Afonso Celso

Embed Size (px)

Citation preview

  • 8/19/2019 Afonso Celso

    1/9

     AFONSE CELSO

    Afonso Celso (Afonso Celso de Assis Figueiredo Júnior), natural de Ouro Preto, MG,

    nasceu em 31 de março de 1860 e veio a falecer no Rio de Janeiro, RJ, a 11 de julho de1938. Filho do Visconde de Ouro Preto, último presidente do Conselho de Ministros doImpério, e de D. Francisca de Paula Martins de Toledo, é um dos membros fundadores daAcademia Brasileira de Letras.

    Cadeira:

    36

    Posição:

    Fundador

    Sucedido por:

    Clementino FragaData de nascimento:

    31 de março de 1860

    Naturalidade:

    Ouro Preto - MGBrasil

    Data de falecimento:

    11 de julho de 1938

    Local de falecimento:

    Rio de Janeiro, RJ

    BIOGRAFIA 

    Afonso Celso (Afonso Celso de Assis Figueiredo Júnior), natural de Ouro Preto, MG,nasceu em 31 de março de 1860 e veio a falecer no Rio de Janeiro, RJ, a 11 de julho de

    1938. Filho do Visconde de Ouro Preto, último presidente do Conselho de Ministros doImpério, e de D. Francisca de Paula Martins de Toledo, é um dos membros fundadores da

    Academia Brasileira de Letras.

    Aos 15 anos publicou osPrelúdios, reunindo uma pequena coleção de poesias de

    conteúdo romântico. Cursou a Faculdade de Direito de São Paulo na qual colou grau em1880. Defendeu na ocasião, a tese “Direito da Revolução”. Casou-se em 1884 com D.

    Eugênia da Costa. Foi elevado à condição de Conde papal em 1905.

    Ingressando nas lides políticas, foi eleito quatro vezes deputado geral por Minas Gerais.

    Na Assembléia Geral exerceu as funções de 1º. Secretário. Com a proclamação daRepública, em 1889, abandonou a política e acompanhou o pai no exílio, que se seguiu à

    partida da família imperial para Portugal em novembro do referido ano. Coube-lhe a

    delicada tarefa de defender o pai no início da implantação do regime republicano.

    http://www.academia.org.br/academicos/clementino-fragahttp://www.academia.org.br/academicos/clementino-fraga

  • 8/19/2019 Afonso Celso

    2/9

    Dedicou-se ao magistério e ao jornalismo, tendo colaborado durante mais de 30 anosno Jornal do Brasil. Outros órgãos da imprensa - tais como A Tribuna Liberal, ASemana,Renascença,Correio da Manhã e o Almanaque Garnier, divulgaram muitos de

    seus artigos.

    Ingressou no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro em 1892, na qualidade de sócioefetivo, tendo posteriormente sido elevado a honorário em 1913 e a grande benemérito em1917. Com a morte do Barão do Rio Branco, em 1912, foi eleito presidente perpétuo dessa

    instituição, de 1912 a 1938. Coube-lhe a incumbência de presidir à instalação da entidadeem uma das alas do Silogeu Brasileiro, localizada na esquina das Ruas Augusto Severo e

    Teixeira de Freitas.

    De sua vasta obra merecem especial destaque os seguintes livros:Oito anos deParlamento, Por que me ufano de meu país - título que gerou críticas e elogios e apopularidade da expressão “ufanismo”, de uso até os nossos dias -Segredo conjugal,OImperador no exílio,O assassinato do coronel Gentil de Castro,Rimas de outrora,Minhafilha,Vultos e fatos,Um invejado,Lupe,Giovanina.

    Afonso Celso participou das atividades da Academia Brasileira de Letras, como um dosmembros fundadores, tendo como patrono - na cadeira nº. 36 - o poeta Teófilo Dias de

    Mesquita, sobrinho de Gonçalves Dias, falecido em 1889.

    No magistério também manteve atuação destacada, tendo exercido a Cátedra de

    Economia Política na Faculdade de Ciências Jurídicas e Sociais do Rio de Janeiro, da qual

    foi diretor por alguns anos e reitor da Universidade do Rio de Janeiro.

    A última visita de Afonso Celso à Academia Brasileira de Letras ocorreu na sessão de 7 de julho de 1939, quatro dias antes de seu falecimento.

    Recebeu os acadêmicos Otávio Mangabeira e Lauro Müller.

    BIBLIOGRAFIA 

    Prelúdios, 1876.

    Devaneios, 1877.Telas sonantes, 1879.

    Um ponto de interrogação, 1879.

    Poemetos, 1880.

    Rimas de outrora, 1891.

    Vultos e fatos, 1892.

    O Imperador no exílio, 1893.

    Minha filha, 1893.

    Lupe, 1894.

    Notas e ficções, 1894Giovanina, 1896.

  • 8/19/2019 Afonso Celso

    3/9

    Guerrilhas, 1896.

    Contraditas monárquicas, 1896.

    Poesias escolhidas, 1898.

    Oito anos de Parlamento, 1898.

    Trovas de Espanha, 1899. Aventuras de Manuel João, 1899.

    Por que me ufano de meu país, 1900.

    Um invejado, 1900.

    Da Imitação de Cristo, 1903.

    Biografia do Visconde de Ouro Preto, 1905.

    Lampejos Sacros, 1915

    Segredo conjugal, 1932.

    TEXTOS ESCOLHIDOS

     A ÚLTIMA SESSÃO DA CÂMARA NA MONARQUIA 

    Efetuou-se a 15 de novembro de 1889, depois de triunfante a sedição militar que destruiuas instituições imperiais. Nenhum jornal fez menção dela; não foi lavrada ou desapareceu

    a respectiva ata; nada consta dos Anais. Entretanto, não deixa de ser interessante o queocorreu.

    Achava-se a Câmara em trabalhos preparatórios. Eleita a 31 de agosto, para substituir aque o ministério Ouro Preto havia dissolvido, reuniu-se pela primeira vez a 2 de novembro,

    dia de finados, o que a muitos pareceu mau agouro. Devia instalar-se solenemente a 20 denovembro. As eleições tinham-se realizado sem conflitos nem violências, de sorte quemuito plácidas correram as sessões preparatórias.

    Haviam sido eleitos vários oposicionistas conservadores e republicanos. Conservadores –

    Olímpio Valadão, Alfredo Chaves, Domingos Jaguaribe, Gomes de Castro, FranciscoBernardino, Pedro Luiz Soares de Souza, Araújo Pinho. Republicanos – Carlos Justinianodas Chagas e Gabriel de Almeida Magalhães. Silva Jardim não concorrera por poucos

    votos a segundo escrutínio, e fora disputar o diploma perante a comissão verificadora depoderes. Desses oposicionistas alguns já se achavam reconhecidos. Um deles, AlfredoChaves, encetara a 12 de novembro veemente protesto sobre matéria eleitoral. Não era,pois, uma Câmara unânime como, por ignorância ou má-fé, vivem a assoalhar osadversários do gabinete Ouro Preto.

    Na manhã de 15 de novembro, depois de haver tentado em vão penetrar no Quartel-General e de ter estado na Repartição da Polícia, a me informar dos acontecimentos, partiàs 11 horas e meia para onde o dever de deputado me chamava – o edifício da Câmara.Foi meu companheiro de bonde o meu colega conselheiro Alfredo Chaves, ex-ministro da

    Guerra, que se mostrou reservado na apreciação dos fatos. Afigurou-se-me que, comoconservador, ele mais considerava a queda da situação liberal do que a da Monarquia.

  • 8/19/2019 Afonso Celso

    4/9

    Havia pouca gente nas ruas que percorremos. Lia-se nas fisionomias surpresa e susto. Nobonde, comentavam-se os sucessos, aliás ainda mal conhecidos nos seus pormenores,em voz baixa e com atitudes cautelosas.

    Encontramos, Alfredo Chaves e eu, no recinto da assembleia, uns vinte representantes da

    nação. Lembram-me apenas os nomes de Barbosa de Almeida, Custódio Martins, Zama,Aristides Spínola, Padre Castelo Branco e Francisco Sá. Este último, mineiro, masrepresentante do Ceará, por onde tem sido eleito igualmente sob a República, esteve

    constantemente a meu lado.

    Notavam-se alguns espectadores nas galerias e junto às bancadas. Era normal o aspectodas cousas.

    À hora regimental, assumiu a presidência o conselheiro Barbosa de Almeida, vice-presidente da mesa provisória e decano dos deputados eleitos. O presidente CarlosAfonso, presidente também da província do Rio de Janeiro, achava-se retido por seu deverem Niterói.

    Aberta a sessão, lida e aprovada a ata da anterior, lido e encaminhado o expediente,pareceres, reconhecendo alguns deputados, reconhecimento que constituía a ordem dodia, pediu a palavra o deputado César Zama.

    Em caloroso discurso, perguntou Zama à Mesa se sabia estarem presos ministros,senadores e deputados, e se era certa a deposição do ministério pela força militar

    amotinada. Mostrou as tristes consequências que adviriam do atentado, e opinou que àCâmara cumpria tomar enérgica resolução a respeito.

    Desenvolveu ponderosas considerações, no meio de respeitosa atenção, cortada devibrantes apoiados.

    Respondeu por parte da Mesa, declarando nada constar a esta, o primeiro secretárioAristides Spínola. Levantou-se a sessão.

    Nisto, ouviu-se na rua grande rumor. Cresceu e aproximou-se; os circunstantes

    abandonaram os seus lugares correndo para as janelas.

    Era um batalhão que desfilava em direção ao Arsenal de Guerra, precedido eacompanhado de imensa mó de gente mal trajada. Provinha de tal gente a vozeria

    indistinta. O batalhão trazia desfraldada a bandeira imperial.

    Ao enfrentar a multidão com a Câmara, vendo nas sacadas vários deputados, supôs

    naturalmente que se iam proferir discursos. Estacou; fez-se silêncio. Então, César Zamadebruçou-se na janela, e, com largo gesto, gritou:

    - Viva Sua Majestade o Imperador!

  • 8/19/2019 Afonso Celso

    5/9

    Parte da multidão, a maior, correspondeu ao viva. A outra parte permaneceu calada. Derepente, ergueu-se dentre ela um brado:

    - Ataca a Câmara!

     A esse brado, produziu-se um movimento de pânico entre os deputados e mais pessoasaglomeradas às janelas. Fugiram quase todos em várias direções.

    Ficamos cinco ou seis.

    Na rua, a multidão hesitava. Mas soaram vozes de comando no batalhão.

    A música tocou. Os soldados puseram-se em marcha; o povo seguiu.

    No grupo de deputados restantes, ainda se debateu rapidamente a possibilidade de umprotesto da Câmara.

    - Mas nós estamos apenas em sessões preparatórias, – objetou um deles, – nadapoderemos praticar regularmente.

    - Somos os eleitos da nação, - retrucou Francisco Sá, - a maioria já foi reconhecida;

    achamo-nos na plena posse das nossas prerrogativas constitucionais: podemos edevemos agir.

    Estas palavras não encontraram eco. A sala se esvaziara. Compreendi que meu lugar nãoera mais ali. Acompanhado de alguns amigos, dirigi-me para o Quartel-General. Ao passar

    em face do Café do Globo, avistei, na mesa contígua à porta, um sujeito de São Pauloque, dias antes, se me apresentara munido de numerosas cartas de recomendação emprol de uma pretensão que nutria perante o ministério Ouro Preto. Como fosse um tantosuspeito a este, excedera-se em manifestações de dedicado aplauso à situação e,sobretudo, ao presidente do conselho.

    - “Seu ilustre pai, - exclamara ao despedir-se, apertando-me com força ambas as mãos, -pode contar em tudo comigo, especialmente na sua gloriosa campanha contra os inimigos

    da Pátria!”

    Os inimigos da Pátria eram os republicanos.

    Na mesa do Café do Globo, o sujeito e dois companheiros empunhavam copos de cerveja,

    muito excitados. Ao dar comigo, desviou ele os olhos sem me cumprimentar. Soltou depoisum estrepitoso - Viva a República! - que os companheiros secundaram timidamente. Foi o

    primeiro adesista que vi e a primeira saudação ao novo regime que escutei.

    Mas o que desejo assinalar é que o derradeiro discurso proferido na tribuna da Câmara

    monarquista, consistiu num veemente protesto contra o levante militar vitorioso.

  • 8/19/2019 Afonso Celso

    6/9

    Diante da tropa insubordinada, prestou um deputado intrépida homenagem ao magnânimosr. d. Pedro II.

    Quão diversamente passaram-se as coisas no Senado!

    A 16 de novembro, indagando o sr. Conselheiro Correia se constava estarem presossenadores, declarou o presidente, Paulino de Sousa, que nenhuma comunicação tinha aMesa para responder à pergunta, pois as únicas notícias que conhecia eram as publicadasnas folhas do dia, as quais cabia a ele, presidente, repetir da cadeira presidencial. OVisconde de Lima Duarte ponderou então que os jornais relatavam acontecimentosgravíssimos, e inquiriu se não seria conveniente que o Senado tomasse qualquerdemonstração sobre os fatos que estavam ocorrendo.

    O sr. Paulino de Sousa replicou com estas palavras:

     “O Senado está em sessões preparatórias que se abrem com qualquer número, ainda queinsuficiente para deliberar. Mantendo hoje, como sempre, a estrita legalidade constitucionale observando o regimento, como me cumpre, não posso consentir debate que não sejarestrito à constituição desta Câmara”. Nada mais havendo a tratar-se, s. ex. convida os srs.senadores para se reunirem no dia seguinte, às horas do costume.

    É o que consta da ata. Achavam-se presentes 22 senadores: Paulino, Barão deMamanguape, Gomes do Amaral, Castro Carreira, Cristiano Ottoni, Visconde de LimaDuarte, Marquês de Paranaguá, Meira de Vasconcelos, Visconde de Taunay, Pereira da

    Silva, Barão de Mamoré, Correia, Fausto de Aguiar, Leão Veloso, Visconde de Jaguaribe,Saraiva, Luís Felipe, Soares Brandão, Visconde de Assis Martins, Visconde do Serro Frio,Visconde do Cruzeiro e Visconde do Bom Conselho – dos quais dois ex-presidentes doconselho, 13 ex-ministros e 5 conselheiros de Estado. A sessão durou 10 minutos,

    levantando-se às 11 horas e 40 minutos da manhã.

    Vinte e quatro horas antes fora deposta a Monarquia. ODiário Oficial do dia estampara aproclamação e os primeiros decretos do governo provisório constituído pelo Exército e aArmada em nome da nação.

     

    CAPTAIN SMART

    Depois da formosa mulher do dentista americano, era, sem dúvida, o capitão canadense omais interessante personagem de bordo.

    Meses antes, ao que se dizia, naufragara entre as Bermudas o navio que ele comandava.

    Perdera-se completamente a carga e sucumbira quase toda a tripulação.

  • 8/19/2019 Afonso Celso

    7/9

    Cabia a Captain Smart não pequena responsabilidade na catástrofe - afirmavam à meiavoz passageiros bem informados. E o fitavam rancorosamente de esguelha, quandopassava carrancudo e hirto, o eterno cachimbo plantado no matagal dos bigodes ruivos,

    que lhe interceptavam a boca e se emaranhavam na barba, derramada em catadupa sobreo peito.

    O infeliz comandante regressava à pátria, despojado pelo mar dos haveres e da reputação.

    Antipatizavam todos com ele no paquete em que viajávamos. Ninguém lhe dirigia apalavra. Chegavam a considerar de mau agouro a sua presença. Se algum acidentedesagradável ocorresse durante a derrota, atribuí-lo-iam com certeza à sua nefastainfluição.

    Penosíssimas deviam ser-lhe as monótonas horas de travessia. Levantado antes doalvorecer; forçado à inação; arredado dos companheiros; sem tomar parte nos jogos ediversões com que estes procuravam matar o tempo; desdenhando livros e jornais -arrastava os intermináveis dias a fumar, enterrado numa cadeira de lona, os pés apoiadosà murada, encarando insistentemente as ondas - ou a caminhar pelo convés, de proa a

    popa, as mãos cruzadas nas costas, carregado o aspecto, no acabrunhamento de quem,ao peso de revoltante injúria, cogita em vão no como se desforçar.

    Mas Captain Smart às vezes transfigurava-se.

    No alto mar, importa acontecimento de monta o encontrar-se um outro navio.

    Sacam-se os binóculos. Cada qual formula as suas observações e conjeturas.

    Surdem, de ordinário, vivas discussões.

    - É um vapor; um yatch à vela; vai para a Europa; regressa da África; um vaso de guerra;brigue de pesca; alemão; inglês - opina-se com convicção e profusos argumentos.

    Vistas privilegiadas dão aqui pormenores. Contestam-nos acolá. E durante largo períodoconcentram-se olhares e atenções na sombra longínqua, que ora cresce e se acentua,

    apresentando os contornos da embarcação, ora apaga-se e dissolve-se, miragem etéreana linha confinante da água e do céu.

    Retina marítima, habituado a perscrutar os meandros da imensidade líquida, CaptainSmart parecia adivinhar o barco iminente, ainda invisível para os mais.

     A fisionomia expandia-se-lhe então. Apontava, soltando sons guturais, para um trechoperfeitamente unido e límpido da aquática planície. E mais tarde, não raro após longademora, emergia efetivamente dali, e se aproximava, um lenho errante qualquer.

    Enquanto o navio lobrigado se conservava em distância, ou afogado na bruma, dele nãodespegava os olhos o comandante náufrago. Acompanhava-lhe com solicitude os

  • 8/19/2019 Afonso Celso

    8/9

    movimentos; dir-se-ia que lhe estudava cuidadosamente a manobra, absorto, seriamenteempenhando na orientação do seu rumo.

    Denunciava-se feliz nesse momento. Nos seus olhos ríspidos perpassavam suavizações.Defrontando um dia comigo, que o observava curioso, quase esboçou um sorriso.

    À proporção, porém, que o barco se achegava, ia-se-lhe demudando a feição. Sonhoquerido parecia evolar-se de sua alma, onde entornara claridade fugaz. Ficava maistaciturno do que dantes. Agressivo e procelo o seu ar.

    Então, se o tal barco emparelhava com o nosso, ou cruzava o caminho deste, de modoque entre os dois peregrinos das vagas se trocavam sinais, Captain Smart traía mostras deinexplicável agastamento, virava as costas ao primeiro, calcava nervosamente o chapéusobre a fronte, cerrava as pálpebras e se envolvia em bastas fumaças do cachimbo,aspiradas e expelidas com frenesi.

    Naquele coração agreste, estuava evidentemente uma dor misteriosa e cruel, dessas deque se padece e se morre, sem que jamais o próprio paciente as possa bem compreendere explicar.

    Despeito? Inveja? Remorso? Esperança? Quem o lograria dizer?!

    Evocaria, como um fantasma, a imagem da nave confiada ao seu governo, de que a sua

    perícia era a alma e a defesa contra as perfídias do pego, nave galharda, cujos membros,

    por negligência sua talvez, à semelhança de um cadáver espostejado por uma fera,vogavam agora esparsos e despedaçados, à mercê das correntes e dos ventos?

    Recearia divisar no tombadilho entrevisto a figura de algum camarada seu, escapo, como

    ele, ao desastre, e que, reconhecendo-o, o aniquilasse com um gesto de maldição?

    Animá-lo-ia, porventura, a ilusão, cedo dissipada, de que tudo não houvesse sido senão

    um pesadelo horrível e de que o ponto pressentido na fímbria do horizonte setransformasse na embarcação morta, milagrosamente ressuscitada?

    Revoltar-se-ia contra a iniquidade inflexível do oceano, ao aspecto de suas novas vítimaspossíveis?

    Comprazia-se-me o imaginar nestas presunções. Do fundo de meu ser subia uma correntede dó para com o rebarbativo comandante.

    Quisera conhecer e mitigar a sua mágoa íntima, lenir com a caridade da compaixão aslágrimas de fogo que percebia brotarem-lhe n’alma sem o refrigério de vingaremextravasar-lhe pelos olhos ressequidos.

    Captain Smart teve, suponho, a intuição dos meus sentimentos comiseradores.

  • 8/19/2019 Afonso Celso

    9/9

    No dia em que desembarcou, compreendi que hesitava em me falar e agradecer. Não sedespediu, entretanto, de mim, como de ninguém. Lançou-me apenas um rápido olhar dehumilde reconhecimento, enquanto no seu torvo aspecto relampejava amistosa expressão.

    Jamais trocamos palavra. Separamo-nos desconhecidos, indiferentes, tomando veredas

    opostas, à lei de heterogêneos destinos. Nossas existências coincidiram um segundo, eminterseção fortuita, e passaram, no turbilhão infinito da vida. Com quantas tragédias nãotopamos assim quotidianamente? Nada resultará para nós ou para elas do respectivo

    atrito? Significarão secretas afinidades os espontâneos e súbitos movimentos de umespírito na direção de outro? Reminiscências de relações anteriores à nossa atual

    organização corpórea? Pactos para ulteriores existências?!

    Nunca mais, provavelmente, verei Captain Smart, neste planeta. Esvaiu-se decerto a

    minha figura na sua memória, como em mim se extinguiria a dele se não me viesse afantasia, numa noite triste, de fixar no meu livro de notas alguns traços do seu perfil.

    Mas faz-me bem a lembrança do seu agradecido olhar.

    Acabo de sentir, na consciência, ao recordá-lo, uma espécie de consoladora satisfaçãosemelhante à de quem houvesse piedosamente acendido em bravio e perigoso rochedo,batido de vagalhões desesperados, a luzinha de um pequenino farol.

    (Notas e ficções, 1894)