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ADRIANA HELENA DE OLIVEIRA ALBANO NO RASTRO DOS BOITEMPOS: CONSIDERAÇÕES SOBRE POÉTICA MEMORIALISTA EM DRUMMOND E DOIS CON- TEMPORÂNEOS SEUS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS: MESTRADO EM TEORIA LITERÁRIA E CRÍTICA DA CULTURA Outubro de 2005

ADRIANA HELENA DE OLIVEIRA ALBANO - ufsj.edu.br · 1.4. A escrita de memória como confissão 37 2. MEMÓRIAS DE CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE E DOIS CONTEMPOR 2.1. Representações:

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ADRIANA HELENA DE OLIVEIRA ALBANO

NO RASTRO DOS BOITEMPOS: CONSIDERAÇÕES SOBRE POÉTICA MEMORIALISTA EM DRUMMOND E DOIS CON-

TEMPORÂNEOS SEUS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS: MESTRADO EM TEORIA LITERÁRIA E CRÍTICA DA CULTURA

Outubro de 2005

ADRIANA HELENA DE OLIVEIRA ALBANO

NO RASTRO DOS BOITEMPOS: CONSIDERAÇÕES SOBRE POÉTICA MEMORIALISTA EM DRUMMOND E DOIS CON-

TEMPORÂNEOS SEUS

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade Federal de São João Del-Rei, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Letras. Área de Concentração: Teoria Literária e Crítica da Cultura Linha de Pesquisa: Literatura e Memória Cultural Orientador: Prof. Dr. Cláudio Leitão

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS: MESTRADO EM TEORIA LITERÁRIA E CRÍTICA DA CULTURA

Outubro de 2005

1

ADRIANA HELENA DE OLIVEIRA ALBANO

NO RASTRO DOS BOITEMPOS: CONSIDERAÇÕES SOBRE POÉTICA MEMORIALISTA EM DRUMMOND E DOIS CON-TEMPORÂNEOS SEUS Banca Examinadora:

Prof. Dr. Cláudio Leitão – UFSJ Orientador

Prof. Dr. Luiz Fernando Medeiros de Carvalho – UFF

Profa. Dra. Suely da Fonseca Quintana – UFSJ

Prof. Dr. Antônio Luiz Assunção Coordenador do Programa de Pós-graduação em Letras

24 de outubro de 2005

2

AGRADECIMENTOS

À minha querida mãe pelo incentivo e apoio sempre, apesar de todas as dificuldades

da vida.

Às minhas irmãs por estarem sempre ao meu lado.

Ao companheiro Rogério por estar ao meu lado nas horas difíceis.

Ao amigo do coração, Franco, pelo carinho.

Aos companheiros de mestrado André, Carmem, Caroline, Elder, Eni, Estael, Flávia,

Marcel, Regina, e Vicente por serem pessoas inestimáveis.

À Filó por resolver todos os problemas e ainda ser amiga.

A todos os professores do Mestrado por sempre estarem dispostos a ajudar no que

fosse preciso, por me receberem carinhosamente nessa universidade fazendo eu me

sentir em casa e pela proposta não só acadêmica, mas humana.

À Profa. Dra. Suely Quintana pelo apoio nas horas difíceis.

Às companheiras de república por me acolherem sempre, pelo companheirismo e

cumplicidade.

Ao Prof. Dr. Cláudio Leitão, meu orientador, por ter acreditado em mim e por sua a-

juda na construção da pesquisa.

3

À CAPES que possibilitou que a pesquisa se realizasse plenamente, sem nenhuma

outra preocupação financeira.

A todos que me auxiliaram nesse percurso acadêmico.

4

RESUMO O trabalho analisa a emergência memória e a relação dessa emergência escrita com a cultura nos três livros de memórias de Carlos Drummond de Andrade, Boitempo I, II e III. Para tanto, realiza o estudo de algumas características do texto de memória levantadas principalmente por Derrida, Beckett, Huyssen. Num segundo momento, há a comparação das memórias do itabirano com os livros: A Idade do serrote, de Murilo Mendes e Baú de ossos, de Pedro Nava. Tarefa realizada com o objetivo de enriquecer o gênero por meio do olhar que busca a diferença entre os autores — di-ferença que acrescenta. PALAVRAS-CHAVE POÉTICA — MEMÓRIA — CULTURA ABSTRACT The work analyses the emergence of the memory and the relation of its written form with the culture in the three memory books Carlos Drummond de Andrade wrote: Boitempo I, II and III. In order to do this, this work studies first some characteristies of the memorial text discurssed mainly by Beckett, Huyssen and Derrida. Then it presents a comparison betwen his memory and two others books: Murilo Mendes’ A idade do serrote and Pedro Nava’s Baú de Ossos. The idea was to add to the genre through the eye that books for the difference betwen the mentioned authors — na enhancig difference. KEYWORDS POETICS — MEMORY — CULTURE

5

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 7 1. O TECIDO DA MEMÓRIA: TEORIAS DO DISCURSO DE REMEMORAÇÃO

ÂNEOS SEUS

1.1. Trajetória dos escritos de memória 14 1.2. Memória: substância do presente, passado e futuro 22 1.3. O autor, o nome e a assinatura 28 1.4. A escrita de memória como confissão 37 2. MEMÓRIAS DE CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE E DOIS CONTEMPOR2.1. Representações: religião, sexualidade e o negro 45 2.2 . O contato com a escrita, a casa paterna e seus objetos de evocação 84 3. MEMÓRIAS DA ESCRAVIDÃO EM CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

101

CONSIDERAÇÕES FINAS

121

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

124

6

INTRODUÇÃO

O estudo das memórias e seus desdobramentos vêm ocupando um

espaço cada vez maior nas análises críticas, principalmente devido ao fato de a

memória ser um lugar não só de leitura de identidades, mas também de um tempo.

Dessa forma, o que primeiramente observamos e consideramos de grande valia foi a

memória como exercício de escritura e implicitamente enquanto ato transformador e

revelador de uma certa visão de mundo, juntamente com suas implicações históricas

e culturais. A partir da perspectiva de poder enxergar a história pela via não-oficial,

ou seja, através dos relatos particulares, outras abriram-se e fizeram-se presentes e

o quadro da pesquisa ganhou novas formas, tornando-se muito mais fértil.

As outras perspectivas passaram a ocupar importante parcela do trabalho.

Estas correspondem ao primeiro capítulo e compreendem as considerações a

respeito da trajetória da escrita de memória, noções do funcionamento da memória

na psique humana, sua constituição na escritura. A relação entre o autor, o nome e a

assinatura e a memória ocidental. Serão estudados autores como Derrida, Freud,

Foucault, Nietzsche, Beckett, Huyssen e Le Goff, fundadores dos estudos

contemporâneos sobre memória.

ciação.

A partir dessas duas esferas, em que a segunda envolve a primeira, será

analisado, no segundo capítulo, o jogo de emergência da substância da memória e a

capacidade de ser ela mesma o suplemento do suplemento (termo derridiano), uma

vez que vai renegociar o passado através da escrita que já promove uma

renego

As obras de base para se realizar a pesquisa são os três volumes de poesia

de memória de Carlos Drummond de Andrade, Boitempo, Menino Antigo e Esquecer

para Lembrar. Fizemos a comparação das memórias do itabirano com aspectos de

outros dois livros de memória e autobiografia, Baú de Ossos, de Pedro Nava, e A

7

Idade do Serrote, de Murilo Mendes. Delimitamos alguns pontos que se mostram

relevantes e que estão presentes marcadamente: a religião, a sexualidade, o negro,

a escrita, a casa paterna e seus objetos de evocação. Pontuações que possibilitam a

comparação entre os autores e, ao mesmo tempo, um olhar sobre a forma com que

cada um se relaciona com os focos supracitados.

A proposta se torna importante na medida em que há a preocupação, em

uma de suas vias, em enriquecer e aprofundar, através das memórias, o que se

formou no imaginário de infância daqueles que participaram da formação do país,

não só como expectadores, mas também como artistas, articulado com

acontecimentos sociais, produz um rico material de análise. A arte, depois que tudo

se torna político, é o único lugar de liberdade para a (auto)reflexão que comportará

tensões não só relativas à estrutura psíquica, mas também relacionadas às

conturbações do mundo. Nele, injustiças foram cometidas como aquelas relativas à

escravidão. O regime escravocrata terá grande importância em nossas análises,

principalmente no terceiro e último capítulo. Este compreenderá um olhar sobre as

memórias drummondianas tendo em vista suas relações com o negro. Utilizaremos

as obras Casa-grande & senzala, de Gilberto Freyre, O Abolicionismo, de Joaquim

Nabuco e O Local da cultura, de Homi Bhabha para tornar a pesquisa mais fecunda.

É importante lembrar que não se trata de estudar a memória na produção literária do

negro, mas sim de observar como um memorialista trabalha com essa memória e

como a renegocia no papel de dominador, pois Drummond teve sua infância num

período recente ao fim da escravidão, e em lugares em que ela ainda estava bem

marcada.

.

Veremos também como esses autores se relacionam, onde suas memórias

se tocam, em que aspectos podemos estabelecer aproximações ou afastamentos,

caracterizando suas histórias e experiências através de uma forma específica de

escrita

Para a realização do trabalho, é necessário que seja esclarecido que não

tomamos aqui nenhuma distinção entre autobiografia e memória. Entretanto, Silviano

8

Santiago1 tenta estabelecer essa diferença: uma sendo a vida individual, a formação

da personalidade e a segunda sendo considerada como representação de aconteci-

mentos exteriores, aqueles vividos ou presenciados. Consideramos que a formação

de uma identidade, de uma personalidade, sempre vai se construir sobre as vivên-

cias cotidianas, pelas influências externas, pelos fatos vivenciados, descrevendo os

acontecimentos do clã, da vida diária, das cenas da infância na casa paterna.

Todavia, tal discussão passa para um outro campo, um campo mais restrito,

adquirindo menos relevância quando levamos em conta os estudos de Derrida sobre

a autobiografia como confissão, que considera toda escrita como sendo

autobiográfica.

A linguagem literária manifesta aquilo que está interiorizado e o que está

exteriorizado no sujeito e nesse movimento, está sempre em contato com a realidade

social que o circula, articulando acontecimentos de sua vida “externa” e “interna” —

utilizo aspas, pois, na verdade, não há tal separação, o que existe é a percepção de

um pelo outro. No processo de redescoberta, o passado é repensado e armazenado

de uma nova maneira. Dentro desse universo da literatura, pensamos no gênero de

memória como algo através do qual o homem procura, por meio do ato de

rememoração, algo que dê razão a própria existência, composta de passado,

presente e futuro. O ser busca algo que promova uma reflexão de si e da sociedade,

fato que poderá lhe garantir um sentimento de “domínio” da própria vida, de sua

existência. O estudo das memórias situa-se próximo às fronteiras entre o discurso fic-

cional e o discurso memorialista e na relação destes como a cultura, o que acaba

discutindo a forma com que o escritor/sujeito se relaciona com as estruturas sócio-

políticas. Nesse trabalho, questiona-se também o processo de construção de um

passado que estabelece uma visão de contigüidade dos fatos e tenta provar que a

sociedade é formada por um todo coeso e homogêneo. A produção memorialista au-

1 SANTIAGO. Prosa literária atual no Brasil. Nas malhas da letra, p. 25-37.

9

tobiográfica coloca contra o discurso coletivizante o testemunho particular de um de-

terminado período histórico.

As memórias negociam, de forma fecunda e criativa, as experiências vivi-

das em u

em, para

que a or

eres aos quais se refere. Há um intercâmbio entre o que é narrado e o

sujeito na

escritor em

sua obra.

m tempo de formação de um sujeito e de sua sociedade e apresentam “o

lado de cá” do discurso oficial, desconstruindo a noção deste como uma verdade fixa

e imutável. Nesse trabalho de interferência e desconstrução, histórias de

discriminação e injustiça surgem e questionam a construção do passado de um povo,

denunciando o processo desigual na formação da identidade das classes e sexos. A

trajetória individual de rememoração, no caminho de retorno ao tempo da infância,

realiza um trabalho de releitura e acaba por transformar a história pretérita.

A ideologia deseja que os valores se mantenham e se perpetu

dem estabelecida não seja sequer abalada, e que nesse processo de

uniformização não haja espaço para críticas ou opiniões discordantes,

questionamentos. No processo de escritura autobiográfica, as representações do

vivido não pertencem somente ao interior do indivíduo, mas também aos fatos

externos a ele, envolvendo todo o árduo contar de uma coletividade, com suas lutas

e conquistas. O trabalho de narrar as próprias experiências acaba por aproximar o eu

dos objetos e s

rrador, que se inter-relacionam numa via de mão dupla, pois o processo de

significação muitas vezes se faz inicialmente a partir de um acontecimento

observado, e não vivido propriamente pelo personagem das memórias.

As memórias serão estudadas como linguagem, discurso e sua relação

com o contexto sócio-histórico. Observaremos os vestígios do olhar do

Na reconstituição do passado, um elemento que não se esperava pode

surgir e conduzir o eu a um caminho ao qual ele não desejaria seguir. É quando

percebemos a produtividade da escrita e a capacidade de poder relacionar-se com o

além do homem, com tudo aquilo que o compõe, mesmo sem seu conhecimento

prévio.

10

O sujeito, pela via da lembrança, relembra um fato, caracteriza um compor-

tamento e constrói a imagem de si. Tenta identificar-se com aquele outro que se

formou po

o narrador, suas constatações pessoais acerca do

s-

prendimento da fixidez do conceito de escrita, ou discurso de memória chacoalha o

quadrante que tenta delimitar e estabilizar.

r meio do texto. Tenta inutilmente refazer um caminho linear que o torne

aquilo que é hoje. Todavia, através da narrativa, o eu descobre-se como um ser

desterritorializado e seu passado poderá servir mais como forma de reflexão de um

presente, do que como um tranqüilo cenário de harmonia pueril. A constituição da

identidade é impossível de se fazer como um todo único, homogêneo. Mas existe a

tentativa assim como a necessidade da construção dessa identidade através do texto

memorialista. Aspecto valioso do ato de rememoração, já que no movimento de re-

torno são outros olhos, outro ser que “pensa” sobre tal passado. Vários questiona-

mentos serão colocados na ordem da escritura. O autor terá que balancear as per-

das e os ganhos obtidos nessa empresa, pois nenhuma história individual está livre

de estabelecer relações com a história coletiva — sempre marcada pela barbárie.

No caso, não só de Drummond, mas também nos outros autores

analisados aqui, o processo auto-crítico proposto pela escritura ao referir-se à

situação dos ex-escravos em Minas, questiona o acontecimento, alargando o gênero

memorialístico e enriquecendo-o.

A narrativa das memórias de um tempo passado, de uma vida vasculhada,

traz para o leitor as experiências d

mais vasto material que compõe a existência humana. Acontece uma tentativa de

encaixe daquilo que é lembrado com a imaginação, com a criatividade e com as

considerações do sujeito atual. O escritor compartilha suas vivências, suas opiniões,

seu processo de criação de uma verossimilhança fictícia com o leitor. Isso garante

um depoimento não só embasado na realidade da formação do sujeito em seu

mundo mais interior, mas também do mundo exterior, dos acontecimentos sociais.

Quando a escrita das rememorações aparece em forma de poemas ou

prosa poética, acontece a abertura do gênero, sua libertação e reformulação. O de

11

A prosa memorialística, autobiográfica, já traz em si descontinuidades e

rupturas que estabelecem os caracteres próprios ao gênero, e a poesia de memória,

com as peculiaridades inerentes a sua constituição estrutural, recria a escrita frag-

mentária e descontínua, questionando e abalando uma outra questão, a da veracida-

de. Há o d

sua força de permanência e de imortali-

para a história, ou para ambos. Outro aspecto van-

esejo de transportar para a palavra escrita toda a carga emocional trazida

pelas lembranças da infância. Percebemos então a existência de um rememorador

que atravessa presente, passado e futuro. É claro que cada um (Pedro Nava e Murilo

Mendes) caminhou em direção a interesses os mais variados, nunca deixando de

marcar suas obras com cores poéticas. Murilo Mendes escreveu o que muitos consi-

deram “prosa poética”, em Idade do Serrote, e Pedro Nava, em Baú de Ossos, ape-

sar de seu texto estar próximo de uma linguagem documental, possui passagens

marcadas de emoção e poesia.

Os autores mais amplamente analisados aqui escreveram suas memórias

quando no final de seus anos de vida. Fato que orientará nossa análise no tocante a

relação da escrita, e mais especificamente da escrita de memória, com a morte. Essa

tentativa, quando através da linguagem e de

dade, garante ao escritor um “adiamento” de seu fim, um poder de vencer a morte,

anunciando sua liberdade.

Quando se está investigando o passado, re-descobrindo-o, há uma seleção

daqueles fatos mais significantes, o que já representa um ganho para o leitor, uma

vez que esses fatos não estão presentes “impunemente”, mas representam aquilo

que é significativo para um ser ou

tajoso para o leitor é que tudo isso é feito criticamente, já que o autor, ao contrapor o

tempo passado com sua presente formação pessoal, traz consigo reflexões e obser-

vações que garantem um novo olhar. Serão contados fatos pré-selecionados — de

acordo com a demanda da escritura e segundo suas considerações, que muitas ve-

zes é a de se desenvolver por conta própria, levando o autor a lugares que ele não

desejaria ir — revistos criticamente e ainda enriquecidos com as experiências poste-

riores. Fato que garante a atualidade das memórias, sua produtividade.

12

Este estudo, em uma de suas vias, coloca a posição, o desvelamento de

um período histórico através do olhar de um poeta que construiu uma vasta obra,

heterogênea, rica e multifacetada. Obra exploradora do ser e do imaginário conflituo-

so de uma geração, denuncia o que acha injustiça. Aspecto característico de uma

sensibilidade aguçada e de uma visão que percebe a complexidade do ser humano.

13

1 . TECIDO DA MEMÓRIA: TEORIAS DO DISCURSO DE

.1.Trajetória dos escritos de memória

O objetivo aqui é fazer um breve recorte adotando a noção foucaultiana

(FOUCAU

Tendo em vista que a memória é um dado antropológico intimamente liga-

do às form

REMEMORAÇÃO

1

LT, 1998) de descontinuidade (delimitação de um campo e individualização

dos domínios) para traçarmos uma trajetória dos discursos de memória até o mo-

mento focalizado, que é o da modernidade. O percurso seguido buscou enfocar, na

verdade, os períodos e idéias interessantes ao trabalho proposto nos capítulos se-

guintes e à proposta geral desse estudo, que é observar as nuances da escrita de

memória, assim como sua relação com o contexto sócio-histórico. Buscou-se — ou

esse foi mesmo um gesto que se guiou a si próprio — especificar os movimentos

importantes ligados a uma escrita da história do homem feita por ele mesmo, a uma

história de si, sua autobiografia.

ações culturais e que o lugar dela em determinada cultura envolve fatores

rituais, míticos, históricos, políticos e psicológicos, o recorte feito demarcará algumas

formas de irrupção da escrita memorialística através das épocas, relacionando-a com

o contexto em que está inserida. O diálogo seletivo e em permanente mudança entre

o passado e o presente nos faz perceber que os nossos desejos presentes estão

relacionados ao que e como rememoramos, seja na memória individual ou na memó-

ria coletiva.

14

Analisaremos então as seguintes instâncias: na mitologia grega, a diviniza-

ção da memória através da deusa Mnemosine (lembrava aos homens os heróis e

seus grandes feitos), nos escritos aristocráticos da Antigüidade como os hyponme-

mata e a correspondência (uma forma de escrita de si, um desprendimento de si

mesmo em busca do melhoramento de conduta, em busca de um melhor comporta-

mento através do “exercício do pensamento”) e ainda em cultos religiosos ocidentais

como o cristianismo e o judaísmo. Não há o objetivo de relacionar os discursos entre

si, mas com o contexto histórico-cultural em que estão inseridos através de suas prá-

ticas discursivas, bem como as diferenças estabelecidas nas relações, uma vez que

tais discursos se formaram em contextos diversos, estando sempre sujeitos à mu-

dança.

Faremos um breve recuo até as sociedades sem escrita para estabelecer

um ponto de partida e termos a noção do contexto onde se originaram as memórias

escritas. Notamos que o registro da memória de um grupo, ou seja, uma memória

coletiva, girava em torno de três principais fatores: a idade do grupo fundada em mi-

tos de origem, a genealogia das famílias mais importantes e os saberes relacionados

com a magia religiosa. De certa forma, esses três pontos principais acabam por estar

sempre presentes nas sociedades escritas até a versão mais moderna de memória

coletiva, assim como nas discussões acerca de suas particularidades, constituição e

produção. Todavia, a memória individual ganhou muito mais espaço na modernidade

em relação à memória coletiva, fato que não aconteceu por si só, mas deu-se sem-

pre em relação a outras mudanças da sociedade, o que veremos adiante.

Como afirma Jacques Le Goff (1990), não é fácil estabelecer como foi a

passagem da memória oral para a memória escrita, mas parece que esta se baseou

primeiramente nos mitos da memória oral, nos saberes instituídos por ela. Um per-

sonagem das lendas ligadas à memória era mnemon, pessoa que servia ao herói e

guardava a lembrança do passado para lembrá-lo sempre de uma ordem divina, pois

do contrário, se a esquecesse, o herói poderia morrer. Desse personagem pode ter

se originado uma figura institucional de mesmo nome, o mnemon. Ele era responsá-

15

vel, por ordem jurídica, a guardar a memória como testemunha, e com o passar do

tempo, se tornou aquele que seria o arquivista.

A divinização da memória e uma mitologia da reminiscência, no mundo gre-

go, tiveram uma vasta importância para a sociedade e suas formas de representação

do passado. Mnemisine era a deusa da memória e lembrava aos homens os heróis e

seus grandes feitos: “preside a poesia lírica. O poeta é pois um homem possuído

pela memória, o aedo é um adivinho do passado, como o adivinho o é do futuro. É a

testemunha inspirada nos ‘tempos antigos’ da idade heróica e, por isso, da idade das

origens.” 2. A deusa concedia um conhecimento do passado aos heróis e isso

garantia-lhes o poder sobre o além, a fonte da memória dava um poder de

imortalidade. O passado é trazido à memória tornando-se presente. O tempo

pretérito torna-se passado-presente-futuro, num processo interminável, um caminho

aberto para o ser além de si mesmo. Conhecimento que liberta o homem e a

escritura do tempo: “Mnemosine, a musa da memória, a musa da apropriação

recordativa, que aí impera, é ao mesmo tempo a musa da liberdade mental” 3.

A memória na mitologia estava ligada ao poder da vida eterna através do

conhecimento, e ao mesmo tempo, a morte corresponderia à sua falta. Fato que

sempre marcará tal forma de escrita, como veremos ao longo de todo o primeiro ca-

pítulo.

Em “A escrita de si”, Foucault (1992), se referindo à individualização pro-

priamente dita da memória, remete à Antigüidade para analisar o que seria uma das

primeiras formas de escrita de si, a qual buscava principalmente a individualidade e o

movimento interior. Uma escrita que possuía como material os pensamentos, as a-

ções diárias para se evitar o mau comportamento. Ao escrever todos os pensamen-

tos e ações, estes seriam conhecidos. A vergonha de atos pecaminosos diante de

uma outra pessoa passa a ser direcionada à escrita, ela toma o lugar daquele que

2 LE GOFF. História e memória, p. 438. 3 GADAMER. A atualidade do belo: a arte como jogo, símbolo e festa, p. 20.

16

poderia julgar. Forma textual que pode se aproximar assim, da confissão, de uma

arma que combateria o mal e que provocaria o auto-conhecimento. Esse seria o pa-

pel da escrita na cultura filosófica.

A escrita estava ligada ao exercício da formação pessoal, trazendo à me-

mória conhecimentos já adquiridos para serem reforçados, para que se reflita sobre

eles, para que o autor converse com eles. Processo que mantinha relação também

com o pensamento como função de transformar os discursos considerados verdades

em ação: intervenção da escritura, de seus preceitos na vida prática, nas relações

pessoais. Esse conjunto de características vai originar duas formas de escrita: os

hypomnemata e a correspondência, nos séculos I e II.

Os hypomnemata seriam as anotações de pensamentos, de trechos já li-

dos e de observações que poderiam auxiliar em questões humanas quando necessá-

rio. Eram um caderno de anotações de coisas lidas, ouvidas e pensadas que estari-

am sempre sendo consultadas para que pudessem ser utilizadas para a ação. É uma

forma importante de transformar os discursos conhecidos em algo pessoal, subjeti-

vado, transformando o ser, transformando a si.

Através do retorno ao passado, a conhecimentos já adquiridos e já reformu-

lados, pode-se refletir sobre si mesmo, sem inquietação. É mais seguro preocupar-se

com o passado do que com o futuro. Idéia que se relaciona com o contexto em que

estavam inseridos, a tradição dos estóicos e epicuristas, que valorizavam o pensa-

mento da Antigüidade e a aplicação de seu conhecimento para a vida.

Os hypmnemata combinavam o já-dito tradicional com a individualidade da

verdade nele contida e ainda com a circunstância para seu uso. Tal processo se dá

na pessoa do escritor e acontece de forma heterogênea. O sujeito faz um recorte nas

obras lidas e depois as reconstrói em determinado contexto para reafirmar algo que

lhe interessa. Nesse trabalho é possível reconhecer a identidade do escritor, uma

vez que o já lido e assimilado adquire forma própria quando reescrito para determi-

nado fim, sob um determinado olhar.

Os hypomnemata, por serem cadernos de anotações em que se escrevem

citações de obras, para sua futura utilização em algum “caso”, não deixam de já re-

17

presentar o trabalho autobiográfico de qualquer pesquisa e leitura. Um trabalho em

que de um certo número de obras lidas retira-se o que vai nos interessar, de acordo

com nossas intenções, para depois articulá-las com o intuito de nos serem úteis em

alguma afirmação discursiva.

A correspondência guarda uma ligação com os hypomnemata na medida

em que estes podem servir de material para a escrita das cartas. A correspondência

é um exercício do eu que atua tanto sobre quem a recebe quanto sobre quem a en-

via. O remetente, no momento da escrita relê aquilo que escreve e se treina, pois as

considerações e conselhos dados a outrem podem ser úteis a si próprio num mo-

mento semelhante, auxiliando o escritor e seus destinatários.

O narrador mostra-se a si mesmo pelo que diz de si e, nesse movimento

de escrita, mostra-se ao outro através da via de narrar os dias, as banalidades do

dia-a-dia e os atos benéficos ou não. O escritor, pela memorização e escrita dos fa-

tos, torna-se um inspetor de si mesmo. Através de um exame da consciência, daquilo

que lhe passa na alma, no mais oculto, o sujeito se liberta para ter uma vida melhor.

Podemos dizer, dentro das considerações atuais a respeito do dinamismo e

da variação do gênero da autobiografia, que nos hypomnemata e na correspondên-

cia há a história de si, das necessidades e vivências de um eu. Conceito que é leva-

do a seus limites por Derrida num estudo acerca do aspecto confessional de toda

escrita ocidental a partir da Gênese, e que veremos adiante.

A difusão do catolicismo no Ocidente acarreta uma mudança na importância

da memória e compõe outro recorte importante para as considerações propostas,

seguindo a trajetória delineada, mas agora relacionada à memória coletiva. Segundo

Jacques Le Goff (1992), as religiões ocidentais, principalmente o cristianismo e o

judaísmo, são fundamentalmente de memória, de recordação. Enquanto a religião

antiga estava relacionada à memória, o judaico-cristianismo transforma essa relação.

Une religião e memória, homem e Deus. Fato que acontece porque atos passados

de salvação são conteúdo de fé e de culto. A memória é a via pela qual isso aconte-

ce. O Livro Sagrado, a memória de um tempo mítico da origem é fonte de um traba-

lho religioso fundamental para a doutrina, assim como para sua perpetuação. A me-

18

mória constitui-se como reconhecimento da Divindade, fundadora da identidade ju-

daica, ligando sua história a Deus. No cristianismo, Cristo transmite sua memória aos

apóstolos para que eles a propaguem. Mas Lê Goff afirma também que a memória

ocidental cristã, em uma de suas vias, nega a história, assim como os gregos

fizeram. Peter Berger o contradiz afirmando que “o cristianismo latino no ocidente,

pelo menos, manteve-se inteiramente histórico em sua visão de mundo” 4, uma vez

que sofreu mudanças relacionadas à história, assim como resistiu a elas. É uma

forma de memória ligada à tradição e perpetuação dos rituais religiosos, o que

intensifica a importância do rememorar não só como a busca de um passado, mas

também como a reconstituição de uma origem divina para a humanidade.

Partindo do princípio de que a história transforma a relação com a memória

na medida em que modifica a relação do sujeito a si e a seu ambiente, podemos

afirmar que, na modernidade, a memória individual, a autobiografia, segundo Mauri-

zio Catani 5, nasce no Ocidente como uma forma de representação individual própria

ao hemisfério, seguindo seu desenvolvimento ideológico. A autobiografia, através

dos ideais do Iluminismo, do desenvolvimento da sociedade burguesa baseada no

individualismo, encontra um contexto que favorece o seu desenvolvimento. Desde

então, a estrutura da escrita das vivências de um ser, de seu pensamento, foi-se

modificando na medida em que o contexto no qual estava inserida caminhava em

novas direções. Podemos dizer, sem a intenção de estabelecer o fechamento de um

fenômeno tão complexo e dinâmico — o do desenvolvimento dos estudos de memó-

ria — que um dos fatores que garantiram novos contornos a um falar sobre si, foram

as descolonizações. Os antigos colonizados, vítimas de graves problemas sociais e

econômicos após esse processo em que as potências européias se retiraram de su-

as áreas de influência, se movimentaram rumo, predominantemente, aos países que

foram seus colonizadores. Tal fato provocou uma desestabilização na certeza de

4 BERGER. O dossel sagrado: elementos para uma teoria sociológica da religião. p. 135. 5 apud Miranda, 1992, p. 26.

19

uma ocidentalidade hegemônica, fixa e homogênea, idéia que norteará as nossas

próximas considerações.

Com a aproximação do outro com sua cultura e religião, as certezas euro-

péias de superioridade e identidade foram questionadas, tornando-se móveis, cam-

biantes e incertas. O reconhecimento dos outros como outros, e não como seres in-

feriores (culturalmente, economicamente, politicamente) categorizados em estereóti-

pos, proporciona uma nova experienciação de si em diferença e apresenta o sujeito

moderno. Nele há a formação de um espaço interior privado, no qual o sujeito se re-

constrói como indivíduo possibilitando a vivência da interioridade a partir de uma dife-

rença com relação ao meio e, fundamentalmente, consigo próprio. A partir do pro-

cesso de reconhecimento do outro em sua alteridade, com suas histórias, cultura e

mundos concretos pode-se deixar que ele venha até nós.

As memórias podem tornar possível a leitura do outro em diferença, pois

depoimentos individuais de vivências e experiências trazem a cultura e a tradição de

um povo, assim como os sentimentos conflituosos provocados pelo choque de cultu-

ras. Como afirma Adorno (2003) no cerne ético e político, sem memória, sem a leitu-

ra dos vestígios do passado, não pode haver o reconhecimento da diferença, nem

tolerância às ricas complexidades de identidades políticas, culturais, pessoais, na-

cionais e internacionais.

Outro fator, também ligado a este período de emergência das memórias,

seria o fenômeno da Globalização. Segundo Andréas Huyssen (2000), provoca uma

dissolução das fronteiras e uma mobilidade global nunca antes imaginada. Para o

autor, a memória seria então uma forma de ancoramento, de resistência, “memórias

necessárias para construir futuros locais diferenciados num mundo global” 6. O ho-

mem precisa de um passado para renegociar sua identidade. Sem a memória, sem

os vestígios do passado, sem o processo mesmo do ato de reconstituição, não há

como reconhecer as diferenças, as identidades culturais e individuais, não há como

reconhecer a alteridade de si e da nação.

6 HUYSSEN. Seduzidos pela memória, p. 37.

20

Os poetas brasileiros que serão estudados, inseridos em tal contexto de

transformação, pertencem ao movimento modernista. A conjuntura em que suas

memórias foram escritas, em uma de suas vias, era de um período em que o contar

sobre si compunha uma tentativa de identificação da própria cultura, a brasileira. Po-

rém, não se resume a isso, pois a escrita é a resultante provisória de um conjunto de

forças em que se incluem a relação com a morte, com a confissão, com o leitor. Na

escrita daquilo que é brasileiro, na escrita das histórias familiares, das experiências

vividas, dos costumes, há a reconstituição do cenário brasileiro — muitas vezes es-

cravocrata — com as transformações políticas e sociais.

A escrita autobiográfica dos autores analisados não obedece ao mercado

editorial, não era feita com cunho capitalista e por isso não obedecia às suas regras.

Tinha as próprias leis, o que a tornava mais livre, rica e transformadora. Os aconte-

cimentos descritos tornam-se um foco em que leitor e autor revêem a história de seu

país, assim como o ambiente familiar patriarcal e suas questões de dominação e

subjugação daqueles que estão sob seu poder. As memórias permitem que enxer-

guemos a origem desigual de nossa sociedade, o passado diferenciado que compõe

histórias diferenciadas de um povo heterogêneo, que necessita de políticas próprias,

voltadas para a própria realidade. Fato que implica numa grande responsabilidade

que não pode mais ser apenas praticada diante de ações futuras, pois ninguém está

isento de julgamento. Somos tão responsáveis pelo passado quanto pelo presente,

porque jazem no passado as tarefas inconclusas e as injustiças não indenizadas.

Para se fazer uma crítica do presente em relação ao homem e à história é preciso

que se pense no passado. Este só é uma herança intolerável quando deixa de ser

submetido a uma crítica radical. Tarefa a qual nosso trabalho se propõe, na medida

em que busca questionar a escravidão através de uma formação discursiva: a litera-

tura memorialística produzida em um determinado período, o modernista. Período

em que havia a busca em retratar a realidade nacional e seus aspectos antagônicos.

Na tarefa de reconstituição do passado, alguns autores expressam a condição do

oprimido, historicamente suprimida. É um traço de humanidade no qual os autores

acoplam às suas lembranças a descriminação e os maus tratos sofridos pelos domi-

21

nados, e aqui fazemos uso de uma passagem de Wander Melo Miranda referindo-se

a Memórias do Cárcere, de Graciliano Ramos:

a temporalidade histórica apresentar-se-á para o narrador das memórias como um espaço novo, onde será possível resgatar uma humanidade cuja lembrança se quer apagar para sempre, em proveito do opressor. Desse ato destrutivo-criativo de ir contra a corrente do eu e da história (...) resulta a salvação efetiva do passado que retorna não como o relicário ou patrimô-nio paralisante de um eu mumificado, mas como um tempo produtivo e ple-no de atualidade. 7

Terminamos a trajetória através desse recorte. Partiremos agora para as

análises acerca de outras nuances do gênero de memória.

1.2. Memória: substância do presente, passado e futuro

Desenvolveremos aqui um pensamento ligado ao conceito de memória

principalmente influenciada pelos estudos que Derrida (2002a) faz sobre o pensa-

mento de Freud a respeito da constituição da psique humana. A partir dessa pesqui-

sa pudemos observar que outro autor, Beckett, analisando Proust, aproxima-se de

tais conceitos ao descrever a temporalidade não linear da obra proustiana e a forma-

ção constante do sujeito através das vivências negociadas pela memória.

Freud é quem primeiramente apresenta a memória de uma forma não fisio-

lógica. Ele a descreve psiquicamente e determina sua formação a partir do rastro

mnésico proveniente da repetição de experiências. É um processo complexo que

consiste na atuação de um conjunto de forças diferenciais produzidas por meio da

percepção e de acordo com a excitação. Desse processo a resultante será o rastro

minésico. Cada uma das forças, sozinha, não significa nada, mas em relação a ou-

tras produz o sentido que formará o rastro. Este consiste na marca provisória, que

também estará em relação a outras marcas, para a inscrição de um novo rastro na

memória, e assim sucessivamente.

7 MIRANDA. Corpos escritos: Graciliano Ramos e Silviano Santiago, p. 156.

22

A representação psíquica de Freud para a memória é descrita por Derrida

como a resistência que provocaria a abertura ao arrombamento do rastro. Tal acon-

tecimento se daria da seguinte forma: um conjunto de forças diferenciais provenien-

tes de experiências vividas provocaria o arrombamento, a abertura de um caminho

por onde o rastro se inscreveria, rastro como resultante da relação diferencial. Qual-

quer inscrição na psique já supõe um rastro, que poderá ser apagado. Sua condição

de existência é ser negociador de forças diferenciais sempre, para que outro rastro

possa existir. Aquilo que está sendo inscrito passa a ser então o próprio rastro, fa-

zendo-se e refazendo-se sempre, a cada nova experiência. Por isso é impossível nos

remetermos a uma origem, pois esta é renovada a cada negociação do rastro.

A consciência do indivíduo, antes tida como principal parte do psíquico, é

então observada como um de seus constituintes e não mais seu universo total. Ela

passa a ser vista como parte do conjunto, como uma de suas galáxias, perdendo o

status anterior e inovando a conceituabilidade temporal. Os conceitos de temporali-

dade determinavam que a consciência era dada a partir da noção do presente. Toda

a percepção era entendida como formada apenas por aquilo que acontece no pre-

sente, e dele se estenderia, à frente, o futuro e, atrás, o passado, ambos ausentes

porque seus acontecimentos não estariam presentificados ao ser na forma de pre-

sença. Entretanto, não há como garantir uma forma de consciência que possua a

realidade do vivido no presente, que possa apreendê-la em sua originalidade. Só

podemos, ao contrário, questionar tal fato na medida em que só conseguimos perce-

ber aquilo que nos faculta significar, o que torna o presente e a sua realidade fatores

simbólicos. Além disso, como já percebemos no tocante à formação do rastro, há

uma série de elementos agindo nessa empresa, elementos que não se separam e só

têm importância em relação a outros. Poderíamos citar, na ordem do psíquico, agen-

tes como a memória, o inconsciente, a consciência e o pré-consciente, assim como a

formação do sentido e do rastro, como resultante da organização desses elementos.

Tudo estaria ainda se relacionando, em diferença, com o social e o meio natural.

Não podemos esquecer que as pulsões de vida e de morte, inerentes a to-

do processo psíquico, também exercem sua força. O que acontece na medida em

23

que as pulsões direcionam a intensidade, deslocando vetores do campo da psique

no qual os sentidos e os rastros são produzidos. Pulsão de vida e pulsão de morte 8

como formas de proteção à vida, como constituintes do ser e da forma de negociar

os significantes. A problemática do psiquismo, desse formador e formação do ser,

deve se direcionar para o estudo da memória, ela própria sendo o psiquismo e não

uma de suas particularidades. Através da lembrança há a preservação da vida na

forma de repetição e de pulsão de morte. Essas duas na verdade estão intimamente

ligadas, pois o que acontece no processo de rememoração é a repetição de um es-

tádio anterior experimentado e articulado com os conhecimentos adquiridos a poste-

riori, diferindo-se. Pelo processo de diferenciação e suplementaridade, a morte surge

como o horizonte incomensurável, mas que está sempre presente (não como pre-

sença) à vida, se não é a própria vida acontecendo. A descoberta de Freud que Der-

rida persegue é então direcionada para além do psiquismo do sujeito.

A memória se daria como rastro, fruto de explorações marcadas pela dife-

rença, caminho aberto em que não se poderia fazer o caminho de volta à origem. É

como o caminhar por um deserto em que os passos seriam apagados pelo “vento

oeste” 9. Não haveria a possibilidade de traçar a mesma trajetória, no máximo uma

aproximação. Graças ao fato de não podermos voltar a um estágio anterior puro, é

que conseguimos elaborar novas formulações a respeito da vida, sempre renovada.

Caminho aberto como o resultado provisório de forças atuando infinitamente e de

forma diferencial. A repetição em diferença provocada pela excitação causada pelo

contato com o meio é a responsável pelo acontecimento do rastro. O rastro só se

transforma em marca mnésica por meio da repetição em diferença e da forma da

excitação. A inscrição do rastro é proporcionada pela diversidade de forças. Freud

8 Para Freud os organismos tenderiam à manutenção de seu estado anterior, o estádio de não evolu-ção, aquele anterior à vida. Todas as transformações ocorridas buscando a evolução foram provoca-das pelos estímulos exteriores que obrigaram os seres a se preparem para os acontecimentos exterio-res e com isso se tornarem mais complexos. Mas nunca a compulsão à vida anterior (morte, inanima-ção) cessou, estando, ao contrário, se organizando junto a esses novos impulsos exteriores, desen-volvendo-se rumo ao estado inicial, ao de inanimação, de morte, de pulsão à morte. Seria a vida de-senvolvendo-se rumo à morte. 9 Na mitologia, Eros pede ao Vento Oeste que salve Psique da morte retirando-a do penhasco.

24

afirma ainda que é um meio de preservação da vida pela economia de morte, pois a

repetição se dá como forma de diferença em relação à situação de perigo, em que o

indivíduo difere a experiência para a autopreservação. Acontece à forma originária

ser inaugurada pela repetição em diferença: “É certo que a vida se protege pela re-

petição” 10, mas ao mesmo tempo não há uma vida primeiramente que viria a ser

preservada. Esse processo da economia de morte seria o próprio acontecer da vida,

seria a vida se fazendo, já que ela não existe sem a economia de morte, sem repeti-

ção em diferença, sem rastro.

Assim, a memória, a recordação, a tentativa de repetição de uma experi-

ência, não pode nunca retomar um ponto passado na linha do tempo, pois nem a

linha nem o ponto estarão lá. Devemos então pensar de outra forma, pensar a consti-

tuição temporal não como uma sucessão de tempos, mas como a irrupção de um

feixe. Um acontecimento único e imprevisível que constitui-se por uma mecânica em

que não há origem nem centro organizador e em que cada constituinte influencia o

outro, cada um sendo responsável pela formação do outro, garantindo a própria exis-

tência graças a um movimento renegociador e revivificante. É a reatualização como

um devir-sendo, que compõe a contemporaneidade das experiências e do se-fazer,

como forma de auto-constituição pela repetição na diversidade. Uma agoridade sem-

pre dada como a ser constituída e a ser inaugurada como originária, ao mesmo tem-

po em que nega tal condição. Um acontecimento que ao invés do ser ou não ser,

formaria um ser não sendo a partir de si, do sendo em si, diferindo-se por uma au-

sência de semelhança que sempre poderá comportar.

Dessa forma, podemos dizer que não existe um texto na folha de papel

como transcrição de outro texto interior ou inconsciente. A própria existência de um

texto autobiográfico já implica em modificação no ser, de sua existência a si. Uma

existência mutante que provoca a criação do sentido, do sentido como um vir-a-ser.

Segundo Freud, a parte psíquica que recebe os estímulos exteriores não forma mar-

10 DERRIDA. A escritura e a diferença, p. 188.

25

ca duradoura, o que nos faz pensar que a escrita pode registrar o acontecimento an-

tes mesmo de esse aparecer à própria consciência, “o percebido só se dá a ler no

passado, abaixo da percepção e depois dela” 11.

É importante lembrar que não há como separar o mundo exterior daquele do

psiquismo, uma vez que todo o exterior nos é apresentado sob nosso ponto de vista,

como interpretação. O material psíquico é formado pela percepção do externo, assim

como este o influencia, numa via de mão dupla: “A soma de todas trilhagens, os a-

contecimentos, os incidentes que sobrevieram no desenvolvimento do indivíduo

constituem um modelo que fornece a medida do real” 12.

A constituição do ser, da psique e portanto da memória, tudo de forma im-

bricada, funciona como uma máquina e forma aquilo que chamamos traço. Enten-

demos por traço aquilo que deixa a marca no indivíduo, mas que pode ser apagada,

e rastro como um vestígio, um caminho aberto que traça sua via para necessaria-

mente se apagar, o que é a condição de sua existência. O rastro nunca será sentido

como presente à consciência, mas na condição de dar abertura para um aconteci-

mento que ainda está se fazendo, que ainda está por vir, o traço.

Percebemos que a escrita, assim como o sujeito, não possui uma forma fi-

xa e imutável e que o autor também perde o seu status de limite e dono da obra. O

escritor vai apenas comportar um de seus sentidos, e o “comportar” na verdade quer

dizer que em um momento ele deixou-se não-ser através da escritura para se refazer

apenas depois dela, depois de ter se descoberto mais de um e principalmente um

não mesmo. O processo da escrita parece ser um eterno redescobrir, um redefinir a

si e à dinâmica da existência a partir da experienciação e da formação do sentido

futuro no texto. Uma tarefa não muito fácil a partir do momento em que a tendência

do homem, muitas vezes, é se paralisar diante de redefinições de seus valores.

11 Ibid, p. 219. 12 LACAN. O Seminário – Livro 2: o eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise, 1954-1955, p. 140.

26

Beckett, ao analisar Proust, se aproxima bastante das consideração derri-

dianas de tempo. Afirma que o tempo é um monstro de duas cabeças: danação e

salvação. Explica que o ontem nos deformou ou nós a ele, num caminho de morte

constante, morte na/da vida para que esta se fizesse presente. Sobre o funciona-

mento da psique também diz que não podemos controlar a memória ou os fatos evo-

cados, tanto porque o que obtemos do real é apenas uma caricatura, quanto porque

não há possibilidade de identificação do sujeito com o objeto desejado. No caso da

autobiografia, a identificação do autor com o narrador. Para Beckett a personalidade

constantemente modificada é fruto mais uma vez da passagem do tempo no interior

do indivíduo. O estudioso da obra de Proust discorda de uma temporalidade medida

pela forma tradicional. Ele utiliza a metáfora do diamante para apresentar a relação

não excludente, mas sim articulada das temporalidades: o diamante em uma estrada

batida deforma e é deformado, ao mesmo tempo em que resiste e mantém seu tra-

balho. Em seu fim está uma ameaça e uma promessa: Não há como fugir do ontem porque ontem nos deformou, ou foi por nós de-

formado. (...) Ontem não é um marco de estrada ultrapassado, mas um di-amante na estrada batida dos anos e irremediavelmente parte de nós, den-tro de nós, pesado e perigoso.13

Para o sujeito, a transformação de si através do processo de reformulação

e re-significação é dolorosa e não acontece tranqüilamente. O “antigo” eu, no traba-

lho de formação, de modificação de seus anseios, medos e culpas, resiste até o últi-

mo momento antes de ceder. Tem-se então uma relação que se estabelece como

um lugar de diferença que acrescenta. A ameaça do estranho e do diferente provoca

um movimento da psique para que ela possa se defender, reorganizando-se para

tornar familiar aquela nova experiência: “Esfoliação perpétua da personalidade” 14.

Beckett descreve algo parecido com o processo psíquico do bloco mágico freudiano,

na medida em que se refere ao “pacto renovado”, uma forma de se preparar para os

acontecimentos vindouros, mas que também representa a morte, uma eterna morte

13 BECKETT. Proust, p. 11. 14 Ibid, p. 25.

27

daquilo que havia antes para o nascimento de uma nova forma de negociação da

percepção. Notamos, ao relacionar as análises de Beckett com as de Derrida e

Freud, que a reviravolta das sensações e formulações habituais para que o “novo”

tome lugar, corresponderia ao arrombamento para a inscrição do rastro.

Para Beckett, a verdadeira essência de toda forma de experiência está no

intruso, no objeto estranho a nossa percepção. Algo misterioso à racionalidade até

então erigida e baseada em conhecimentos devidamente apreendidos. O misterioso

não parece encaixar-se em nossa estrutura de imediato e é preciso que haja uma

rearticulação para que seja apreendido, o que nos remete novamente à pulsão de

morte, ou à vida à morte.

O tempo para Proust não segue uma linearidade tradicional, mas é extra-

temporal, está ausente da noção da cronologia habitual.

Na morte há uma perda de si mesmo e talvez através da autobiografia se

possa apreender a si, esse outro em mim, e acolhê-lo, deixá-lo o mais próximo pos-

sível na tentativa ilusória de deixá-lo preso, adiando o último instante, o da separa-

ção final. Para pensarmos a memória e seu funcionamento é necessário que a en-

xerguemos como construção da lógica do suplemento, pois: “O indivíduo é uma su-

cessão de indivíduos” 15. O sujeito faz um eterno retorno em forma de repetição, mas

repetição em diferença, como se sempre algo estivesse a se acrescentar, em mo-

mentos distintos, a cada camada psíquica, mas sob a condição de estas estarem

sempre em relação de diferença e espaçamento. Cada uma em relação a todas as

outras.

O tempo da memória e do ser é um tempo presente. Presente como pre-

sença de um passado ausente, a se fazer em forma de promessa.

1.3. O autor, o nome e a assinatura

15 Ibid, p. 17.

28

Ao pensarmos na constituição de uma obra autobiográfica, abre-se a um

vasto campo de especificidades e nuances que a constituem. É um espaço complexo

onde é necessário permanecer atento para não estancar em conceitos fixos e sim-

plistas, eliminadores daquele poder do desconhecido e que podem fechar um campo

de análise que estamos apenas iniciando em seu caminho. Nas memórias e autobio-

grafias percebemos que é necessário um olhar diferencial, é preciso que desfamilia-

rizemos algumas formulações pré-concebidas para que o estudo se torne fecundo e

aponte novas formas de compreensão do gênero. Na literatura, assim como na vida

ou mesmo nas ciências ditas exatas e humanas, não podemos reduzir nada — por-

que nada se reduz — a um conceito imutável.

Assim, podemos dizer que o que pretendemos não é estabelecer nenhuma

verdade acerca da constituição do autor, de seu nome e assinatura. Pólos importan-

tes, mas que não fecham a múltipla e complexa constituição da relação entre aquilo

que se chama de autor e seu texto, e aqui especificamente, a escrita de uma vida.

Autor, nome e assinatura serão guiados sem um fim já estabelecido e vão se inscre-

ver na medida em que as leituras já feitas ganharem sentido e se relacionarem. Será

um processo de construção e reconstrução, e para usarmos uma expressão de Der-

rida, esse estudo permanece “como tudo o que ocorre, e é a condição do que ocorre,

inantecipável” 16.

Entretanto, se não podemos de antemão precisar o ponto de chegada, es-

tabeleceremos então um de partida que consistirá em uma base para que se ergam

as análises aqui empreendidas. Partiremos de um pensamento de Derrida, também

partilhado por Foucault, que considera impossível uma separação entre a vida e obra

de um autor, da mesma forma que não aceita uma visão que tenta explicar a obra

através da biografia do autor. Foucault (1992) afirma que autor é só uma das catego-

rias de sujeito, e que este só passou a ser importante quanto se tornou passível de

punição. O que devemos considerar é:

como é que o singular é inscrito em formas de linguagem e que gênero de categorizações presidem a este trabalho. Assim as categorias de sujeito,

16 DERRIDA. O animal que logo sou, p.13.

29

de autor, de indivíduo, etc., são afinitárias do trabalho de disciplinação do corpo próprio, e neste processo a escrituralização da vida, mas também do corpo, todos os procedimentos de biografização, são absolutamente decisi-vos. 17

Na Idade Média, a marca da autoria era o seu desconhecimento, a moder-

nidade é que traz a idéia da importância autoral e de sua imobilidade, sua fixidez,

assim como a do texto. Segundo Derrida, o texto não só autobiográfico, mas de toda

natureza, está na fronteira entre a vida e a obra de um autor, e não as separa, e sim

atravessa-as. A biografia não une vida e obra, mas é uma forma de discurso “sobre

vida e morte”. Starobinski 18 afirma que o estilo autobiográfico não possui uma forma

fixa, já que predominará na escolha do indivíduo, sua forma de escrita característica:

o autor vai escolher uma forma de dar-se a conhecer ao outro. Outra importante ob-

servação é feita por De Man 19: “a autobiografia não é um gênero ou um modo, mas

uma figura de leitura e de compreensão que ocorre, em algum grau, em todos os

textos”. A afirmação abala não só as categorias de vida e escrita mas também as e

teoria e ficção.

Desprendimento de si mesmo para seu crescimento, para sua auto-

avaliação, escrita que carrega consigo os fragmentos de uma realidade da qual faz

parte, discurso que atravessa uma vida, as memórias constituem um tecido dinami-

camente formado e “comandado” pelas rememorações voluntárias e involuntárias de

um sujeito. Seus fios procedem das mais variadas direções. Algumas das experiên-

cias vividas pelo autor, outras de histórias ouvidas a respeito de antepassados ou de

alguém próximo e que de alguma forma foram re-significadas e ganharam espaço

em suas lembranças: autobiografia é um espaço plural.

Quando o autor decide narrar sua vida, o que se coloca primeiramente em

tal campo formado pela heterogeneidade não é o passado constituído, ou aquele ser

que vivenciou tais experiências, mas sim sua relação com o nome próprio, com o

17 FOUCAULT. O que é um autor?, p. 10. 18 apud Miranda, 1992, p. 30. 19 apud Foucault, 1992. p.10.

30

nome que lhe é dado 20. Nesse momento, o eu autor percebe que o nome pertence a

um outro, um outro em si. É então que se inicia o ato narrativo, no momento em que

vou contar minha vida a um outro cujo lugar e existência só têm sentido em relação

ao eu, a um conjunto de forças que dão status ao ser. É um campo marcado pela

tensão entre o sujeito (eu) e o objeto (outro). Nele ocorre a negociação com um ou-

tro, ao mesmo tempo, formador e diferente do eu. Seria mesmo a defférance derridi-

ana, na medida em que é algo que possui uma identificação e ao mesmo tempo uma

não identificação, um outro. Uma diferença que só aparece por meio da escrita, na

folha de papel. No ato autobiográfico contam-se as memórias primeiramente a si

mesmo. Todavia o si é um outro, pois só podemos narrar para outrem, só podemos

nos conhecer através dele, do outro em si.

Dessa forma, o processo de reconhecimento, essencial no trabalho da es-

crita de si, é uma árdua caminhada porque não nos encontramos idênticos a nós

mesmos. O que percebemos é a ausência de homogeneidade em nossa constituição

psíquica, além de uma instabilidade interna, resultante de um sujeito heterogêneo.

Na verdade nos reconhecemos como e no outro, deslocando a ilusão de unidade do

sujeito. Através da narrativa memorialística, abrem-se espaços que tornam possível

o diálogo interno, assim como a visualização fantasmática da constituição pessoal:

um lugar de diferença e instabilidade constante. Tal acontecimento propicia uma no-

va forma de experienciação para o sujeito e modifica sua estrutura no momento

mesmo da escritura: “essa escrita abre caminho para uma estrutura auto-reflexiva

que pouco tem de auto-identificatória, pois prepara o advento de si mesma como ou-

tro, no rastro do outro” 21. Um aspecto que também dificulta uma auto-afirmação é

que podemos criar ao invés de reconhecer algo do passado no momento em que

rememoramos, realizando o que Freud chama de ilusão do reconhecimento, pois na

verdade o que ocorre é um ato inaugural. O que provoca o interdito e estabelece

20 Cf. SISCAR. A paixão ingrata. In: ___. NASCIMENTO, Evando; GLENADEL, Paula (orgs). Em torno de Derrida. p. 160-186. 21 NASCIMENTO. Derrida e a literatura: “notas” de literatura e filosofia nos textos de desconstrução, p. 313.

31

uma ligação não ligada ao non-sense, na medida em que é lançado para um campo

infinito de associações e recorrências.

É necessário que pensemos sobre a natureza ficcional das autobiografias

de autor, uma vez que a mímese é já representação de um real e não o real. Deve-

mos pensar a respeito de ser impossível qualquer tentativa de totalização e muito

menos a da vida pelo discurso, porque o processo nos remeteria ao fato de que a

linguagem é referencial e o signo representa já a diferença em relação à realidade

apreendida, e muitas vezes é tarefa difícil uma linguagem fiel ao pensamento dese-

jado, como afirma Foucault (1990). Ao mesmo tempo é somente graças à referencia-

lidade da escrita que podemos obter uma ilusão de que uma obra está fechada, con-

cluída.

Na verdade, o signo é apenas uma figura e como tal ele não possui um

correspondente significante já atrelado. Como toda figura, o signo é vazio e silencio-

so, privado de sentido, mas como a linguagem em sua fundação busca essencial-

mente a comunicabilidade, sempre haverá um chamado e a promessa de um signifi-

cante que todavia é flutuante. E é devido ao movimento de presença/ausência —

ausência do pai, condição para que a escrita tenha existência, que continue a signifi-

car, infinitamente — que na escrita se relacionam vida e morte, sem que haja um

limite em que uma começa e a outra termina, mas como um movimento indecidível.

A indecidibilidade da différance derridiana quer dizer que algo possui uma identifica-

ção e ao mesmo tempo uma não identificação, um outro como constituinte.

Segundo Derrida, as forças presentes na escritura não são completamente

comandadas por seu locutor. Este age sobre elas, mas a ação é só um dos compo-

nentes do sistema, que através da iterabilidade, processo maior, determina algo co-

mo uma marca, um traço. Todavia, a determinação é provisória e pode ser transfor-

mada uma vez que é uma cadeia de signos da qual nunca poderemos obter uma

resultante imutável, mas sim aberta a toda forma de leitura. O aspecto parricida da

escrita consiste em ela continuar a falar sem a presença do pai, esvaziando seu sig-

nificante para que ele ganhe possibilidades ilimitadas. Outra possibilidade que repre-

senta o poder da escritura e sua independência está no fato de que o escritor pode

32

ser levado a dizer aquilo que não pretendia, “espécie de simulacro do desejo presen-

te” 22, mas desejo não revelado até o momento da escrita das memórias.

A experiência vivida, no trabalho da escrita autobiográfica, modifica-se as-

sim como o autor e narrativa. Escrever torna-se um conhecer a si mesmo a cada no-

vo passo, a cada linha escrita, compondo um caminho de encontro com o outro para

o próprio reconhecimento. É um ato de pensar em si e na existência presente, pas-

sada e futura. É um processo de constituição de um sujeito que perpassa todos os

tempos e por isso é o que é, um ser formado por uma estrutura em constante rema-

nejamento, numa tentativa fantasmática, ilusória de conciliação das partes. O escritor

memorialista consegue, em tal processo, produzir uma obra que, graças à freqüente

busca de algo conciliatório em si mesmo, realiza um pensar sobre suas vivências.

Apesar dessa escrita ser espacial e temporalmente finita, definindo um locus de iden-

tidade no qual o sujeito tenta se redescobrir, o relato autobiográfico coloca-se no pla-

no do interminável, do abismo: “Interiorizar é portanto correr o risco do desastre, cor-

rer o risco do impossível. É preciso audácia” 23 . O ato da escrita em si já é um acon-

tecimento imprevisível.

Esse é o aspecto produtivo do ato de rememoração, já que no movimento

de retorno são outros olhos, outro ser que “pensa” sobre tal passado. Vários questio-

namentos serão colocados na ordem da escritura.

O discurso sobre as próprias experiências não está pronto para o escritor,

este não possui um texto pronto no interior de si que porta, já pronto, a sua vida intei-

ra. O eu se escreve a partir do reflexo proveniente de uma consciência que se cons-

trói na linguagem, reflexo que mostra um eu nu diante do outro. Na autobiografia nós

nos vemos vistos por um outro, o outro em nós. Fazemos a narrativa desse eu para o

22 NASCIMENTO. Derrida e a literatura: “notas” de literatura e filosofia nos textos de desconstrução, p. 109. 23 SISCAR. A paixão ingrata. In: ___. NASCIMENTO, Evando; GLENADEL, Paula (orgs). Em torno de Derrida. p. 160-186.

33

outro em mim, num processo de interiorização do nome próprio, de iterabilidade en-

tre os sujeitos numa tentativa infinita de correspondência entre o eu e aquele que se

esconde atrás do nome e que se mostra através da escrita. Em tal processo a tenta-

tiva de reconhecimento e referência realiza um trabalho de autoconhecimento produ-

zido pela iteração com a alteridade. É um trabalho que se estrutura na forma de um

abismo compondo uma escritura que caminha para o sem fim, para o porvir.

Mesmo quando o sujeito se coloca uma questão, quando se dirige a si

mesmo, esse movimento já implica um receptor, no caso o outro em si. O sujeito, ao

afirmar um sentido, primeiramente recebe-o, ele é o primeiro a receber o outro que

afirma. Não é o encontro do eu consigo mesmo, mas com um outro que retorna e re-

situa o lugar do sujeito, realizando o falar sobre si mesmo. Segundo Derrida é aí que

se localiza o auto da autobiografia e é no re da representação que o sujeito interage

e tenta se constituir. Tal comunicação interna possui uma rede de significação com

regras próprias que consistem basicamente em representação e deslocamento: no

rastro que passa a ser a própria condição de existência da memória e do sujeito.

Quando uma experiência — na verdade uma repetição desta em série —

deixa uma marca, esta poderá apagar-se para dar lugar a outra, renegociando uma

inscrição. Todavia essa inscrição também será rearticulada, sucessivamente, o que

garante a formação da memória e sua sobrevivência por meio do processo de re-

marca. O que vai existir então não é um sujeito autônomo, constituído por um corpus

pleno, totalizado e finito, mas a inscrição dos rastros de suas vivências em constante

negociação e mudança.

O nome do autor, o nome da capa do livro é apenas um rastro daquilo que

o autor é ou foi. A escrita das experiências ali narradas não totaliza a vida do ser,

pois a vida a excede. Tampouco está limitada ao nome na capa do livro, mas nos

remete a ele. A ausência do pai é a condição para que a escrita garanta sua marca,

se faça presente e venha a se realizar como um pós-scriptum.

O processo de interiorização do eu através do trabalho com o nome, outro

desde sua origem, pois é dado na maioria das vezes pela mãe, estabelece-se em

sistema de diferenças: um não outro nome, que nomeia um não outro indivíduo. A

34

assinatura, dessa forma, carregará uma tensão, um drama, um saber sobre a vida,

um conjunto de experiências delimitado pelo texto ao qual se refere. A assinatura é o

reconhecimento instável do sujeito e não se confunde com o autor. Ela vai apresen-

tar o personagem de um drama, de uma vida, de um saber sobre ela que o texto

comporta. Não há nenhuma forma de existência sem uma assinatura, sem a marca

daquele que se dá a conhecer através dela. Na verdade sempre teremos a assinatu-

ra da assinatura, em que o sinal, a marca está presente antes do fim da escrita, pois

se auto-afirma por meio dela, a qual garante uma presença, a presença da ausência

do escritor.

A assinatura indica a ausência do autor, mas garante que esteve presente

ali de alguma forma, que é o personagem real (aquele cujo nome representa o ser

que experienciou os fatos) daquela narrativa e responde por ela, em nome dela. Tal

assinatura não preeexiste a escrita e só pode se fazer através dela, através de um

reconhecimento cambiante de uma vida, de um conjunto de experiências. Por meio

da assinatura reconhecemos tal obra como pertencente a determinado autor e não a

outro, pois ela carrega a sua marca, garante a sua continuidade depois da morte. O

nome prolonga indefinidamente a vida do autor ao mesmo tempo em que garante

sua desaparição como uma promessa de futuro, como o canto das sereias:

Singular oferecimento, o canto nada mais é do que a atração do canto e não promete ao herói mais do que a repetição daquilo que já viveu, conhe-ceu, sofreu, pura e simplesmente aquilo que é ele mesmo. Promessa por sua vez falaz e verídica. Mente, visto que todos aqueles que se deixarão seduzir e dirigirão seus navios rumo às praias, não encontrarão mais do que a morte. Mas diz a verdade, posto que é através da morte que o canto poderá elevar-se e contar ao infinito a aventura dos heróis.24

O nome é o portador da assinatura e ambos são categorias de uma subje-

tividade complexa, que não pode mais ser vista de forma simplista. A linguagem põe

a nu toda a forma de significação fixa, pois mostra que não comporta nenhum signifi-

24 FOUCAULT. O Pensamento do Exterior, p. 54.

35

cado pré-estabelecido. Para o leitor, a assinatura apresenta um ser mitológico, a re-

presentação daquele ao qual o discurso remete e em quem o leitor confia.

Os fatores que envolvem as autobiografias são um deserto antes de serem

escritos, o sentido que as constitui não preexiste à escrita, o autor ao escrever se

despersonaliza ao mesmo tempo em que personaliza o sujeito da escrita, aquele que

assina e que não é de papel, mas atravessa autor e escrita. Os limites da obra são,

na verdade, sua possibilidade de continuidade através da abertura que o ponto final

inaugura e pela condição de se separar de seu “pai”: “Herança possível do que é, em

primeiro lugar um acontecimento, a obra [autobiográfica] apenas tem porvir virtual

com a condição de sobreviver à assinatura e de separar de seu signatário suposto

responsável” 25. Assim, podemos dizer que não há garantias na linguagem, o discur-

so e o sentido não estão prontos a priori, antes do signo, mas se realizam no proces-

so de significação. O trabalho da escrita e o gesto autobiográfico abrem caminho pa-

ra um pós-scriptum inacessível e inantecipável antes de sua aparição a qual compor-

ta somente a abertura do caminho, a irrupção sem irrupção.

No processo de tentativa de escrever o singular em forma de linguagem é

importante lembrar que a biografia é só uma parte da vida, já que esta está em ex-

cesso em relação a escritura. “A biografia apresenta um sujeito absoluto naquilo que

é um sujeito possível” 26. A autobiografia comporta aquilo que não pode comportar, a

bios. A trajetória psíquica do indivíduo não obedece a uma lógica causal centrada e

foge às leis da racionalização. Funciona no movimento de jogo, e sua temporalidade

não pode ser reduzida ao conceito restrito e tradicional de passado, presente e futu-

ro.

No momento em que um fato é rememorado e transformado em narrativa,

o processo não se dá como uma forma de trazer à memória algo que aconteceu no

passado. Não podemos reproduzir um acontecimento, pois ele é trazido pela memó-

ria de acordo com a necessidade do presente e o sujeito atual não é aquele de outro-

25 DERRIDA. Papel-máquina, p. 39. 26 FOUCAULT. O que é um autor? ,p. 12.

36

ra. A idéia de passado se modifica na medida em que dele só resta a memória, ou

seja, uma negociação de fatos garimpados de acordo com as necessidades do pre-

sente, do eu presente. Um presente como presença, presença de um passado au-

sente.

Ao escrever as memórias, o autor atravessa vida e obra, vida e morte, se

relaciona com aquilo que a tragédia grega acreditava constituir a chave para a aber-

tura do mundo. Quando se realiza um trabalho consciente da perenidade do corpo e

de finitude da vida, caso das memórias, é como se se dissesse a vida: “uma vez

mais”. É uma forma de eterno retorno para a reconstrução de um ser, de sua história

vivida.

1.4. A escrita de memória como confissão

Para tratarmos do assunto expresso pelo título acima precisamos fazer um

retorno às origens, referirmos previamente a um período muito anterior, a um tempo

mítico que corresponde ao relato da Gênese. Esse caminho, necessário para nossas

considerações, na verdade segue um outro caminho já aberto e também traçado por

Jacques Derrida. Via a qual orientará muitas outras considerações acerca da relação

entre a escrita autobiográfica e o gesto confessional em seu sentido eclesiástico.

Recuemos então ao momento do pecado, do erro cometido pelo homem no

paraíso após ter comido o fruto da árvore da vida. O erro consistia, ao mesmo tempo,

em desobedecer a uma ordem divina, no conhecimento do bem e do mal e da nudez,

assim como na vergonha por estar nu. O que vai nos interessar aqui é o rompimento

da condição de um não-saber sobre si e tudo o que se seguiu a isso. Quando o ho-

mem passa a conhecer e a reconhecer sua condição de estar nu, com seu sexo ex-

posto, ele se envergonha, perde sua pureza original, cobre-se e em seguida, quando

tal fato é dado a conhecer a Deus, é severamente punido. Punido inclusive com a

futura morte, pois perde sua condição de imortalidade e passa a ser mortal. Segue-

se então a esse fato que todos os homens passam a ser punidos pelo pecado de um

só, mas tornado de todos.

37

Na natureza o homem é o único animal que se cobre, que tem vergonha de

seu sexo. É, portanto, o único que se sente nu, que se sente impuro e necessita co-

brir-se. Os animais, segundo Derrida, não se sentem nus porque são nus, para eles

não existe a condição de nudez. Assim, podemos concluir que não há um pensamen-

to do bem e do mal sem o sentimento da nudez, sem sentir-se impuro, já que foi a

partir desse acontecimento que fomos expulsos do paraíso. Os três fatores, o conhe-

cimento do bem e do mal, o conhecimento da própria nudez e a punição, estão inti-

mamente ligados. O saber sobre si mesmo que implica o conhecimento de estar nu

envolve todo o comportamento humano, toda sua forma de representação, pois não

há como pensar separadamente o saber e a técnica e tudo que está relacionado a

esse vivente depois do erro inaugural:

o vestuário responde a uma técnica. Nós teríamos então que pensar juntos, como um mesmo “tema”, o pudor e a técnica. E o mal e a história, e o traba-lho, e tantas outras coisas que o acompanham. O homem seria o único [a-nimal] a inventar-se uma vestimenta para esconder seu sexo. 27

O conhecimento do bem e do mal e da situação em que se encontrava no

mundo deram ao homem o poder de ser igual aos deuses, mas o conhecimento tam-

bém lhes garantiu o sentimento de impureza, de culpa. Após o pecado original o ho-

mem passa a se constituir em uma rede de relações calcadas pelo “erro” cometido

na origem e pela necessidade de redenção.

Pensemos então da seguinte forma: se o homem se sente envergonhado,

se sente necessidade de cobrir-se, é porque se sente impuro, mas necessita sentir-

se puro e por isso cobre-se. Esse sentimento acontece mesmo quando estamos sós,

ou no exemplo de Derrida, quando estamos diante de um animal que está nu e que

não tem conhecimento de sua nudez e nem da nossa. O pensamento aqui se dire-

ciona então para a hipótese de que o sentimento de vergonha e impudor, desde a

Gênese, está presente na constituição do homem ocidental, em seu comportamento,

em sua forma de ver o mundo e principalmente de ver a si mesmo.

27 DERRIDA. O animal que logo sou, p. 18.

38

Todavia, se só podemos sentir vergonha diante de um outro, quando es-

tamos sós ou diante de um animal que não possui o conhecimento da nudez e sen-

timos necessidade de nos cobrir, a vergonha é diante de quem? Diante do outro, do

outro em mim. Percebemos que antes de nos dirigirmos ao outro externo, nos dirigi-

mos primeiramente a nós, a um outro em nós, e é diante dele que precisamos, pri-

meiramente, confessar.

É importante lembrar que o homem é o único animal que conta a sua pró-

pria história, que está sempre se lembrando dos atos passados, recordando, pas-

sando em revista a história do homem. Segundo Derrida (2002b), o homem é um

“animal autobiográfico”, e esta autobiografia, a história de si, depois do pecado origi-

nal torna-se confissão, testemunho de um erro inaugural, uma dívida estabelecida

entre criador e criatura.

O testemunho, antes do discurso, antes de sua passagem ao ato vai sem-

pre se dirigir ao outro, sempre vamos narrar primeiramente a um outro em nós, um

trabalho de abertura para o post-scriptum. O testemunho então não deixa de fazer

com que haja uma reflexão sobre si, uma reflexão autobiográfica antes de se relacio-

nar com o nome de Deus. A religião é uma resposta diante de si e diante de Deus. A

literalidade e a escrita são componentes fundamentais de toda crença e de toda for-

ma de revelação, de resposta à revelação. É uma via de mão dupla: se toda forma

de religião já supõe uma resposta, uma resposta primeiramente provocadora de uma

reflexão interior, ou seja, de um movimento autobiográfico, toda autobiografia tam-

bém é uma forma de confissão, de testemunho, um testemunho auto-imunitário. Per-

cebemos a partir dessa argumentação que a escrita é um lugar sagrado na medida

em se constitui também como sepultura, lugar de morte para o renascimento de um

outro, agora rearticulado através do texto.

Santo Agostinho inaugurou um pensamento filosófico cristão no qual a

confissão consistia num movimento da alma como intimidade, como um poder de

atingir o interior de si, pois aí é que se encontra a verdade. Constrói-se assim uma

forma de individualização num mundo em que era valorizado o coletivo em detrimen-

to do particular. Para o cristão é necessário o conhecimento individual, intra-pessoal,

39

para que o homem tenha condições de atingir a Divindade, o que inaugura um pen-

samento individual, uma preocupação com o sujeito. No mundo antigo, o íntimo, o

particular não eram tão valorizados. Houve o oráculo de Delfos, o “conhece-te a ti

mesmo”. Presente também em Sócrates, Platão e Aristóteles. Mas os gregos

dificilmente diziam eu. Diziam na maioria das vezes nós.

Derrida (1995) escreve que quando Santo Agostinho se perguntava porque

deveria se confessar a Deus, já que Ele tudo sabe e tudo vê, a resposta era que o

ato de confissão não busca informar a Deus os pecados, mas sim em dar graças à

vida, em aumentar o conhecimento sobre si mesmo, aproximando-se do Criador.

A escrita autobiográfica carrega a memória de um tempo muito remoto,

aquele que vai além da própria escrita, e que não só se remete ao Testamento, mas

é a própria Escritura do homem, de sua existência na Terra. É a formação de um

tecido que carrega o post-scriptum que não é dito, nem previsto, mas sempre uma

promessa, um dever, uma dívida, a possibilidade do (ainda) impossível. A escrita

comporta um desejo de confissão e por isso sua capacidade de obter o perdão é

infinita. Todo desejo de confissão carrega em si a absolvição inerente porque

confessar é saber-se perdoado.

Através da narrativa de uma vida, tenta-se nomear aquilo que vai além do

nome (a experiência, a paixão), o inominável. A confissão atravessa toda a escrita

autobiográfica e tenta salvar o ser que vai além de si e que existe através do nome,

que comporta o nome ou o caminho aberto por ele. Tenta-se salvar tudo aquilo que é

trazido pelo nome, exceto o nome, e pode-se pensar que o ato da escrita é injusto.

Porém, tal fato significa sim respeitá-lo em sua condição de nome, perceber sua

economia de existência, seu trabalho, que é o de anunciar a chegada do outro, a

lembrança do outro e estacionar-se em sua nudez, para abrir possibilidades futuras.

Existe no texto, ao mesmo tempo, um sentimento de pecado e de restitui-

ção marcado por uma espécie de eterno reconhecimento e gratidão pela vida, pela

dádiva divina da vida, pela existência do homem sobre a Terra. Podemos dizer que

se vive um tempo calcado pela tentativa de redenção e de gratificação, um pela falta

cometida no início e outro pelo dom da vida, da vida inteira. Isso porque diferente-

40

mente do pensamento grego, o cristão acredita que o mundo foi criado, que Deus o

criou a partir do nada, antes havia nada, e “ele criou o céu e a terra”, e criou por a-

mor. Assim estaremos sempre em dívida por termos recebido a vida, por ela ter sido

dada a nós, sem nada em troca. Mas o homem está ameaçado pelo nada, pela con-

denação à morte devido à passagem da serpente.

Rousseau afirma que um roubo cometido em sua adolescência o levou a

escrever suas memórias: “Esse peso continuou, pois, até hoje sem o alívio da cons-

ciência, e posso dizer que o desejo de me livrar dele de alguma maneira muito con-

tribuiu para a resolução de escrever minhas confissões” 28. A escritura da vida reali-

zada pela autobiografia — a escuta das vivências de um eu que não consegue reco-

nhecer-se, mas que tenta representar esse outro metonímico e metafórico — torna-

se assim um gesto de restituição e de reconhecimento. Restituição porque é através

do discurso de contar-se a si primeiramente a sua vida que o homem estará buscan-

do a “salvação”. A obra é seu testemunho, é a revelação, é a verdade, uma verdade

sobre a vida, uma confissão que por si só já pressupõe o perdão, já o liberta do mal

cometido, da culpa. A necessidade de voltar-se para as ações passadas afeta o eu e

retraça o caminho a seguir e o caminho seguido, através da reconstituição de si, e

em busca da salvação. Em toda forma de confissão, de testemunho, está subenten-

dido um “eu digo a verdade” e digo a alguém, e toda forma de promessa de dizer a

verdade, todo juramento, já envolve instantaneamente Deus. Não há juramento nem

testemunho sem Deus.

A memória, o voltar-se para os fatos passados da própria história individual,

exerce um papel de libertação em relação ao tempo e à imagem racionalista do

mundo quando acontece nas manifestações religiosas. É assim no Cristianismo e no

Budismo: o primeiro remete sempre a existência a um tempo mítico, e o segundo, de

acordo com Mircea Eliade (1972), garante aos mais evoluídos uma memória absolu-

ta, porque pode recordar toda a vida, o que garante um poder de Cosmocrata. Isso

28 apud Derrida, 2004, p. 59.

41

ocorre porque o poder, o trabalho de recordar é considerado maior do que o poder

de conhecer a origem, já que na recordação há um movimento de redescoberta e re-

significação.

É a abertura de registro de um ser como confissão, num movimento de

rememoração, de lembranças muitas vezes difíceis, que traz à tona os erros cometi-

dos, os maus comportamentos, mas também a necessidade de ser perdoado, redi-

mido, purificado. A confissão e a necessidade de perdão nascem naquele tempo mí-

tico e marcam a busca de crédito com o doador-credor que é Deus, aquele que dá,

mas quer receber a dívida em forma de um determinado comportamento humano.

O contar sobre si como forma de reconhecimento pela vida acontece como

uma operação em que reviso e re-visito minha existência para contá-la, para reco-

nhecê-la como valorosa. Uma gratidão infinita por estar vivo, por ter vivido e poder

contar-se a sua vida.

O sacrifício realizado pela escrita, a experiência de poder e de autoridade

sobre o sujeito e sobre as leis da vida provocam uma perda de si por vontade pró-

pria. Perda para não estar sujeito a nenhuma dualidade opositiva, nem acima, nem

abaixo, nem servo, nem senhor. Um ato de fé, de crença no poder da palavra, de sua

promessa, a promessa de que realizará seu trabalho por si mesma, na ausência de

seu autor.

A autobiografia carrega a tensão entre a vida-e-morte, estas inseparáveis,

para tentar dar conta da incomensurável organização da existência humana que é a

de sobrevivência e desaparecimento. A escritura das memórias trabalha e metaforiza

tempo e indivíduo e, por isso, realiza um movimento de morte e ressurreição, confis-

são e renovação.

No processo de reconhecimento, acontece um trabalho de autoconheci-

mento voltado para a restituição, que abarca o ser em sua complexidade. Fato que

ao mesmo tempo aproxima e afasta o sujeito de si mesmo, numa relação de estra-

nhamento e familiaridade. Há um deslizamento das personalidades desencadeado

pelo desejo de continuidade infinita da conciliação dos eus.

42

A delimitação de uma vida através da sua narrativa coloca um espaço em

que o contar sobre si pode ou não ser resultado de uma invenção, mas carrega uma

relação com a vida e com as necessidades presentes. Carrega uma tensão e um

desejo de pagar uma dívida através da revisão dos atos passados, de um desvela-

mento de si. Escreve-se a vida porque ela é digna de ser escrita, porque ela é agra-

decimento ao valor que lhe é devido.

O retorno a um tempo ausente, mítico, num movimento que carrega o rastro

arcaico no momento de busca do “passado” (em passado como presença), da escrita

da vida, pode ser considerado um gesto “imunitário (e pois um movimento de salva-

ção, de salvamento e de salvação do salvo, do santo, do imune, do indemne, da nu-

dez virginal e intacta)” 29.

A dignidade do ser vivente é algo que extrapola a própria vida e o vivente,

indo além deles, e é nesse espaço que pode habitar a religiosidade, a paixão, no a-

lém do texto que o texto comporta. A vida do vivente vale mais do que ela própria,

está além dela, e é no excesso, na suplementaridade que acontece a necessidade

de perpetuação e sua relação com a finitude, a relação com a morte, o gesto auto-

imunitário. Só o texto pode abrigar tamanha complexidade, só através dele pode-se

negociar a incomensurabilidade da existência.

Aquilo que mantém uma comunidade humana auto-imune em vida é sua

capacidade de estar sempre aberta a algo além dela, uma sobre-vivência, algo que

poderá ser o outro, a liberdade, a morte, Deus. Algo que possibilitará a tentativa do

retorno à pureza. Assim, toda forma de testemunho possui já um interlocutor que o

excede, que vai além, e que tenta resgatar um tempo antes da queda, para que pos-

sa unir-se a Deus, tornando-se igual a Ele. A transitoriedade das coisas mundanas, a

mudança das etapas de vida do homem, ou mesmo da natureza — o nascer, cres-

cer, envelhecer e morrer — garantem ao ser a certeza da morte, sua inevitabilidade e

diante disso ele tenta sobreviver a ela, perpetuando-se através da obra.

29 DERRIDA. O animal que logo sou, p. 87.

43

A escrita de memória possui a força de libertar a obra do tempo, libertando

autor e obra de qualquer tentativa de fixidez, já que o escritor, num processo de des-

lizamento, percorre um caminho traçado por si mesmo. Movimento que consiste em

deslocar-se rumo ao desconhecido, rumo ao impossível, como afirma Derrida: “Ir a-

onde é possível ir não seria um deslocamento ou uma decisão; seria o desenvolvi-

mento irresponsável de um programa. A única decisão possível passa pela loucura

do indecidível e do impossível: ir aonde (wo, Ort, Wort) é impossível ir” 30, pois nada

em tal processo pode ser controlado.

A intenção do sujeito é apenas uma das forças que interagem num proces-

so maior de iterabilidade, que vai inscrever a marca, o rastro. Mas essa determina-

ção será provisória, podendo ser transformada, já que se trata de uma cadeia de sig-

nos na qual nunca poderemos obter “o nome exato que una em definitivo um nome a

uma única coisa” 31 .

30 Idem. Salvo o nome, p. 42. 31 NASCIMENTO. Derrida e a literatura: “notas” de literatura e filosofia nos textos de desconstrução, p. 160.

44

2. MEMÓRIAS DE CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE E DOIS CONTEMPORÂNEOS SEUS: PEDRO NAVA E MURILO MENDES

Não serei o poeta de um mundo caduco. Também não cantarei o mundo futuro. Estou prêso à vida e olho meus companheiros. (...) O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os [ homens presentes, a vida presente.

Carlos Drummond de Andrade

2.1. Representações: religião, sexualidade e o negro

As memórias trazem para o presente da escrita a forma de um sujeito en-

xergar os acontecimentos de um mundo de individualidade marcado por experiências

únicas. A partir desse acontecimento, de um desejo de recuperação, movido por uma

falta, a falta da infância, a falta do menino que viveu as experiências, a falta do pas-

sado, surge a realidade do texto dada pela rememoração. Realidade baseada na

ficção criativa do artista que transpõe o mundo de suas vivências para o papel, pre-

enche o espaço da folha e o das lembranças que faltam no movimento de constitui-

ção de si mesmo, daquele outro a buscar o encontro com o eu. Infelizmente, tal en-

contro se torna impossível na medida em que ambos os sujeitos estão em planos

diferentes e se transformam constantemente rumo ao encontro um com o outro. En-

tretanto, a escrita de rememoração se funda mesmo na utopia, na esperança do en-

contro, e só por isso ela se torna possível.

O acontecimento da escrita autobiográfica pode ser fecundamente estuda-

do interagindo com o contexto histórico-cultural no qual está inserido. Trabalho em

que ganha tanto o gênero de memória quanto a cultura. A partir desse olhar, aborda-

remos a escrita autobiográfica como um testemunho de vida historicamente determi-

nado, ou seja, determinado no sentido de que serão analisados autores modernistas

contemporâneos. Inseridos num contexto em que havia a importância crescente da

45

representação da própria cultura, da própria história individual / coletiva. Assim, o

mais importante é pensar não só no conceito de indivíduo a si, mutável, característi-

co de cada época — diferente pois da noção de indivíduo a si do século X ou no sé-

culo III a.C., em que predominou o nós, uma visão de sujeito coletivo — mas também

no fato de que os acontecimentos que interagem com o sujeito da escrita lhe darão a

compreensão, a noção de pre-sença 32, mas não como algo estático preso a uma

consciência, e sim na forma de um questionamento sobre si a partir do mundo exter-

no. Mencionamos aqui o pensamento de Heidegger encontrado principalmente em

Ser e Tempo sobre a pre-sença e que Derrida estuda e questiona, ao mesmo tempo

em que estabelece novas considerações a partir do pensamento do filósofo alemão,

o que acontece ao longo de toda a vasta produção derridiana.

Na trajetória empreendida pelos autores Carlos Drummond, Pedro Nava e

Murilo Mendes nas respectivas obras Boitempo, Menino Antigo: boitempo-II e Es-

quecer para Lembrar: boitempo III, Baú de Ossos, A idade do serrote, notamos a re-

presentação do testemunho de uma época. Mas podemos afirmar também que toda

produção literária quando passa a ser analisada num recorte determinado é capaz de

apresentar o olhar individual sobre um período. O recorte revela o acontecimento da

obra dentro de certas disposições, assim como suas relações internas ligadas a uma

temporalidade histórica, propiciando uma forma de interpretar e a possibilidade de

nos relatar o outro lado da temporalidade. As memórias são um tecido textual com-

posto pela história da escrita e do homem, história do ser como pre-sença no mundo,

sua condição por excelência. Memória como presença de uma ausência. Daí obser-

vamos que se compreender o ser é compreender o mundo em que o ser está inseri-

do, compreender a memória é enxergá-la como discurso de representação das vi-

vências e de uma visão de mundo com o poder de renegociação.

Os temas escolhidos que são a sexualidade, a religião e a escravidão irão

nos orientar no campo de análise e questionamentos e vão criar, através da liberda-

de artística da literatura, uma realidade individual-coletiva. Os três foram aqui pré-

32 Cf. HEIDEGGER, 1993, p. 32-33-34.

46

selecionados devido ao fato de sua presença ou ausência ter sido notada nas escri-

turas analisadas de uma forma a se relacionarem com as experimentações de um

eu. É importante ressaltar que qualquer hipótese levantada será concernente aos

livros que propusemos previamente e não às obras dos autores como um todo. Im-

porta-nos lembrar também que a intenção desse trabalho é muito mais de investiga-

ção e questionamento, na busca de acrescentar análises e diálogos contemporâneos

à vasta produção existente acerca dos livros dos poetas mencionados.

Na poesia drummondiana realiza-se, em seus três livros, um movimento de

rememoração complexo, em que o trabalho com o eu, o menino e o narrador articula-

se com o tempo num retorno impossível, mas perseguido, prometido, que mais dis-

persa do que reúne. O que provoca uma desarticulação do tempo “perfeito”, centrado

a partir de uma “agoridade” que determina o passado e o futuro a partir de si. O texto

do itabirano condensa passado, presente e futuro e ainda o sujeito que passa então

a diluir-se com a temporalidade para se reformular a partir dela, que é sua própria

matéria. Esse mesmo processo, de um-no-outro, acontece com o tempo que se torna

então constitutivo do ser, mas vai além dele, incomensurável. Tais noções se rela-

cionam com as perspectivas temporais propostas aqui através das considerações

que derivam da obra de Derrida, numa releitura do Freud do “bloco mágico” e ainda

das considerações de Foucalt sobre o “pensamento do exterior”.

Como forma de indicar tal mecânica da produção literária, observamos que os

três livros de memória sempre terão uma configuração que mostrará para o leitor a

trajetória empreendida, o processo temporal da escrita. O eu do texto vai apresentar,

nas primeiras linhas, o mecanismo de seu trabalho. O subtítulo Caminhar de costas,

da primeira parte de Boitempo, compõe um movimento do ser e da escrita, inscreve

um acontecimento complexo que consiste na investigação do passado, um retorno

com olhos num futuro, sem um presente fixo, se fazendo e refazendo-se sempre,

inaugurando uma nova origem no movimento do caminhar metaforizado pela escrita.

A caminhada na estrada do tempo se dá em forma de repetição em diferença, pois o

caminhante já acumulou as experiências vividas outrora. Não é mais aquele ser da

infância, se constituindo a partir do texto. Esta é a ação própria da vida e da constitu-

47

ição da psique humana, que, segundo Freud, consiste na abertura de um caminho

provocada pela diferença da excitação externa e de sua quantidade. O que provoca

o aparecimento do traço, daquilo que vai marcar a experiência no ser, mas que tam-

bém será apagado para a formação de outro traço, num processo sucessivo.

O primeiro subtítulo, Caminhar de costas, poderia ser o principal, compre-

endendo todos os outros encontrados nesse primeiro livro: Vida paroquial, Morar,

Bota e espora, Notícias de clã, Um, Percepções, Relações humanas e Outras serras.

O trabalho de “caminhar de costas” seria aquele adotado na composição de todos os

poemas dos oito capítulos seguintes. A reconstrução da vida pretérita pela via poéti-

ca marca-se pela descrição, reflexão e questionamentos, os quais apresentam o o-

lhar do itabirano sobre seu meio.

Os primeiros poemas de cada um dos Boitempos funcionam como prefácio

e nos dão uma advertência. Indicam o que pretendem como forma de leitura. Isso se

dá na medida em que apresentam a escrita poética como processo de constituição

da narrativa de rememoração, ou seja, colocam como tema o problema da inexatidão

de tal escritura, do preenchimento de vazios que compõem tal ato. Recriam um sujei-

to delimitado pelo texto, ou seja, o texto aparece como uma das faces da persona do

autor, e não a representação de sua vida empírica, já que esta existe para além da

escritura. O texto memorialístico possui regras e organizações próprias e o sujeito da

escrita não se confunde com o nome do autor e também não nos remete a ele.

O poema-prefácio que inicia o primeiro livro de memórias de Drummond

nos orienta rumo às considerações do eu poético:

De Cacos, de buracos de hiatos e de vácuos de elipses, psius faz-se, desfaz-se, faz-se uma incorpórea face, resumo de existido. 33

33 ANDRADE. Menino antigo: boitempo-II, p. 7.

48

Existe uma certa impessoalidade naquilo que se está apresentando, pois

uma incorpórea face é feita, sem a referência a quem a constrói. Há um distancia-

mento do sujeito em relação ao trabalho da escrita, que se constrói sozinha, sem o

“pai”, e ao mesmo tempo e talvez por isso mesmo, sem um final previsível ou dese-

jado. O ato de memória, de sua construção no texto como forma de reunião de si

mesmo, provoca um trabalho de reconhecimento infinito na medida em que nunca se

realizará, só se fazendo a posteriori como rastro. O processo de reconstituição ne-

cessita de preenchimentos do eu atual, o qual só poderá compor uma “incorpórea

face”, nunca um sujeito pleno, completo, mas algo sempre inacabado e pronto a se

fazer e refazer, como uma poética da memória.

Nos dois outros poemas que abrem respectivamente Menino antigo e Es-

quecer para lembrar, há o ser cindido em si mesmo, mas sem uma definição tradi-

cional, assim como o processo temporal, extremamente complexo e suplementar ao

sujeito:

No Hotel dos Viajantes se hospeda incógnito. Já não é ele, é um mais-tarde sem direito de usar a semelhança. Não sai para rever, sai para ver

o tempo futuro (...) Está filmando

seu depois. (...) A câmara o lha muito olha mais e capta a inexistência abismal

definitiva / infinita. 34

Podemos fazer a leitura do “hotel” como um espaço dinâmico, sem fixidez

interna. No espaço do hotel o sujeito terá que se adaptar. É um ambiente estranho

34 Idem. Menino antigo: boitempo-II, p. 3.

49

no qual é preciso renegociar as experiências através do contato constante com o

novo, o diferente. Da mesma forma se dá o processo de inscrição do rastro. Uma

nova experiência estabelece novas negociações que vão gerar um rastro. Este se

relaciona em diferença com outros rastros já inscritos, para a criação de um outro.

Hotel como espaço sem fronteiras, assim como o viajante que as atravessa.

A proposta dos poemas de abertura nos indicam o trabalho de articulação

com que serão empreendidos os livros. Em suas páginas o leitor não vai encontrar

um passado de experiências pueris, ou de um tempo remoto trazido para o presente

e transposto para o papel, mas uma escrita que vai além de si mesma apresentando

o acontecimento inexorável de uma existência. Escrita não confiável, “palavra corta-

da / na primeira sílaba” 35, carregada de surpresas e perigos, “Era todo o passado /

presente presidente / na polpa do futuro / acuando-te no beco” 36, trazendo o indese-

jável, o que foi recalcado, para renegociação de culpas ou injustiças cometidas. O

passado é apresentado dentro de um presente que está em processo de re-escritura,

um presente sob o olhar do adulto que caminha, avalia, narra, e, por isso, sujeito a

toda forma de interpretação, de julgamento e confissão. O espaço híbrido de desco-

berta dá-se sem a presença de um caminho linear ou de uma luz que o guie, mas

somente ilumina aqui e ali, por meio de pontuações. A composição das memórias

força um trabalho de preenchimento na tentativa de conciliação das partes que o in-

divíduo consegue reunir. Isso acontece na medida em que o caminhar tem à sua

frente o fim, a morte: “Falta pouco para o mundo acabar (...) Agora que ele estava

principiando / a confessar / na bruma seu semblante e melodia” 37. É então necessá-

rio ser dinâmico e contar todos os fatos presentes na memória, complementando-os.

Em cada livro, parece que a proposta de leitura é renovada, ou melhor, é

ampliada, uma vez que se acrescenta algo para a leitura futura e novas considera-

ções acerca da poética da memória. O que acompanha a trajetória de um sujeito que

está em constante transformação pela assimilação. No terceiro e último livro memo-

35 Idem. Boitempo & A falta que ama, p. 155. 36 Ibid, p. 179.

50

rialístico, o título Esquecer para lembrar nos guia para o fato da necessidade de dis-

tanciamento e de conseqüente esquecimento para a composição das memórias. Tí-

tulo e poema-prefácio apresentam o processo primeiro — ou o seu desejo — da

constituição, da mecânica do trabalho empreendido na feitura dos poemas. Esquecer

para lembrar abre-se com “Intimação”:

— Você deve calar urgentemente as lembranças bobocas de menino. — Impossível. Eu conto o meu presente. Com volúpia voltei a ser menino.

Diante da ordem de calar as lembranças, o eu que escreve se posiciona e

justapõe as temporalidades para representar a identidade heterogênea que será a-

presentada. Identificação e diferença irão compor o ser e a linguagem no tempo. No

verso, “Com volúpia voltei a ser menino”, existe a promessa não só de se contar as

lembranças do menino de outrora, mas de o menino ser o autor delas, o sujeito da

escritura, e não o autor cujo nome está presente na capa do livro. A “volúpia” é da

criança, do universo infante e não do sujeito atual, próximo da morte. É um processo

de repetição em diferença, de complexidade da estrutura temporal na medida em

que o menino antigo está presente no homem maduro, fazendo com que nem o ho-

mem nem o menino sejam os mesmo, mas um-no-outro. O que garante uma identi-

dade inesperada a cada um através da articulação literária, pois a linguagem é algo

“cujo princípio a domina e cujo produto lhe escapa” 38.

Num só ato — recriar o passado, recriar a vida através da folha de papel —

o poeta tece uma biografia como um jogo em que os acontecimentos marcantes liga-

dos aos temas propostos — como forma de orientar as análises — integram-se como

formadores da identidade do sujeito.

Drummond é proveniente de um contexto familiar tradicionalmente mineiro

de base agrícola e latifundiária, e essa origem aparece nas descrições da hierarquia

37 Ibid, p. 176. 38 FOUCAULT. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas, p. 432.

51

do clã e nas relações simbólicas que gerava a sua volta — o olhar do poder patriar-

cal inquestionável e movido por fortes tradições. Na composição de sua visão de

mundo, aparecem signos das sentenças mineiras há muito determinadas por seus

antepassados, no “testamento” do Brasil:

Não é fácil nascer novo. Estou nascendo em Vila Nova da Rainha,

Cresço no rasto dos primeiros exploradores, (...) E as alianças de família, o monsenhor, a Câmara, os seleiros, (...) as escrituras da consciência, o pilão de pilar lembranças. Não é fácil nascer e agüentar as conseqüências vindas de muito longe preparadas em caixote de ferro e letra grande. Nascer de novo? Tudo foi previsto e proibido no Antigo Testamento do Brasil 39

O fato de “nascer novo” em um mundo velho, de leis e acordos já traçados

impede que a vida do menino seja agradável, pois está presa a tradições consolida-

das às quais ele tem que se adequar. Não há o que fazer diante das “alianças de

família” e das “escrituras da consciência”, sempre presentes no trabalho de “pilar

lembranças”. Os acordos de família funcionam como controle externo, enquanto a

consciência, controle mais eficaz, o acompanha todo o momento e até o fim, sobrevi-

vendo a ele por meio da escrita. Esta faz parte do ser, do que ele produz, é autobio-

gráfica. O eu poético não participou das decisões tomadas outrora e só tem acesso

às suas “conseqüências / vindas de muito longe”, “em caixote de ferro e letra gran-

de”. A privação e a clausura proporcionadas pelos acordos de família causam o de-

sejo de “Nascer de novo”. Algo que torna-se inútil devido à eficácia do sistema totali-

tário. Tudo “foi previsto / e proibido / no Antigo Testamento do Brasil”. O contexto

familiar do sujeito textual apresenta-se congelado no tempo. Um tempo muito anteri-

39 ANDRADE. Menino antigo: boitempo-II, p. 7.

52

or, àquele relativo a Gênese. Tempo que contamina a existência. Só resta ao reme-

morador recordar aquilo que foi o presente e que, articulado com o sujeito atual, de-

sencadeia um questionamento em relação à forma de criação da família mineira:

Os pais primos-irmãos avós dando-se as mãos

os mesmos bisavós os mesmos trisavós os mesmos tetravós

a mesma voz o mesmo instinto, o mesmo

fero exigente amor crucificante

crucificado a mesma insolução

o mesmo não explodindo em trovão ou morrendo calado. 40

No poema “Raiz”, percebemos a relação que se estabelecia dentro de to-

das as famílias do clã dos Andrade. No ambiente de proteção e conforto do lar, o

amor dos parentes correspondia a uma exigência e obediência à lei dos antepassa-

dos. A anulação do ser como indivíduo em prol de um amor crucificante causa um

sofrimento comparado ao do Cristo e exige uma devoção sem limites. As alianças de

família eram as formadoras das uniões matrimoniais. Os pais, “primos-irmãos”, tam-

bém provinham de uniões semelhantes. O clã perpetuava assim a riqueza, o sangue

e a ordem silenciadora. A repetição do vocábulo “mesmo”, assim como da aliteração

do “s”, acentuam a presença marcante da tradição. As conseqüências de tal organi-

zação eram nefastas para a formação da identidade do sujeito que poderia explodir

“em trovão” ou morrer “calado”. No mundo dos adultos não havia lugar para o com-

portamento de criança, para sua imaginação e desejos os quais eram sufocados:

Abença papai, abença mamãe.

(...) Abença papai. Vai dormir, já chega. Estou sem sono. Pois dorme assim mesmo. Como que posso, se não posso. Então

40 Ibid, p. 81.

53

cale essa boca. Abença mamãe. Deus te abençoe, obedece seu pai. Hora de dormir não é de caçoada. Hora de dormir, todo menino dorme. Mesmo sem sono? Dorme sem pensar. Mas estou pensando. Penso mulher nua.

Penso na morte. Se eu morrer agora? Sem ver mulher nua, só imaginando? 41

No poema acima, o ato de dormir torna-se também uma ordem que não

pode ser desacatada, mesmo não dependendo da vontade. Tem como marca da es-

critura a semelhança com a linguagem oral, aproximando-nos da proposta inicial de

representar a fala do menino a narrar suas lembranças. A fala infante, no entanto,

apresenta mais coerência do que a dos adultos: “Como que posso, se não posso”.

Os pais desejam que o menino aja como adulto, que pense como adulto. A fala dos

pais determina a forma de tratamento para com o menino: “cale essa boca”. Agressi-

vidade que denuncia a anulação do ser e sua relação com o progenitor.

A persona poética inconformada com as tradições que não consideravam a

vontade do sujeito e o obrigavam a uma “missão sem gosto e sem graça / de funcio-

nário da família” 42, manifesta-se como marca de toda a produção memorialista. Os

versos “contribuirão para a grandeza / do eterno tronco familial, / bem mais precioso

que as pessoas” 43, pertencem a um poema em que se denuncia o casamento obri-

gatório entre os primos, o eu lírico questiona então seu passado.

Na representação do sistema familiar, o personagem tenta promover a rup-

tura com a formação primitiva de poder na sociedade patriarcal, onde o pai exercia

total domínio. A ação do ser da escrita sobre o acontecimento do passado-presente

do texto promove a interferência num passado que descreve a trajetória de uma fase

da história de Minas, através da presença do clã dos Andrade que atravessa o perío-

do aurífero até o processo de industrialização.

41 Ibid, p. 150-151. 42 Idem. Esquecer para lembrar, p. 39.

54

Dentro do universo das memórias, e da caracterização dos seus antepas-

sados, percebemos então, como afirmamos no início do capítulo, que não há a sepa-

ração entre sexualidade, religião e escravidão. As considerações acerca da formação

das famílias e de suas leis inquestionáveis nos fazem perceber que a religião aqui

vista como punição dos pecados, como mecanismo de controle pelo medo, estará

sempre presente, principalmente condenando qualquer forma de manifestação da

sexualidade. A igreja funcionaria como órgão fortalecedor e mantenedor do regime

patriarcalista, o lugar do pai era também o de Deus:

Mandamento: beijar a mão do Pai Ás 7 da manhã, antes do café e pedir a bênção e tornar a pedir na hora de dormir Mandamento: beijar a mão divino-humana que empunha a rédea universal e determina o futuro. 44

A palavra “Mandamento” traz a obrigação divina do ato e sua seriedade. O

poema é escrito em terceira pessoa e indica a ordem a ser seguida, sem questiona-

mento. Os verbos no infinitivo intensificam a noção de ordem, como nos Dez Man-

damentos. A repetição da conjunção “e” dá o tom de repetição assim como de tédio,

cansaço por estar sempre a cumprir mandamentos para que a organização patriarcal

seja mantida.

A religião é um tema sempre renovado através dos tempos, ligado ao soci-

al, ao político, ao familiar e ao étnico. Apresentará suas particularidades de acordo

com o sujeito que o representa. Complexo por natureza, tal discurso expressa signifi-

cativamente as profundas e complexas manifestações da cultura e das experiências

humanas. A representação do fenômeno o religioso sempre se marcará por um mo-

vimento de revelação e ocultação, de clareza e obscuridade, um impregnado pelo

43 Ibid, p. 38. 44 ANDRADE. Menino antigo: boitempo-II, p. 91.

55

outro. Isso torna possível sua adequação a estruturas de poder. O mal, inerente à

religião, torna-se assim renovável de acordo com a época e os interesses e vai se

personalizar naquilo que a sociedade deseja que seja contido: na sexualidade e na

rebeldia. Ou seja, é necessário que se reprimam os desejos sexuais e que se obede-

ça às leis paternas. Sendo o cristianismo, segundo Nietzsche, a única religião moral,

busca sempre uma boa condução da vida segundo modelos estabelecidos.45

Nos Boitempos, a negociação de significantes da religião está marcada pe-

la sombra do pecado e do inferno. Assim como o poder paterno, a religiosidade re-

presentada na cidade de origem pelo padre negava os “instintos irreprimíveis, diante

do erotismo mental” 46 da infância, forçando os meninos para que logo atingissem a

idade adulta. O trabalho de vigiar e punir, com o objetivo do amadurecimento, era

maior quando, na verdade, colocava o próprio sujeito como seu inquisidor. Além dis-

so a noção do poder divino, de tudo saber e tudo ver, garantia o sentimento de culpa

pelo delito, uma vez que este era conhecido por Deus antes da confissão, no mo-

mento mesmo do ato ou pensamento pecaminoso. A religião é um fardo pesado a

carregar e sua influência e poder vão além do tempo da infância e além do ser e de

suas escolhas, apresentando-se como a agonística entre a culpa e o desejo, no pa-

radoxo: “Deus de trigo / que tens na boca / e fere e arde / em ferro e brasa / torna

mais viva / tua sujeira / de criminoso / sem nenhum crime. / (...) Ai Deus, que duro /

usando o corpo / salvar a alma” 47. A presença do religioso serve mais para atormen-

tar sua existência do que torná-la prazerosa.

A caracterização de Deus presente na lírica drummondiana nos remete

àquele Deus do Antigo Testamento, um Deus de ira e punição. Deus que pune e

muitas vezes, como afirma Derrida (2002b) numa leitura filosófica do momento da

escolha da oferenda animal de Abel, ao invés da vegetal de Caim, afirma seu desejo

por um sacrifício. Segundo Derrida, o Deus do Antigo Testamento desejava sacrifí-

45 NIETZSCHE. Humano, demasiado humano: um livro para espíritos livres. 46 SANTIAGO. Carlos Drummond de Andrade, p. 121. 47 ANDRADE. Menino antigo: boitempo-II, p. 146, 147.

56

cios de vidas animais. Quando Caim matou Abel, não deixou de cumprir o desejo do

Deus que era o do sacrifício. Na verdade o assassino não foi punido. Punido seria

quem o tocasse. Deus, dessa forma, o estava protegendo.

Na escritura autobiográfica o eu recorda e recorta os fatos que são mais

representativos em sua personalidade. Por mais que os fatos demarquem um certo

desconforto ou lhe remetam a lembranças indesejáveis, há também a constatação de

que não há como negar tais acontecimentos na medida em que se fazem parte da

construção de sua identidade. É assim com a religiosidade nos Boitempos. Sua a-

presentação será sempre na forma de como esta está presente em suas memórias e

em seu ser:

Nenhum igual àquele.

A hora no bolso do colete é furtiva, a hora na parede da sala é calma, a hora na incidência da luz é silenciosa.

Mas a hora no relógio da Matriz é grave como a consciência. E repete. Repete. Impossível dormir, se não a escuto. Ficar acordado, sem sua batida. Existir, se ela emudece. Cada hora é fixada no ar, na alma, continua soando na surdez. Onde não há ninguém, ela chega e avisa

varando o pedregal da noite. Som para ser ouvido no longilonge do tempo da vida.

Imenso no pulso este relógio vai comigo. 48

48 ANDRADE. Boitempo & A falta que ama, p. 22.

57

O poema compara “a hora” do relógio da matriz com as outras que existem

à sua volta: “no bolso”, “na parede”, “na incidência da luz”. No relógio da Matriz o

tempo é diferencial e carrega consigo significantes religiosos, morais. Não marca

somente a hora, mas traz consigo um sentido que vai além e se articula com a religi-

ão e o comportamento que determina. O paradoxo da religião é aqui apresentado

pelos versos, “Impossível dormir, se não a escuto. / Ficar acordado sem sua batida”.

O relógio existe por si mesmo e realiza seu trabalho mesmo “Onde não há ninguém”.

Presente, passado e futuro se contaminam com o ser da escrita, que se

projeta para além da temporalidade tradicional. Assim como a metáfora da religião

representada pelo relógio da Matriz. Não há como separá-lo do ser, o sujeito do dra-

ma terá que carregar esse marcador “imenso” até o fim, até a morte, pois é “a dor

bíblica intemporal” 49, e o persegue.

O futuro se prenunciava para o menino antigo como um tempo de destrui-

ção da alma, um tempo de pecado previamente certo, pois que tudo dentro e fora de

si permaneceria em pecado: “beijo a mão do medo / de ir para o inferno / o perdão /

de meus pecados passados e futuros / a garantia de salvação / quando o padre pas-

sa na rua / e meu destino passa com ele / negro / sinistro / irretratável” 50. O padre

era o algoz, garantia o futuro de danação. Mas por meio do “beijo”, isso poderia mu-

dar, mesmo que o beijo fosse falso, beijo de Judas. No texto drummondiano a angús-

tia religiosa está ligada à figura do padre que se estende à figura do pai. Ambos re-

presentam a interdição, cada um em seu âmbito, mas ao mesmo tempo.

Mais doloroso ainda para o menino das memórias, era o ritual eclesiástico

obrigatório de “calçar botina apertada / ir à missa, que preguiça / (...) / Manhã que

prometia caramujos / músicos / mágicos / maduros sabores / de tato, barco de leitu-

ras / secretas sereias... / apodrecida” 51. A aliteração do “m” garante um ritmo que dá

dinamismo ao poema, assim como a aliteração do “s”, conotando vivacidade, prazer.

49 Ibid, p. 171. 50 Idem. Menino antigo: boitempo-II, p. 144. 51 Idem. Boitempo & A falta que ama, p. 95.

58

O que é interrompido pelo vocábulo “apodrecida”, de significação negativa, aquilo

que perdeu a vida, a qualidade, o sabor. O título “Gesto e palavra”, indica o trabalho

de construção do poema. Paradoxalmente, na religião, há uma não correspondência

entre gesto e palavra, uma vez que esta ao invés de confortar, pune. Se não há a

aceitação dos valores religiosos e sim, pelo contrário, seu questionamento, não havia

motivo para realizá-los: “A missa matinal, obrigação / de fervor maquinal” 52. Torna-se

algo mecânico, uma vez que o não cumprimento da tarefa religiosa acarretaria outra

punição: “Não vai? Pois não vai à missa? / Ele precisa é de couro. / (...) Ó coronel,

vem bater / vem ensinar a viver / a exata forma de vida” 53.

No percurso do personagem mineiro, vai estudar em um colégio de padres,

o que então aumenta seu contato e sua inadequação às normas de tal figura religio-

sa, tão marcante em sua escrita. Na escola, outras atitudes de rebeldia encontram a

punição religiosa, já que o espaço era controlado por sacerdotes que exerciam o po-

der de vigiar e punir:

O completo vadio, ignoro se sou. Sei que não sei

estudar, e isso é grave. Jamais aprenderei. Vou rasgando papéis pelo pátio varrido. Todos riem baixinho. Volto-me, pressentimento. Atrás de mim Padre Piquet vem, passo a passo, pousa em meu ombro a punição 54

O eu poético percebe sua inadequação ao sistema educacional e religioso

“jamais aprenderei”. Todavia reconhece algum esforço de sua parte, “O completo

vadio, / ignoro se sou”, já que na verdade seu problema é a inadequação a determi-

nados valores sociais. O quarto verso apresenta o movimento do personagem atra-

vés da aliteração do “p”, movimento que o padre acompanha. Ele “vem” de encontro

também na aliteração do “p”, no penúltimo verso, ligando os dois movimentos, o do

padre e o do menino.

52 Idem. Esquecer para lembrar: boitempo-III, p. 98. 53 Idem. Boitempo & A falta que ama, p. 95. 54 Idem. Esquecer para lembrar: boitempo-III, p. 90.

59

Seguindo o caminho proposto, observaremos o acontecimento das repre-

sentações da sexualidade vivenciadas pelo personagem das memórias. A iniciação

amorosa, as primeiras experiências sexuais acontecem num espaço de individuali-

dade do menino, na margem do ambiente social, familiar. Lugar de liberdade para

experimentar novas aventuras, novas sensações e no qual as leis que ele tanto re-

pudiava não se faziam presentes para controlá-lo.

No espaço textual podem ser tratados fatos importantes da constituição do

ser. As memórias reunidas e documentadas em confissão compõem o lugar de liber-

tação para se caminhar em sua própria via, na qual o sujeito expõe suas vivências

mais íntimas primeiramente a si, em busca de salvação. Apesar de não existirem as

leis patriarcais nas margens dos espaços das vivências do menino, as leis estavam

bem presentes dentro do eu. Ou não comporiam importante parte do tecido textual

dos Boitempos.

Na descrição da cena em que o sujeito da escrita tem o primeiro contato

com a sexualidade, podemos perceber o espaço marginal em que o fato é dado —

arredores da casa-grande — e relacioná-lo com o terceiro tema que propusemos,

que é o contato com o negro. Como ocupavam espaços da casa e da fazenda em

que os parentes não circulavam muito, como o quintal, o porão, a cozinha e a horta,

as mulheres descendentes dos antigos escravos representavam para o personagem

a possibilidade de viver suas fantasias sexuais.

Através da construção do espaço de margem em que viveu suas experiên-

cias sexuais, o menino antigo recria também o espaço pós-escravocrata. O contato

do individual com o coletivo, do particular com o público, é um lugar de suplementari-

dade, de releitura de um ser e de um tempo. O “um-no-outro”, proporcionado pelo

olhar que se volta e repensa uma história de exclusão, trabalha-a e possibilita um

futuro solidário.

A lírica drummondiana buscará uma forma de confissão e absolvição de

pecados. Talvez também por isso, o meio de relacionar-se com a sexualidade seja

permeado por sentimentos de culpa e de possível punição. Segundo Derrida (2004),

o texto, máquina de repetição de um ato e de mutilação, acontece como verdade re-

60

velada, confessada. A confissão é sempre acompanhada de culpa e de arrependi-

mento, e dessa forma já supõe o perdão: confessar é saber-se perdoado. O que nos

remete ao fato de que toda confissão é uma confissão culpada. Tal processo maqui-

nal de culpa, desejo de confessar-se, confissão verbal e perdão, se expressa no tex-

to que arquiva tudo. Funciona também o texto como máquina de arquivamento. Eis o

momento em que o texto se dissolve entre o sujeito da escrita e o autor. Ao mesmo

tempo, num processo de interiorização e iteração, o desejo prévio de escritura (o au-

tor e seu projeto) é associado à capacidade do texto de acontecer como máquina de

confissão. Tal movimento traz em si o sujeito da escrita, aquele outro que surge no

momento da transcrição. Nesse trabalho de différence, acontece um deslizamento do

eu autor para o eu/outro do texto que propõe a possibilidade de integração entre os

“perdões” — o da escrita e o do desejo do autor — pois, como afirma De Man, “nun-

ca haverá culpa o suficiente que se iguale ao poder infinito que a máquina do texto

tem de desculpar” 55.

A experiência da sexualidade se dá inicialmente com a lavadeira morena

no poema Iniciação amorosa: A rede entre duas mangueiras balançava no mundo profundo. O dia era quente, sem vento. O sol lá em cima, as folhas no meio, o dia era quente.

E como eu não tinha nada o que fazer vivia namorando as pernas morenas da lavadeira um dia ela veio para a rede, se enroscou nos meus braços, me deu um abraço, me deu as maminhas, que eram só minhas. A rede virou, o mundo afundou. Depois fui para a cama febre de 40 graus febre. Uma lavadeira imensa, com duas tetas imensas, girava no espaço verde. 56

55 apud DERRIDA, 2004, p. 68. 56 ANDRADE. Obra Completa, p. 71-72.

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Drummond, memorialista em sua primeira e última fase, completa o ciclo

iniciado em Alguma poesia, quando volta a falar de suas experiências pueris. Perce-

bemos então o lugar em que acontece a iniciação, o quintal, entre mangueiras, espa-

ço externo ao ambiente da família, lugar em que seus desejos poderiam se realizar,

sem a presença da reprovação familiar. A iniciação é descrita através da caracteriza-

ção do espaço, depois o ato e sua conseqüência. Até o momento em que a lavadeira

se dirige à rede, o cenário se encontrava calmo, quase parado, “O dia era quente,

sem vento”. A mudança de posição do sujeito poético apresenta a mudança de es-

tado e da forma de ver o mundo. Seu ponto de referência anterior se perdeu quando,

“a rede virou”. O acontecimento se estabelece como um marco na vida do garoto,

seu “mundo afundou“. A nova experimentação rearticulou seus significantes. Entre-

tanto, como dito anteriormente, não foi preciso alguém repreender-lhe, pois a moral

religiosa está presente no presente da escritura, como o relógio da matriz, para lem-

brar-lhe o pecado. A febre causada ao corpo aparece como conseqüência do ato no

qual se associam experiência sexual e enfermidade. O mal estar causado pela “febre

de 40 graus febre” apresenta-se como um castigo ao corpo e, ao mesmo tempo, co-

mo uma passagem, transformação do eu. Segundo Silviano Santiago “a iniciação é

fixada de maneira definitiva pelo sacrifício (‘febre de graus febre’) infligido ao corpo

em passagem” 57.

Banheiro de meninos, a Água Santa lava nossos pecados infantis

ou lembra que pecado não existe? Água de duas fontes entrançadas, uma aquece, outra esfria surdo anseio de apalpar na laguna a perna, o seio a forma irrevelada que buscamos quando, antes de amar, confusamente amamos. 58

A lírica que compõe a sexualidade que se desenvolve no interior do meni-

no se dará, além de rodeada pela sombra do pecado, em um ambiente natural, um

57 SANTIAGO. Carlos Drummond de Andrade, p. 60. 58 ANDRADE. Boitempo & A falta que ama, p. 25.

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lugar de domínio do indivíduo, longe das regras sociais, aqui no ambiente aquático.

As atividades sexuais praticadas antes do contato efetivo com o corpo feminino, o

“surdo anseio”, são também paradoxais, já que ao mesmo tempo em que aquecem a

percepção para o “profano”, também esfriam o desejo na medida em que este “con-

fusamente” é momentaneamente acalmado. O espaço da natureza também remete

ao paganismo. Um lugar em que o homem pode existir em seu estado natural, des-

cobrindo a puberdade. Sem, no entanto, se livrar da culpa inerente ao sujeito perten-

cente ao clã dos Andrade. O jogo da puberdade é representado na escrita: “lava

nossos pecados infantis / ou lembra que pecado não existe?”. O “entrançamento”

apresenta simbolicamente a inter-relação entre desejo e pecado, assim como do sa-

grado e do profano. O eu poético, mesmo rememorando as brincadeiras púberes,

não deixa de incutir-lhes o olhar crítico em relação ao paradoxo religioso.

Os recursos estilísticos da lírica drummondiana presentes na poesia me-

morialística são aqueles que já fazem parte da obra do autor como um todo. A repe-

tição de vocábulos, característica marcante do poeta, assim como a ausência de

pontuação, ressalta o ritmo do poema e em conseqüência disso, a intensidade de

certas passagens significativas para o menino antigo e que agora são representadas

em linguagem poética: “Diz-se que na mulher tem partes lindas / e nunca se revelam.

Maciezas / redondas. Como fazem / nuas, na bacia, se lavando, para não se verem

nuas nuas nuas? / (...) E como que faz / quando que faz / se é que faz / o que faze-

mos todos porcamente?” 59. O corpo feminino é o grande mistério para o menino an-

tigo. Outro poema em que percebemos os recursos mencionados, apresentando em

recorte as memórias, ou seja, momentos, situações, é o seguinte: Bato palmas. Na esperança de ver as pernas no alto da escada

as pernas sempre defesas as sempre sonhadas pernas as pernas, aparição no sombrio alto da escada. (...) Ressoam pela cidade 59 Idem. Menino antigo: boitempo-II, p. 134.

63

as palmas no corredor. Nos quatro cantos já sabem de minha ardência. Já me condenam, me prendem e nunca verei as pernas sublimes no alto da escada. 60

Na última estrofe, a consciência parece estar mais presente do que a reali-

dade. Só para o sujeito o ato é tão grave que merece punição. O desejo do menino é

aguçado em função da falta do corpo da mulher: “sempre defesas”, “sempre sonha-

das”.

Através dos retratos, das cenas, vai se formando o universo intemporal da

infância. Intemporal porque não marcado, uma característica da poética da memória

drummondiana. O eu poético, dessa forma, possui um certo domínio sobre o tempo,

na medida em que descreve os fatos que mais lhe interessam. O resgate e a recria-

ção daquilo que resiste além do desgaste e da deterioração do tempo proporcionam

o conhecimento de si mesmo através do trabalho da descrita. Esse trabalho, muitas

vezes realizado por um processo metonímico do poeta e do poema, apresenta um

olhar recortado ao falar da mulher no trecho citado acima, quando menciona suas

pernas e seios. Trata-se de uma reunião de pedaços e de experiências para forma-

ção desse ser fragmentado. Tenta se reunir através dos tempos, das experiências

que o tornaram quem é, ou quem virá ainda a ser, por meio da re-interpretação do

passado e de si.

O olhar do menino relaciona a sexualidade com a presença da negra em

muitos poemas. Esta última parece-nos se relacionar mais efetivamente com o meni-

no antigo, na medida em que seu desejo se realiza, se transforma em ato. Em Ar

livre, novamente a natureza é cenário da experiência vivida:

Sopra do Cutucum uma aragem de negras derrubadas na vargem. Venta no Cutucum

60 Ibid, p. 135.

64

um calor de sovacos e ancas abrasadas.

A cama é a terra toda e o amor um espetáculo oferecido às vacas que não olham e pastam. A carne sobre farpas, pedrinhas e formigas,

dói que dói e não sente, na urgência de cumprir o estatuto do corpo. E todo o Cutucum é corpo preto-e-branco

enlaçado em si mesmo e chupando, e chupando. 61

Vento, vargem, vaca, terra, na aliteração o poeta compõe o cenário de sua

origem, o espaço natural em que o texto não identifica o sujeito, o indivíduo, e ao

contrário, personifica o lugar, o Cutucum. Há aqui a conotação do sexual já nos pri-

meiros versos. O odor sexual, o apelo ao olfativo intensificam o ambiente e estimu-

lam o ato. As “ancas abrasadas” são percebidas no ar. Os vocábulos nos remetem a

um universo pagão, de Vênus e Baco. Ali não há pecado, pois não há interdição, es-

tá localizado fora das instituições sociais. É um lugar de liberdade para o menino an-

tigo, onde o poder do pai não está presente. Espaço do negro, o Cutucum era onde a

liberdade se fazia presente, onde as pessoas, os animais, a terra e as plantas encon-

travam-se em sua existência natural. O poema é dividido em três partes, em que se

apresenta o cenário para depois descrever o ato que se dá ao “ar livre”. Depois volta

para o cenário fundindo-o com a ação e os personagens. Tal construção nos remete

primeiramente para uma fusão do homem com a natureza, com a sexualidade no

espaço pagão em que o catolicismo, apesar de não interferir no acontecimento, “na

urgência de cumprir / o estatuto do corpo”, não o ignora:

E no entanto o Cutucum, de que você veio, num dia remoto do século 19, está situado nesse distrito do Carmo, de que o padre Júlio assinalava o “dêscalabro social”, a “ polícia fraquíssima e nula”, a “deficiência de educa-ção e princípios religiosos”, a inclinação “a toda sorte de orgias”. 62

61 Idem. Boitempo & A falta que ama, p. 54. 62 Idem. Obra Completa, p. 560.

65

A voz do senso religioso que alcança todos os espaços não deixa de per-

ceber o que acontece no Cutucum. Contesta o comportamento libidinoso do lugar

mas não a escravidão ou as condições as quais os descendentes de escravos foram

submetidos. Ao contrário, os padres muitas vezes possuíram escravos e eram cúm-

plices das atrocidades dos senhores de engenho.

Tal espaço, na medida em que é recortado de forma a não estabelecer

uma seqüência, uma sucessão dentro da obra, constrói-se a partir de uma subjetivi-

dade verbal. Pode apresentar um olhar sobre as relações estabelecidas na sexuali-

dade do branco com o negro. No poema “Ar livre”, o sujeito da escrita nos oferece a

visão do branco, do branco que no espaço negro, o Cutucum, recria a cena sexual

pós-escravidão. Lugar de satisfação da carne para o menino, o mundo negro se ma-

nifestava como inferno para o padre, mas a voz é do menino em ambos os casos.

Logo, é o paradoxo novamente que se instala, um lugar de satisfação e de danação.

Tais aspectos revelam também a constituição da identidade do sujeito atra-

vés da escrita, identidade não linear, não organizada coerentemente e muito menos

composta por um único desejo subjetivo. Ao mesmo tempo em que os recortes nos

mostram a negra sendo utilizada como objeto sexual e reforçam um estereótipo de

sensualidade, há também o reconhecimento da situação em que esta é colocada no

ambiente da casa grande. No poema “Negra”, encontramos a denúncia à exploração

desse ser:

A negra para tudo a negra para todos a negra para capinar plantar regar colher carregar empilhar no paiol ensacar lavar passar remendar costurar cozinhar rachar lenha limpar a bunda dos nhozinhos trepar. A negra para tudo nada que não seja tudo tudo tudo

66

até o minuto de (único trabalho para seu proveito exclusivo) morrer. 63

Apesar de o poeta haver nascido após o período escravocrata, a descrição

do dia-a-dia da negra é bem específica. Indica a manutenção do regime escravocra-

ta, a situação servil que se perpetua. A expressão “A negra” generaliza e determina o

tratamento da mulher negra e suas funções diárias. A disposição dos versos, a au-

sência de pontuação e a repetição – “tudo, tudo, tudo” – denunciam o ritmo do traba-

lho, ininterrupto e constante. O corpo da mulher negra é literalmente seu instrumento

de trabalho. É importante notar como se dá a representação da vida diária da negra

por meio do poema. O sujeito textual realiza a significação, a interpretação do acon-

tecimento, assim como na história dita oficial. O que proporciona ao leitor um ganho

na representação de um período histórico e o retrato da condição humana.

Como processo de resgate do eu na escrita, a autobiografia vai tentar re-

construir o vivido de maneira ordenada e heterogênea. Entretanto, como trabalho

que se realizará a posteriori, revela o jogo instável da articulação de tempos (passa-

do, presente e futuro), sentimentos, cultura, consciente / inconsciente, com um dis-

curso literário. Projeta-se para “além das palavras, como um segredo ignorado até

mesmo por seu portador, a responsabilidade absoluta [com o Outro] importa na re-

versão e deslocamento do sujeito autocentrado ou do valor metafísico de presença” 64. Dessa forma, acontece no movimento escritural a manifestação de novos signifi-

cados. Manifestação que quando relacionada com fatos históricos marcados, a es-

cravidão e a Abolição, reconta aquelas outras histórias paralelas à história oficial.

Desmistifica verdades estabelecidas e abre o passado para a discussão dos valores

existentes na sociedade atual.

O que reforça nossa hipótese sobre a presença de significantes que de-

nunciam a situação do negro no período pós-escravidão é o fato de Drummond ter

63 Idem. Menino antigo: boitempo-II, p. 23. 64 NASCIMENTO; GLENADEL (orgs). Em torno de Derrida. p. 14.

67

sido um escritor que sempre se preocupou com as questões tanto do ambiente que o

cercava quanto do país em que vivia e com o mundo. Tal fato é observado em suas

poesias sobre a Segunda Guerra, “Visão de 1944” e “Com o russo em Berlim”, pre-

sentes em A rosa do povo. Também na preocupação com o voto feminino presente

no poema “Primeira eleição”, cuja quarta estrofe diz: “Toda a cidade / se apaixonan-

do. / Mas das mulheres / o voto, quando?”, ou ainda mais recentemente à sua morte,

a denúncia poética da submersão das Sete Quedas do rio Paraná e de vasta área de

terras férteis do sul do Brasil presente no poema “Adeus a Sete Quedas”, publicado

no Jornal do Brasil durante os anos 70.

Partiremos então para um olhar sobre outras memórias, com o objetivo de

observar como tais temas se desenvolvem em outros autores contemporâneos a

Drummond. Observaremos também como cada autor se dá a conhecer ao outro.

Ao iniciarmos uma comparação entre os escritores, é interessante notar

primeiramente, como representaram na escrita as relações com sua origem, família e

lugar.

Drummond, através da poesia, apresenta seus familiares como persona-

gens de uma drama cujo protagonista é o menino antigo. Já Pedro Nava, em Baú de

Ossos, inicia suas memórias e determina a proposta que irá se desenvolver ao longo

do livro. A proposta será a de um detalhamento tanto de sua genealogia, “Sobre as

famílias de meus pais e da enorme influência que elas tiveram em mim, muito terei

que falar” 65, quanto do histórico da cidade em que viveu a maior parte da infância,

Juiz de Fora. Além das figuras importantes que fizeram parte do desenvolvimento da

cidade:

Eu sou um pobre homem do Caminho Novo das Minas dos Matos Gerais. Se não exatamente da picada de Garcia Rodrigues, ao menos da variante aberta pelo velho Halfeld e que, na sua travessia pelo arraial do Paraibuna, tomou o nome de Rua Principal e ficou sendo depois a Rua Direita da Cida-de do Juiz de Fora. 66

65 NAVA. Baú de ossos, p. 17.

66 Ibid, p. 13.

68

Pela via da narrativa poético-documental, Nava busca a história da família

em seu tronco mais longínquo e a seguir a de Juiz de Fora, para depois recorrer às

histórias que de alguma forma se ligam à sua própria. É importante lembrar que a

primeira frase da citação acima é uma paráfrase da frase autobiográfica de Eça de

Queirós: “Eu sou um pobre homem de póvoa de Varzim”. Parece que o médico, por

não poder estender ainda mais sua genealogia através do texto, infere-a e liga sua

família a Portugal. É uma origem literariamente nobre.

A genealogia é dada na medida em que esse narrador documenta ficcio-

nalmente, reinventa o passado ao descrever a árvore familiar e o histórico da cidade

em que cresceu. Um trabalho comparável ao do historiador moderno cujo processo

de análise se baseia em documentos que contam o passado. Pode também estar

ligado à profissão do autor: o médico que analisa o histórico do paciente para poder

conhecê-lo e depois analisar a enfermidade. No espaço textual, a “veracidade” dos

fatos é assegurada pelo processo da escrita que acontece de forma presentificada,

viva. Os personagens de um passado longínquo ganham anima e se mexem à frente

do leitor, numa dramatização que se dá com o aval de um escritor que compõe suas

memórias presentes.

A escrita das memórias, como processo de alargamento do vivido, faz de

Nava um guardião da história de seus antepassados, guardião do Baú de Ossos, e

talvez por isso a escrita de experiências vividas seja escassa em seu primeiro livro. A

escassez não afeta a qualidade e a força de rememoração, já que ambas são com-

ponentes de um processo de escritura do eu e como tal se estabelecem de acordo

com a necessidade que move sua criação. A narrativa dos nomes e fatos compõem

a forma como a subjetividade é vivenciada. Diferindo dos Boitempos, no primeiro vo-

lume de memórias de Nava, “A busca da origem se associa ainda à busca da identi-

dade familiar e se processa através de vários meios, como ocorre com as histórias

contadas pelos parentes ou a composição de árvores genealógicas” 67. Tudo foi dito

67 SOUZA. Pedro Nava: o risco da memória, p. 46.

69

para que possamos estabelecer em que pontos as referidas obras de Drummond e o

primeiro volume de memórias de Nava se afastam ou se aproximam. A partir das

considerações anteriores, podemos perceber que o aspecto religioso nas memórias

do juizforano não apresenta um peso espiritual:

a Câmara; o Fórum; a Academia de Comércio, com seus padres; o Stella Matutina, com suas freiras; a Matriz, com suas irmandades; a Santa Casa de Misericórdia, com seus provedores; (...) toda uma estrutura social bem pensante e cafardenta que, se pudesse amordaçar a vida e suprimir o sexo, não ficaria satisfeita e trataria ainda, como na frase de Rui Barbosa, de for-rar de lã o espaço e caiar a natureza de ocre. 68

A instituição religiosa é descrita como a política ou a jurídica, sem uma

significação espiritual, o que faz Nava diferir da caracterização do itabirano. O meni-

no antigo carrega em si o peso da religião, vive e sofre em função de seus preceitos,

carregando-os eternamente. Mas os autores se aproximam na medida em que reco-

nhecem o aspecto punitivo e a luta moral para padronizar os comportamentos de

acordo com os de uma certa elite branca. Nava e Drummond observam como os

dogmas católicos são utilizados para estigmatizar a sexualidade como algo impuro e

que deve ser contido, ou mesmo “suprimido”. Tendo em vista que as cores significam

assim como as formas, o médico utiliza essa propriedade para representar, por meio

do texto alheio, de Rui Barbosa, a neutralização da vida desejada pelas instituições:

“forrar de lã o espaço e caiar a natureza de ocre”. Sendo, como Drummond, um me-

morialista que refletia sobre a sociedade, o juizforano criticava também a estrutura

eclesiástica e suas arbitrariedades ao falar das freiras do demolido Convento da Aju-

da no Rio de Janeiro:

Estas se ocupavam de Deus e da Virgem, mas também do mundo. Até de-mais porque tempo houve de tanto luxo em suas celas que foi preciso que uma superiora severa as moderasse e corrigisse — tirando-as dos jacaran-dás e das louças da Índia, para reconduzi-las à capela e à cozinha 69

68 NAVA. Baú de ossos, p. 14. 69 Ibid, p. 160.

70

Ao longo do Baú de Ossos, a igreja e a religiosidade não se apresentam

ao leitor como algum tipo de experiência da infância, nem passarão por uma análise

mais profunda quanto a sua constituição ideológica. Muitas vezes a presença do reli-

gioso estará vinculada a um lugar de nascimento ou de batismo, complementando a

história de algum antepassado ou ainda caracterizando uma construção artística e

nos dando a dimensão do número de devotos do catolicismo dentro da família minei-

ra. A descrição das construções aparecem como a necessidade de representação

dos espaços materiais que habitam o ser. Os cenários, assim como as pessoas e os

acontecimentos são o mundo das memórias. O narrador compõe esse mundo na

tentativa de totalizá-lo. Não deseja que nada escape da descrição. Tenta trazer todo

passado para o presente. O que se dá como forma de ancoramento para que o tem-

po não passe depressa num momento em que se está próximo do fim.

Da mesma forma que a religião, o discurso sobre a sexualidade é escasso

e a narrativa de alguma experiência sexual é quase nula no primeiro volume das

memórias do médico. Na obra drummondiana, ao contrário, percebemos as experi-

ências desde seu primeiro contato sexual com “a lavadeira de pernas morenas”. Em

Nava encontraremos uma passagem em que o menino, já adolescente no Maranhão,

ouvia a história “das bonecas completas”:

Quase utilizáveis, o corpo era todo trabalhado em pano fino de algodão. Menos a boceta. Esta era sempre de cetim. Quando surpreendi esta histó-ria, tinha quinze anos e o coração me cresceu, batendo nos ouvidos como malho em bigorna...Ah! como encomendar do Maranhão, logo uns dois ou três de tão fabulosos manequins? 70

Utilizando palavras da linguagem mais próxima da popular, Nava descreve

momentos em que sua percepção experimenta sensações a partir de histórias ouvi-

das, mas não as especifica nem direciona para uma conotação claramente sexual.

Há apenas apontamentos sensoriais: “havia um corredor estreito, onde dava o quarto

das negrinhas e de onde saía um cheiro que me fazia parar e procurar”. É nesse o-

71

dor di femina, odor de negra e mulata perturbador e denso que sempre penso, tam-

bém corando, quando leio a ‘Enfance’ de Rimbaud” 71. Assim como as cores, apelo

visual, pictórico, o eu da escrita aqui, mais uma vez associando seu texto a um alhei-

o, introduz o aspecto olfativo na significação. O processo suplementa a significação,

acentua o erótico ao mesmo tempo em que a associação com o texto de Rimbaud

estende a caracterização para além da própria narrativa.

Salvo algumas vezes em que se refere às prostitutas de Belo Horizonte,

as quais eram perseguidas pelos estudantes da escola de medicina, as memórias

não possuem espaço para as experiências vivenciadas pelo eu. Tendo em vista a

proposta documental e genealógica do projeto de Baú de Ossos, notamos que a au-

sência desse espaço se justifica. Contudo, em seus últimos livros, o falar sobre a

própria sexualidade se transforma quando decide escolher um pseudônimo e cria um

personagem.

Porém o que nos interessa aqui é observar as diferentes formas de cons-

trução do eu que o gênero de memória é capaz de apresentar. No caso do médico

mineiro, destacam-se a riqueza e a abertura do gênero proporcionada por sua obra.

Seguindo pela via documental, mesclando estilos e compondo um texto marcado

pela heterogeneidade, o sujeito das memórias

tende a se prender à história dos grupos com que ele se relacionou, fazendo-se do lugar das reminiscências um intrincado de relações sociais e históricas concretamente determinadas no tempo e no espaço, podendo ainda, pelas re-lações de analogia, refletir modelos mais gerais. 72

Dessa forma, Baú de Ossos, ao se referir às famílias importantes, nos re-

mete àquelas considerações acerca da passagem da memória oral para a memória

escrita de que fala Jacques Le Goff. A memória escrita carregou consigo duas das

70 Ibid, p. 24. 71 Ibid, p. 255-256. 72 ARRIGUCCI. Móbile da memória. In:____. Enigma e comentário: sobre literatura e experiência, p. 96.

72

principais características da memória oral: a descrição da genealogia do grupo e a

trajetória das famílias mais importantes. É nesse sentido, na articulação de estilos,

do tradicional e do moderno, do experimental, do ficcional, do poético e do documen-

tal, que consiste a fecundidade de tal produção literária.

Atentando para o último ponto a ser focalizado, percebemos que a presen-

ça de relatos sobre a escravidão é marcante nas memórias. Ao descrever sua as-

cendência, os galhos da árvore genealógica se bifurcam. Nesse caminho, a história

brasileira se condensa com a narrativa de Nava. É interessante notar como Baú de

Ossos se aproxima do livro de Gilberto Freyre, Casa-grande & senzala. Em ambos

percebemos um olhar histórico permeado pela percepção e pela posição social do

narrador, aspecto também notado por Davi Arrigucci. O fato enriquece tanto a obra

do médico quanto o gênero memorialístico, que “ganha mais realidade, está mais

condizente com o contexto, pois o conceito só existe quando acontece de forma di-

nâmica, se relacionando não só com um mas com vários contextos. Assim não é re-

duzido a um denominador comum” 73.

A realidade dos fatos trazida pela escritura de memória, ao descrever de

forma corriqueira o acontecimento íntimo da escravidão, revela o outro lado da histó-

ria. As memórias não se prendem ao que seria correto dizer sobre a escravidão e

sobre a relação da família do médico com o acontecimento histórico. Dessa forma, o

texto passa a representar a história de todos os brasileiros. Vários são os casos con-

tados em que percebemos a visão da época sobre o negro:

O sangue saía pelas unhas. Ao bolo, as mãos viravam bolas. Bolas de dor. Uma, duas, três, quatro, cinco, seis dúzias, mais, o dobro, agüenta cachor-ro! mija negro! uma grosa de bolos bem puxados por ordem de sinhá, por ordem do sinhô, e as casas não tinham poeira, os pratos eram perfeitos, os metais reluziam como o sol (...). E o preceito antigo, para negro, como dizia meu tio Júlio Pinto, era angu por dentro e pancada por fora — à vontade. 74

73 ADORNO. Dossiê Cult-100 anos, p. 42. 74 NAVA. Baú de ossos, p. 135.

73

Nava apresenta através da linguagem a imagem da cena. Pinta suas cores

e a violência do acontecimento, “o sangue saía pelas unhas”, “mija negro”. A grada-

ção ascendente das pancadas e a extensão da gradação dão intensidade ao ato e

demonstram o desejo do eu em apresentar a cena com veemência. Ao descrever os

castigos, o sujeito textual expõe os familiares. Quando no meio da descrição introduz

a fala dos parentes, dá maior realidade à cena. Por meio das memórias, o narrador

coloca o acontecimento da escravidão destacando-a do fundo, que são as memórias.

Nesse processo, mostra-se o que ainda permanece vivo dentro do sujeito e merece

ser contado.

Histórias tão cruéis quanto as contadas por Gilberto Freyre, em Nava são

datadas como um documento e possuem a garantia do registro oficial:

De Santa Bárbara, Luís da Cunha passou-se para Sabará e lá esteve pelo menos entre 1855 e 1858 (...). O 1855 foi também a data de um crime que deixou lembrança nos anais judiciários de Minas. Nele pereceu uma odiosa sinhá, cruel e sádica, que tinha mania de sapecar os genitais das escravas, como se faz a frango, depois de depenar. 75

As histórias da formação da nação brasileira, da barbárie acontecida na o-

rigem do país estão presentes em sua própria história. Como uma via de mão dupla,

na obra do médico a história oficial oferece material para a memória pessoal e esta

ajuda a compor aquela, numa escrita Frankenstein, como diria o próprio escritor, e a

tudo isso ainda se acrescentariam os momentos de madeleines. Há momentos em

que a lembrança sensorial se articula com a escrita Frankenstein, em pedaços, que

tudo recolhe para a formação das memórias e do sujeito. O que acontece também

nos outros autores analisados. Em Drummond percebemos tal lembrança quando se

refere à negra velha que lhe serviu de ama-de-leite e contou histórias para dormir.

Parece que Nava se relaciona documentalmente com a maioria de seus

antepassados com quem teve pouco ou nenhum contato. Muitas vezes, ao se referir

a casos relacionados aos parentes distantes afetivamente, preocupa-se mais com o

contar a “verdade”, demonstrando suas várias faces, ou seja, dá a conhecer ao leitor

75 Ibid, 114.

74

tanto o aspecto socialmente aceito, quanto o condenável. Tal simultaneidade pode

ser fruto do desejo de que as memórias estejam realmente bem próximas do docu-

mento, sem o juízo de valor daquele que escreve. Num trecho do livro analisado é

revelado tal desejo: “Cuidando dessa gente em cujo meio nasci e de quem recebi a

carga que carrego (carga de pedra, de terra, lama, luz, vento, sonho, bem e mal) te-

nho que dizer a verdade, só a verdade e se possível, toda a verdade” 76. O desvela-

mento de aspectos indesejáveis da personalidade pode ser notado não só no fato de

que muitos de seus familiares descritos no conjunto das Memórias se sentiram injus-

tiçados, mas também nos trechos descritos a seguir:

Em casa de minha avó materna funcionava o sistema. Ela era mesmo tida como grande disciplinadora de negrinhas (...). Para o arbítrio da inhá Luiza, nem o batismo tinha barreiras. Ela revogava o sacramento quando a graça das negrinhas parecia de moça branca. O quê? Evangelina Berta? Absolu-tamente. Fica sendo Catita, que isto é que é nome de negro. 77

A personagem “inhá Luiza” assemelha-se àquela matrona criada por Mon-

teiro Lobato no conto Negrinha 78. A viúva do conto e a personagem de Nava repre-

sentam todas as senhoras mineiras que não aceitaram o fim da escravidão. Aqui, o

texto novamente dá voz ao personagem e recria a cena, tenta mostrá-la em sua ori-

ginalidade. É como se o sujeito das memórias se tornasse isento de participação no

mau tratamento dado aos negros.

tio Júlio — todo carrancudo, disparatando com os sobrinhos e os moleques de servir, mas todo terno com as sobrinhas e com as crias. Sempre que ele via uma, com um menino no colo, vinha acarinhar a criança para, na confu-são, pegar nos peitos da ama-seca 79

A descrição de “tio Júlio” e seu comportamento com as amas-secas evi-

denciam os defeitos de caráter. Estilo narrativo que surge como traço da escrita de

76 Ibid, 211. 77 Ibid, p. 259. 78 LOBATO. Negrinha. 79 Ibid, p. 262.

75

Nava. Muitas vezes as caracterizações de pessoas são feitas na narrativa de forma a

apresentarem seu lado mais negativo, mais sádico. Uma pintura que expressa o

comportamento humano e social.

O sujeito da escrita revela fatos denunciam um outro lado da história. Faz

com que enxerguemos que as datas históricas não demarcam o início ou fim de um

acontecimento, e que ao redor deste muitas outras histórias se fazem presentes,

mostrando que não há linearidade nem heterogeneidade histórica. A argumentação

se refere tanto ao fim da escravidão, que não terminou no ano de 1888: “Curioso é

que era na despensa que a inhá Luisa guardava sua palmatória de cabiúna e lá é

que ela passava as rodadas de bolo nas crias da casa. Como se não tivesse havido

princesa Isabel nem treze de maio” 80.

Podemos dizer então, para resumir, que as memórias do médico estuda-

das aqui, no tocante aos temas tratados, por abordarem de forma documental e com

uma preocupação histórico-genealógica, diferem dos três livros de memória de

Drummond. A diferença se estabelece tanto na forma quanto na apresentação do

conteúdo. Enquanto o médico descreve predominantemente acontecimentos ligados

aos antepassados, Drummond apresenta as experiências vivenciadas que o habitam.

Finalizando a análise acerca do texto de Nava, agora nos voltaremos para

outro também fecundo texto, com o objetivo de perceber o acontecimento de tais

produções e como enriquecem o gênero de memórias.

A idade do Serrote de Murilo Mendes aproxima-se dos Boitempos na me-

dida em que o eu é personagem principal. Em Murilo não existe uma caracterização

aprofundada de seus familiares nem uma necessidade de contextualização histórica

dos fatos narrados. O eu da escrita apresenta os personagens em recorte e os des-

creve de forma quase fotográfica. O tempo dos fatos no texto muriliano é impreciso e

as memórias aparecem antes como um universo cosmológico do que histórico.

A relação com a origem se dá na abertura do livro quando o autor fala de

seus pais de forma mitológica, bíblica e ao mesmo tempo resumindo sua genealogia:

80 Ibid, 271-272

76

“O dia, a noite. Adão e Eva — complementares e adversativos. Meus pais: Onofre e

Elisa Valentina, Adão e Eva descendentes” 81. Notamos que a proposta pretenderá

ser a de um texto enxuto, sem descrições pormenorizadas de sua origem, mas aten-

tando sempre para a forma com que o eu da escrita negocia suas impressões acerca

do passado. Narrativa de caracterização de seres que de alguma forma ficaram na

lembrança do menino, mais do que de acontecimentos, A Idade do Serrote apresenta

sua singularidade dentro do discurso sobre as memórias através da linguagem criati-

va, dos neologismos, do ritmo dinâmico, do lúdico, que transmitem as imagens ao

leitor.

Ao iniciar o texto com pares opostos mas complementares, o escritor nos

dá a chave da escritura: a tentativa de unir os contrários, aceitá-los como não exclu-

dentes. O que aparece como influência da religião e norteia o olhar sobre os aconte-

cimentos passados, presentes e futuros. A abertura do discurso possibilita e revela a

existência ilimitada da linguagem. Tal acontecimento é viabilizado pela simbologia

bíblica e pagã que redireciona e liberta o significante. A escritura passa então a en-

contrar-se sozinha. Sem o pai, mas acompanhada no momento da leitura, da leitura

de um outro. O sujeito textual de A Idade do Serrote ao estabelecer comparações

mitológicas para seus personagens e acontecimentos, abre o discurso para uma sig-

nificação analógica, desprendendo-o de alguma referência chapada e linear, o que

torna possível o acontecimento do “pensamento do exterior” 82, a continuidade de

significação além do ponto final.

Como os outros autores aqui analisados, a obra muriliana surgiu acoplada

ao movimento modernista, e sua proposta era de ruptura e instalação de novas con-

cepções para a linguagem, principalmente aquelas que determinavam maior liberda-

de à escrita. Dessa forma, a partir de tal proposta é que as memórias serão compos-

tas, num movimento inovador e de experimentação da linguagem, que reproduz a

experiência do corpo.

81 MENDES. A idade do serrote, p. 23. 82 Cf. FOUCAULT, 1990.

77

Murilo Mendes realizava um processo de construção ciente da abertura, da

capacidade do texto criado. Na passagem: “o texto é o contexto do poeta / ou o poe-

ta é o contexto do texto? (...) / O texto-coisa me expia / Com o olho de outrem” 83,

percebemos que o poeta sabe das possibilidades daquilo que escreve e por isso ex-

plora sua abertura à significação ilimitada.

Para iniciarmos então a abordagem da obra memorialística muriliana esta-

belecendo focos como a religião, a sexualidade e o negro, podemos dizer que a reli-

gião está presente em toda obra, desde a descrição da origem até a representação

das mulheres e da sexualidade.

Murilo Mendes, por influência de Ismael Nery se converteu definitivamente

ao cristianismo. Mas a conversão já iniciara na infância pela tradição religiosa de seu

estado e da influência do pai. Como já dito, na primeira página do livro estudado aqui

está presente a origem do narrador dada de forma bíblica, eternizando ambos numa

tentativa de arrancá-los do tempo, da deteriorização e da morte. Arrancar os pais e a

si mesmo, pois a temporalidade da infância desconhece o desgaste do tempo e a

idéia de morte. O eu da escrita compõe-na de uma forma a não separar o religioso

entre bem e mal, mas sim a complementar os dois, a unir os contrários, diferente-

mente de Drummond, que ao falar de religião estará sempre se referindo a pecado e

perdão.

Que me legou meu pai de grande e permanente? Sem dúvida a religião cató-lica, apresentada por ele, ao invés de certos padres, mais na sua flexibilidade do que na sua rigidez, incluindo o respeito pelas crenças ou descrenças a-lheias; o interesse pela pessoa espantosa de Jesus Cristo. 84

Ao falar do pai, o eu de Murilo nos dá a dimensão do catolicismo em sua

vida e na escrita, em que sempre vai predominar a visão paterna. O olhar humanista

católico perpassa as memórias. É pensado como conhecimento para vida, como a

83 MENDES. Poesia completa e prosa. Org. Luciana Stegagno Picchio. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. P. 737-738-739-740. 84 Ibid, p. 175.

78

espiritualidade no trato com as pessoas. O olhar muriliano não enxerga a religião

como um conjunto de regras a serem seguidas sem questionamento.

Todavia, o menino experimental, ao longo de sua infância, deparou-se com

figuras religiosas ortodoxas que tentaram incutir-lhe a idéia de um Jesus punidor:

já não se pode gozar a delícia do segredo: devemos comunicá-lo a outrem, até a lâmpada mortiça me espia, a inconvincente estampa do Coração de Jesus, não consoladora, não amiga, antes um bicho-papão, durante muito tempo meu confessor na Academia é o Padre Solano, alemão, vermelho, duro, rigoroso, olho que arde; martela energicamente a palavra pecado, brande a terrível palavra concupiscência 85

A ironia do eu da escrita em relação a “padre Solano” apresenta a desa-

provação e indiferença aos dogmas religiosos. Estes são mais condizentes com um

comportamento social do que espiritual. A figura do “Coração de Jesus” como “bicho-

papão” está mais próxima daquela apresentada no texto drummondiano. O traço ca-

ricatural ajuda a compor a descrição de “padre Solano”. Destaca-se, por meio da pa-

lavra, sua personalidade deformada e deformadora do catolicismo. Entretanto, outro

padre foi figura importante na vida do menino:

O padre Júlio Maria (no século Júlio César de Morais Carneiro) é um dos personagens mais presentes à memória reconstituída de minha infância e adolescência. Amigo de meu pai, encontrei-o várias vezes na nossa casa. (...) oficiava a missa; mal esta acabava, ainda revestido dos paramentos li-túrgicos, dirigia-se às beatas que permaneciam ali a escandir o rosário, gri-tando-lhes energicamente: “Chega de reza, vão para casa trabalhar, vão tratar de seus maridos, de seus filhos, de quem precisar de assistência: es-ta é a melhor maneira de servir a Deus. Rezar quer dizer ajudar o próximo. 86

A religião se apresentará nas memórias com seu aspecto humano, de uni-

ão dos homens e das raças, como um lugar em que a compreensão do mundo se

dará através do relacionamento com as pessoas, que compreenderá a aceitação da

diferença e o perdão. O “padre Júlio Maria” é construído de forma diferente. O sacer-

85 Ibid, p. 109. 86 Ibid, p. 56-57.

79

dote possui um comportamento que transgride aquele encontrado nos padres da é-

poca. Sua forte presença na “memória reconstituída“ corresponde à importância que

tal figura adquire no eu atual. O religioso adquire também o aspecto pagão no senti-

do da valorização da mulher como Mãe Terra. Esta antecede a figura de Deus adqui-

rindo características próprias e uma valorização não encontrada na história bíblica:

Aparentemente tudo principiou com Etelvina, ama-de-leite dos meninos mais velhos, precursora de Sebastiana. O nome Etelvina pertence a uma eternidadezinha anterior à minha primeira notícia de Deus, do cosmo; Etel-vina, placa recebendo nossas mais remotas impressões digitais; excluída do elenco das mulheres diademadas. De suas profundezas trouxe-nos a primeira idéia da cor preta, a noite e adjacências. (...) Penso mesmo que Etelvina trouxe-nos o fogo, a mais remota idéia que tenho dele. 87

Etelvina, aquela que nutriu o menino órfão de mãe é a segunda mãe. Car-

rega as características da falecida. O olhar infante para este ser que cuida é de fas-

cinação e encantamento. O universo que evolve a “preta velha” é atemporal, fantásti-

co: uma “eternidadezinha anterior”, confortável e calorosa.

A escrita do juizforano subverte conceitos já estabelecidos, para na verda-

de, realizar seu principal objetivo, o de desconstruir o tradicional, criando novas for-

mas simbólicas, formas próprias, articulando o conhecimento literário, a criatividade e

as memórias. No texto analisado, a escritura e o ser representado remetem para

uma cadeia de analogias e de interpretações, o que acaba por limitar a tentativa se

encontrar um sentido de fechamento para o texto.

Em relação ao catolicismo, o escritor ao mesmo tempo se mostra um “de-

fensor” de seu lado humano, aquele ensinado pelo pai que ao salvar um mendigo da

violência de alguns garotos, ensina: “Este homem, como vocês, como qualquer ou-

tro, foi criado à imagem e semelhança de Deus” 88. Mas também critica utilizando o

lúdico, capaz de conciliar contrários:

atacam-me pensamentos libidinosos, não disponho de forças para expulsá-los, costumo dizer: o anjo da guarda ou é nosso cúmplice ou dorme muito;

87 Ibid, p. 28. 88 Ibid, p. 47.

80

aos domingos suporto melhor a obrigação do rito, afluem à capela parentes dos internos, viro o pescoço para situar certas donas cujos olhos, cabelos, braços, bustos já marcara anteriormente, celebro então a glória de Deus a-través de suas criaturas eleitas por mim, aleluia 89

Murilo Mendes compõe a imagem da mulher nas memórias como aquela

que possui um grande poder sobre ele. Ao mesmo tempo em que é representada

como um ser divinal cuja divinização volta-se para a caracterização pagã, está rela-

cionada com a sexualidade na forma daquela que é responsável pela criação e pro-

criação: a mãe Eva. Dessa forma, a sexualidade pode ser percebida nas memórias

como algo que é fruto da criação divina e por isso o autor das memórias exalta-a,

sem a presença de culpa ou de pecado encontrada nas memórias de Drummond. A

sexualidade aparece, na maioria das vezes, através da descrição feminina como das

lavadeiras, da prostituta Desdêmona e das “namoradas” que passaram por sua in-

fância e adolescência como Marguí. A descrição aparece nas seguintes citações:

pois ali se avistavam às vezes certas partes esotéricas do corpo das lava-deiras e suas amigas, a paisagem vista daquelas partes é uma beleza, ela revirava-se saudada pelas nuvens nuvolosas 90

As lavadeiras possuem “partes esotéricas”. Sua descrição as transforma em “mulhe-

res-paisagem” do universo mitológico do menino experimental.

Desdêmona desdenhada que poluía noturnamente os meus lençóis, que a-nimatografava os meus sonhos precoces; Desdêmona miroares Desdêmo-na mulher: despovoada desfeita revogada poderosa. 91

O jogo das palavras apresenta a linguagem do jogo infantil e adulto. Infan-

til porque só pode ser realizado em sonho e adulto porque se realiza na escritura pe-

lo desenho do eu, o que produz uma escrita lúdico-erótica de adulto / criança. “As

pernas nervosas, os seios altos, aliciadores, perturbadores, pontudos, conscientes.

Seios que interferiam nas manifestações dos profetas” 92. Nessa passagem recor-

89 Ibid, p. 66. 90 Ibid, p. 31. 91 Ibid, p. 94. 92 Ibid, p. 95.

81

tam-se as partes do corpo de Marguí e dão-se-lhes características personalizadas. A

mulher transforma-se em um personagem alegórico na linguagem do menino.

Podemos perceber que o eu da escrita ao justificar o interesse dos meni-

nos pelo sexo, introduz a curiosidade púbere como um acontecimento da natureza

humana: “o sexo, por enigmático, proibido, não explicado, torna-se o grande negócio

dos meninos; refugiamo-nos ahimè! Nos obscuros ritos da masturbação e da fugitiva

bolinagem” 93. Jogando com o lúdico na linguagem, o eu compõe o mundo infantil.

Dessa forma, dá seqüência ao projeto de trabalho com a linguagem para a criação

de um texto diferencial, inovador.

O texto memorialista de Murilo Mendes se orienta em grande parte pela

caracterização de personagens que, de alguma forma, ainda o afetam e compõem o

ser da escrita. Na descrição mesma da rua Halfeld, feita também por Nava, mas sob

um outro olhar, Murilo afirma: “Escrevo sobre a rua Halfeld sem situá-la no espaço,

ocupando-me somente com as pessoas que percorrem” 94. A estruturação textual

desconstrói a idéia do tempo tradicional para a constituição da memória, recriando

um estilo e renovando a escrita na medida em que manifesta a heterogeneidade do

ser e de sua forma de expressão. No caso de Murilo, “Nada a fazer: assim sou eu,

ponho sempre em primeiro plano o homem e a mulher” 95.

Seguindo a linha mestra que orienta sua escritura, Murilo Mendes vai a-

presentar o negro na forma das personagens que permearam sua trajetória de meni-

no juizforano. Inicialmente há a presença da negra ama-de-leite, Etelvina. É a mulher

que traz o conhecimento de uma parte do cosmos e da vida, estabelecido novamente

por uma união de contrários, o preto e o branco e, ao mesmo tempo, o medo desse

mundo desvendado. Ser silencioso e “enigmático” por sua diferença e proximidade, a

ama-de-leite proporcionou-lhe a abertura para a significação do lugar ocupado pelo

negro em sua infância. Lugar marginal de um sujeito diferente, mas dotado de carac-

93 Ibid, p. 67. 94 Ibid, p. 152. 95 Ibid, p. 152.

82

terísticas singulares, as quais através da palavra, da canção Quindum Sererê, traz

algo novo ao ser da escrita e modifica sua situação de estar-no-mundo: “Esta cantiga

entrou nos meus poros, assimilei-a: começava a música, o ritmo do homem começa-

va; era uma vez, e será para todo o sempre” 96.

Perpetuando o lugar subalterno do negro após a escravidão, percebe-se a

presença das empregadas negras no relato muriliano com a referência de respeito a

essas mulheres: “Tio Chicó e as excelentes empregadas pretas, Maria Júlia e Luísa,

pessoas também finíssimas, da minha reverência” 97, assim como a sensualidade

ligada a elas. Mas o menino experimental, talvez por não viver a culpa ligada ao se-

xo, ou ao preconceito racial, realiza as experiências de forma prazerosa:

Teresa, ou melhor, Tetéia, assim se chamava uma jovem mulata adotada por Sinhá Leonor minha prima. (...) Chegando os dois à adolescência co-mecei a sentir uma forte inclinação erótica por Teresa; ela me correspondia, passando mesmo a assumir um ar mais sério. Desde então, sempre que possível, aproveitando a ausência das sinhás na fazenda, levava-a até o fundo do pomar. Deitávamos-nos na relva. Eros e a ternura formavam um só todo, (...) Teresa, filha da terra, linda, corporal, indiavolata, com a inteli-gência da ternura me ensinara que o amor e o sexo não têm limites de classe ou raça. 98

Teresa também faz parte daquelas negrinhas “adotadas” por senhoras

brancas que Nava descreve. Mas aqui há uma diferença. Parece que a personagem

de Murilo não teve a mesma sorte que as habitantes da casa de “inhá Luiza”. “Tetéi-

a”, “filha da terra”, mesclava “Eros e a ternura”, amor e sexo. No processo de mitolo-

gização característico de sua escrita — estratégia que imortaliza as figuras salvando-

as da corrosão do tempo e da morte — o sujeito textual ao saber que Teresa se joga-

ra no rio Paraibuna, deseja ser o rio: “Que não pudesse eu, já agora em ser mitológi-

co, transformar-me em rio!”.99

O discurso revela-nos o contexto familiar em que cresceu, uma família em

que a religião proporciona um entendimento da vida e do mundo, o que não acontece

96 Ibid, p. 29. 97 Ibid, p. 60. 98 Ibid, p. 153-155. 99 MENDES. A idade do serrote, p. 155.

83

nas memórias drummondianas. As confissões do juizforano se estabelecem em um

campo de desvelamento da vida, de retorno a um universo em que as negociações

através da escrita buscam a conciliação do cosmos, o estabelecimento de uma nova

ordem em que os padrões tradicionais não imponham limites. Notamos um certo pa-

ganismo na escrita no sentido da valorização da potencialidade humana em todos os

sentidos, além de seu desprendimento de uma temporalidade marcada e que se liga

ao processo eterno do ciclo da natureza, o que podemos notar através de elementos

como a lua, a noite, o sol.

2.2. O contato com a escrita, a casa paterna e seus objetos de evocação

O contato com a escrita, a casa paterna e seus objetos de evocação apre-

sentam-se na constituição do material da infância e constroem um universo pessoal

significante, o qual ilumina o caminho, ou é mesmo o próprio caminho traçado na

busca do sujeito pretérito/presente. Por anexação parcial, o material das memórias

traz consigo uma carga emocional que funciona como um detonador de vivências

atemporais que se desprendem de sua realidade material e passam a existir no tex-

to. Os tópicos recortados aqui estão sujeitos a todas as condições textuais, princi-

palmente àquela em que a significação se dá a posteriori, ou seja, a reflexão provo-

cada pelo objeto muitas vezes acontece de forma inesperada e fatos e afetos não

previstos vêm à tona não como “simples consulta ao índice remissivo do Velho Tes-

tamento do indivíduo” 100, mas como memória involuntária.

Em Drummond, o contato com a escrita poética acontece na forma da ne-

cessidade de narrar, fato que se desenvolve involuntariamente como texto de vida,

texto humano que marca uma passagem, uma transformação de si mesmo a partir

da escritura, da marca pessoal na folha de papel, o que podemos perceber no poe-

ma “Primeiro conto”:

100 BECKETT. Proust, p. 31

84

O menino ambicioso não de poder ou glória mas de soltar a coisa oculta no seu peito escreve no caderno e vagamente conta à maneira de sonho sem sentido nem forma aquilo que não sabe.

Ficou na folha a mancha

de tinteiro entornado, mas tão esmaecida que nem mancha o papel. Quem decifra por baixo a letra do menino, agora que o homem sabe dizer o que não mais se oculta no seu peito. 101

Sem conseguir um trabalho final, acabado, o eu tenta construir a si por

meio do texto. O processo da escrita do menino, demonstrado pela via poética, o

adulto acaba por concluir por meio do próprio poema: o que “se oculta no peito” é

transformado em poema e ao mesmo tempo em trabalho do eu ao construir as me-

mórias. O contar “à maneira de sonho” estabelece a desorganização que o texto pre-

coce apresenta. Entretanto, a escritura por si só possui uma dinâmica. Esta mostra

aquele outro que passa a existir a partir do texto, mas que o menino ainda não per-

cebe claramente. Só vai percebê-lo no momento da produção textual. A palavra

“mancha” adquire outro sentido quando repetida no quarto verso da última estrofe.

Adquire o sentido da presença da marca no papel como seu estilo, sua assinatura, a

marca do autor.

Numa via de mão dupla o processo de contaminação entre escritor e escri-

tura se retoma mutuamente. O desejo da escrita move a composição do sujeito em

seu estado de estar-no-mundo. A presença depende de uma ausência para a reali-

zação do movimento da feitura das memórias: a presença do desejo de re-escrever a

vida da infância em função da falta da vida pretérita. A escrita do corpo se reúne e se

101 ANDRADE. Boitempo & A falta que ama, p. 79.

85

dispersa na folha em branco, provocando a morte do sujeito anterior à escrita e o

renascimento do outro no papel.

Os jornais são o suporte em que o menino encontra outros como ele, que

precisam escrever. Ao perceber que alguns podem publicar suas produções poéti-

cas, inveja-os:

O poeta Astolfo Franklin, como o invejo: tem tipografia em que ele mesmo

imprime seus poemas simbolistas em tinta verde e violeta: Maio... é seu jornal, e a letra rara orna seu nome que tilinta na bruma, enquanto o resto some. 102

As cores presentes no poema intensificam a magia da produção poética

para o menino antigo. O jornal, por comportar tal riqueza de significação, possui um

nome que vai além de si e passa a ter existência própria, “enquanto o resto / some”.

O jornal do poeta “Astolfo Franklin”, assim como a poesia são dotados de magia e

mistério.

O processo desencadeado pela alfabetização, pela leitura, não aceita a li-

teratura pedagógica e deseja que esta se direcione para algo que dê liberdade, que

mostre um mundo além daquele do papel e possibilite a transgressão das significa-

ções fixas: Leituras! Leituras!

Como quem diz: Navios... Sair pelo mundo voando na capa vermelha de Júlio Verne. Mas por que me deram para livro escolar a Cultura dos Campos de Assis Brasil? O mundo é só fosfatos — lotes de 25 hectares — soja — fumo — alfafa — batata-doce — mandioca pastos de cria — pastos de engorda. 103

102 Ibid, 120. 103 Idem. Menino antigo: boitempo-II, p. 126.

86

O poema acima, “Iniciação Literária”, apresenta um menino que não se

adaptava aos padrões educacionais e à literatura pedagógica, uma vez que para ele

o espaço literário já se estabelecera como de liberdade, de solidão e individuação. O

primeiro verso mostra, por meio da repetição e da exclamação, o entusiasmo pelas

leituras fantásticas, ficcionais. A aliteração do “v”, a forma verbal “voando”, assim

como a imagem proporcionada pela segunda estrofe, destacam o movimento dinâ-

mico da leitura. Isso contrasta com a segunda estrofe. Nela, a enumeração entre tra-

vessões interrompe o fluxo da leitura do poema e a leitura realizada pelo menino.

Podemos perceber, já em seu primeiro livro, através do poema “Infância”, que a leitu-

ra do clássico Robinson Crusoé estabelece um lugar em que o menino se isola da

família, criando sua ilha, comparando-se ao náufrago.

O trabalho com a elaboração do próprio texto é continuado pela leitura da-

quilo que impressiona, que instiga a curiosidade, como o jornal Tico-Tico referido no

poema “Primeiro jornal”:

Amarílio redige e ilustra com capricho o jornal manuscrito: é conto, é poema, é cor, que ele tira de onde? Incessante criador, de si mesmo é que extrai esse mundo de coisas. Nutro por Amarílio invejoso respeito. Por mais que me coloque em transe literário e force a mão e atice a chama de meu peito, não consigo imitá-lo. Em lugar de escritor, na confusão da idéia e do vocabulário, sou apenas constante e humilhado leitor. 104

O interesse do sujeito da escrita na produção do jornal traz consigo questi-

onamentos sobre o processo complexo que a escrita compõe. No trecho, “o jornal

manuscrito: é conto, é poema, é cor”, percebemos a surpresa em relação às possibi-

lidades do texto. O redator Amarílio, segundo o menino, comporta o mundo e conse-

gue transcrevê-lo. Entretanto, o eu acaba por reconhecer que esse ato é único e exi-

104 Ibid., p. 128.

87

ge trabalho, já que entre “idéia” e “vocabulário” existe um abismo. A tentativa de en-

trar em “transe literário” é inútil, pois a escrita exige elaboração e certo amadureci-

mento literário, que o menino ainda não tinha. Contudo, havia o incessante desejo, a

busca pela representação daquilo que o ser comporta e que vai além de si. No pre-

sente da escritura, o eu poético pode representar “a chama” de seu peito.

A busca por algo que lhe forneça o conhecimento, a riqueza de imagens e

informações de que necessita, acrescida do mistério que ronda, é saciada pela com-

pra da coleção da Biblioteca Internacional de Obras Célebres:

Agora quero ler figuras. Todas. Templo de Tebas. Osíris, Medusa, Apolo nu, Vênus nua... Nossa Senhora, tem disso nos livros? Depressa, as letras. Careço ler tudo. (...) Mas leio, leio. Em filosofias

tropeço e caio, cavalgo de novo meu verde livro, em cavalarias

me perco, medievo; em contos, poemas me vejo viver. Como te devoro, verde pastagem. Ou antes carruagem de fugir de mim e me trazer de volta à casa a qualquer hora num fechar

de páginas?

Tudo que sei é ela que me ensina. O que saberei, o que não saberei nunca, está na Biblioteca em verde murmúrio de flauta-percalina eternamente. 105

O olhar do menino mesclado com o do adulto, na última estrofe, coloca

considerações do escritor presentes na escritura: a percepção da influência eterna

daquilo que foi lido, o murmúrio que permeará toda a escritura, todo o ser que se re-

vela agora transformado. O acesso a tantas informações traz para o filho de fazen-

deiro um universo que ele não imaginava existir, e que o acompanhará para todo o

sempre. A experiência de leitura modificou o sujeito, que já não é mais aquele anteri-

or à chegada dos livros. A expressão “ler figuras“ nos remete às artes visuais e sua

105 Ibid., p. 129-130.

88

existência como texto. Uma rede de signos que formam um campo aberto à interpre-

tação e analogia. A presença do nome de “Nossa / Senhora”, em meio aos seres mi-

tológicos pode nos apresentar o mecanismo de assimilação do novo que acontece

por meio da renegociação para a composição do traço. Os elementos verbais, no

momento da leitura do texto feita pelo menino antigo, indicam movimento. As formas

verbais: “tropeço”, “caio”, “cavalgo” fazem analogia ao processo de leitura e à articu-

lação dos saberes, dão ritmo ao poema. Um processo semelhante acontece na pro-

dução memorialística: as memórias mostram aquele outro ser que surge através da

escrita em um processo infindável do conhecimento de si e do objeto, que nas me-

mórias, passa a ser “si mesmo”, aquele outro que se revela negociando os saberes e

as vivências. A consciência do poder da palavra está presente no texto drummondia-

no: “A linguagem / na superfície estrelada de letras, / sabe lá o que ela quer dizer? /

(...) O português são dois; o outro, mistério” 106.

O contato com a casa paterna e seus objetos de evocação compõem o re-

torno a um tempo mítico da origem. Mítico porque inalcançável mas que no entanto

não deixa de ser perseguido e pensado, articulando-se com a experiência do sujeito

e com o tempo. O homem não é contemporâneo de si mesmo e está sim inserido em

um conjunto de forças que o dispersa da origem ao mesmo tempo em que a prome-

te. Esse poder, ou essa força, não está fora de si, mas faz parte da formação de sua

identidade. Assim, a casa paterna com seus objetos apresentará uma temporalidade

própria e não a linearidade imposta pela filosofia da representação. A repetição de

tais cenários e objetos proporciona a repetição dos afetos que carregam e a experi-

ência vivenciada. Um retorno que ao mesmo tempo em que apresenta esse mesmo

próximo, o coloca também como aquele outro afastado num processo de persegui-

ção. Aquilo que escapa e não é conhecido, mas circunda incessantemente o eu, pro-

porciona a busca empreendida pela via memorialística. A biblioteca é o alimento para

o conhecimento, o sujeito textual devora a “verde pastagem”. Tal metáfora condiz

106 Idem. Esquecer para lembrar: boitempo-III, p. 88.

89

com a vida campestre e com o movimento de ruminação para a “digestão” da “verde

pastagem”.

Na poesia drummondiana percebemos o estabelecimento de um certo con-

flito em relação à figura paterna. Tendo em vista esta constatação, percebemos que

seu relacionamento com a casa em que viveu aparece de forma também problemáti-

ca, proibitiva. A afetividade insere-se num contexto de privação, já observado no to-

cante à estrutura autoritária em que foi criado.

O poeta descreve a casa construída pela família e utiliza para isso uma

linguagem de fazendeiros, daqueles que possuem forte ligação com a terra. A des-

crição apresenta pessoas do ambiente familiar que de alguma forma estão relacio-

nadas com os significantes da casa: “Há de ter dez quartos / de portas sempre aber-

tas / ao olho e pisar do chefe. / (...) / Alcova no fundo / sufocando o segredo / de car-

tas e baús / enferrujados” 107. Uma das faces do menino e da carga emocional que o

interliga ao pai e à casa, é evidenciada nesses versos do poema “Casa”. A memória

de um tempo que se localiza entre o eu atual e o das vivências era cerceada pelas

tradições de sua família.

O conflito existente na poética do itabirano se manifesta nas memórias a-

través de todos os fatores já analisados. Inclusive na relação eu-casa-pai, compondo

a personalidade do ser e sua origem, marcada pelo estigma da culpa, do pecado,

sempre presentes:

A casa foi vendida com todas as lembranças todos os móveis, todos os pesadelos todos os pecados cometidos ou em vias de cometer a casa foi vendida com seu bater de portas seu vento encanado sua vista do mundo seus imponderáveis por vinte, vinte contos. 108

107 Idem. Boitempo & A falta que ama, p. 39. 108 Ibid, p. 49.

90

O passado que atormenta e precisa ser negociado por meio da escrita é

evidenciado pelos vocábulos de conotação negativa: “pesadelos”, “pecados” e “bater

de portas”.

O relato da condição sócio-econômica encontrada nas famílias rurais no

mundo que passa a urbano e industrializado traz em si parte da trajetória do menino

antigo e nesta aparece o término de um período: “O casarão senhorial vira paiol /

depósito de trastes aleijados / fim de romance, p.s. / de glória fazendeira” 109. O texto

carrega um desassossego do espírito no relâmpago de tempo que separa passado e

presente. Trata-se de um processo sacro, de tentativa de purificação a partir do rela-

to e da confissão, que se tornará marca imortal por intermédio da obra literária. So-

breviverá ao pecador, pois a obra fará seu trabalho de máquina de desculpar sozi-

nha, o trabalho do escritor já está feito, ele já confessou seus pecados passados e

futuros. As faltas cometidas já foram prescritas por seus antepassados que também

já o condenaram de antemão. Dessa forma instalaram dentro do menino algo que ele

não pode entender: um sentimento de eterno desconhecimento de si mesmo. Os va-

lores que o atormentam e punem, não lhe pertencem, vêm de outros tempos, de ou-

tras gerações, conforme “Quarto escuro”. Por que este nome, ao sol? Tudo escurece

de súbito na casa. Estou sem olhos. Aqui decerto guardam-se guardados sem forma, sem sentido. É quarto feito pensadamente para me intrigar. O que nele se põe assume outra matéria e nunca mais regressa ao que era antes. Eu mesmo, se transponho o umbral enigmático, fico outro ser, de mim desconhecido.

(...) O quarto escuro em mim habita. Sou o quarto escuro. Sem lucarna. Sem óculo. Os antigos condenam-me a essa forma de castigo. 110

109 Idem. Menino antigo: boitempo-II, p. 28. 110 Ibid, p. 104.

91

Somente através de todos os tipos de experimentação, socialmente corre-

tas ou incorretas, torna-se possível a constituição do ser. O que instala um jogo de

acusação e desculpa, de narração e confissão. A mobilidade interior incessante do

itabirano o ocupa, vacilando entre a tradição e o movimento de descoberta. O sujeito

trilha o caminho que o constrói e procura as respostas para tudo aquilo que o habita,

“Por que este nome, ao sol?”. O menino das memórias sente dentro de si uma cons-

tante transformação, mas não compreende como esta se dá: “o que nele se põe as-

sume outra matéria / e nunca mais regressa ao que era antes“. O eu textual é o quar-

to escuro. O menino encontra-se na escuridão, “sem olhos”, o mistério que o habita é

o outro sempre ameaçando a chegada, “fico outro ser, de mim desconhecido”. A

descoberta, a constatação da existência desse outro é realizada através do sujeito

da escrita que, na escritura, apresenta o universo das vivências numa trajetória circu-

lar de confissão e culpa, de ato do corpo e salvamento da alma.

A escolha por realizar o ato da escritura de uma vida se articula com a ca-

pacidade do texto como máquina de confissão. Proporciona certa organização no

interior conturbado do eu quando o transporta para a folha em branco. O trabalho de

produção das memórias preenche as lacunas do ser ao mesmo tempo em que insta-

la outras, pois aquele que escreveu já não é mais aquele anterior à escrita.

A presença do personagem da narrativa memorialística nos espaços da

casa vem marcada pelo círculo de ato e arrependimento: No úmido porão, terra batida, lar de escorpiões, procura-se a greta entre as tábuas do soalho por onde se surpreenda a florescência do corpo das mulheres na sombra de vestidos refolhados que cobrem até os pés a escultura cifrada (...) Nada nada nada senão a sola negra dos sapatos tapando a greta do soalho.

92

Saio rastejante olhos tortos pescoço dolorido. A triste polução foi adiada. 111

A presença da palavra “triste” demonstra uma culpa antes do “crime”. A

possibilidade de realizar a “polução” corporal já pressupõe o próprio julgamento, ge-

rando a sensação de mal estar. Mas que não o impede de tentar, mesmo diante das

dificuldades como o perigo dos escorpiões e a dor. O porão, lugar que não pertence

ao lar e às habitações, é novamente o lugar das vivências ligadas à sexualidade. O

espaço úmido, marginal, é “lar de escorpiões”, é habitação de seres perigosos, ve-

nenosos.

O menino antigo levará os mortos sempre presentes em sua casa, em su-

as memórias, em si mesmo, assim como a lei instaurada por eles, como visto anteri-

ormente:

Jamais ficou comprovado que aqui habitam fantasmas. Entretanto eles circulam mesmo sem comprovação. Não são duendes estranhos, forasteiros indiscretos. Têm um traço de família: todos de nossa nação.

A moça trágica e antiga quis vir com eles: inútil. Não pertencendo à família, foi barrada no porão.

Se teve um caso com o avô, merecia ser dos nossos. Insiste, implora. Recusam-lhe direito à incorporação. (...)

Já grita seu grito de ouro o galo da madrugada.

111 Ibid, p. 137-138.

93

Os aéreos visitantes assim como chegam, vão. Mas fica no dia claro

um sabor de assombração. 112

A temporalidade da casa é suspensa. O espaço físico apresenta-se fugidi-

o. O que define o lugar como a casa da infância é a presença de fantasmas, que

“têm um traço de família”. As leis ditadas pelos antepassados e sua influência são

tão marcantes que o menino sente a presença dos parentes na casa, “mesmo sem

comprovação”. O eu da escrita compõe os versos na terceira pessoa, o que lhe ga-

rante certa distância daquilo que está contando. Isso ocorre devido à necessidade de

estabelecer a visita dos fantasmas como uma verdade. Todavia, tais fantasmas exis-

tem dentro do menino. A casa é também o sujeito. No momento em que é destruída,

desfeita, parte do sujeito também o é. Dessa forma, as interdições que os antepas-

sados trazem consigo se dão até mesmo entre os fantasmas que habitam o sujeito

textual: “a moça trágica e antiga / quis vir com eles: inútil. / (...) / Recusam-lhe / direi-

to à incorporação“. Finalizando, podemos dizer que os espaços da casa na poesia

durmmondiana definem o sujeito, são constitutivos do ser e de sua complexidade.

Estabelecem principalmente a relação com o clã e com o pai.

A importância da casa paterna para Pedro Nava, em suas memórias, é tão

significativa quanto para Carlos Drummond. O juizforano também traz a si, através

da lembrança da casa, pessoas e sentimentos há muito adormecidos. Tal aconteci-

mento se dá como nas memórias proustianas, uma visão, um cheiro, um objeto tra-

zem consigo histórias passadas, lembranças daquilo que não estava previsto, provo-

cando a descoberta de um ser inteiramente novo, elaborado a partir de confissões do

presente / passado. A lembrança de um tempo provoca o retorno que parte do pre-

sente do escritor, de sua necessidade de rememoração:

quando fico triste, triste (“...Mas triste de não ter jeito...”), só quero reeen-contrar o menino que já fui. Assim, quantas e quantas vezes viajei, primeiro

112 Idem. Esquecer para lembrar: boitempo-III, p. 26.

94

no espaço, depois no tempo, em minha busca, na de minha rua, na de meu sobrado...Custei a recuperá-lo (...) Foi preciso o milagre da memória invo-luntária. 113

Nava identifica-se com Proust e afirma que se apropriou do mecanismo do

autor francês para recompor aquele que fora. A recomposição de si dá-se no presen-

te, e, como afirma Beckett, parte do mundo físico e é percebida fortuitamente pelos

sentidos. Como um germe que dá origem à planta inteira, as ramificações se dirigem

rapidamente em várias direções. O tempo, como constitutivo do ser, desdobra-o ao

mesmo tempo em que o destrói e o constrói, num movimento de morte e ressurrei-

ção, trazendo ao sujeito aquele outro de si mesmo há muito escondido, mas que

sempre deixou seu rastro. Dentro da perspectiva da escrita Frankenstein que agrega

partes de outros texto, existe, no início do trecho citado, analogia com versos de Ma-

nuel Bandeira. A anexação do trecho: “...Mas triste de não ter jeito...”, pertencente ao

poema “Vou-me embora pra Pasárgada“, que apresenta o sentimento da evasão. O

sentimento do narrador de Baú de ossos se assemelha àquele do eu presente em

Bandeira. A analogia recupera um sentimento de desalento, de desencanto em rela-

ção à vida. As limitações da vida presente, do corpo decrépito e fraco são o exílio do

eu. Há a necessidade de fuga deste estado para um lugar mítico, para o tempo da

origem. O ambiente de sonho eterno é encontrado então na infância.

O médico mineiro descreve o momento em que, após alguma dificuldade

em conseguir relembrar a casa paterna, decide ir até ela. É então que a memória

involuntária realiza o processo da madeleine proustiana:

Eu tinha ido me refugiar na rua maternal, tinha parado no lado ímpar, de-fronte do 106, cuja fachada despojada esbatia-se na noite escura. Olhando as janelas apagadas. Procurando, procurando. De repente uma acendeu e os vidros se iluminaram mostrando o desenho, trinta anos em mim adorme-cido. Acordou para me atingir em cheio, feito bala no peito, revelação (...). Essa luz prestigiosa e mágica fez renascer a casa do fundo da memória, do tempo; das distâncias das associações, da lembrança. (...) minha Mãe con-valescendo, meu Pai chegando, minhas tias, as primas — tudo, tudo, todos,

113 NAVA. Baú de ossos, p. 301.

95

todos se reencarnando num presente repentino, outra vez palpável, visível, magmático, coeso, espesso e concentrado 114.

É desse momento de madeleine, que surge para o sujeito textual todo o

passado / presente. Mas a madeleine de Nava, também sensorial, apresenta-se por

um estímulo visual e não gustativo. A luz, “prestigiosa e mágica”, funciona como “ga-

tilho” que detona a memória involuntária. A janela representa a entrada através da

qual o eu pode contemplar sua história pretérita. Um mundo mítico, original abre-se

para o sujeito que pode novamente visitar o espaço aconchegante da infância, a ter-

ra prometida, sempre presente no narrador, só que “adormecida”. O paraíso da me-

ninice é um lugar sagrado e sua aparição acontece como “revelação”. A revelação da

origem, da gênese. Tudo acontece à maneira proustiana, repentinamente, inespera-

damente, “feito bala no peito“. O passado torna-se presente e passa a constituir o

ser. É o presente em forma de presença, presença “se reencarnando”. A rememora-

ção do sujeito, suas vivências e experiências negociam a violência que compõe a

existência: o nascimento e a morte.

É então, do processo da madeleine provocado pela “luz mágica”, que sur-

gem todas as lembranças da casa paterna: a decoração, a descrição dos móveis e

dos acontecimentos importantes como a festa de São João realizada no pátio por

seu pai, a visão do carnaval de rua assistido nesse pátio, local de amplitude para se

enxergar o mundo externo: “Aquele pátio, meu miradouro dos céus, meu miradouro

da rua — um dia foi tragado pelas águas” 115.

O eu recorda a casa em que passou a infância descrevendo sua arquitetu-

ra, acontecimentos importantes e alguns visitantes que o marcaram. “Deles, para mim, a figura mais impressionante era o do agigantado dr. Belizário Fernandes Távora. Vinha por causa de tio Salles. As maçãs do seu rosto eram maçãs mesmo. Tinham o aspecto, a cor luxuosa e o lustro da casca daquela frutas” 116.

114 Ibid, p. 319-320. 115 Ibid, p. 337. 116 Ibid, p. 339.

96

Assim, diferentemente de Drummond e de Murilo, a narrativa de Nava ao

descrever a casa paterna parte especificamente de uma memória involuntária, como

a técnica proustiana. A partir desta recompõe todo o universo daquele ambiente fa-

miliar. Transforma o ser que antes da escritura era um e depois dela, passa a outro,

um outro de si mesmo.

Já a narrativa memorialística de Murilo Mendes apresenta-se muito preo-

cupada com a caracterização de pessoas que estão presentes em suas lembranças,

ou mesmo que surgem ao longo da própria narrativa. Fato comum da escritura que

se faz no processo mesmo de preenchimento da folha, sem uma trajetória determi-

nada. Percebemos que o estilo de Murilo Mendes diferencia-se dos demais porque

sempre se preocupa com a caracterização, essencialmente, de seus personagens

que são a matéria das memórias. Os nomes de pessoas usados na maioria dos capí-

tulos o demonstram. Assim, a referência à casa paterna aparecerá na descrição dos

personagens e os objetos, secundários, são mencionados no decorrer dessas des-

crições. A narrativa é recortada, fragmentada e não marcada temporalmente. Retrata

seres fantásticos.

A casa torna-se o cenário em que os acontecimentos se dão. A família é

apresentada através da música que permeia a vida do eu poético. A casa é o espaço

cultural em que o menino desenvolve seu lado questionador e artístico. Nela não há

o peso dos antepassados, mas um ambiente parazeroso de descobertas. A família

do menino experimental não aparece como uma instituição anuladora do indivíduo.

Ela aparece como agente transformador e enriquecedor, assim como a religião.

Nos trechos a seguir, percebemos a casa é representada. Trata-se de um

processo que particulariza autor e obra e faz com que nenhum dos dois, escritor e

texto, possa se adequar a nenhum conceito de gênero. Este sim necessita se abrir

para comportar a diversidade das memórias:

97

Isidoro, flauteando na casa de meu pai, de Titiá e de Sinhá Leonor, tendo eu três anos de idade; Mamãe Zezé pianolando e cantando, mais tarde soube, árias de Porpora e Caldara. 117

O trecho demonstra a relação entre o menino experimental e os familiares.

Relação de admiração, de conciliação com o meio. O lar é um ambiente cultural em

que a música se estabelece como norteadora do indivíduo. Os neologismos apre-

sentam uma escrita libertária em relação a valores pré-estabelecidos.

“Não ouço mais o tique-taque do relógio, penso, na certa foi dormir” 118. A narrativa

dos objetos da casa é feita por meio das considerações do menino experimental. O

lúdico e a criatividade se associam e personificam o objeto dando-lhe características

humanas: “na certa foi dormir“.

O quintal é o lugar em que o menino é atacado pela volumosa Dona Coló:

Encontro-me um dia sozinho no quintal da casa paterna, teria eu uns dez anos, Dona Coló sem tirte nem guarte baixou-me as calças e meteu a mão peluda nos meus países baixos, ao mesmo tempo que me beijava. Vôte! Repelia com a maior violência. Não por virtude, mas por nojo. 119

O que move a descrição da cena, a repetição da situação que gera nojo, é

a libertação do sentimento de repulsa. Por meio do texto, acontece o exorcismo do

trauma causado pela agressão da velha que “cheirava a galinha molhada“.

A janela representa o contato com o mundo externo e com a poesia. Belmi-

ro Braga é a voz que orienta o jovem poeta em seu trabalho com a escrita: eis o poeta Belmiro Braga, (...) passando sempre debaixo das nossas jane-las me pergunta o que estou lendo agora, corrige meus primeiros versos engatinhando, sugere-me temas, com exemplar caligrafia capaz de transfi-gurar o pior texto escreve quadras que recitarei nos saraus literários 120

A biblioteca de Belmiro ocupa o lugar daquela coleção dada a Drummond

pelo pai. Nela o eu textual descobre “Bocage, Antônio Nobre, Cesário Verde, Camilo,

117 Ibid, p. 33. 118 Ibid, p. 34. 119 Ibid, p. 51. 120 Ibid, p. 53-54.

98

Fialho de Almeida, Eça de Queirós”. O ofício de poeta apresenta-se como a continui-

dade da tradição familiar, envolta em atividades culturais. Difere do caso drummon-

diano, em que ofício de poeta contrariava a trajetória de uma geração de fazendei-

ros. minhas irmãs camisolando cantarolam, vou me deitar, o papel de parede do meu quarto representa uma paisagem chinesa, homens de rabicho, mulhe-res com crianças penduradas nas costas, árvores prateadas, pontes, custo a dormir porque comi muita fruta verde ou passada. 121

A descrição da atividade noturna aborda novamente a música que faz par-

te do universo do menino. A paisagem do quarto atiça as associações que vão apa-

recer na escrita como um todo. O sujeito textual muda de assunto repentinamente,

“custo a dormir porque comi muita fruta verde“, apresentando o caráter transgressor

de sua escritura. Esta é comandada por aquele que deseja experimentar no momen-

to de retorno ao lar confortável e afetuoso. A infância existe como universo de des-

cobertas e experimentação que se reproduzem no gesto textual.

Dessa forma, a lembrança da mãe “Zezé”, o relógio, o incidente com dona

“Coló”, o contato com o poeta Belmiro Braga, o ambiente noturno da casa com as

irmãs e a caracterização do ambiente familiar por meio do “olho armado”, que obser-

va tudo e estabelece analogias, fazem referência aos espaços da casa, caracteri-

zando-a em segundo plano. O lar compunha o lugar de aprendizagem n’A idade do

serrote. Um lugar que une arte e vida. Ao descrevê-lo prevalecem as pessoas e os

acontecimentos, menos do que o espaço físico. Ao contrário do texto de Nava, em

que o traço arquitetônico é tão importante quanto os acontecimentos e a caracteriza-

ção dos personagens.

Nos três autores a casa é espaço de descobertas. Todavia, o trabalho de

exploração do lar infante se dá de acordo com as relações entre o eu e a família,

principalmente com a figura paterna. Percebemos que o relacionamento de Nava e

Murilo com a família e com o pai determinaram a descrição do espaço como agradá-

121 Ibid, p. 82.

99

vel. Já Drummond, pela tensão apresentada na representação do pai, descreve o lar

de forma nada idílica. A rigidez da tradição patriarcal estabelece a casa como campo

de proibições, depositário de pesadelos e pecados.

É importante lembrar que tais focos nos servem como guia para um estudo

das nuances que comportam a obra memorialística. Revelam assim como cada sub-

jetividade se relaciona consigo mesma, com o mundo a sua volta e com a escrita,

com a representação, ou ainda com o acontecimento desta, o processo de experi-

mentação promovido pelo ato de escrever.

100

3 . MEMÓRIAS DA ESCRAVIDÃO EM CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

Nenhuma cultura é jamais unitária em si mesma, nem simplesmente dualista na relação do Eu com o Outro

Homi Bhabha

Este capítulo pretende analisar a interferência da escrita de memória na

construção da história pela via oficial. Trabalharemos com poemas memorialísticos

de Carlos Drummond de Andrade, dos livros referidos antes, e buscaremos observar

como a escrita de memória, através da representação da individualidade, desestrutu-

ra o passado homogêneo e realiza um movimento de interferência na formação da

identidade nacional. Os retalhos da vida cotidiana são a energia contínua de uma

memória feita de experiência. Uma memória vivenciada que, ao impedir que se cons-

truam formas fixas e estáveis de um passado verdadeiro e inquestionável (como o

construído pelas instituições públicas, visando ao não reconhecimento da diferença,

quando relacionam de forma direta um fato e uma ideologia), nega a noção de que

as identidades sejam unitárias. Assim, as memórias individuais causam uma interfe-

rência no pedagógico e fazem com que se rearticule, num movimento de reestrutura-

ção, para conseguir “adicionar” tal acontecimento a sua estrutura. Movimento de su-

plementaridade, que segundo Derrida consiste na substituição de uma falta na ori-

gem, permite que surjam discursos instauradores de diferença, discursos que insta-

lam a dúvida quanto à veracidade das narrativas da nação moderna.

Nas memórias, a suplementaridade da escrita de um eu, sujeito histórico,

propõe uma reavaliação da sociedade, ao mesmo tempo em que provoca um distan-

ciamento desse eu de si para ver o outro que ele se tornou, num movimento duplo de

alteridade, interna e externa. Uma cultura de contestação social não comporta a vi-

são homogênea e horizontal do tempo histórico, pois, como afirma Bakthin, a lingua-

gem, a narrativa na nação moderna é um lugar de luta e toda forma de contato é

uma experiência de conflito.

101

Faremos então um breve histórico das relações escravocratas no Brasil

para contextualizar a análise empreendida que consiste no estudo das memórias

drummondianas e na representação das relações estabelecidas nestas com a figura

do negro. Colocado como personagem presente nas lembranças pueris drummondi-

anas, compõe o retrato de uma época. Inaugura um questionamento acerca de nos-

sa história social.

Atentaremos aqui, principalmente, para uma questão histórica que seria a

herança social deixada pela escravidão, ou seja, as relações entre ex-escravos e

homens brancos após a Abolição e que se perpetuam até os dias atuais. Considera-

remos de forma crucial o pensamento de Joaquim Nabuco, no livro O Abolicionismo,

assim como o de Gilberto Freyre, em Casa grande & senzala. Uma abordagem que

vem como desdobramento de um dos objetivos desse trabalho que é observar como

a escrita de memória desestrutura a noção de povo como algo homogêneo e realiza

um movimento de interferência na formação da identidade nacional, buscando ques-

tionar o homem, a história e a cultura.

O campo sócio-histórico brasileiro foi e é agudamente marcado pela dife-

rença na formação da nação, uma vez que diversos povos conviveram aqui e a forma

dessa convivência se caracterizou, em grande parte, por processos de luta e discri-

minação. O espaço nacional foi palco da prática escravocrata durante aproximada-

mente três séculos, e é visível a presença, nas representações literárias, de aspectos

que negociam de alguma forma, esse acontecimento histórico.

Já nas primeiras manifestações artísticas do Modernismo percebemos que

as produções tinham o caráter de transgressão e da tentativa de legitimação daquilo

que é brasileiro, de suas marcas. Isso acontecia principalmente como uma forma de

romper com a tradição romântica que valorizava a representação literária nos moldes

europeus.

A produção poética de Carlos Drummond de Andrade, desde seu início, se

destacou por construir uma identidade através da exploração das características da

paisagem mineira, assim como da vida familiar. Construção inserida no quadro do

movimento modernista que buscava a representação da cultura brasileira em sua di-

102

versidade. O itabirano em sua última fase, a memorialística, que mais nos interessa

aqui, deu continuidade ao processo de construção de uma identidade brasileira. Es-

creveu os três livros de memórias os quais possuem como material as rememorações

da infância, dos costumes e das relações que se estabeleciam no ambiente da “casa-

grande”, como já explicitado no capítulo anterior.

Os recursos estilísticos e formais que transformam o discurso autobiográfi-

co em poesia tornam o depoimento produtivo na medida em que são utilizados para

marcar certos acontecimentos importantes. A repetição de vocábulos, como é carac-

terística de Carlos Drummond de Andrade, dá ênfase a determinados fatos aconteci-

dos com os escravos e repetidos diariamente. É um trabalho poético que remodela e

inova o texto autobiográfico, memorialista, enriquecendo-o e garantindo sua contem-

poraneidade. Garante um movimento dinâmico. A rememoração não só das vivên-

cias, mas de acontecimentos ocorridos com seus antepassados complementam o

conteúdo dos poemas. Ao enriquecerem a narrativa poética, representam um ambi-

ente histórico que o autor não presenciou, mas que demonstra a continuidade dos

processos descritos — de perpetuação das relações do período escravocrata — as-

sim como a ampliação do espaço de textual. Da mesma forma, ao descrever episó-

dios vividos e contados por outros ainda, ocorre a desmistificação da narrativa de

memória como verdade fielmente construída, sem nenhuma ligação com o ficcional.

Na formação tradicional da história, o que tem predominado é a noção do

historicismo. Este liga um fato a uma idéia e pode funcionar quando tenta simbolizar

um povo como algo sociológico empírico. Entretanto, o historicismo não reconhece a

experiência afetiva (a diversidade das vivências) das variadas esferas sociais forma-

doras da nação, bem como sua localidade — preocupação constante das teorias mo

dernas que questionam o universalismo existente nas análises das práticas culturais

— em constante transformação. Já na produção cultural, percebemos que a força da

narrativa da nação reside na representação da ambivalência. A capacidade de transi-

tar entre espaços “opostos”, como o constituído por uma pedagogia nacionalista for-

mada por fatos passados e o constituído através de experiências do presente deter-

mina seu aspecto dinâmico e heterogêneo. Quando essas histórias surgem, toda

103

uma simbologia é renegociada e acontece um deslocamento de categorias como as

de classe e sexualidade, suprimidas pela história nacional.

Na medida em que a escrita drummondiana recaptura as cenas do passa-

do, re-apresentando o clã familiar ligado à terra, liga-se também à história nacional e

aos grupos sociais com os quais estabeleceu algum tipo de relação. Dentro deles

destacaremos aspectos da escravidão e a forma com que tal fato é negociado em

seus poemas para estabelecer o posicionamento do poeta. E, partindo da análise,

observamos que sua relação com o tempo e com os acontecimentos históricos não é

de aceitação ou apenas encenação. Compõe-se também de denúncia, contestação,

reflexão sobre as condições desta população avassalada 122, inferiorizada. O questi-

onamento do eu poético lança uma sombra sobre a visão simplista ou dualista da

narrativa historicista de um passado.

A identidade nacional tem sua origem na necessidade de formação dos es-

tados nacionais. É a tentativa de centralidade — todos como um — com o intuito de

estabelecer a representação metafórica, visando uma identificação simbólica — a

imagem que harmoniza a diferença existente. A identidade nacional também unifica o

povo garantindo-lhe uma origem comum e o espírito de unidade. Não se pode negar

a utilidade de tal tentativa no tocante à adoção de uma língua comum e de um pa-

drão alfabético, base para se instalar processos de industrialização e modernização.

Isso também pode fazer com que um povo se associe em torno de ideais preconcei-

tuosos.

Nosso interesse de estudo reside precisamente no fato de que a homoge-

neização do passado solapa e obscurece a vivência da localidade, da individualidade

e torna estas últimas somente possíveis através da análise de produções, relatos

não oficiais, como as memórias. A representação da identidade cultural nos discur-

sos de unificação é composta de memórias de um tempo remoto e perdido, tempo

122 Joaquim Nabuco usa a expressão “avassalada” para embasar sua argumentação sobre o problema da escravidão. Esta poderia gerar, após a abolição, uma classe social inferior, inepta para trabalhos que não fossem os da lavoura. Seria necessário então, medidas para amparar e profissionalizar os ex-escravos.

104

que une um povo, é vazio, sempre imutável e sem heterogeneidade, influenciando a

nação através de sua continuidade. Compõe uma narrativa de coesão que pressu-

põe um caminho linear até o presente, como se o passado não fosse marcado por

lutas, exclusões, contradições e incertezas históricas.

As obras O Abolicionismo e Casa-grande & Senzala dialogam no sentido

de serem obras fundadoras de uma certa visão da “sociologia brasileira”, a primeira

desbravando um campo novo do saber e a segunda o estabelecendo. O historiador

Evaldo Cabral de Mello 123, afirma que até o livro de Freire ser escrito, O Abolicio-

nismo foi a maior obra sobre a formação da nação.

Por fim, podemos dizer que a análise proposta, feita a partir de uma pers-

pectiva não historicista, funcionará como suplemento da história oficial, enriquecen-

do-a. A suplementaridade desconstrói a noção de totalidade da nação, já que estabe-

lece a presença da diferença, dá uma idéia de “falta” na estrutura do original. Consti-

tui principalmente um ato de acrescentar, mas que não significa necessariamente

somar, e sim alterar.

É o que acontece com o texto de Carlos Drummond quando fala dos ne-

gros, dos acontecimentos diários de sua vida, ou de histórias ouvidas por ele, ao re-

velar uma parte da história de si e do Brasil, questionando a visão de uma sociedade

homogênea com um passado comum. Ao fazê-lo, ao narrar suas memórias, revela-

se como um personagem importante do movimento histórico, pois observamos que

sua infância, seu ambiente representado na escritura apresenta a hierarquia nas

condições de vida de cada um: ex-escravo e senhor.

A convivência e a presença marcantes da escravidão nas poesias drum-

mondianas, principalmente em seus últimos livros de memórias, também podem ser

explicadas pelo fato de que, como afirma Gilberto Freyre (2000), os dois estados on-

de a escravidão esteve mais presente foram Minas Gerais e Bahia. Mas o olhar de

Joaquim Nabuco, indo além da perspectiva espacial, considera a escravidão como

123 Afirmação feita em agosto de 1999, num pronunciamento no Itamaraty e encontrada na parte intro-dutória de O Abolicionismo, p. 13.

105

formadora da nação numa perspectiva econômica, social e política. De acordo com o

autor, a escravidão não é um fenômeno a mais em nossa formação histórica, mas a

protagonista da história brasileira, já que a partir dela se definem o Estado e a estru-

tura de classes. Drummond, como habitante da província itabirana do início do sécu-

lo, converte biografia em poesia associada à história. As memórias revelam novos

ângulos para se enxergar o passado de todo um povo através dos conflitos de uma

época, de um ser.

A força do dizer poético subverte e desaliena a cena da escravidão, des-

cortinando o universo do íntimo e do particular. Esse universo interpõe-se ao do este-

reótipo e ao da banalização, que ignorando a realidade antagônica e agonística do

cotidiano escravocrata, não coloca seu questionamento na ordem do dia como é pre-

ciso que se faça. A força do dizer poético, aliada à revisão do processo de rememo-

ração — revisão de um eu da escrita inserido em determinado tempo histórico-social

— gera tais questionamentos, assim como um percurso biográfico do eu.

Cercado pelos negros, Drummond então faz “falar”, dá voz a ao espaço o-

culto de antagonismo social. Ele valoriza a experiência na medida em que há um in-

vestimento afetivo-agonístico em sua representação.

Na tentativa de recuperar a si mesmo, regressa a um tempo passado, às

vivências de menino e resgata as relações familiares. O poeta descreve o mundo ru-

ral ainda preso aos costumes e à ideologia do século XIII, em que o pai-patriarca do-

minava tudo e todos. O latifúndio era o representante de sua força que superava a da

Igreja e a do Estado. O espaço de dominação senhorial submetido economicamente

pela industrialização, aparece na poesia drummondiana como a representação de

uma época:

De mil datas mineiras

com engenhos de socar de lavras lavras e mais lavras e sesmarias de bestas e vacas e novilhas de terras de semeadura de café em cereja (quantos alqueires?) de prata em obras (quantas oitavas?)

106

de escravos, de escravas e de crias de ações da Companhia de Navegação do Alto Paraguai da aurifúlgida comenda no baú enterrado no poço da memória restou, talvez? este pigarro. 124

O poema apresenta a riqueza do latifúndio mineiro, com as terras, os es-

cravos e animais, seu título é Herança. Herança da qual nada restou devido ao pro-

cesso de decadência de uma ordem oligárquica. Mas está presente na memória co-

mo um espaço vivo de uma história interna intransferível. Externamente, ao ser re-

presentada no papel, a vivência do corpo e da carne nos fornece uma imagem da

sociedade agrária brasileira. Percebemos em tal processo poético uma temporalida-

de delineada pelo sujeito textual que vai desde os tempos mais remotos da infância,

quando vivia em Itabira, até o presente da escrita. O poeta remonta ao tempo dos

avós mineradores “de prata em obras“ e emenda um no outro através da memória,

da herança memorialística da qual restou, talvez, somente “este pigarro”. Por meio

do fazer poético a rememoração ganha em realidade subjetiva e torna-se um docu-

mento temporal, histórico por carregar uma “verdade subjetiva”.

A ama-de-leite, figura muito presente e importante na vida dos filhos dos

senhores, perpetua a condição de serva do regime escravocrata. É a figura maternal

presente nas memórias de todos os poetas aqui analisados, apresentando a sua im-

portância para a formação da nação brasileira. Em Drummond a personagem “Sá

Maria” aparece em toda a miscigenação simbólica afro-brasileira, uma vez que o

medo da condição de diferente se une à afetividade a que esta se ligada:

Subir direto à cozinha e embalar no colo da preta velha a consciência pesada. Travando o caminho em breu, a coisa imóvel na escada. É ela! pressinto. Veio esperar-me no degrau do meio, cúmplice e camarada. Acaricio-lhe o pescoço, que tilinta de medalhas bentas, e o som familiar soa [ diverso, abafado. Sá Maria! chamo baixinho, como no escuro se chama. Dá um jeito de não ser [ castigado.

124 ANDRADE. Boitempo & A falta que ama, p. 63.

107

Não secunda. Apalpo as carnes murchas, doces, de uma doçura cansada. (...) É o Diabo postado em pé no negrume da escada. (...) A talha fria me acode, já posso ir à cozinha, onde imperialmente sentada, Sá [ Maria cachimbando desde a eternidade me espera. — Que Diabo mais [pa-recido contigo acabei de encontrar na escada! Ela cospe no borralho — Cruiz, credo — e na fumaça do cachimbo a do Diabo [ vai sumindo. 125

No poema a negra se confunde com o Diabo na mente do menino, torna-

se um ser dúbio: ao mesmo tempo em que dá medo, também protege do poder pa-

terno de punição pelo atraso. Sentada, “cachimbando desde a eternidade”, espera

por ele como uma figura mitológica, insólita. Espanta a fumaça do Diabo com a sua,

tão poderosa quanto a do anjo mau. A preta velha, figura comum nas memórias dos

mineiros, assume o lugar da mãe que protege e é fonte de carinho e conforto. Sujeita

a intensos trabalhos domésticos, “Apalpo as carnes murchas, doces, de uma doçura

cansada”, ela amamenta e é a figura mais presente na infância do menino. Por ser o

objeto mais importante do olhar da criança que é amamentada e possuir conheci-

mentos que esta não possui, adquire uma existência mágica, mitológica. O jogo da

criança é reproduzido na linguagem. O medo e prazer em relação à Sá Maria a quem

se ligam significantes como “breu”, “negrume” e “escuro”, nos remetem tanto à cor de

pele da negra, como ao desconhecido, ao obscuro. A oralidade característica da fala

das pretas velhas, “Cruiz, credo”, garante sua presença marcada por uma linguagem

diferente, ao mesmo tempo em que anexa a religião do dominador representada pela

cruz. A mescla de tradições brasileiras é apresentada aqui pela negra que apesar de

carregar no pescoço medalhas bentas, possui seu próprio elemento cultural, prove-

niente de seus antepassados, os quais, segundo Gilberto Freyre: “Vinham eles dos

reinos de Wurno, Sokotô, Gandô, de organização política já adiantada; de literatura

religiosa já definida” 126. Isso acontecia como estratégia de sobrevivência e individua-

lidade dentro do cativeiro. Dessa forma, para o menino e para o escritor das memó-

125 Ibid, p. 80. 126 FREYRE. Casa-grande & Senzala, p. 367.

108

rias, aquele ser antagônico persiste com sua estranheza cultural, ou melhor, com o

sua personalidade característica. A miscigenação, por excelência, se define pelo ras-

tro de sua história: a escravidão e a conseqüente anexação do sangue escravo ao

brasileiro.

O deslizamento da identidade da preta velha, de maternal para diabólica,

apresenta o indecidível do sujeito oriundo de outra cultura, mas inserido na casa pa-

terna, na vida infante como uma segunda mãe. A Negra possui uma identificação e

ao mesmo tempo uma não identificação, um outro. Um processo que acaba por pro-

duzir a renegociação da identidade do eu poético pelo contato com a diferença.

Em Menino Antigo, o poema “Homem Livre” mostra-nos a realidade cruel

da vida de um escravo. Realidade que Gilberto Freyre, segundo Darcy Ribeiro, omitiu

em seu estudo antropológico feito em Casa-grande & senzala. Freyre não menciona

o escravo “queimado aos milhões como carvão humano, primeiro nas fornalhas do

engenho e nas plantações de cana, depois nas minas e nos cafezais” 127. Assim, a

memória de Drummond corrobora a constatação de Ribeiro sobre Freyre, estabele-

cendo uma via de mão dupla, já que memória e interpretação histórica se associam.

O poema a seguir narra a vida de um escravo que fugiu. Mostra-nos o tra-

tamento no cativeiro a partir do fato de ter sido mutilado para que trabalhasse me-

lhor:

Antanásio nasceu com seis dedos em cada mão. Cortaram-lhe os excedentes. Cortassem mais dois, seria o mesmo admirável oficial de sapateiro, exímio seleiro. Lombilho que ele faz, quem mais faria? Tem prática de animais, grande ferreiro. Sendo tanta coisa, nasce escravo, o que não é bom para Antanásio nem para ninguém. Então foge do Rio Doce. Vai parar, homem livre, no Seminário de Diamantina, onde é cozinheiro, ótimo sempre esse Antanásio. Meu parente Manuel Chassim não se conforma.

127 Ibid, p. 38.

109

Bota anúncio no Jequinhonha, explicadinho: Duzentos mil-réis a quem prender crioulo Antanásio. Mas quem vai prender homem de tantas qualidades? 128

A palavra “ninguém” cabe tanto para aqueles que não são tão úteis a seu

senhor como esse escravo, como para as pessoas livres. É este o ponto de vista de

Nabuco em O Abolicionismo. O autor afirma que trezentos anos de escravidão gera-

ram um empobrecimento para o país causado pela monocultura que esgota o solo e

pela concentração de terras que limita a produção. O tráfico de escravos prejudicava

os senhores na medida em que se endividavam com tais mercadores e tinham suas

terras lentamente tomadas. Havia também o prejuízo moral causado pelo aprisiona-

mento de indivíduos sujeitos a vis condições por seus senhores. Nabuco conclui seu

pensamento afirmando que se a Abolição não fosse acompanhada pela democrati-

zação do solo e da preparação do liberto para o trabalho fora da fazenda, os ex-

escravos formariam uma classe de proletários. Assim, podemos dizer que a partir de

uma afirmação do poeta, desencadeia-se numa superfície significante um mutável

caleidoscópio, sempre em condições de alterar o jogo de suas cores e formas, su-

plementando-as.

Percebemos que no poema os adjetivos utilizados para caracterizar o ne-

gro são vários e hiperbólicos: “admirável”, “exímio”, “grande”, “ótimo sempre”. Eles

funcionam como valorização do negro. O eu da escrita inclui o negro nas memórias

reproduzindo o acontecimento agora relatado sob sua rubrica. Na reprodução o su-

jeito negocia as dívidas passadas numa tentativa de rearticulção que acontece tanto

no aspecto individual como no coletivo. O trabalho de retorno nas memórias drum-

mondianas é sempre difícil, árduo. O que acontece não só devido ao processo es-

cravocrata da qual fez parte — a escravidão e a condição subalterna do negro perdu-

raram durante muito tempo e ainda perduram — mas pela dificuldade de relaciona-

mento com o pai e com as tradições mineiras. Ao mesmo tempo em que o ato me-

morialístico é perigoso, possibilita ao sujeito das memórias a redenção.

128 ANDRADE. Menino antigo: boitempo-II, p. 22.

110

Dessa forma, na poesia drummondiana a presença do negro, muitas ve-

zes, vai se relacionar com a escrita como redenção, como purificação do ser e de um

passado cujo resultado híbrido não pode ser desagregado da origem. Os processos

multiculturais estão presentes para o escritor e não cessam, estão em constante

transformação, é assim que a cultura funciona.

Outro poema, presente no primeiro livro de memórias de Drummond, intitu-

lado “O ator”, nos remete àquele mundo escravocrata, tendo sido vivenciado por um

parente, no caso aqui, seu avô:

Era um escravo fugido por si mesmo libertado Meu avô se foi à Mata vender burro brabo fiado (...) “Dormir tão cedo meu amo?

(...) Faz três dias ninguém cuida

na roça e no povoado senão de ver esta noite A Vingança do Passado” Nem mais se recorda o velho que estava mesmo pregado.

(...) De noite, à luz de candeeiro, o drama tem outra face É como se à letra antiga outro valor se juntasse. O rosto do ator imerge de repente na penumbra

(...) Metade luz e metade mistério, a peça caminha estranha. (...) “Que ouço? Que fuça é essa?”

Meu avô salta do banco. O fidalgo enxuga a testa que a luz devassa, mostrando a estelar cicatriz do seu escravo fugido bem por cima do nariz. Empurrando a uns e outros, meu avô acode à cena

e brandindo seu chicote (...)

Acaba com esta papeada

111

senão sou eu que te acabo (...)

Ficou a noite mais triste na tristidão do calado. Cada qual se retirando achava bem acertado. Cumpre-se a lei. Está escrito: a cada um o seu gado. Para um escravo fugido não há futuro, há passado, pelo que lá vai o conde tocando burro e vigiado. A tropa vai caminhando pelo Segundo Reinado. 129

A construção das memórias em poesia possibilita a negociação dos signos

articulada com a liberdade que o verso comporta. O poema em estilo dramático

comporta outro drama em si – a representação teatral a que o avô assiste – que a-

presenta uma carga simbólica significativa como narrativa histórica que extrapola o

Segundo Reinado. O ato de relembrar torna possível ao sujeito reproduzir aconteci-

mentos sob sua rubrica. O eu da escrita coloca sob controle o acontecimento e sua

caracterização. O acontecimento descrito mostra a tensão estabelecida na relação

tanto entre senhor e escravo quanto entre o sujeito textual e suas raízes. Há a identi-

ficação do avô, homem severo e violento, e da linhagem escravocrata da qual o me-

nino antigo é proveniente. Severidade que se perpetua, contamina as relações fami-

liares condenado o sujeito a uma “missão sem gosto e sem graça / de funcionário da

família” e torna difícil a convivência com a figura paterna.

Em Drummond, a reconstituição por meio da genealogia não se apresenta

com nobreza de caráter. Os cacos reunidos pelo intérprete da história/memória do clã

apresentam um passado em que “à letra antiga” / outro valor se juntasse”. O poeta no

presente da escrita, anos 70, reconhece a história e assim sobrepõe-na como um

‘’caso’’ ocorrido com o avô. Há um envolvimento afetivo no texto-memória com aquilo

que é encenado. Podemos afirmar que o eu da escrita também não se isenta das

129 ANDRADE. Boitempo & A falta que ama, p. 12-13-14.

112

mazelas de nosso passado, pois faz parte de tal linhagem de senhor de escravos e

manifestar-se no episódio quando descreve: “ Ficou a noite mais triste / na tristidão

do calado ’’, pois a tristeza da noite é afirmação do poeta. Há também um tom irônico

no jogo com as palavras nos versos “a estelar cicatriz / do seu escravo fugido / bem

por cima do nariz“. A última estrofe apresenta a amplitude que a cena ganha. A ima-

gem proporcionada pelos versos “A tropa vai caminhando / pelo Segundo Reinado ”

sugere uma imagem conhecida tanto dos livros de História quando de novelas de

época. A tropa do senhor de engenho, seguida de escravos descalços acompanhan-

do os animais. Sugere também o acontecimento da escravidão que se estabeleceu

intensamente no Segundo Reinado e atravessou-o. A escravidão no Brasil se mante-

ve nesse reinado num período em que quase não havia mais escravos no resto do

mundo.

Drummond, em Menino Antigo, dá continuidade, através do poema Man-

cha, às referências à história dos escravos no Brasil:

Na escada a mancha vermelha

que gerações seqüentes em vão tentam tirar. Mancha em casamento com a madeira, subiu da raiz ou foi o vento

que a imprimiu no tronco, selo do ar. E virou mancha de sangue de escravo torturado — por que antigo dono da terra? Como apurar? Lava que lava, raspa que raspa e raspa, nunca há de sumir este sangue embutido no degrau. 130

A história brasileira é poeticamente apresentada no poema Mancha. Nos

primeiros versos percebemos que a “mancha” a que o poeta se refere é proveniente

de um tempo longínquo. O que nos remete não só a escravidão, mas à todo proces-

so em que esta se deu, desde o rapto dos africanos de sua terra natal, cultura e fa-

130 ANDRADE. Menino antigo: boitempo-II, p. 35.

113

mília, até a chegada no Brasil dos navios negreiros. A mancha da madeira pode es-

tar na terra, encharcada de sangue negro e subir pela raiz e se cravar na madeira

presente em quase todos os ambientes. Mas pode também ter sido impressa pelo

vento: “selo do ar”. Pois é percebida em todos os espaços, todos os cantos, dentro e

fora. O “antigo dono da terra” não mais pode ser responsabilizado, mas deixou a he-

rança, a assinatura, a marca por sua participação. A repetição dos vocábulos na úl-

tima estrofe nos remete a necessidade do próprio poeta em esquecer o passado da

qual todos fazemos parte, por mais bárbaro que esse possa ser. No presente da es-

crita, paradoxalmente, precisa lembrar o que ocorreu, precisa trabalhar tal aconteci-

mento na escrita, ao mesmo tempo em que questiona e denuncia. Está ciente da

limitação que o tempo impõe.

As experiências de testemunho, como as encontradas na obra drummondi-

ana, apresentam as injustiças. São narradas em forma de recordações da infância.

Ao mesmo tempo em que o autor tenta renegociar sua culpa, assim como se redimir

com o passado, denuncia aspectos da escravidão — ou de sua perpetuação mesmo

após a Abolição — através, ora da narrativa de fatos acontecidos com seus antepas-

sados, ora experienciados pelo eu, o que nos faz observar a face privada da escravi-

dão. O sujeito textual afirma que por mais que se tente esquecer o passado, ele esta-

rá sempre presente, uma vez que as relações de exclusão se perpetuam e, como

previu Joaquim Nabuco, geraram uma classe de proletários. O questionamento do eu

poético, “Como apurar?”, nos dá a impressão de impossibilidade, pois não há mais

como identificar ou punir os culpados. Somente o que resta a fazer é denunciar tal

fato para que no futuro, ou no presente da escrita, algo seja feito para esta população

gerada por três séculos de escravidão.

O futuro, a trajetória do escritor filho de fazendeiro e a dos escravos alforri-

ados caminham em direções diferentes. A constatação ilumina as contradições da

sociedade patriarcal, revela uma realidade social. Enquanto o menino tornou-se fun-

cionário público, os ex-escravos continuaram numa posição de subalternidade, que

se seguiu em sua história até os dias atuais.

114

Prosseguindo na análise da produção poética inserida na conjuntura social

e ainda relacionada à problemática da linguagem, a qual hoje percebemos que vai

além do significante, podemos dizer que o poema Negra, já transcrito, apresenta o

cotidiano na mulher negra na sociedade patriarcal.

A negra, destituída de qualquer vontade própria, além de trabalhar incan-

savelmente, realiza todas as tarefas, brutas ou não, e ainda serve sexualmente a to-

dos, pois nem a relação sexual é em seu proveito, uma vez que somente a morte é.

O imaginário ocidental apresenta um estereótipo do negro cujas características são

principalmente a luxúria e a depravação sexual, mas no poema a vida da negra pare-

ce bem mais difícil. A escrita memorialística provoca uma interferência em noções

criadas por um discurso de dominação, como é o caso do estereótipo. Ele é utilizado

ao converter a diferença em anomalia. Na repetição “tudo tudo tudo”, assim como na

falta de pontuação, podemos perceber o ritmo de trabalho ininterrupto da cativa e a

precariedade de sua existência já que não possui o domínio nem sobre a utilização

do próprio sexo.

Em Casa-grande & senzala, Gilberto Freyre afirma que a depravação se-

xual encontrada nos engenhos, na verdade, não foi causada pela raça negra. A pro-

miscuidade era causada sim pelo escravo africano trazido para o Brasil e sujeito à

vida na senzala, destituído de sua cultura e família. Nega também que tenha sido a

negra quem corrompeu a vida sexual da sociedade brasileira, mas sim a escrava.

Afirmação limitada na medida em que exonera o senhor de engenho da participação

ativa no sistema escravocrata. Muitas escravas eram iniciadas sexualmente ainda na

infância, sem direito a escolha. Além disso, havia o desejo de se aumentar o número

de escravos. Mas Freyre afirma à frente que tudo acontecia também devido ao sis-

tema social e econômico da escravidão, ao qual a depravação seria inerente.

Nossa intenção não é estabelecer nenhuma verdade acerca da “realidade”

da escravidão, mas sim, enxergar, a partir da leitura e análise das memórias drum-

mondianas, as possibilidades de tal estratégia para que percebamos a escravidão

como um sistema constituído por uma multiplicidade de forças, inclusive as do se-

nhor e do escravo. Informação que nos interessa é de Robert W. Slenes que afirma

115

que não se pode reduzir a senzala a uma “orgia desenfreada”. Dados estatísticos

comprovam a união e a formação de famílias dentro do cativeiro, principalmente no

Sudeste do país. Slenes completa ainda que tal acontecimento “interessava aos es-

cravos como parte de uma estratégia de sobrevivência dentro do cativeiro” 131.

O eu poético, ao mesmo tempo em que participa da organização estabele-

cida, da utilização sexual da negra para iniciá-lo, descreve uma certa desaprovação

naquilo que é feito. A culpa em fazer uso da posição de filho do senhor da fazenda,

que mesmo diante da indiferença da negra insiste na tentativa, como se a opinião

dela não fizesse diferença, é percebida nos versos finais. A reprovação em relação

ao ato cometido é dura, pesada, severa; “eis que a montanha/ de longe nos reprova,

toda de ferro”. O comportamento característico da época é narrado como parte da

vida do filho do senhor da fazenda, construindo um mundo específico que persiste

em sua memória, que agora confessado transforma a perda, o mal, em ganho. Ga-

nho para o autor que ao confessar-se a si primeiramente está obtendo o perdão, ine-

rente ao ato, e ganho para o leitor que pode “ler” na poesia, o testemunho de uma

época, de um artista que ao reunir sua vida, reúne também a barbárie de uma histó-

ria.

Mas o relato do itabirano, como qualquer relato que se baseie em experi-

ências vividas, assim como em testemunhos que perpassam o ser e a história, não

se apresenta de forma linear e homogênea. O sujeito das memórias oscila entre a-

queles “outros” que habitam seu ser. A escrita traz em si a constituição da complexi-

dade do ser. Existe o olhar do branco com suas “impurezas”, um comportamento vil

de exploração física do negro e que carrega o estereótipo, característico ao domina-

dor, assim como o questionamento da estrutura, interna ao sujeito.

O Cutucum é colocado pelo eu poético como o espaço em que as negras

viviam, e como um lugar de erotismo selvagem, pois a cama é o solo e o ato é reali-

zado como um prazer do corpo em meio aos animais.

131 SLENES. Na senzala, uma flor: esperanças e recordações na formação da família escrava, Brasil Sudeste, século XIX, p. 44.

116

Mas o Cutucum, lugar o qual Padre Júlio 132 descrevia como sujeito à “toda

sorte de orgias”, “é corpo preto-e-branco”, ou seja, há a participação do branco na

constituição mesma do Cutucum, espaço marginal, fora do ambiente familiar. O que

nos faz pensar que, em última instância, não houve uma ação unilateral por parte da

“negra”, mas a invasão de seu espaço natural pelo branco, que sempre buscava aí a

realização dos desejos que não era permitida no ambiente social patriarcal. É um

lugar de liberdade para o menino antigo, onde o poder do pai não está presente. As-

sim, na caracterização do Cutucum, percebemos que há um olhar de desejo, de vo-

lúpia em relação àquele ambiente estranho ao menino, pertencente a outra cultura.

Os símbolos eróticos se desdobram para atingir o ápice. Tal universo simbólico é

apresentado na forma do prazer-escrita, é o sujeito textual quem repete, que traz à

memória a sexualidade, sua representação. A imagem trazida pela descrição do am-

biente em que se cumpre “o estatuto do corpo” se personaliza no final do poema,

pois ele é todo “corpo preto-e-branco”. Personagem que pode se transfigurar no pró-

prio poeta. Quando a descrição é feita de forma distanciada e os personagens não

apresentam qualquer distinção, a culpa ou o julgamento não possuem a quem se

dirigir. Nos livros de memória drummondianos são poucos os momentos em que a

sexualidade não é acompanhada da culpa, marca de sua personalidade desenvolvi-

da em meio a tradições severas. O que nos faz pensar que a forma que o eu poético

desenvolveu para camuflar e esconder de si o desejo pelo Cutucum, foi a personifi-

cação. O jogo sexual proporcionado pela escrita traz o gozo: “O reinado periodica-

mente autorizado do princípio de prazer traz consolo ao ser vivo empenhado numa

luta difícil e dá-lhe forças para prosseguir” 133.

O pai-patriarca, dono de tudo e todos, maior do que qualquer poder, sub-

metia todos que estavam sob seu poder sem obedecer às leis da família, ou da soci-

edade, copulando com as negras e gerando “mestiços”. Assim, as escravas que mo-

ravam dentro da casa-grande, às vezes com doze ou treze anos, eram escolhidas

para serem utilizadas sexualmente pelo senhor, o que poderia acontecer em um

132 Idem. Obra Completa. p. 574. 133 FERENCZI. Thalassa: ensaio sobre a teoria da genialidade, p. 53.

117

“quartinho” qualquer da casa. O que amplia o olhar de análise e relaciona-o com o

poder paterno e a anulação do feminino. Anulação que inclui a esposa do senhor de

engenho:

A porta cerrada não abras. Pode ser que encontres o que não buscavas nem esperavas. Na escuridão pode ser que esbarres no casal em pé tentando se amar

apressadamente. Pode ser que a vela que trazes na mão te revele, trêmula, tua escrava nova, teu dono-marido. Descuidosa, a porta apenas cerrada pode te contar conto que não queres saber. 134

A presença do adultério no patriarcado envolve a escrava e a esposa. O

pai-patriarca representava o poder máximo. Os versos: “te revele, trêmula / tua es-

crava nova, / teu dono-marido” indicam que a voz do eu lírico se dirige à mulher do

senhor. “A porta cerrada”, “Descuidosa”, não está fechada, não há a preocupação de

se esconder o ato. O imperativo “não abras” conota a lei, a interdição, o aviso para

aquilo que não se deseja saber. Aviso dado por uma voz interna, íntima, uso do pro-

nome tu, pois a descoberta não mudaria a ordem familiar. Comportamento que per-

petua a lei e o poder ilimitado do dono-marido. O escuro, o breu, novamente aqui é

associado tanto ao negro como ao segredo e ao medo. Na verdade, a possível reve-

lação feita por meio da luz da vela já está comprovada, está presente no interior do

134 Idem. Esquecer para lembrar: boitempo-III, p. 8.

118

eu poético. Os versos curtos garantem um ritmo lento ao poema, um sussurro que se

estende até o presente da escrita.

A presença de uma lembrança desagradável proporcionada pelo adultério

é a presença da infância, do pai, da casa e do regime escravocrata. O acontecimento

íntimo, particular, se relaciona com o período histórico em que está inserido e envol-

ve uma série de afetos. Aspectos internos e externos se articulam. Os espaços da

casa abrigam lembranças e fantasmas, mas são ao mesmo tempo a referência do

sujeito textual, sua raiz. Um campo vasto de significações a que outros significados

se agregam. A escuridão e o medo são alguns, assim como as proibições.

As memórias renegociam literariamente os acontecimentos de um período

histórico brasileiro. Podemos afirmar que a atitude do escritor em contar tais episó-

dios se faz como uma atitude de resposta do sujeito a um aspecto social que merece

sua atenção, uma vez que há um interesse em mencioná-los. Ocorre porque existe a

necessidade do ser em questionar e ao mesmo tempo assumir uma postura diante

dos acontecimentos. No caso do itabirano consiste em contar a sua história sem reti-

rar a própria responsabilidade e a da sua família nas injustiças do passado, revelan-

do aquilo que a narrativa oficial não menciona ao criar uma visão homogênea da na-

ção. Essa é a marca deixada pelo poeta, marca política e lingüística, literária, filtrada

por uma subjetividade criativa e inquieta, desmistificando conceitos estabelecidos e

revelando as desigualdades de uma sociedade a partir do questionamento da ori-

gem. Origem de si e do povo, questionamentos que confluem numa história una e

diversa, que como uma reta, possui suas paralelas que caminham numa mesma di-

reção, mas compõem histórias diferentes.

O recorte na poesia de memória de Carlos Drummond de Andrade que fi-

zemos aqui consistiu um olhar sobre os poemas em que havia a representação da

figura do negro. O que pôde nos revelar mais uma faceta da obra do poeta que mar-

ca a poesia nacional por seu lirismo e suas construções poéticas únicas. O itabirano

possui um olhar capaz de reconhecer aspectos culturais, políticos e históricos do pa-

ís, convertendo-os em arte. Esta vai além de conceitos estabelecidos e apresenta

nuances do gênero de memória, enriquecendo seu estudo. Além de tudo, ressalta-

119

mos também uma preocupação, nossa e do poeta, em questionar a forma como é

visto o negro na sociedade, como os descendentes de escravo carregam os olhares

e preconceitos gerados pela escravidão, tornando-se necessário que a visão este-

reotipada sobre o negro seja desmembrada e que sejam articulados conhecimentos

históricos e culturais, na busca de um futuro melhor:

A presença negra atravessa a narrativa representativa do con ceito de pessoa ocidental: seu passado amarrado a traiçoeiros estereótipos de primitivismo e degeneração não produzirá uma história de progresso civil, um espaço para o ‘Socius’; seu pre-sente, desmembrado e deslocado, não conterá a imagem de identidade que é questionada na dialética mente/corpo e resol-vida na epistemologia da aparência e realidade.135

A partir da leitura implícita do social no literário, pudemos observar o acon-

tecimento do texto. Este é composto por um tecido de significações múltiplas que se

relacionam com o contexto no qual se insere. Texto e contexto se apresentam como

uma via de mão dupla e se contaminam. A produtividade do olhar daquele que expe-

riencia apresenta o local, o individual das histórias da formação de um povo.

Através do conhecimento de que a história é heterogênea, e principalmen-

te, comporta identidades heterogêneas, políticas serão necessárias para que a soci-

edade caminhe para um futuro mais justo. As diferenças não podem ser sinônimas de

exclusão, mas sim a indicação da necessidade de solidariedade.

135 BHABHA. O Local da Cultura, p. 73.

120

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A pesquisa aqui empreendida buscou em seu esqueleto levantar questões

acerca do gênero de memória, principalmente aquelas relativas a sua constituição

heterogênea, dinâmica e subjetiva. Os temas que focamos no primeiro capítulo nos

proporcionaram a visão da complexidade do acontecimento da escrita memorialística

ocidental. Demonstrou alguns dos mecanismos que compõem o texto memorialístico

para que pudéssemos realizar as análises através de um outro olhar. Olhar que pas-

sava a considerar também os espaços em branco, o espaçamento derridiano, que se

localiza entre as palavras. Pudemos observar também o além do texto, aquilo que se

inicia depois do ponto final. Quando isso aconteceu, uma outra escrita, sobre aquela

analisada, passou a se formar. Consideramos, a partir de então, as relações que se

estabeleciam dentro do tecido textual. Assim construiu-se a pesquisa, sem um ponto

definido de chegada. Passou por pontuações como aspectos relativos à religião, à

sexualidade, ao negro, ao contato com a escrita, a casa paterna e seus objetos de

evocação. O que foi feito para que as considerações a respeito das obras tornassem-

se mais produtivas. Dessa forma, traçou-se um caminho fecundo na medida em que

diante de estilos diferentes de escritura observou-se como o discurso poético e os

movimentos internos de um eu questiona família, história e tradições. Pôde mostrar

como as memórias — em variados estilos narrativos em que o eu é o sujeito e o ob-

jeto da escrita — ganham vida própria a partir da subjetividade de cada autor, de sua

proposta, assim como do contexto histórico-social em que está inserido.

Como afirmamos inicialmente, não buscávamos um ponto de chegada

marcado que estabelecesse alguma verdade acerca da pesquisa, mas um olhar so-

bre as produções propostas tendo em vista algumas considerações fecundas de au-

tores como Derrida, Foucault, Proust, Huyssen, entre outros.

121

Sendo assim podemos dizer que as conclusões a que chegamos, as quais

desdobram-se daquelas observadas no primeiro parágrafo dessa conclusão foram

três. Em primeiro lugar, podemos dizer que em nossas leituras, percebemos como as

memórias estão intimamente ligadas àquilo que chamamos confissão no Ocidente. É

interessante perceber como em Boitempo, Menino Antigo e Esquecer para lembrar

há uma forte marca confessional. Na verdade, os três autores com estilos próprios

apresentam o discurso de uma vida e nele, descrevem acontecimentos da infância

em forma de confissão. É aí que percebemos uma aproximação daquele tom confes-

sional constatado por Derrida na leitura e análise das confissões de Santo Agostinho

e Rousseau. Existe no texto dos três memorialistas uma certa motivação para contar

os aspectos mais íntimos do ser e que não poderiam se fazer sem a forma escritural

da confissão.

A segunda conclusão é a de que a construção de um texto memorialístico

perpassa todos as instâncias da identidade de um ser. Como a formação da identi-

dade é heterogênea, a escritura da vida se fará por um caminho em que os desvios,

saltos e preenchimentos, característicos à constituição do ser em sua condição de

estar no mundo, comporão o texto. Enquanto espaço de construção subjetiva mo-

derna, apresentará aspectos interligados aos movimentos que circundam tal subjeti-

vidade, como a relação consigo e com o mundo. A análise comparativa mostrou que

na escrita drummondiana o eu poético possui uma relação conflituosa com o pai e

com a religião, ao contrário do menino experimental. Já na narrativa do médico, a

religião não aparece como tema importante, e a relação com o pai se assemelha à

do protetor e amigo.

Em terceiro lugar, podemos afirmar que o cruzamento de teorias e gêneros

textuais constrói um espaço privilegiado de análise. O texto poético de Drummond,

observado sob o olhar de importantes obras antropológicas como Casa-grande &

senzala e O Abolicionismo, ganhou em significação. A escrita quase literária de Fre-

yre se semelha à de Drummond no sentido de sua modernidade. Pudemos assim

provocar o tecido textual, lançar sobre ele uma luz que revelasse outras dobraduras

da escritura, para utilizar um termo derridiano, ou ainda fazer com que se anunciasse

122

o além do texto. Tudo realizado com o objetivo de apresentar a capacidade ilimitada

que a escritura contém em si e a possibilidade de através realizarmos a leitura de um

ser e de um tempo, questionando o homem, a cultura e a história.

Por fim é importante a constatação de que a pesquisa empreendida não

comporta, felizmente, uma totalidade, um fechamento, já que o jogo que a compõe

possibilita interpretações infinitas. Outras interpretações e análises sempre estarão

em andamento para complementar as considerações observadas aqui. Outro motivo

seria o fato de que optamos por escolher vários temas, como a sexualidade, a religi-

ão, o negro, o contato com a escrita, com a casa paterna e seus objetos, sem o obje-

tivo de aprofundamento. Da mesma forma, os temas, que se encontram no primeiro

capítulo, constituíram mais um ângulo que orientava a interpretação e a enriquecia.

123

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