente da deicincia de tal onte de conhecimentos, gosta

    ria de tentar esboar algo como a idia objetiva da personalidade

    Resumo

    Neste ensaio, Theodor Adorno combina memrias pessoais

    anlise da obra de Siegried Kracauer, acentuando suas particularidades, como o trao antisistemtico, a averso ao

    idealismo, especializao e aos mtodos convencionais de anlise, com orte lastro na prpria experincia, o que possibilitou ao autor de O ornamento da massa descobrir novos objetos com uma rara liberdade, notavelmente antiideolgica.

    PalaVRaS-chaVE:Siegried Kracauer; Filosoia alem; Sociologia alem;

    Pensamento do sculo XX.

    AbstRAct

    In this essay, Theodor Adorno combines personal memories

    with the examination o the work o Siegried Kracauer. He emphasizes some o its particularities, such as its antisys

    tematic aspect, his aversion to idealism, to specialization and conventional methods o analysis. Adorno searches the

    ways through which the author o The Mass Ornamentcould discover new objects with rare liberty.

    KEywORDS:Siegried Kracauer; German Philosophy; German Sociology;20th century thought.

    O CuriOsO realista*

    [*] Adorno, Theodor W.Noten zurLiteratur, Der wunderliche Realist.Frankurt/M: Suhrkamp, 2002[1965], vol. 3,pp. 388 408. Este en

    saio sobre Siegried Kracauer, inicialmente preparado para uma transmisso emitida pela rdio de Hessen, em7 de outubro de 1964, teve sua primeira verso impressa emNeue Deutsche

    Het, n 101, set. out. 1964. [N. do T.]Os direitos de publicao oram cedidos pela Editora 34 Letras. A revista

    Novos Estudos agradece especialmente a Alberto Martins e Milton Ohata.

    [1] Trata se da escola da comunidade judia de Frankurt am Main, a maiorda Alemanha at seu echamento, em1942, pelo regime nazista. [N. do T.]

    Theodor W. Adorno

    traduo e notas de Laura Rivas Gagliardi e

    Vicente A. de Arruda Sampaio

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    intelectual de Kracauer, guiado antes por suas possibilidades do quepelo realizado em sua atuao concreta: h dcadas, o prprio Kracauer apontava a si mesmo como um tipo contrrio quele que deno

    minava homem dado ao trabalho.Ao longo de muitos anos, regularmente nas tarde de sbado, eleleu comigo a Crtica da razo pura. No exagero nem um pouco quandodigo que devo mais a essa leitura que a meus proessores acadmicos. Dotado de excepcional capacidade pedaggica, ele ez Kant alar amim. Sob sua orientao, desde o princpio tive a experincia da obrano como mera teoria do conhecimento, como anlise das condiesde juzos cienticamente vlidos, mas como uma espcie de escritacirada, da qual a situao histrica do esprito podia ser depreendidacom uma vaga expectativa de que, desse modo, algo da prpria verdade

    pudesse ser conquistado. Se mais tarde, em relao aos textos loscos tradicionais, pouco me deixava impressionar por sua unidade esistemtica unissonncia, dedicandome mais ao jogo de oras que seextenuam reciprocamente abaixo da supercie de cada opinio doutrinal echada em si mesma, se sempre considerava as losoas codicadas como campo de oras, decerto oi Kracauer quem me estimuloua isso. Ele me apresentou a crtica da razo no apenas como sistemado idealismo transcendental. Antes, mostroume como momentosobjetivoontolgicos e subjetivoidealistas nela se enrentam; comoas passagens mais eloqentes da obra so as eridas que o confito deixa

    na doutrina. Sob certo aspecto, as rupturas de uma losoa so maisessenciais que a continuidade do nexo de sentido, o qual a maioriadas pessoas acentua por sua prpria conta. Esse interesse, do qualKracauer tomou parte por volta de 1920, combatia, sob o lema ontologia, o subjetivismo epistemocrtico e com mania de sistema; nessecontexto, ainda no se azia a distino adequada entre o propriamente ontolgico e os vestgios do realismo ingnuo em Kant.

    Sem que pudesse me dar plena conta, captei pela primeira vez, graas a Kracauer, o momento de expresso da losoa: dizer aquilo que

    vem mente. O momento contrrio a esse, o do rigor lgico, da coero

    objetiva no pensamento, recuou para o segundo plano. Como s vima deparar com tal momento na atividade losca da universidade,ele me pareceu acadmico durante bastante tempo, at que descobrique, entre as tenses das quais a losoa vive, aquela entre expressoe obrigatoriedade lgica talvez seja a central. Kracauer gostava de sedesignar como um homem algico. Ainda guardo o quanto me impressionou tal paradoxo em algum que losoa, lida com conceitos,juzos e inerncias. Mas, nele, aquilo que urgia expresso loscaera a quase ilimitada capacidade de sorimento: expresso e sorimento esto irmanados um com o outro. Sua relao com a verdade era de

    tal modo que o sorimento, sem ser dissimulado e atenuado, entrava

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    [2] Kracauer, Siegried . Das Leidenunter dem Wissen und die Sehnsuchtnach der Tat[O sorimento causadopelo saber e a saudade da ao, 1917],republicado emFrhe A bhandlungenaus dem Nachlass, Inka Mlder Bache Ingrid Belke (orgs.). Frankurt/M:Suhrkamp, 2004, vol. 1.[N. do T.]

    [3] A expresso sem pele (ohneHaut) parece azer aluso a umasensibilidade que no separa o que interno e externo. Adorno a empregatambm num texto sobre Proust: Abusca pelo tempo perdido prova a re

    alidade interna e externa por meio doinstrumento da existncia de um homem sem pele. In:Noten zur Literatur,Zu Proust, op. cit., p. 674. [N. do T.]

    no pensamento, ao passo que, em outros casos, este volatiza aquele; tambm nos pensamentos da tradio se redescobria sorimento.

    A palavra sorimento chegou a penetrar at no ttulo de um dos pri

    meiros estudos de Kracauer2

    . Ele me parecia, embora no osse emnada sentimental, um homem sem pele3; como se tudo que exterioracometesse sua interioridade indeesa; como se disso ele no pudessese proteger seno ao dar voz a sua vulnerabilidade. Por mais de umarazo, teve muitas diculdades na inncia; o aluno do colgio Klinger tambm soreu injustias antisemitas, algo bastante incomumna cidade comercial de Frankurt, e, em seu prprio meio, a despeitode uma tradio de cultura humanista, pesava algo como uma alta dealegria; com certeza, provinha da sua averso posterior prosso dearquiteto, que teve de assumir como ganhapo. Olhando para trs,

    pareceme que, na atmosera domstica de Kracauer, mesmo com todaamabilidade a mim demonstrada, j se antecipava h muito a catstroe que se abateu sobre sua me e a irm dela a qual parecia exercer infuncia sobre ele , quando ambas j estavam em idade bemavanada. Bastaria mencionar, segundo sua prpria narrativa, o atode que ele, em desolada pardia dos livrinhos vermelhos nos quais osproessores se compraziam em escrever censuras, portava seu prpriolivrinho, que continha notas sobre como os colegas se comportavamcom ele. Muita coisa nele era reativa; por m, mas no de somenos,losoa era um medium de autoarmao.

    Vias de comunicao correm da at o trao antisistemtico de seumodo de pensar e sua averso ao idealismo no mais amplo sentido, aqual no o abandonou ao longo de sua vida. Idealismo era para ele ummodo de pensar transgurador, de acordo com a sentena de Georg Simmel, segundo a qual surpreendente como pouco se nota na losoada humanidade o sorimento desta ltima. Para quem no estudara nauniversidade losoa como rea de concentrao, a violncia de suasgrandes construes, to aeitas a degenerar em panegricos, permaneciaestranha, Hegel sobretudo. O trabalho de Kracauer oi to amplamentemarcado por isso que, certa vez, por volta de 1923, Benjamin o chamou

    de inimigo da losoa. Algo de refexo amadorstica eita por contaprpria acompanhou sua uvre, assim como certo desleixo amenizava aautocrtica em avor do prazer de divertirse com um belo insight. Sem d

    vida, pensamentos que se previnem em demasia contra o perigo do erroesto de todo modo perdidos e, por isso, os riscos que Kracauer correuno esto desprovidos de uma ardilosa cautela; uma vez, ele usou comoepgrae de um tratado uma rase de Nietzsche, segundo a qual um pensamento que no perigoso no merece ser pensado; s que, com maiorreqncia, a vtima de tais perigos vem a ser o prprio pensamento e noseu objeto. Em contrapartida, o autodidatismo de Kracauer concedialhe

    certa independncia com relao aos mtodos convencionais. Foilhe

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    [4] Kracau er. Georg Simmel. In:O ornamento da massa, trad. CarlosEduardo Jordo Machado e MarleneHolzhausen. So Paulo: Cosac Naiy,2009, pp. 243 78. [N. do T.]

    [5] Idem. Soz iol og ie als Wis sen s-chat. Eine erkenntnistheoretischeUntersuchung [Sociologia como cincia. Uma investigao epistemolgica, 1922], republicado emSchriten.Frankurt/M: Suhrkamp, 1971, vol. I.

    [N. do T.]

    poupada a atalidade da ilosoia proissional: estabelecerse comoramo, como cincia especializada para alm das cincias especializadas;assim, ele nunca se deixou intimidar pela linha divisria entre losoa

    e sociologia. O medium de seu pensamento era a experincia. No a dasescolas empiristas e positivistas, que destilam a prpria experincia emprincpios gerais e disso azem mtodo. Ele seguiu a experincia intelectual como algo individual, resolvido a pensar apenas aquilo que eracapaz de preencher comaquilo que, para ele mesmo, se concretiza noshomens e nas coisas. Dessa maneira, estava estabelecida a tendncia conteudizao do pensar perante o ormalismo neokantiano ainda inabalado de sua juventude. Ele se ligava a Georg Simmel e Max Scheler,os primeiros a vincular, contra a diviso ocial do trabalho, o interesselosco a um interesse social que, ao menos desde a morte de Hegel,

    cara em descrdito na losoa institucionalmente reconhecida. Conhecia a ambos tambm na esera privada. Simmel, sobre quem escreveu umestudo, aconselhouo a se dedicar por inteiro losoa4. Devia a Simmelno apenas a capacidade de interpretar enmenos especcos, objeti

    vos, voltandose para aquilo que neles, segundo essa concepo, apareceem estruturas universais. Eralhe, alm disso, devedor de uma atitude depensar e expor que, com demorado desvelo, articula um elo com outro,mesmo l onde elos intermedirios atravancam o movimento do pensamento, onde o andamento poderia tornarse tenso: pensar com o lpisna mo. Mais tarde, durante sua atividade como redator, esse momento

    de diligncia protegeu Kracauer do jornalismo; oilhe dicil livrarse dameticulosidade de quem sempre tem de encontrar tudo por si mesmo,inclusive o j conhecido, como se osse recmdescoberto. O eeito deSimmel sobre ele oi, com certeza, muito mais o do gesto intelectual queo de uma anidade eletiva com a losoa da vida irracionalista. Logo depois, em Scheler deparouselhe a enomenologia, antes da husserliana.Seu livroSoziologie als Wissenschat[Sociologia como cincia]5 claramentese esora por vincular o interesse materialsociolgico a refexes epistemolgicas que se baseiam no mtodo enomenolgico. Este vinha aoencontro de seu dom especco. Embora o jovem em amadurecimento

    no quisesse ter a ver com seu meti, a arquitetura, o primado do pticoque esta requer, uma vez intelectualizado, permaneceu nele conservado.Seu tipo de inteligncia no tem nada do intuicionismo grandiloqente, mas muito do sbrio ver. Ele pensa com o olho quase desamparadamente admirado e, sbito, iluminado. Com tal olhar, oprimidos podemtornarse senhores de seu sorimento. Num sentido dicil de denir, seupensamento sempre oi, na verdade, mais viso intuitiva (Anschauung)que pensamento, empenhado com teimosia em no deixar que se barganhe, por meio de uma explicao, nada do que, no choque, as coisas durashaviam imprimido nele. Sua suspeita contra a especulao nutriase, no

    em ltima instncia, de sua ndole natural, que era ainda mais esquiva

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    [6] Verso do poema Vom armenB. B. [Do pobre B. B.] que signiica literalmente Em mim vocstm algum sobre quem no podemconstruir, mas cujo sentido Emmim vocs tm algum em quem nopodem conar. [N. do T.]

    iluso, porque desta se desacostumara com muito esoro. O programada viso de essncia (Wesensschau), sobretudo a assim chamada enomenologia de pequenas imagens, parecia adequado ao olhar dolorosamen

    te resistente, que no se deixava desviar, por menos que, de resto, o traoctico de Kracauer pudesse aprovar a reivindicao scheleriana de captar imediatamente, sem refexo, algo simples e objetivamente vlido.

    A enomenologia daquela poca continha potenciais ainda muitssimodierentes daqueles que surgiram dela aps Scheler e se tornaram dominantes. Ela era como que eita sob medida para um tipo de intelectualh pouco surgido e para suas necessidades. A palavrachave viso deessncia oereciase como remdio para a incapacidade crescente daconscincia experiencial de entender e penetrar a realidade social complexa e cada vez mais coberta por densas teias ideolgicas, cuja siog

    nomia ocupava o lugar da teoria em descrdito. De modo algum, ela eratosomente um sucedneo desta; ela ensinava a conscincia a assimilara si aquilo que escapa com acilidade a quem pensa de cima, e a no sedar por satiseita, no entanto, com atos brutos. Fenomenologia serviaqueles que no queriam ser ouscados nem por ideologias, nem pelaachada do que meramente constatvel. Tais inervaes tornaramseto ecundas em Kracauer como em poucos.

    Seu tema central e, por isso mesmo, raras vezes temtico a incomensurabilidade, que, como relao entre idia e existncia, consiste em preocupao perene da losoa. No livro sobre sociologia,

    esse tema se anuncia assim: das determinaes abstratas supremas,s quais toda disciplina se eleva, no possvel retornar sem rupturas,continuamente, para a empiria, depois de o ente determinado j tersido eliminado. Em todos os seus trabalhos, Kracauer recorda que aopensar no permitido esquecerse, quando olha para trs, do que elenecessariamente se despojou para tornarse um determinado pensamento. Esse motivo materialista; ele levou Kracauer, quase contrasua vontade, crtica da sociedade, cujo esprito cuida, solcito, desseesquecer. Ao mesmo tempo, porm, a averso a um pensamento semreios tambm se interpe no caminho da lgica materialista. A justa

    medida sempre traz em si sua punio, o moderantismo. Nos anospoliticamente engajados em Berlim, Kracauer certa vez zombou desi mesmo chamandose de retaguarda da vanguarda. Com esta nochegou a uma ruptura, tampouco a um entendimento. Recordomede uma conversa entre ns um pouco anterior, de grande importncia, em que Kracauer, contra mim, no queria colocar muito altoo conceito de solidariedade. Mas a pura individualidade na qual eleparecia obstinarse transparecia virtualmente em sua autorefexo.Esquivandose da losoa, o existencial tornase clownerie, no muitodierente do excntrico verso de Brecht: In mir habt ihr einen, au den

    knnt ihr nicht bauen6. A autocompreenso do individual em Kracauer

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    tinha um aspecto que ele projetava em Chaplin: ele era um buraco. Oque a tomava o lugar da existncia era o homem privado como imago, o tipo socrtico heterclito como portador de idias, um despeito

    segundo os critrios do universal dominante. Seuparti pris pelo insolvel uma constante em meio a um desenvolvimento muitssimocambiante , Kracauer o denia em certas ocasies como averso aocem por cento. Mas isso no nada mais que averso teoria entica: esta tem de ir ao extremo na interpretao de seus objetos, casono queira contraporse sua prpria idia. Na direo contrria,Kracauer perseverou tenazmente em um momento tpico do espritoalemo, pouco importa sua tendncia, momento que sempre volta aevaporarse no conceito. Sem dvida, com isso ele renuncia tareada qual o aproximou sua conscincia da noidentidade da coisa com

    o conceito: extrapolar o pensamento a partir daquilo que resiste a ele, ouniversal, a partir do extremo da particularizao. O modo de pensardialtico nunca oi conorme a sua ndole natural. Kracauer contentavase com a exata xao do particular em avor de seu uso comoexemplo para estados de coisa universais. A necessidade de estritamediao na coisa mesma, de exibio do essencial no seio da maisntima clula de particularizao, estava longe de ser a dele. Conser

    vador quanto a isso, atinhase lgica da subsuno. A idia de umasso atmica intelectual, a ruptura irrevogvel com o enmeno, elecom certeza a rechaaria como especulativa, lanandose com teimo

    sia para o lado de Sancho Pana. Sob o signo da impenetrabilidade darealidade, seu pensamento a abandona, quando deveria recordla epenetrla. A partir da se oerece uma passagem para a justicao darealidade como justicao do inaltervel. A isto corresponde o ato deque permanece socialmente aceitvel a entronizao de uma experincia individual que, por mais enviesada que seja, est em casa consigomesma. Por mais que oprincipium individuationis tambm se sinta emoposio sociedade, ele prprio dela. O pensamento que vacilaem lanarse para alm de sua idiossincrtica orma de reao tambmse vincula, dessa maneira, a algo contingente e o transgura, mas com a

    nica inteno de no transgurar o grande universal. A reao espontnea do indivduo, porm, no algo derradeiro e, portanto, tambmno a garantia de conhecimento vinculador. At mesmo os modos dereao que se pretendem individuais ao extremo esto mediados pelaobjetividade qual aspiram e tm de aperceberse dessa mediao embenecio de seu prprio contedo de verdade. Quanto mais motivado esteja o desinteresse por tudo o que meramente aprendido,como o desinteresse pela exterioridade da atividade cientca, tanto maiso pensamento precisa, em contrapartida, tornarse exterior ao crculo daexperincia no qual ele se orma. Osoupon de Kracauer contra a teoria,

    como contra a soberba de uma razo que se esquece da prpria origem

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    natural, no carece de undamentos. No o menor deles o quanto ateoria em sua pureza tornouse um meio de dominao. O eitio maligno exercido pelo pensamento desta eitio que , inclusive, seu

    sucesso no mercado tambm levado a eeito por sua articulaolgicoinerencial, sistemtica. No entanto, o pensamento que, comoresposta a isso, se subtrai da vinculao terica, a qual todo pensamento anuncia em si, tornase impotente no apenas na realidade. Issotosomente no seria objeo alguma, se o pensamento no soressetambm, internamente, a perda de ora e evidncia. O confito entreexperincia e teoria no para ser decidido de modo cabal para um ladoou outro, mas uma verdadeira antinomia, deve ser resolvido de sorteque os elementos contrrios se interpenetrem.

    Kracauer comprometeuse to pouco com a enomenologia quanto

    com qualquer outra posio intelectual; Simmel aquele a quem oimais el, em uma espcie de indelidade losca com medo vigilante, por assim dizer, das obrigaes intelectuais, como se estas ossemdvidas. O comportamento reativo de Kracauer estava pronto parasaltar de banda quando ele se sentisse atado por vnculos. As muitascrticas que escreveu em sua vida, entre as quais no escasseiam as incisivas, representam quase todas rupturas com o que prprio dele ou,ao menos, com impresses que o dominaram. Em termos hegelianos,portanto, bem se lhe poderia objetar que lhe alta, apesar de toda suaabertura e justamente em proveito da tenacidade desta, a liberdade re

    lativa ao objeto. No olhar que, nele, se apega coisa e a absorve, j estdesde sempre presente, em lugar da teoria, o prprio Kracauer. O momento da expresso ganha preponderncia sobre a coisa com a qual aexperincia se ocupa. Enquanto esse modo de pensar teme o pensar,raro ele chega ao autoesquecimento. O sujeito que protege sua experincia primria como propriedade acilmente ir se colocar diante doque experienciado com o dito anchio sono pittore. Amide, Kracauerlanava arpas contra os outros; inclusive contra Scheler, sobre quem,a despeito da relao pessoal prxima, publicou no Frankurter Zeitungum artigo que assinalava, de modo brusco e ranco, a arbitrariedade dos

    valores eternos propalados por Scheler e, portanto, o ideolgico neles.No que Kracauer pregue o indivduo como norma ou nalidade; elereage socialmente demais para isso. Mas seu modo de pensar se aerraao seguinte: o que deveria ser pensado no pode ser pensado; ele elegeesse negativo como substncia. Eis aquilo que, no sendo propriamente uma necessidade teolgica, o cativava a Kierkegaard e losoa daexistncia, da qual ele se aproximou em estudos como o que no oipublicado sobre o romance policial cujo primeiro captulo est agoraem O ornamento da massa. Muito antes de Heidegger e Jaspers, ele projetou uma obra existencialista, mas no a concluiu, como tampouco

    terminou, alguns anos depois, outra sobre o conceito de homem em

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    [7] Kracauer. A Bblia em alemo.In: O ornamento da massa, op. cit., pp.205 20. [N. do T.]

    Marx. No bon motalgum, mas uma simples constatao: contaseentre as mais relevantes realizaes de Kracauer o ato de que ele deixoupara trs aqueles manuscritos ambiciosos, embora sua capacidade esti

    vesse altura deles. Ele utilizou produtivamente seu renitente temor detornarse vassalo da teoria de outros ou da prpria. Possudo pelo incomensurvel, ele no se achava pronto para proanar seu prprio motivo,ao reduzir a incomensurabilidade losoa. Com argcia, ele reconhecia que a idia marxista do homem, por mais que sua doutrina delahouvesse se nutrido, rebaixa o homem a algo esttico, reconhecia queo teor da dialtica de Marx no atingido quando se cuida de undlapositivamente na essncia humana, em vez de deixla emergir de maneira crtica das relaes que oram deormadas pelos homens e devemser transormadas atravs dos homens. Que Kracauer tenha exposto

    suas refexes tanto existencialistas quanto sociais no como tais, masapenas de orma indireta, de preerncia na apresentao de enmenosapcrios que, para ele, se tornam alegorias histricoloscas, issoera mais que capricho literrio. Desde o incio e de maneira inconsciente, talvez osse claro a seu modo de pensar materialmente orientado queos assim chamados grandes contedos intelectuais, idias e estruturasontolgicas no existem por si mesmos, alm das camadas materiais esem depender delas, mas crescem, indissoluvelmente, junto com estas;oi isso que depois o capacitou recepo de Benjamin. Contra MartinBuber, em quem o existencialismo lhe veio ao encontro em pessoa, ele

    levantou uma polmica tambm reeditada em O ornamento da massa7,muito digna de leitura, em que identica a essncia restauradora datraduo da Bblia, ou seja, a essncia de um prottipo para o jargo daautenticidade dos dias de hoje. A polmica baseiase na compreensode que a teologia no se deixa restaurar por mero querer, porque seriabom ter uma; isso acorrentaria a prpria teologia ao interior humano,para alm do qual ela se arma.

    Conorme o teor dessa crtica, a enrgica guinada de Kracauer paraa sociologia no oi nenhuma ruptura com sua inteno losca,mas sim a conseqncia desta. Quanto mais s cegas ele se perdia

    nos materiais que sua experincia lhe trazia, tanto mais rutero erao resultado. Assim, oi ele quem descobriu o cinema como ato social.No inquiriu imediatamente os eeitos; decerto, seuairo advertiua no apreender esses eeitos como coisas xas. Eles no podem serreduzidos a idas isoladas a salas de cinema, talvez sequer a uma multiplicidade delas, mas apenas totalidade dos estmulos, que tinham nocinema, ao menos antes da televiso, sua mais pronunciada expresso.Kracauer decirou o cinema ele mesmo como ideologia. Segundo asregras da pesquisa social emprica, nesse meiotempo muito desen

    volvida do ponto de vista tcnico, a hiptese tcita seria escandalosa,

    mas conservou at hoje toda sua plausibilidade: se um medium deseja

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    [8] Idem. As pequenas balconistasvo ao cinema. In: O ornamento damassa, op. cit., pp. 311 26. [N. do T.]

    [9] Idem.De Cal igari a Hit ler: u mahistria psicolgica do cinema alemo.Trad. Teresa Ottoni. Rio de Janeiro:

    Jorge Zahar, 1988. [N. do T.]

    [10] Idem. Theory o flm: the redemp-tion ophysicalreality [Teoria do lme:a redeno da realidade sica]. Nova

    York: Oxord University Press, 1960.

    Adorno cita a ed io alem, revistae publicada sob o ttulo Theorie des

    Films. DieErrettungder usseren Wi-rklichkeit. Frankurt/M: Suhrkamp,1964. [N. do T.]

    do e consumido por massas transmite uma ideologia em si unssona,preparada de modo homogneo, presumvel que essa ideologia tantose adapte s carncias dos clientes como, em contrapartida, os modele

    cada vez mais. O desnudamento da ideologia do cinema era para ele,tanto quanto a enomenologia, algo prprio de uma nova ase, em ormao, do esprito objetivo. A sute As pequenas balconistas vo aocinema, que noFrankurterZeitungcausou grande espcie8, demonstrou pela primeira vez esse modo de proceder. Mas o interesse de Kracauerpela psicologia de massas do cinema jamais oi meramente crtico. Eletinha em si mesmo algo do ingnuo prazer de ver do reqentador decinema; mesmo nas pequenas balconistas que o divertem, ele encontraparte de sua prpria orma de reao. Essa no a menor das razespor que sua relao com os mediade massa jamais se tornou to rspida

    como aria esperar sua refexo sobre os eeitos deles. A inclinao aoinerior, ao excludo da alta cultura, algo em que se entendia muitobem com Ernst Bloch, levouo a ainda se alegrar com a eira popular e o realejo, quando h muito o macroplanejamento industrial jos havia tragado. No livro sobre Caligari9, argumentos de lmes soresenhados com seriedade, sem pestanejar; bem h pouco, na Theoryo flm [Teoria do lme]10, narra atrocidades como a gnese visvel deuma pea musical no compositor, o heri, como se nele imperasse algocomo a razo tcnica do medium. O cinema comercial, contra o qualKracauer arremetia, inadvertidamente tira proveito de sua tolerncia,

    mas esta, s vezes, mostra seus limites diante do intolerante o cinema experimental.

    Se o estrito empirismo sociolgico anuncia, contra a experincia assistemtica invocada pela sociologia de Kracauer, que no est demonstrado o nexo entre aquele pretenso esprito objetivo e a conscincia eetiva da massa que nele deve precipitarse, ento, h de se conceder algoa essa objeo. Na maioria dos pases do planeta, a chamada boulevard

    presse vende, ao lado de seus sensacionalismos, contrabandos polticosde extrema direita, sem que isso tenha infuenciado os milhes de leitores dos pases anglosaxnicos. Entretanto, tais objees so todas

    como que cmplices do cinema como mercadoria e, em seu conjunto,daquilo que se pe a salvo de suspeitas por meio do rtulo media demassas. Esses media so isentados de responsabilidade, na medida emque no se possa demonstrar com rigor que desgraa eles provocam. Aanlise daquilo mesmo que oerecem mostra, ao menos, que eles dicilmente poderiam provocar algo dierente de uma desgraa. Seria maisaconselhvel renar a anlise dos estmulos, a qual Kracauer inauguroue para a qual hoje se tornou comum o nome contentanalysis, indo almda tese original da satisao de desejo ideolgica, do que se entregara um estudo de eeitos que negligencia com demasiada acilidade o

    contedo concreto do que produz os eeitos, a relao com a ideologia

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    [11] Idem.Die Angestel lten. Aus demneuesten Deutschland[Os uncionrios.Da mais nova Alemanha, 1929], republicado emSchriten, op. cit. [N. do T.]

    [12] Trata se da obraMiddletown: astudy in American culture [Middletown: um estudo da cultura americana],publicada em 1929 por Robert (18921970) e Helen Lynd (1894 1982), pioneiros no estudo do lazer nas sociedades capitalistas avanadas. [N. do T.]

    [13] Grande centro de lazer, inaugurado em 1928, em Berlim. Importante inovao no setor de serviose entretenimento, o Haus Vaterlandpodia abrigar 8 mil pessoas em seuscinemas, cas, sales de baile e bistrs temticos. [N. do T.]

    apresentada. Kracauer est numa posio ambivalente perante o empirismo sociolgico. De um lado, simpatiza com ele, no sentido de quetem reservas acerca da teoria social; de outro, segundo o critrio de sua

    representao da experincia, tem expressas restries ao mtodo preso a mincias, quanticador. Vivendo j h muito tempo na Amrica,expsse ao pblico com uma arguta deesa terica da anlise qualitativa, a qual s ganha seu justo valor quando se sabe at que ponto eladesaa o hbito quase universal da sociologia institucional daquelasterras. O comportamento experiencial de Kracauer permaneceu o doestrangeiro, transposto para o esprito. Ele pensa como se tivesse transormado o trauma de inncia da pertena problemtica em um modode ver ao qual tudo se apresenta como numa viagem, mesmo o que habitual e cinzento, como objeto colorido do espanto. Nesse nterim,

    essa independncia com relao casca convencional oi at mesmoconvencionada pelo termo brechtiano distanciamento; em Kracauer,este era originrio. Kracauer vestese intelectualmente, por assim dizer,com roupa esporte e bon. Isso ressoa no subttulo do livro sobre osuncionrios,Die Angestellten. Aus dem neuesten Deutschland[Os uncionrios. Da mais nova Alemanha]11. A humanidade est visada no poruma identicao, mas sim pela ausncia desta; manterse ora comomedium do conhecimento.

    justo nesse livro sobre os uncionrios que Kracauer se emancipou como socilogo. O mtodo tem muito em comum com o que se

    designa nos Estados Unidos como procedimento doparticipant obser-ver, algo como o dos Lynd emMiddletow12; em 1930, essa obra era comcerteza desconhecida a Kracauer. EmDie Angestellten, ele ez amplo usode entrevistas, mas no empregou nenhum esquema de questionrioestandardizado; com fexibilidade, amoldouse situao dialgica.Se os pretensos rigor e objetividade de levantamentos estatsticosso variadamente pagos com uma alta de concreo e de compreenso para o essencial, Kracauer tentou ao longo de sua vida, daquelamaneira planejadaassistemtica, compensar a exigncia de empiriacom a de resultados que zessem sentido. Nisso residem os mritos

    particulares do livro, cujo acesso tornouse outra vez possvel graas editora Verlag r Demoskopie, ligada ao Instituto Allensbacher. Commais engenho que as coetneas publicaes da cincia acadmica, elediagnosticou aquilo que veio a batizar de cultura do uncionrio. Ele adescreveu, por exemplo, no Haus Vaterland13 berlinense, a imagem originria da conscincia sinteticamente produzida daquela nova classemdia, que no era classe mdia alguma. Nesse meiotempo, esse estilo estendeuse sobre o conjunto da sociedade dos pases com altograu de industrializao. Termos como sociedade nivelada de classemdia e sociedade de consumo neutralizam a inverdade desse es

    tilo. Em seus ingredientes essenciais, desde sempre ele se assemelha

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    [14] Kracauer, O ornamento damassa. In:O ornamento da massa, op.cit, p. 97. [N. do T.]

    [15] Kracauer. Ginster. Vom selber ges-chrieben [Ginster. Escrito por si mesmo, 1928]. Frankurt/M: Suhrkamp,1963. O ttulo signica um tipo de arbusto com fores amarelas, conhecidocomo tojo ou giesta. [N. do T.]

    [16] Joachim Ringelnatz (1883 1934),poeta e pintor alemo. [N. do T.]

    quilo que Kracauer observou nos uncionrios de 1930. Economicamente proletarizados, de ideologia encarniadamente burguesa, elesadicionam um elevado contingente base de massas do ascismo. O

    livro sobre os uncionrios oerece, como se sob condies de laboratrio, uma ontologia antecipadora daquela conscincia que apenasna mais recente ase oi integrada, sem encaixes, ao sistema em seuconjunto. Em certas ocasies, o livro prejudicado pelo tom de ironiacom que se compraz. Depois do horror que aquela conscincia ajudoua incubar, esse tom soa ao mesmo tempo inoensivo e um pouco arrogante, como o preo da hostilidade de Kracauer contra uma teoria que,osse ela perseguida sem digresses, suocaria o riso na garganta. Semdvida alguma, ele sabia que o esprito para o qual apontava com osdedos ora despertado, instigado e planejadamente reproduzido em

    seus portadores, no oi nem espontaneamente o deles. Mas, omitindo isso, por qualquer razo que seja, reerindose antes ao contatoimediato com os manipulados pela cultura de massa do que ao sistemaem seu conjunto, ele parece, com eeito, atribuirlhes s vezes o nusdisso. Mesmo esse deslocamento tem algo de legtimo: a indignaocontra os inmeros que teriam de sablo melhor, e que no undo osabem melhor, mas se entregaram apaixonadamente alsa conscincia.Sua crtica racionalidade da racionalizao tecnolgica, que condenou os uncionrios ao desemprego, mostra da melhor maneiraat que ponto Kracauer levou sua ousadia no livro sobre os uncion

    rios: Ele [o capitalismo] no racionaliza muito, mas muito pouco. Opensamento do qual portador se ope realizao da razo, que ala apartir do undamento do homem14. Se Kracauer ala do undamentodo homem, discurso que de l para c ganhou uma ama suspeita, isso desculpado pelo ato de que, com essa expresso, ele visava precisamente razo que esse discurso em outros casos diama. Seu dgut,porm, dirigese contra a marca distintiva da poca em seu conjunto:os homens no so apenas enganados pela ideologia, mas obedecem risca ao provrbio latino, querem ser enganados e, em verdade, comtanto mais anco quanto mais doloroso seria encarar a situao. De

    resto, Kracauer no restringiu de modo algum sua crtica da ideologia esera da massa. Tambm a exerceu l onde anseios mais elevados daburguesia culta subsistiam, mas inadvertidamente degeneravam emuma ninharia que se considerava o contrrio. Ele oi o primeiro a pr luz do dia as implicaes sinistras da moda de biograas.

    Tenho como a realizao mais signicativa de Kracauer uma criao que, de modo bastante paradoxal, est assentada na terra de ningum entre romance e biograa, o Ginster15, impresso pela primeira

    vez em 1928. O ttulo, emprestado de uma planta que, como ele disseuma vez, citando Ringelnatz16, foresce nos barrancos das linhas r

    reas, substitua o nome do autor; escrito por si mesmo, o livro devia

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    [17] Dobr vojk vejk [O bravo soldado Schweik] a obra mais importantedo escritor tcheco Jaroslav Haek(1863 1923). [N. do T.]

    [18] Popular, malicioso e irreverente, Till Eulenspiegel um personagem do olclore alemo, cujos registros remontam ao nal da IdadeMdia. [N. do T.]

    ser annimo, no pseudonmico. O sujeito esttico no destacadoabruptamente da pessoa emprica. At a gura do narrador, segundoa orma e a denio, entra no campo de ironia de Kracauer. Ginster

    no nenhuma obra de arte cega, autrquica, pelo contrrio, o atericonela terico. Nesse livro, apresentado o insolvel que Kracauer, seassim se pode dizer, ensina o que az de uma maneira muitssimorara na Alemanha, para a qual talvez o nico modelo por estas terrasseja Lichtenberg, maniestao renovada de um gnero venervel doesclarecimento, o roman philosophique. Kracauer chamou Ginster de umSchweik17 intelectual. O livro, que pouco soreu com a passagem dotempo, tornouse produtivo ao no colocar armativamente o n daindividualidade como algo substancial. Graas refexo esttica, o euundamental ele mesmo relativizado. Uma puerilidade renada que

    se coloca como quem nge no entender, quando de ato no entende,eis a imagem inversa da individuao absoluta. Esperto, Ginster domaa realidade em que habita, enquanto murcham diante dele as personalidades que, jactantes, batem com orgulho a mo no peito. Uma ingenuidade que devassa e descreve a si mesma como tcnica de viver jno mais ingenuidade. Transcende para aquela teoria qual torce onariz. A possibilidade de algo humanamente imediato demonstradae negada a uma s vez. Descendo aos undamentos, Ginstercomprovaque a liberdade, a positividade, hoje no pode mais, em absoluto, serposta como tal; doutra eita, o momento idiossincrtico em Kracauer

    se tornaria inelutavelmente mania. Sbio, na nova edio, ele desistiudo ltimo captulo, que coqueteava com essa positividade. altura daconcepo estava a linguagem. Com seu prazer indmito de tomar asmetoras ao p da letra, de autonomizlas maneira de um Eulenspiegel18, de traar com elas, em arabescos, uma realidade de segundograu, a linguagem lanou razes areas que avanam bem adentro damodernidade. Pena que Kracauer, em seus anos de maturidade, sobo constrangimento de escrever em ingls, sem dvida, tambm porindignao contra o acontecido, tenha praticado uma ascese de suaprpria arte da linguagem, que indissocivel do alemo.

    A ase crticosocial de Kracauer, qual Ginsterpertence, data deantes de sua atividade em Berlim para oFrankurterZeitung. Com eeito, nos anos que precederam o ascismo, ele recebeu estmulos doar cortante daquela Berlim. No entanto, sua crtica social manteve,mesmo depois de ele ter se ocupado com Marx, o trao de quem caminha sozinho. Sequer perante o confito mais extremo era possvelusar de uma manobra que o demovesse de sua posio de individualista turro, por mais ntidas que estivessem diante de seus olhos asobjees a ela contrrias. Ele compensava tais objees com aquiloque escapava das malhas da grande teoria. Humanidade ele buscava

    no particular, justamente no que insuportvel para os totalitrios.

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    [19] Brecht, Bertolt. Aquele que dizsim e aquele que diz no. Trad. LuisAntonio Martinez Correa e MarshallNetherland. In: Teatro completo, SoPaulo: Paz e Terra, 2004 [19 29 1930],

    vol. 3. [N. do T.]

    [20] Hans Sachs (1494 1576), poetaalemo, adepto da Reorma. o herida peraOs mestres cantores de Nurem-berg, de Wagner. [N. do T.]

    [21] Werner Stauacher um personagem de Wilhelm Tell, de Schiller.[N. do T.]

    [22] Kracauer, Theorie des flms, op.cit., p. 366. [N. do T.]

    Com Brecht teve uma desavena, inventou contra ele a piada da conuso em Augsburg e esclareceu que, quando Brecht ez Aquele quediz no se seguir aAquele que diz sim, ele, Kracauer, pensou em escrever

    Aquele que diz talvez19

    . Programao nada m para quem outrora desenvolvera como sua a postura de quem espera; eis a tambm umarmula de autorefexo crtica.

    * * *

    J antes dos anos em Berlim, alis, comeara a modicarse nelealgo mais dicil de precisar, embora essencial; como se, resoluto,qual Hans Sachs ordena antes de ir ao mercado que as lojas sejambem echadas, tivesse proibido a si a capacidade de sorer, tivesse

    prometido solenemente a si ser eliz20. J Ginster deixara escapar,aps a cena com um ocial, a mxima por certo ainda irnica: preciso tornarse prova de ogo. Aquele que no tinha pele deixavacrescer ao seu redor uma couraa. E a partir do dia em que no quismais estar desprotegidamente entregue ao mundo, mas encontrouapoio em si mesmo, passou a comunicarse melhor com o mundo.O gesto do sou assim e no de outro modo harmonizase muito bem com uma adaptao mais exitosa, pois o mundo, por sua

    vez, assim e no de outro modo, conorme o princpio de uma noelucidada autoconservao expansiva. Em Kracauer, esse princpio

    jamais careceu de clownerie. Um dos aspectos desta era a poltica deavestruz sempre planejada. Assim, ainda durante a emigrao, quando nos reunimos pela primeira vez, em Paris, ele me recebeu em ummodesto hotel, como Stauacher21 entre os seus. sua maneira taciturna, sentiu a Frana anterior Segunda Guerra, a qual j estava orados eixos, como to propcia para ele quanto a Amrica, onde apsa uga exitosa obteve, com eeito, um sucesso surpreendente. Eletambm ez esse aspecto de seu destino e de seu carter refetirseem um romance no publicado, cujo heri, obtuso em suas carnciase inclinaes, no se acerta bem com as variadas situaes em que

    se mete, at que, por m, em virtude de suas opinies de esquerda,perde seu posto. A estratgia de adaptao de Kracauer teve sempre algo de astcia, da vontade de prevalecer sobre o hostil e o maispoderoso, sobrepujandoo quando possvel na prpria conscinciae, dessa orma, distanciandose dele em meio a uma identicaoorada. Da Theory o flm, por ocasio da temtica Davi e Golias, elecontrabandeia para si mesmo um programa: embora todas essaspersonagens paream submeterse aos poderes vigentes, conseguem sobreviver a eles22.

    Para azer justia sua produo aps 1933 bem como de muitos

    outros exilados , sem que a gratido pelo asilo seja oendida, devese

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    alar da situao dos intelectuais emigrados de maneira menosmaquiada que a usual na Alemanha. Regulamentaes de divisase impostos especiais oraram os intelectuais a expatriarse, li

    teralmente, como mendigos. O clculo dos nacionalsocialistas,segundo o qual os que lhes eram odiosos no seriam bemvistostambm l onde encontrassem regio, no era de todo errado. Oato de que alguns Estados acolheram apenas os que dispunham dehabilidades prticas teis lana luzes at mesmo sobre pases quedesistiram de cercas de arame arpado desse tipo. Na medida emque no havia se qualiicado dentro da atividade acadmica estabelecida, por meio dos trabalhos chamados positivos, nem ao menosprovinha da hierarquia acadmica, em todo lugar o intelectual sesentia suprluo. Provavelmente a coao a integrarse era pior que

    nas emigraes anteriores. Nos pases de exlio mais importantes,a rede social estava entrelaada de modo espesso demais, o thoughtcontrolera rigoroso demais. O desemprego ameaador tornava indesejveis os concorrentes potenciais. Emigrantes sem amigos quese solidarizassem com eles tinham de capitular para viver. No domnio econmico tudo se passa convenientemente segundo a regrado jogo burguesa da oerta e da procura. Que ela chegue a abarcar oesprito, que este seja por im absorvido pelo complexo uncional,isso reside na lgica inlexvel do sistema, mas ao mesmo tempocontradiz, sem chance de reconciliao, o princpio do prprio es

    prito, que no deve dissiparse na reproduo da vida e que, aotornar consciente o que existe, circunscreve no negativo um outropossvel. Mas o esprito que complacente, segundo uma lgicaque suspensa apenas em raras excees, justamente por isso, anula a si mesmo; ainda mais drasticamente que noutra circunstncia,o primado das relaes de produo tornaselhe o grilho da oraprodutiva. inesquecvel como, nos primeiros meses de emigrado,quando eu arranhava o ingls durante uma discusso, um socilogoalemo muito amoso, j alecido, exortoume em tom de galhoa:em pases anglosaxnicos, eu nunca deveria tentar expressar mais

    do que acabara de balbuciar. Se no segui o conselho, este ao menos me preveniu de sentirme superior aos outros. No h motivopara revolta, j que no censurado como alta de carter, por quempassou ao largo da provao, aquilo que contm, de sua parte, ummomento da decncia burguesa: a vontade de no viver de esmolas,mas de ganhar a vida por conta prpria. Para o cinismo, entretanto,para uma produo em duas rentes, na qual se resguarda a integridade intelectual e, com a mo esquerda, se escrevem livros ceis de

    vender, seria necessria uma ora que maniestamente no estavaconcedida a ningum; como, por exemplo, at hoje nenhum msico

    pde compor msica de vanguarda e, ao mesmo tempo, ganhar di

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    [23] A traduo literal desse provrbio popular cime uma paixo,que com zelo busca o que causa dor.Trata se de um trocadilho intraduzvel, construdo por meio do desmembramento das palavras nos ele

    mentos que as compem. A menoao provrbio serve para parodiar umprocedimento tpico da linguagem deHeidegger. [N. do T.]

    nheiro com hits de sucesso. O apelo de Brecht por tolerncia deveriaser estendido a esta complexa situao.

    O governo norteamericano era superior ao de muitos pases na

    poca de Hitler, na medida em que concedeu a todos os emigrantesa possibilidade de trabalhar, no rebaixando ningum ao status permanente de subsidiado. Em contrapartida, a carga de conormismo,que tambm oprime os nativos, era particularmente pesada. Seus deensores entusiastas eram intelectuais imigrantes j bemsucedidos.

    Adaptao tornouse mais uma vez a norma que, de qualquer modo,j havia sido interiorizada no incio da carreira por todos aqueles quedicilmente poderiam ter enrentado suas adversidades externas einternas, seno obedecendo ao mecanismo psicolgico chamado por

    Anna Freud de identicao com o agressor. Como rmula contra

    esse inortnio, certa vez, um adaptado usou, triunante, a seguinte rase: no existe transerncia bancria do esprito. Uma medidacorretiva teria sido, aps a queda de Hitler, trazer de volta justamente os emigrantes cuja qualidade consistia naquilo que, em nenhumacircunstncia, est sujeito troca e ao mercado de valores. Isso oieito, verdade, por algumas universidades, como a de Frankurt, e,com mais dedicao que qualquer um at hoje, por Adol Arndt, naqualidade de senador de Berlim responsvel pela cultura. Mas, em geral, isso no aconteceu. O ato de que esse modo de reparao, o qualse d na prpria vida espiritual danicada, tenha sido negligenciado

    uma irresponsabilidade no s para com as vtimas, porm aindamais para com aquilo que amide se apresenta de bom grado como ointeresse alemo. Inestimvel o que um homem como Kracauer poderia ter eito de bom em uma posio de importncia, algo como adireo da poltica cultural de um grande jornal. Seja lembrada apenas sua denio da linguagem de Heidegger por meio do provrbio:Eiersucht ist eine Leidenschat , die mit Eier sucht , was Leiden schat23.Sua negativa contumaz de se deixar enganar por prestidigitadoresteria sido um antdoto saudvel contra o clima sinttico da culturaressuscitada. Ele resistia tanto a Heidegger como a Brecht, imune s

    tcnicas de dominao que na Alemanha to prontamente so equiparadas grandeza, e que tornaram unesto at mesmo o conceitode grandeza. Pelo carter aparente, armativo em mau sentido, doesprito objetivo contemporneo, tem boa parte de culpa o vcuo causado pela ausncia da intelligentsia emigrada. A culpa reorada poraqueles que preerem tornar os exilados responsveis pelo declnioda Repblica de Weimar, porque estes o reconheceram. A catstroeda ditadura ascista vai alm do destino dos assassinados, emboraeste impea a meditao sobre outras conseqncias. Numa variaode uma sentena cabalstica, bem caberia perguntar se a terra que exi

    lou seus judeus no perdeu tanto quanto eles.

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    [24] Adorno reere se obraPari-ser Leben. Jacqu es Oenbach und se ineZeit. Eine Gesellschatsbiographie[Vidaparisiense. Jacques Oenbach e seutempo. Uma biograa da sociedade],

    republicada em 196 2. [N. do T.]

    Ningum deveria ler o Oenbach de Kracauer24, h pouco republicado na Alemanha sob o ttulo Pariser Leben [Vida parisiense],ou DeCaligaria Hitler, sem ponderar isso, e nenhum gro de alsa

    condescendncia teria permisso de estar a imiscudo. Com umapiscadela tpica de Kracauer, Oenbach se inclui entre as biograasromanceadas cuja radiograa ele apresentara impiedosamente; aomesmo tempo, ele queria elevarse sobre a pseudoindividualizaodesse tipo de produto mediante a ideia de uma biograa da sociedade. A problemtica social do Segundo Imprio, qual a operetareagia, deveria transparecer. O livro tem seus limites na abstinnciamusical que o autor teve de praticar. O Caligari, rico em anlisestcnicas pontuais, desdobra, de maneira bastante luminosa, a histria do cinema alemo aps a Primeira Guerra como histria do poder

    totalitrio transormandose na ideologia em avano. Entretanto,essa tendncia no estava em absoluto restrita ao cinema alemo;decerto ela culminou noKingKongnorteamericano, verdadeira alegoria do monstro desmesurado e regressivo em que se desenvolveua coisa pblica; para no alar da reabilitao de Ivan, o terrvele deoutras guras abominveis na Rssia stalinista. Todavia, do que contestvel na supercie da tese de Kracauer podese tirar a lio deuma verdade: a dinmica que explodiu no horror do iii Reich desciaat as galerias subterrneas da sociedade em seu conjunto, e, porisso, tambm se refetiu na ideologia dos pases que oram poupados

    da catstroe poltica. bem comum que um ator social universalseja equivocadamente reconhecido como atuante apenas l onde seo experiencia; j a invectiva de Hlderlin contra os alemes era, em

    verdade, contra a deormao do homem por meio da orma burguesa da diviso do trabalho ubqua aos poucos, Kracauer retornouquilo que o movia desde a origem, por exemplo, ao cinema, cujoselementos ele tratou de destilar teoricamente, e por m, em projetode grandes intenes, losoa da histria.

    * * *

    Caso se arrisque algo como uma interpretao da gura de Kracauer, que a isso resiste, ento preciso buscar a palavra certa paraaquele realismo de cores particulares, o que tem to pouco a ver coma imagem amiliar de um realista quanto com opthos transguradorou com a convico inquebrantvel da prevalncia do conceito. Proteger o esprito em nome do esprito contra sua autoidolatria era,sem dvida, um impulso primrio de Kracauer, amadurecido pelosorimento de quem cedo oi marcado a undo pela incapacidade doesprito perante a brutalidade do que pura e simplesmente . Mas

    a conta de seu realismo deixa resto, no redonda. Como este era

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    [25] Christian Dietrich Grabbe(1801 1836), poeta alemo. [N. do T.]

    [26] Buscando recuperar a polisse

    mia da palavra alem, curioso traduz wunderlich, que aparece tambmno ttulo do ensaio. Via de regra, esteadjetivo qualica algo ou algum cujamaneira de ser no usual e, por isso,causa estranhamento. Mas Adornotambm az ressoar nele outrossigniicados, por meio de implcitaaluso ao substantivo do qual deriva:Wunder, que signicamaravilha,mila-

    gre. Da provm o verbo wundern: causar espanto ou curiosidade (em seuuso refexivo, este verbo se assemelhaao wonderingls: perguntar se admirado). Dada sua origem em Wun-der, to clara ao alante alemo, no

    reativo, Kracauer no pode se contentar com a desiluso. Mesmoquando, de maneira derrotista, infamavase contra a utopia, atacava na verdade, como que por causa do medo, algo que animava a

    ele mesmo. O trao utpico, temeroso do prprio nome e conceito,escondese urtivo na personagem do desajustado. Assim, os olhosde uma criana maltratada e oprimida se iluminam nos momentosem que ela, entendendo de sbito, sentese entendida e disso haure esperana. A imagem de Kracauer a do homem que acaba depassar pelo mais terrvel; e, tal como a esperana da humanidadese encapsulou na chance de evitar a catstroe, assim tambm orelexo dessa esperana incide sobre o indivduo que, por assimdizer, antecipa esse processo. Pois nada mais seno o desesperopode nos salvar, diz uma rase de Grabbe25. A imagem sobreposta

    esperana tornase para Kracauer a individualidade que se echaem si mesma, at no ser mais possvel dirigirlhe a palavra, individualidade impermevel esperana. Ele maniesta o anseio de umdia estar livre para, sem medo, ser asperamente ora dos padres, namesma medida em que o medo asperamente o marcara como umtipo aberrante. Lembrando da inncia, ele um dia contou que orato possudo pelas histrias de ndios, que elas transbordaram paradentro dos limites da realidade. Uma noite ele acordou de um sonho,em sobressalto, com as seguintes palavras: Uma tribo estrangeirame raptou. Nisto est desenhado seu rbus: o horror, que se tornou

    literal com as deportaes, ao lado da saudade da barbrie impune emais inocente dos invejados pelesvermelhas. A doutrina reudianasegundo a qual os momentos decisivos da gnese individual se dona inncia vale ainda mais para o carter inteligvel. A imago inantilpermanece viva no querer vo e compensatrio de se tornar um adulto de verdade. Pois justamente o que adulto o inantil. Quantomais undamentado o luto cujas lamentaes se expressam emmmica, tanto mais o sorrir assegura, com esoro, que tudo estariaem pereita ordem. Para essa ndole natural, permanecer criana omesmo que manter um estado de ser no qual menos coisas aconte

    cem a algum; eis a expectativa, ainda que to reqentemente rustrada, de que tal conana inextinguvel seja recompensada. Quoincerta essa situao, expressao a prpria existncia intelectual deKracauer. A xao na inncia, como uma xao no jogo, tem nele aorma de uma xao na bondade das coisas; de se supor que, nele,a primazia do ptico no , de modo algum, a relao primeira, mas aconseqncia da relao para com o mundo das coisas. Seria certamente vo buscar no acervo de motivos de seus pensamentosalgumprotesto contra a coisiicao. Para uma conscincia que suspeitater sido abandonada pelos homens, as coisas so melhores. Nelas,

    o pensamento repara o que os homens zeram de mal ao que vivo.

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    de surpreender que se encontre naliteratura outros sentidos parawun-derlich: 1) milagroso; 2) admirado,espantado, curioso; 3) admirvel, espantoso, curioso. [N. do T.]

    O estado de inocncia seria o das coisas indigentes, das coisas miserveis, desprezadas, alienadas de sua nalidade; para a conscincia deKracauer, tosomente elas encarnam o que seria dierente do com

    plexo uncional universal; e extrairlhes a vida desconhecida seria suaidia de losoa. A palavra latina para coisa res.Da deriva realismo.Kracauer coneriu a seu Theory o flm o subttulo The redemptiono

    physichal reality [A redeno da realidade sica]. A verdadeira traduo seria: a salvao da realidade sica. To curioso26 seu realismo.

    Theodor W. Adorno oi um dos principais ilsoos do sculo XX. Autor de Minima moral ia,

    Notas de literatura (IIII) eDialtica negativ a.

    Recebido para publicaoem 30 de agosto de 2009.

    NOVOs estuDOs

    cEBRaP

    85, novembro 2009pp. 522

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