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Agatha christie - cai o pano

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Page 1: Agatha christie - cai o pano
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Hercule Poirot regressa à mansão de Styles, palco do seu primeiro caso. Na casa está reunido um grupo que muito agrada ao Capitão Hastings. O seu choque é, pois, imenso quando Poirot anuncia que, entre eles, se encontra um assassino implacável. Nenhum dos convidados tem perfil de criminoso, muito pelo contrário. Com o passar dos anos, a saúde do detetive deteriorou-se. Será que as suas célebres celulazinhas cinzentas vão desapontá-lo pela primeira vez?

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CapítuloI

Quemnãosentiuumsúbitobaquenocoraçãoaoreviveruma

antigaexperiência,ouaosentirumavelhaemoção?

“Jápasseiporisto,antes...”

Por que razão estas palavras nos emocionam tão

profundamente?

Foiaperguntaque fizamimpróprio,quandomesenteino

comboio,olhandoparaapaisagemplanadeEssex.

Há quanto tempo tinha eu já feito esta viagem? E pensava

então (ridiculamente) que o melhor da minha vida já tinha

passado. Ferido nessa guerra que, para mim, fora sempre a

guerra...a guerra que estava agora a ser fustigada por uma

segundaeaindamaisdesesperadaguerra.

Ao então jovem Arthur Hastings parecera, em 1916, já ter

atingido amaturidade.Nessa alturanãopodia aperceber-mede

queavidaapenasestavanoinício.

Conquantonãoo adivinhasse,nessaprimeira viagem, ia ao

encontrodohomemcuja influênciaviriaamodificaremoldara

minhavidafutura.Concretamenteiaapenaspassarunsdiascom

o meu velho amigo John Cavendish, cuja mãe, recentemente

casada em segundasnúpcias, tinhauma casa de campo como

nome de Styles. Esperava encontrar aí pessoas minhas

conhecidas, numa estada agradável e nunca mergulhar, como

então aconteceu, nas malhas tenebrosas de um misterioso

assassínio.

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EranovamenteemStylesqueiaencontraragoraoestranho

homenzinho,HerculePoirot,quetiveraocasiãodeconhecer,pela

primeiravez,naBélgica.

Que bem recordava a estupefacção que senti ao ver o seu

rostobojudo,ornadoporumgrandebigode,viraomeuencontro

naruadaaldeia.

Hercule Poirot! Desde esses dias em que se tornou o meu

mais querido amigo, a sua influência alterara-me amaneira de

ser.Foina sua companhia,na caçadeume, depoisdemuitos

criminosos,queconheciminhamulher,amaisverdadeiraedoce

companheiraqueumhomempoderiaencontrar.

Jaz agora em solo argentino, tendo morrido como sempre

desejara, sem sofrer a pena de uma longa doença, nem o

depauperamento da velhice. Mas deixara, neste mundo, um

homemmuitosolitárioeinfeliz.

Ah! Se eu pudesse voltar atrás, viver toda a minha vida,

novamente... Se a tivesse conhecido logo nesse dia de 1916,

quando, pela primeira vez, viajei até Styles...Quemudanças se

teriamoperadoemtodaaminhaexistência!

Equantasfaltasnotaria,agora,entreosrostosfamiliarescom

queiriadeparardenovo!AprópriacasaStylesforavendidapelos

Cavendish. John Cavendish morrera e sua mulher, essa

fascinanteeenigmáticacriatura,conquantoestivesseaindaviva,

morava agora em Devonshire, Laurence tinha-se fixado, com a

sua mulher e os miúdos, na África do Sul. Mudanças...

mudançasportodaaparte!

Maspelomenosumacoisaeraestranhamentecerta.Iaagora

Page 5: Agatha christie - cai o pano

atéStylesaoencontrodeHerculePoirot.

E como fiquei estupefacto ao receber a sua carta, vendo no

topotimbradooindicativo:CasaStyles,Styles,Essex.

Já não via o meu querido amigo há mais de um ano. Da

últimavezqueoencontrara,fiqueichocadoetriste.Eraagoraum

velho, quase impossibilitado de andar, por causa do artritismo.

Estivera no Egipto, na esperança de melhorar, com o clima

quenteeseco,masregressaradesalentadoeasuacartanoticiava

queseachavapior.

Apesardissoescreveracarinhosamente:

“Nãoointriga,meuamigo,leradirecçãodeondelheescrevo?

Recorda-nosvelhasmemórias,nãoéverdade?Sim,estouaquiem

Styles.Imaginequeistoéagoraoqueeleschamamumacasade

hóspedes. É dirigida por um dos vossos velhos coronéis

britânicos, muita ”gravata distintiva da Academia Militar” e

referências ao serviço na índia... ”Poona”. Bien entendu,é a

mulher dele quem faz andar tudo isto. Tem tanto de boa

administradora e dona de casa, como de língua viperina e

envenena toda a vida do pobre coronel. Se fosse comigo já lhe

tinhaferradoumasobradai

Lioanúnciono jornalea fantasia impeliu-meaverumavez

mais o local que foi o meu primeiro lar, neste país. Na minha

idade,temosprazeremreviveropassado.

Eagora, imagine.Encontreiumcavalheiro,umbaronete,que

é amigodo patrãoda sua filha. (Esta frase soa umpouco como

umexercíciodeFrancês-Inglês,nãoacha?)

Page 6: Agatha christie - cai o pano

Concebi imediatamente um plano. Ele desejava convencer o

amigo e a esposa, os Franklin, como sabe, a virem até cá, no

Verão. Franklin, que nunca interrompe o seu trabalho, traria

Judithconsigo,paraauxiliá-lo. Isso induziu-me,pelomeu lado,a

convencê-lo a si a juntar-se-nos. Estaríamos todos juntos, en

famille,o que seria muito mais agradável. Portanto, meu caro

Hastings, dépêchez-vous,e apareça-nos aqui com a maior

brevidade possível. Arranjei-lhe um quarto com banho (a nossa

querida Styles está agoramodernizada) e discuti o preço com a

”coronela”Mrs.Luttrell,atéconseguirchegaraumacordotrêsbon

marche.

OsFranklineasuaencantadoraJudithjácáestãoaalguns

dias.Estájátudoarranjadoe,portanto,nãoseponhacomfitas.

Abientôt

Oseu,sempre,HerculePoirot.”

Aperspectivadevoltaraestarcomomeuamigoeraaliciante

edecidinãodemoraroencontro.Jánadameligavaacasa.Dos

meusfilhos,umestavanaMarinhaeooutro,casadoedirigindo

um rancho, na Argentina. Minha filha Grace casara com um

militar e achava-sepresentementena índia.Aúnica garota que

merestavanaInglaterra,Judith,eraaquelaaquemsecretamente

maisestimava,aquelaaquemdevotavamaisamor,talvezporser

a última, embora nunca a tivesse compreendido. Uma moça

reservada,metidaconsigoecomosseussegredos,comapaixão

da independência pessoal e rejeitando quaisquer conselhos, a

ponto de discutir comigo e, às vezes, magoar-me intimamente.

Page 7: Agatha christie - cai o pano

Minhamulher entendia-amelhor do que eu, afirmando-meque

nãosetratavadefaltadeconfiançadeJudithnaminhapessoa,

mas de uma espécie de impulso orgulhoso. Mas também ela,

comoeu,semostrouváriasvezespreocupadacomanossafilha.

UmdiaconsiderouqueossentimentosdeJuditheramdemasiado

intensoseconcentradosequeasuareserva instintivaaprivava

de qualquer válvula de segurança. Os seus miolos eram os

melhoresdafamíliaefoicomagradoqueavimosdesejarseguira

Universidade.Formou-se,háumano, emCiênciasBiológicas, e

aceitou o cargo de secretária de ummédico que se ocupava de

pesquisas relacionadas com doenças tropicais. A mulher deste

era,maisoumenos,umainválida.

Ocasionalmente,chegueiaapoquentar-mecomaideia...sea

suaabsorçãopelotrabalhoedevoçãoaopatrão,nãosignificariam

queseapaixonaraporele,mastranquilizei-meaoverificarquese

tratava,puramente,deamoràciênciaexperimental.

Sempre acreditei que Judith gostava de mim, mas era

naturalmenteincapazdedemonstrá-lo,tornando-seimpacientee

até hostil àquilo que ela considerava ideias sentimentais e

ultrapassadas.

Para ser franco, sentia-me um pouco preocupado com a

minhafilha.

Neste ponto das minhas meditações, fui interrompido pela

chegada do comboio à estação de St.Mary de Styles. Esta não

tinhamudado, ao fimde tantos anos.Erguia-se aindanomeio

doscampos,semrazãoaparenteparaaípermanecer,afastadada

aldeia. Contudo, quando o táxi me levou até esta, notei as

alteraçõescausadaspelosnovostempos.St.MarydeStylesestava

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quase irreconhecível, com garagens, bombas de gasolina, um

cinema,doisgrandeshotéis,novosedifícioseumgrandebairro

decasascamarárias.

Finalmente,entrámosemStyles.Aquipareciaretrocedermos

aos tempos antigos. O parque estava como eu o conhecera,

emborasevissebastanteervaporaparar,dandoumtristeaspecto

deabandonoaorelvado.Virámosumaesquinaeficámosàvista

da casa. Do lado exterior mostrava-se inalterada, conquanto

carecessedeumaboacamadadetinta.

Tal como sucedera, anos atrás, quando da minha primeira

chegadaàquelelocal,achava-seumvultofemininoparadojunto

aos canteiros do jardim. Senti o coração bater um poucomais

vivamente. Então, o vulto endireitou-se e dirigiu-se na minha

direcção. Ri interiormente, pois não poderia haver maior

contraste entre a robusta EvelynHoward de outros tempos e a

frágil senhora,muitomaisvelha,comqueagoradeparava.Esta

tinha cabelos brancos, levemente amarelados, maçãs do rosto

rosadas,umpardeolhosazuis,muitopálidoseumà-vontadede

maneirasqueestavalongedemeagradar.

- E com certeza o capitão Hastings, não é verdade? -

perguntou ela. - E eu comasmãosmais que sujas, sempoder

cumprimentá-lo! Ficamos encantados Por tê-lo cá, por tudo

quanto temos ouvido a seu respeiito. Ainda nãome apresentei.

SouMistress Luttrell. Meumarido e eu comprámos este lugar,

num rasgo de loucura, e temos tentado tirar dele algum

rendimento. Nunca pensara vir, um dia, a tornar-me hoteleira.

Mas vou já tratar de si, capitão Hastings. Sou umamulher de

negócios, sabe? Arranjo sempre maneira de aumentar-vos as

contascomumasériedeextras.

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Rimo-nosambos,comoseeladissesseumapiadaexcelente,

mas ocorreu-me que, provavelmente, Mrs. Luttrell estava a

gracejarcomoqueseriapuraverdade.Eparaalémdasmaneiras

encantadoras de senhora idosa, pude vislumbrar uma certa

durezanobrilhodosolhos.

Embora lhe notasse na fala um certo sotaque, rolando as

palavras, não me pareceu que tivesse sangue irlandês. Devia

tratar-sedemeraafectação.

Perguntei-lhepelomeuamigo.

- Ah, coitadinho de Mister Poirot. Como ele tem estado

ansioso à sua espera! Até despedaçaria um coração de pedra!

Tenhoumaenormepenadele,asofrercomosofre.

Enquanto caminhávamos para casa, aminha hospedeira ia

descalçandoasluvas.

-Easuafilha,capitão-prosseguiuela-,quelindarapariga

queelaé!Todosaadmiramostremendamente.Massouoquese

costuma chamar uma mulher fora de moda e parece-me uma

vergonhaeatéumpecadoumamoçatãobonitacomoé,emvez

deirareuniõeseabailescomrapazes,dasuaidade,enterrar-se

constantemente no laboratório, todo o dia debruçada sobre o

microscópio.Aquiloétrabalhoparaestafermos,pensoeu.

-OndeestáJudith?-inquiri.-Estápertodaqui?

Mrs.Luttrellfezumacaretaelamentou:

-Pobrezinhadela!Estáencafuadanumaespéciedeestúdio,

aofundodojardim.OdoutorFranklinalugou-moetransformou-

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o num laboratório improvisado, é claro. Encheu aquilo de

porquinhos-da-índia...coitadinhadaspobrescobaias...deratose

decoelhos.

-Nãomeparecequepudesseviragostardessasexperiências,

nãoacha,capitãoHastings?Ah,aquiestámeumarido.

O coronel Luttrell acabava de contornar a esquina da casa.

Eraumhomemmuitoalto,decerta idade,umrostocadavérico,

olhosazuiseohábitodecofiarirresolutamenteoseubigodinho

branco.

Tinhaumaexpressãoumpoucovagaegestosnervosos.

-Olá,George,ocapitãoHastingsacabadechegar-anunciou

ela.

Ocoronelapertou-meamão.

-Veionodascincoequarenta,hem?perguntou.

- Em que outro poderia ter vindo? - criticou Mrs. Luttrell,

azedamente. - E que interesse tem isso? Leva-o para cima e

mostra-lheoquarto,George.Etalvezqueirairverimediatamente

MisterPoirot...oupreferetomarchá,primeiro?

Assegurei-lhequenãodesejavatomarcháequedesejavaver

omeuamigo,quantoantes.

O coronel Luttrell estendeu o braço em direcção à porta e

convidou:

- Certo. Venha daí. Espero que... a... já tenham levado as

suascoisasláparacima...hem,Dasy?

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Mrs.Luttrellretorquiuasperamente:

- Issoédatua lavra,George.Tenhoestadoa jardinarenão

possotratardetodasascoisasaomesmotempo.

-Não,nãocertamente!A...vouverisso,minhaquerida.

Subi com ele as escadas de acesso à porta da frente e

cruzámo-nos à entrada com um sujeito de cabelo grisalho, de

constituição débil, que saía apressadamente, empunhando um

binóculo de campo.Exteriorizavauma animação de certomodo

infantileexclamou:

- Vi-as agora mesmo: um par de toutinegras, a armarem

ninho,láembaixo,nafigueira-do-egipto.

Quandoentrámosnoátrio,Luttrellesclareceu:

-ÉNorton.Tipocatita.Malucoporpássaros.

Estava ali mesmo outra pessoa, de pé junto da mesa do

telefone. Era um homem de boa aparência, que estivera

obviamentefazendoumaligação.

Fitou-noseprotestou:

-Pareceimpossível!Gostariadepoderenforcar,esquartejare

queimar todos os empreiteiros emestres-de-obras.Nunca fazem

nadadejeito,oDiaboqueoscarregue!

Já devia ter passado dos cinquenta anos e tinha um rosto

muitobronzeadoeumaexpressãoatraente.Davaaimpressãode

tervividosempreaoar livre, lembrandoessetipode indivíduos,

cadavezmaisrarosemInglaterra,davelhaescola,lançadospara

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diante,adoradoresdomovimentoecapazesdecomandar.

Fiquei deveras surpreendido quando o coronel Luttrell mo

apresentou como sendo SirWilliamBoyd Carrington. Eu sabia

perfeitamente que fora governador de uma província na índia

ondeobtiveraverdadeiroêxito.Tambémsetornarafamosocomo

atiradordeprimeiraclasseecaçadordecaça-grossa.Ogénerode

homem, reflecti com tristeza, que parece estar a extinguir-se

nestesnossosdegeneradosdias.

-Ah!-exclamouele.-Tenhogostoemconhecer,emcarnee

osso,essafamosapersonagem:momamiHastings.

Riu-seeacrescentou:

-Oqueridovelhobelgafarta-sedefalaremsi,sabe?Etemos

aqui,comosabe,suafilha,entrenós.Éumamoçamuitogentil.

-NãocreioqueJudithse “farte”de falardemim-observei,

sorrindo.

- Oh, não. E moderna de mais para isso. Hoje em dia, as

raparigas parecem embaraçadas quando são levadas a admitir

quetiveramumpaieumamãe.

-Ospais-comentei-,sãopraticamenteumadesgraça.

SirWilliamriu-sefrancamente.

-Bem,nãoleveocasoparaesselado-animou.-Nãotenho

filhos,oqueéumasortemuitopior.AsuaJudithéumrebento

muito formoso,massempredesobrolho franzido.Acho issoum

poucoalarmante.

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Tornouapegarnoauscultadorejustificou-se:

- Espero que não leve amal, Luttrell, se eumandar a sua

centraltelefónicaparaoInferno,hem?

-QueosleveoDiabo!Nuncafazemumaligaçãoemtermos!-

apoiouocoronel.

Começouasubirasescadasesegui-o.Conduziu-meaolongo

daalaesquerdadacasa,atéaumaportadoextremoedepreendi

queforaesseoquartoquePoirotmedestinara.Eraomesmoque

euocupara,emtemposidos.

Tinham operado mudanças na casa. Conforme tínhamos

percorrido o corredor, notei, através de algumas portas abertas,

que os espaçosos quartos antigos tinham sido seccionados de

maneiraaconstituíremvários,maispequenos.

O meu quarto, que nunca fora dos maiores, tinha sido

poupado a essa compartimentação, não sofrendo qualquer

alteração, salvo a instalação de água quente e fria, e de uma

paredeaumcanto,queabrigavaumpequenoquartodebanho.

Masfiqueidesapontadoquandonoteiqueotinhammobiladocom

móveis modernos, naturalmente muito mais baratos, em

substituiçãodosqueseadequavamàarquitecturadacasa.

Afinal de contas, aminhabagagem já estavano quarto e o

coronelexplicouqueodoPoirotficavaexactamenteemfrentedo

meu. Ia começar a dizer-me qualquer coisa, quando ecoou um

grito,provenientedoátrio.

-George!

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Luttrellestacoucomoumcavalonervoso.Levouascostasda

mãoàbocaetitubeou:

-Eu...a...achaistobem?...Seprecisardealgumacoisa,ésó

tocar...

-Georgel

-Voujá,querida.Voujá!

Correu para a porta e lançou-se a trote, pelo corredor. Por

momentos,fiqueiavê-loafastar-se,e,emseguida,sentiocoração

palpitaracelerado.Deialgunspassosebatiàportadoquartode

Poirot.

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CapítuloII

Nada émais triste, naminha opinião, do que a devastação

causadapelaidade.

Meupobreamigo!Játiveocasiãodedescrevê-lováriasvezes.

Faço-o agora novamente para que possam aperceber-se da

diferençasofrida.

Coxo,emvirtudedoartritismo,via-seobrigadoaimpelir-se,a

braços,numacadeiraderodas.Asuacaragorduchamostrava-se

agora flácidaependurada.Tornara-senumhomenzinhomagro.

Na verdade, o bigode e o cabelo mostravam-se, perfeitamente,

negros de azeviche, contrastando com a palidez do rosto

macilento e enrugado. Por nada deste mundo seria capaz de

magoá-lo,exprimindooquecandidamentesentinessemomento.

Aquele contraste era um triste erro.Háuma altura na vida em

quea cordo cabelomorre, causandocertodesgostoaquemvê,

nessadespigmentaçãonatural,umfalsoindíciodesenilidade.Se

algunsanosantesmetivessemditoqueacornegradocabeloe

dobigodedePoirot saíamdeum frascode tinta,deixar-me-iam

deveras surpreendido. Mas agora essa característica era por

demais teatral, criando a impressão de que usava chino e

adornavaolábiosuperiornaintençãodedivertirascrianças.

Sóosseusolhoseramosmesmosdesempre,penetrantese

cintilantes,eagora,indubitavelmente,ternosdeemoção.

-Ah,monamiHastings!...monamiHastings!

Avancei a cabeça e, como de costume, beijou-me nas faces.

Depois, recostou-se ligeiramente, para ver-me melhor no

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conjunto,erepetiu:

-MonamiHastings!

Inclinouumpoucoacabeçaparaumdosladoseapreciou:

-Sim,estánamesma,ascostasdireitas,osombrosrecuados,

o cabelo grisalho...trêsdistingue.Sabe,meuamigo,queresistiu

bem ao tempo?Lês femmes,aindamanifestaminteresseporsi?

Sim?

-Francamente,Poirot-protestei-,achapróprio?...

- Mas é um teste, meu amigo. E oúnico teste positivo.

Quandogarotasmuitonovasseaproximamdesi,para falarem-

lhe ternamente, muito ternamente... é o fim! “Pobre velhote”,

pensam elas, “devemos ser agradáveis para com ele. Deve ser

horrível,chegar-seaesteestado...”Masvocê,Hastings,vousêtes

encorejeune.Aindatempossibilidade.Écomolhedigo,cofieesse

bigode,indireiteosombroseavance.Oqueédeestranharéque

vocênãoseapercebadisso.

Forçou-mearir.

-Vocêéocúmulo,Poirot!Diga-mecomoéquesesente.

Comumacareta,confessou:

-Eu,meucaro,estounumaruína.Nãopossoandar.Estou

coxo e trémulo.Misericordiosamente, ainda posso alimentar-me

sozinho,mas,noresto,tenhodesertratadocomoumbebé.Posto

nacama, lavadoevestido.Enfin,nãoénadadivertido.Masseo

exteriordecai,omioloaindavibracomodantes.

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-Sim,narealidade,vocêtemomelhorcoraçãodomundo.

- O coração? Talvez, mas nãome referia a isso. O cérebro,

moncher, éoque interessa,aquiloaquechamoomiolo.Estas

circunvoluçõescerebraisaindafuncionammagnificamente.

Pelo menos pude verificar claramente que não sofrera

deterioraçãodocérebro,noquesereferiaàmodéstia.

-E gosta de estar aqui? - interessei-me. Poirot encolheu os

ombros.

-Paramim,basta-me.NãoéoRitz,comovêfacilmente.Nada

queselhecompare.Quandovimparacá,oquartoquemederam

nãosóerapequeno,mastambémmalmobilado.Mudei-mepara

este, sem aumento de preço. Depois a cozinha é inglesa e

péssima.Osgrelos,dequeosInglesesgostamtanto,sãoenormes

e rijos; as batatas, sempre cozidas, esboroam-se-nos na boca e

todos os vegetais sabemaágua e só a água.Aindapor cima, a

completaausênciadesaledepimentaemtodosospratos...

Fezumapausaexpressiva.

-Parecehorrível-comentei.

- Não estou a queixar-me - precisou Poirot. Mas há-de

concordarqueestachamadamodernização...Ascasasdebanho

enfiadasdentrodosquartosdedormir,osralosportodooladoe

asemanaçõesqueseexalamporelesenosinvademoambiente.

Canos de água quente a gargarejarem durante todo o dia,mon

ami, e ainda se fosse quente, mas só cá chega morna. É as

toalhas,tãoestreitinhasetãofinas!

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- Hámuito que dizer acerca dos tempos antigos - observei,

pensativamente.

Lembrei-me da enorme casa de banho que existia em cada

andardeStyles,comumaenormebanheirademármore,forrada

exteriormente amogno, e as nuvens de vapor que se evolavam

dela; os grandes vasos metálicos cheios de água fervente e as

imensastoalhasdebanho,felpudasemacias,quenosenvolviam

inteiramenteeenxugavamasério.

-Masnãoestouaqueixar-me-repetiuPoirot.

-Sinto-me felizporsofrerporumaboacausa.Subitamente

assaltou-meumaideia.

- Você não está... quero dizer... Bem sei que a guerra

prejudicougrandementeosinvestimentose...

Poirotapressou-seatranquilizar-me:

- Não, não,mon ami. Encontro-me nas melhores

circunstânciasfinanceiras,seénissoquepensa.Naverdade,sou

umhomemrico.Nãofoiumaquestãodeeconomiaquemetrouxe

atécá.

- Ainda bem - murmurei. - Penso que compreendo o que

sente.Conformeosdiasvãopassando,maiornecessidadetemos

derecordaropassado.Cadaqualprocurarecapturar,nasantigas

imagens,emoçõesde tempos idos.Noquemediz respeito,acho

penoso reviver milhares de momentos emotivos, considerando

preferível mante-los no esquecimento em que se envolveram.

Gostaria que fizesse omesmo. Temos que esquecer o passado e

apenas viver o presente, se ainda nos resta algum futuro. De

Page 19: Agatha christie - cai o pano

outramaneira,écomoseabdicássemos...

-Não,demaneiranenhuma.Nãomesintonadainclinadoa

abdicaçõesdeespéciealguma.

- Passámos realmente uns dias maravilhosos - concedi

tristemente.

- Está a falar por si próprio, Hastings. Quanto a mim, a

minha chegada a Styles, quando aqui entrei pela primeira vez,

nadatevedealegre.Eraumrefugiado, ferido,exiladodapátria;

sobrevivendo por caridade numa nação estrangeira. Esses dias,

para mim, em St. Mary de Styles não foram de forma alguma

alegres. Nessa altura ainda não sabia que a Inglaterra viria a

tornar-se-me numa segunda pátria; que acabaria por sentir-me

aquicompletamentefeliz.

-Esqueci-medisso-admiti.

- Precisamente. Você atribui sempre aos outros os

sentimentos que o possuem e as ideias que resultam da sua

própria experiência. Se Hastings se sentia feliz, toda a gente

deveriasentir-seigualmentefeliz.

-Não,não-protestei,rindo.

-Emesmoqueassimnãoseja -prosseguiuPoirot-quando

vocêolhapara trás,no tempo,afloram-lhe lágrimasaosolhose

exclama: “Oh! Aqueles dias felizes! Era então jovem!” Mas, na

realidade,Hastings,vocênãoeratãofelizcomoagorapensa.Foi

duramente ferido, sofreu o inevitável afastamento do serviço

activo, andou envolvido num complicado problema sentimental

porapaixonar-seporduasmulheresaomesmotempo...

Page 20: Agatha christie - cai o pano

Ri-meeobservei:

-Quememóriamaravilhosavocêtem,Poirot!

- Ta, ta, ta. Recordo-me perfeitamente das fatuidades

melancólicas que você murmurava, acerca de duas mulheres

encantadoras.

-E lembra-sedoque entãomedizia? “Nenhumadelas será

parasi,mascoragem,manami.Vamoscaçarjuntosetalvez...”

Calei-me.NoconsensodePoirot,euforacaçarparaFrançae

conheceraaíumamulher...

Gentilmente, o meu amigo deu-me umas palmadinhas no

braço.

-Eusei,Hastings,eusei.Aferidaaindaestáfresca.Masnão

lhe serve de nada olhar para trás. Para a frente é que é o

caminho.

Esboceiumgestodedesgosto.

-Olharparaa frente -objectei. -Paraa frente,paraondee

paraquê?

-Ehbien,meucaro,temostrabalhoparafazer.

-Trabalho?Onde?

-Aqui.Fitei-oespantado.

-Agoramesmo- insistiuele -vocêacaboudeperguntar-me

porque decidi vir enterrar-me aqui. Talvez não notasse que não

respondiaessapergunta.Voufazê-loagora.Andoàcaçadeum

Page 21: Agatha christie - cai o pano

assassino.

O meu espanto recrudesceu e confesso que, por um

momento,penseiqueelenãoestivessenoseujuízoperfeito.

-Estáafalarasério?

-Certamentequeestou.Porqueoutrarazãose tornaria tão

urgentepedir-lhequeviessetercomigo?

Se as minhas pernas já não prestam para nada, o meu

cérebro,comolhedisse,estámelhordoquenunca.Lembre-sede

queomeusistemafoisempreomesmo.Sentar-meepensar.Pois

isso é a única coisa queme resta, ou seja, o essencial. Para a

parte activa desta campanha preciso do meu insubstituível e

incomparávelHastings.

-Realmentepretende...?

- Pois está visto que pretendo. Você e eu, Hastingsvamos

voltarnovamenteacaçar,juntos...maisumavez.

Preciseidealgunsminutosparaconvencer-medequePoirot

não estava a caçoar comigo. Aquela proposta parecia-me tão

fantasiosaquemecustavaaaceitá-la comosendo real,mas,na

verdade,nãotinhaamenorrazãoparaduvidardoseuestadode

espíritoeraciocínio.

Comumligeirosorriso,Poirotinquiriu:

- Então? Já está convencido? Confesse que, a princípio,

pensouqueestaminhacabeçanãoestavaafuncionarmuitobem.

-Não,não-apressei-mearefutaraideia.Apenasmepareceu

Page 22: Agatha christie - cai o pano

estelugarinapropriadoparacenadeumcrime.

-Ah,pensouisso?

- Sim... bem, ainda não vi toda a gente que nos rodeia...

mas...

-Quemfoiquejáviu?

- Apenas os Luttrell, um homem chamado Norton que me

pareceu um tipo inofensivo, e Boyd Carrington... Confesso que

estemeagradoubastante.

Poirotacenoucomacabeçaaprovativamente.

-Bem,Hastings,dir-lhe-eique,quandoconhecerorestodas

pessoas desta casa, a minha declaração parecer-lhe-á tão

improvávelcomoagora.

-Quemmaisvivecá?

-OsFranklin: omédico ea esposa; a enfermeiraque cuida

desta inválida e a sua filha Judith. Há tambem um homem

chamado Allerton, que tem qualquer coisa de barba-azul,

conquistadordesenhoras,eumatalMissCole,queandaàvolta

dostrintaepicos.

-Eumdeleséumassassino?

- Mas porquê... como... que foi que lhe deu motivo para

pensarnumacoisadessas?

Tive dificuldade em travar as perguntas e, por isso, saíram

umasatrásdasoutras,atropelando-se.

Page 23: Agatha christie - cai o pano

- Calma, Hastings - aconselhou Poirot, sorrindo. - Vamos

começar pelo princípio. Peço-lhe o favor de alcançar-me essa

caixinhaqueestásobreasecretária.Obrigado.Eagoraachave.

Bien.

Abrindoofecho,retiroudacaixaumpequenomaçodepapéis

dactilografadosealgunsrecortesdejornais.

-Podeestudarissoàsuavontade,Hastings.Poragoranãoo

aborrecereicomosartigosjornalísticos.Sãomerasnarrativasda

Imprensadeváriastragédias,algumasvezesinexplicáveis,outras,

sugestivas. Para ficar com uma ideia mais precisa dos casos,

sugiro-lhe que dê uma vista de olhos por esse apanhado que

redigi.

Profundamenteinteressado,comeceialê-lo.

CASOA)ETHERINGTON

Leonard Etherington. Hábitos desagradáveis. Bebia

demasiado e tomavadrogas. Possuía um carácter peculiarmente

sádico.Esposa jovemeatraente.Desesperadamente infeliz, com

ele.

Aparentemente, Etherington morreu por envenenamento

alimentar.Omédiconãoficousatisfeitocomoprópriodiagnóstico.

Exigiu umaautópsia onde se detectou ter amorte sido causada

porenvenenamentoarsenical.

Foi encontrado, em casa, veneno para ervas daninhas, em

larga quantidade, contudo adquirido, muito tempo antes, para

utilizaçãonojardim.

Page 24: Agatha christie - cai o pano

Mrs.Etheringtonfoipresaeacusadadeassassínio.

Recentemente, estabelecera relações de amizade com um

homemdoServiçoCivilqueregressaradaíndia.Nãofoisugerida

infidelidadecarnal,mascomprovou-seaprofundasimpatiaquese

estabeleceraentreambos.

Esse homem ficara noivo de uma rapariga que conhecera

durante a viagem de regresso a Inglaterra. Prevaleceu certa

dúvida sobre a data do recebimento, por parte de Mrs.

Etherington,dacartaemqueoseuautorlheanunciavaonoivado.

Ela afirmou que a recebera antes da morte do marido, o que

poderiaalienaromotivo.

Como as provas eram simplesmente circunstanciais, não

havia forte razão para uma condenação, embora não existisse

qualqueroutrosuspeitodecrime,oumotivo.

Otemperamentodomaridoconduziuaummovimentogeralde

simpatia pela viúva. O juiz decidiu proferir uma sentença de

absolviçãoporbenefíciodedúvida.

Mrs. Etherington foi posta em liberdade. Todavia, a opinião

pública julgou-a culpada. A sua vida tornou-se deveras difícil,

tendoperdidoamigosedemaisrelações.Morreuemresultadode

teringeridoumadoseexcessivadecomprimidossoporíferos,dois

anosdepoisdojulgamento.

Oresultadodoinquéritofoi:morteacidental.

CASOB)MISSSHARPLES

Solteironaidosa.Umainválida.Doençacausadoradegrande

Page 25: Agatha christie - cai o pano

sofrimento. Era tratada por uma sobrinha, Freda C/oy,que

semprecuidaradela.MissSharpiesmorreuemresultadodeuma

doseexcessivademorfina.FredaClayadmitiuapossibilidadede

umerronaadministraçãodadosedessemedicamento.Declarou

queatiaestavaasofrerhorrivelmente,peloquelhedeuumadose

superior de morfina, sem pensar que isso poderia matá-la. À

Políciaconsiderouoactodeliberadoenãoummeroerro,masas

provas eram insuficientes e não pôde processá-la sob acusação

dehomicídiovoluntário.

CASOC)EDWARDRIGGS

Trabalhador agrícola. Suspeitou de que a sua mulher o

atraiçoavacomosenhorio,BenCraig.

Craig e Mrs. Riggs foram encontrados mortos a tiro pela

caçadeiradeEdward.Riggsentregou-seàPolícia,declarandoque

devialercometidoocrime,masnãoconseguiarecordar-senemde

quando, nem como. Afirmou que a sua memória se recusava a

explicar-lheofenómeno.Fizeraumvácuoamnésicoemrelaçãoao

seuacto.

Foi sentenciado àmortemas, posteriormente, a pena foi-lhe

comutadaemprisãoperpétua.

CASOD)DEREKBRADLEY

Envolvera-senumaaventuraamorosacomumarapariga.Sua

mulherdescobriuatraiçãomatrimonialedecidiuenvenená-lo.

Bradleymorreuemvirtudedeteringeridocianetodepotássio

ministradonumacerveja.

Page 26: Agatha christie - cai o pano

Mrs.Bradley foi presa e acusadadehomicídio premeditado.

Fraquejou durante o contra-intenogatório. Foi condenada e

enforcada.

CASOE)MATTHEWLITCHFIELD

Déspota idoso. Vivia com quatro filhas, não lhes permitindo

qualquerdiversãooudispêndiodedinheiro.

Certa tarde,ao regressara casa, foi atacadopelas costas e

assassinadocomumapancadadesfechadanocrânio.

Maistarde,depoisdainvestigaçãopolicial,afilhamaisvelha,

Margaret, apresentou-se na esquadra e confessou-se autora do

crime.

Declarou tê-lo perpetrado, para que suas irmãs mais novas

pudessemviveravida,antesquefossetardedemais.

Litchfield,queeramuitoavarento,deixouumagrandefortuna.

Margaret Litchfield foi considerada demente e internada em

Broadmoor,masmorreupoucotempodepois.

Li atentamente, porém com crescente desconfiança.

Finalmente, pus o papel de lado e olhei para Poirot

inquiridoramente.

-Então,monami,quemediz?

-Lembro-medocasoBradley-respondicomlentidão.-Lias

notíciasdessaaltura.Eraumamulhermuitofina,mesmobela.

Poirotconfirmoucomumacenodecabeça.

Page 27: Agatha christie - cai o pano

-Mastemdeesclarecer-me-observei.-Dequesetrata?

-Diga-meprimeirooqueéquetudoissolheparece?

Fiqueideverasembaraçado.

- O que me deu foi uma compilação de cinco casos de

homicídio, completamentediferentesunsdosoutros.Ocorreram

emlugaresdistintoseforamcometidosnoseiodeclassessociais

também diferentes. Além disso, não ressaltam quaisquer

semelhanças particulares entre cada um desses crimes.

Poderemosdiscernirumcasodeciúme;umcasodeumamulher

infeliz, procurando desembaraçar-se do marido, para refazer a

sua vida; outro, tendo o dinheiro por motivo; um outro ainda,

provocado por aquilo a que você chamaria motivação egoística,

embora o criminoso não tivesse tentado escapar ao castigo, e o

quinto, francamente brutal, poderia ter sido cometido sob

influênciadoálcool.

Fizumapausaemanifesteiaminhadúvida:

- Existe algo de comum, entre estes crimes, que me tenha

escapado?

-Não,nãohá.Vocêfoimuitoexactonoresumoqueexpôs.O

únicoponto quedevia termencionado e que,na realidade, não

mencionou foio factode,emtodosessescasos,não terexistido

u m adúvida absolutamente positiva, nem uma certeza,

igualmenteinabalável.

--Receionãoestaraperceberaondequerchegar.

-Porexemplo,MistressEtheringtonfoiabsolvidamas,apesar

Page 28: Agatha christie - cai o pano

disso, toda a gente se convenceu de que assassinara omarido.

FredaClay não foi abertamente acusada,mas ninguémpensou

noutraalternativaparasoluçãodocrimequenãofossehomicídio

voluntário.Riggsdeclarounãopoder recordar-sede termortoa

esposa e o amante, mas deu-se o caso de não haver qualquer

outro suspeito que pudesse ter interesse no crime. Margaret

Litchfieldconfessou,mas foi consideradademente.Emtodosos

casos,contudo,Hastings,sósurgiuumsuspeito:umúnico,em

todoseles.

Franziassobrancelhas.

- Sim, é evidente, mas não alcanço que inferências

particularespodemressairdosfactosapresentados.

-Temrazão,masreparequeestouacaminhodeumângulo

quevocêaindanãoconsiderou.Suponha,Hastings,queemcada

um destes casos que desenterrei houve um facto desconhecido,

comumatodoseles?

-Quequerdizercomisso?

Lentamente,Poirotproferiu:

-Pretendosermuitocuidadosonoqueagoralhedigo.Deixe-

meapresentar-lheoassuntodestamaneira.Háumacertapessoa,

X, aparentemente alheia aos cinco casos, sem nenhum motivo

conhecidoparaatentarcontraavidadavítima.Numdoscasos,

conformetiveocasiãodeverificar,Xencontrava-seacentenasde

quilómetros do local onde o crime foi cometido. Apesar disso,

posso declarar-lhe o seguinte: X tinha relações íntimas com

Etherington;Xviveudurantecertoperíodonamesmaaldeiade

Riggs; estava relacionado com Mistress Bradley; tenho uma

Page 29: Agatha christie - cai o pano

informação testemunhal de que X costumava passear, na rua,

comFredaClaye,finalmente,estavapertodacasaondeovelho

MatthewLitchfieldfoiassassinado.Quemedizaisto?

Fitei-oboquiaberto.

-Sim,sãodemasiadascoincidências-considereilentamente.

- Em dois ou três casos, ainda se admitem, mas em cinco,

parecem-me suspeitas. Isso significa que deve existir qualquer

outraligaçãoentreosdiferentescrimes.

-Presumeexactamenteoquepresumi?

-QueXéoassassino?Sim.

- Nesse caso, Hastings, já está habilitado a dar mais um

passoemfrente,comigo.Deixe-mesódizer-Iheisto:Xestánesta

casa.

-Aqui,emStyles?

-Aqui, emStyles.Eque inferênciapodeagoraextrairdeste

facto?

Jásabiaoqueeleiadizeredesafiei-o:

-Válá,diga-olá!

Gravemente,HerculePoirotproferiu:

-Embreveserácometidoumassassínio...aquinestacasa.

Page 30: Agatha christie - cai o pano

CapítuloIII

Poralgunsmomentosfiqueiaolharparaele,perturbado,mas

logoreagi.

-Não,nãohaverácrimealgum.Poderáevitá-lo.

Poirotolhou-mecomexpressãoafectiva.

-Meumuito lealamigo.Comoaprecioasua fénasminhas

possibilidades.Tout de même, não estou certo se essa sua

confiançasejustificanopresentecaso.

-Disparate.Certamentequepodeprevenir...Anularaacção

criminosa.

AvozdePoirottinhaumaentonaçãograve,quantosolicitou:

-Reflitaumminuto,Hastings.Qualquerpessoapodeprender

umassassino.Mascomopoderáevitarumassassínio?

- Bem, você pode... bem, quero dizer... se já souber com

antecedência...

Pareidesmoralizado,poravaliaradificuldade.

- Está a ver? - evidenciou Poirot. - Não é tão simples como

isso. Na realidade, há três métodos para tentar evitar-se um

crime. O primeiro é avisar-se a vítima, colocando-a em guarda.

Oraistoraramentetemêxito,porqueé inacreditavelmentedifícil

convenceralguém,noseuestadonormal,dequeoqueremmatar

e toda a gente se recusa a acreditar no perigo, se este parte de

pessoasque estãopróximase sãoqueridas.Aquele, sobrequem

paira a ameaça, acaba por mostrar-se indignado com a nossa

Page 31: Agatha christie - cai o pano

“calúnia”.

“O segundo método baseia-se em advertir o assassino

potencial; dizer-lhe numa linguagem que apenas é levemente

velada:”Conheço as suas intenções; se Fulano de Tal morrer,

podeestarcertodequevocêseráenforcado.”Estemétodotem-se

mostrado mais eficiente do que o anterior, mas é igualmente

falível namaioria dos casos. Um assassino, meu caro amigo, é

mais obcecado do que qualquer outra pessoa, neste mundo. E

considera-se sempremuitomais espertodoque todososoutros

queorodeiam;mesmoquealguémsuspeitedeleoudela,pensará

quepoderáludibriaraPolícia.Eele(ouela)iráparadianteeserá

enforcado,oquenosdáumasatisfaçãodiscutível.

Apósumapausa,dissepensativo:

- Por duas vezes, ao longo da minha vida, tive ocasião de

avisarumassassino.UmaveznoEgiptoeoutra,numoutrolocal.

Poisemambososcasosoassassinoestavadeterminadoamatar...

eomesmopodeaconteceraqui.

-Dissehápoucoquehaviaumterceirométodo-lembreicom

certointeressepois,esse,desconhecia-o.

- É verdade. Para esse, exige-se-nos demonstrar a maior

ingenuidade. Temosprimeirode calcular exactamente quando e

como o crime vai realizar-se e estarmos prontos a intervir no

preciso momento psicológico. Torna-se necessário deter o

assassino,antesquetinjaasmãosdesangue,masjáculpadode

intenção criminosa, sem a menor dúvida. E isso, meu amigo,

possoassegurar-lho,éempresadamaiordificuldadeedelicadeza,

cujoêxitonuncapodemosdeterminar,comantecedência.

Page 32: Agatha christie - cai o pano

-Dessestrêsmétodos,qualpreconizaparaopresentecaso?

-Possivelmente,todostrês,sendooprimeiroomaisdifícilde

pôremprática.

-Porquê?Penseiquefosseomaissimples.

- Seria, se conhecêssemos, de antemão, a identidade da

vítima. Mas não se apercebe, Hastings, que presentemente não

sabemosquemelavenhaaser?

-Porquê?

Mal me saíra dos lábios esta pergunta, compreendi que

resultara de irreflectida precipitação. Deveria haver um elo de

ligaçãoentreoscincocrimesconhecidos,masignorávamosqual

era. Faltava-nos o motivo vital de todo o enredo. E

desconhecendo-onãopoderíamosdescobrirsobrequemincidiaa

ameaça.

Poirot anteviu, pela minha expressão, que eu já divisara a

dificuldadedasituação.

-Comovê,meuamigo,nãoécoisafácil.

-Não. Já dei por isso. Portanto, não conseguiu descobrir o

respectivoelodeligação?

-Nada!

Tornei a reflectir, durante alguns instantes. No cado dos

crimes do ABC deparáramos com uma questão de séries

alfabéticas,masnopresente,tratava-sedecoisamuitodiferente.

Page 33: Agatha christie - cai o pano

-Estácertodequenãose tratarádeummotivopuramente

financeiro,comojádetectounocasodeEvelynCarlisle?

- Não, meu caro Hastings. Pode estar certo disso, foi o

primeiro elo que exploreimentalmente.Não se coaduna comos

restantescrimes.

Aquilo também era verdade. Poirot debruçava-se sempre,

cinicamente,sobreamotivação“dinheiro”.

Meditei novamente. Uma vingança de qualquer espécie?

Parecia mais de acordo com a generalidade dos factos. Mas

embora fosse admissível, como se interligariam os crimes?

Lembrei-medeumoutro caso, emque todasas vítimas tinham

participado num júri, durante um julgamento, e em que o

criminososevingaraeliminando-asmetodicamente.Tiveopalpite

de que estaríamosperanteuma série de similarmotivação,mas

confesso que me envergonhei de arriscar essa hipótese em voz

alta.Sefosseessaasoluçãoeeupudessemaistardeapresentá-la,

melhorcimentada,aPoirot,fariaumbrilharete.

Entãodecidi-meaperguntar:

-Chegouaalguradedizer-mequeméX.Queméele?

Peranteomeuintensointeresse,Poirotrespondeu:

-Oraaíestá,meuamigo,oquenãovoudemaneiraalguma

dizer-lhe.

-Patetice!Porquenão?

OsolhosdePoirotfulgiram.

Page 34: Agatha christie - cai o pano

- Porque,mon cher, você continua a ser o mesmo velho

Hastings.Porquevocêtorna-sereservado,retendoafala,eaquilo

que os seus lábios não dizem, enquanto se senta em frente do

suspeito, de boca cerrada, declara-o a sua expressão.

Praticamente, os seus olhos gritam: “Estou a olhar para um

criminoso.”

-Deviaaomenosdar-meo créditodeumcerto jeitoparaa

dissimulação-protestei.

-Quandodissimula,aindaépior-criticouPoirot.-Não,não,

monami, temosquepresidiraosacontecimentos,absolutamente

incógnitos, tanto você como eu. Quando chegar o momento

preciso,deitamos-lheasgarras.

-Seudiaboobstinado! -apostrofei-o. -Tambémtenhobons

miolos.

Calei-me subitamente, mal ouvi baterem à porta. Poirot

convidou:

-Entre.

Era minha filha Judith. Gostaria de descrevê-la, mas fui

semprefraconessegénerodeexposição.Mesmoassimdireiqueé

alta, tem sobrancelhas arqueadas e naturalmente finas e

castanhas,comumperfilmuitocorrectoeumalinhaclássicade

queixoemalares.Noseuconjunto,aexpressãoquedaí resulta,

transpiraausteridade.Temumargraveeconcentrado,comose

pendessesobreelaaameaçadeumatragédia.

Depoisdeentrar,parouefitou-me,semcorrerabeijar-me.

Page 35: Agatha christie - cai o pano

-Olá,pai-disse,sorrindo.

Oseusorrisoexprimia,decertomodo,algumembaraço,mas

senti, apesar da ausência de exteriorização, que lhe causava

prazerver-me.

- Bem - disse eu, sentindo-me ridículo, como sempre me

acontecia,aoencararanovageração.Aquiestoueu.Decidiviraté

cá.

- Foi muito inteligente da sua parte - retorquiu ela,

acrescentando:-querido.

-EstiveafalaraseupaidacozinhacádacasadissePoirot.

-Émá?-perguntouJudith.

-Nãodeviaterfeitoessapergunta,minhaquerida.Significa

quevocênãopensanoutracoisaquenãosejamtubosdeensaioe

microscópios.Oseudedomédioestásujodeazul-de-metileno.E

nãoédebompresságio,paraummarido,verificarqueaesposa

nãodedicaomenorinteressepelascoisasrelacionadascomoseu

estômago.

-Paraquedeveriapreocupar-mesenãotencionotermarido-

observouela.

- Certamente que vai ter ummarido. Para que outra coisa

criouDeusumamulher?

-EsperoqueparamuitasoutrascoisasúteisdisseJudith.

-Lêmanageantesdetudoomais!-sentenciouPoirot.

Page 36: Agatha christie - cai o pano

-Muitobem-anuiuela.-Vaiprocurar-meumbelomaridoe,

então,procurareiolharcuidadosamentepeloseuestômago.

-Estáarir-sedemim-criticouPoirot. -Maschegaráodia

em que se convencerá como os velhos são ajuizados, nas suas

predições.

Ouviu-senovapancadinhanaportaeoDr.Franklinentrou.

Era um homem alto, um pouco anguloso, de cerca de trinta e

cincoanos,queixovoluntarioso,cabeloruivoeolhosdeumazul

brilhante. Pareceu-me, logo à primeira vista, o tipo mais

desajeitadoque tinhaencontradoaté então.Andavasempreaos

encontrõesaqualquercoisa.Bateunumamesinhae,aoafastar-

se chocou com a cadeira de rodas de Poirot. Automaticamente

virouacabeçaedisse:

-Peçoperdão.

Senti vontade de rir mas notei que Judith permanecera

inalterada, como se estivesse já habituada àquele género de

coisas.

- Lembra-se do meu pai? - perguntou ela, à laia de

apresentação.

ODr.Franklinestacou,abanouacabeçanervosamente.

- Certamente, certamente que sim! - confirmou, sorrindo

apologeticamente, com uma expressão um pouco infantil. -

Desculpe-me.Soutãodistraído.Batinumacoisaqualquerenão

reparei.Perdoe-me,sim?

OrelógiodeuhoraseFranklinolhouparaele,alarmado.

Page 37: Agatha christie - cai o pano

- Meu Deus! Já é tão tarde!? Vou meter-me em sarilhos!

PrometiaBárbaraler-lheumpedaço,antesdojantar.

Dirigiu-nos uma careta de jovem apoquentado e saiu

apressadamente,nãosemtercolididocomaumbreiradaporta.

- Como está Mistress Franklin? - inquiri depois de ele ter

desaparecido,corredorfora.

-Namesma,ouaindapior-informouJudith

-Émuitotristeoseuestadodeinvalidez-comentei.

- E terrível para a vida de ummédico - observou Judith. -

Precisam de pessoas saudáveis à sua volta, quando não estão

imersosnosproblemasdosseusdoentes.

-Comoagentenovaécruel-censurei.

Friamente,Judithripostou:

-Limitei-meaexporumfacto.

-Apesardetudo- interveioPoirot-,odoutorFranklin foia

correr,parapodersatisfazê-lacomasualeitura.

- Só prova que é estúpido. A enfermeira sabe ler e pode

perfeitamente fazê-lo. E ela também o sabe, mas nunca o faz.

Pessoalmentedetestariaforçar,fossequemfosse,aler-mefosseo

quefosse.

- Bem, os gostos diferem de pessoa para pessoa - disse,

tentandoamenizaraconversa.

- Mistress Franklin é uma mulher supinamente estúpida -

Page 38: Agatha christie - cai o pano

afirmouela.

-Então,momenfant!NãoconcordoconsigocontrariouPoirot.

-Nuncaseinteressaporlersejaoquefor,anãoserumaou

outra novela barata. Não tem, nem sequer simula dedicar, o

menor interesse pelo trabalho dele. Está-se nas tintas para os

acontecimentosquearodeiamesólheinteressatagarelaracerca

dasuasaúde,paraaquelesquetêmpaciênciaparaaturá-la.

-Mantenhoaminhaopinião- insistiuPoirot-,dequeelaé

capaz de utilizar as suas células cinzentas Com sentidos e

camposquevocê,minhaamiguinha,ignoracompletamente.

-Eumamulherdogénerodemasiado feminino-classificou

Judith. - Toda ela, cucurus e ronrons. Não sei se aprecia as

mimalhasdessetipo,tioHercule.

-Demaneiranenhuma-esclareci.-Elegostadelasgrandes,

flamejanteseeslavas,sepossível.

- É assim que vocême afasta da concorrência, Hastings? -

protestou Poirot. - O seu pai, Judith, teve sempre uma queda

paraoscabeloscastanhos.Meteram-noemsarilhos,pormaisde

umavez.Judithsorriu-nosindulgentementeemotejou:

-Vocêsosdoissãoumaboaparelha,deixemestar!

Virou-nosascostasesaiu.

-Tenhodedesfazerasmalaseaindaquerotomarumbanho,

antesdeirparaamesa-anunciei.

Poirottocouumacampainha,suspensaaoalcancedamãoe,

Page 39: Agatha christie - cai o pano

umoudoisminutosdepois,acorreuumcriadodequarto...oseu

criadoprivativo.

Fiquei surpreendido ao reparar que este homem era um

estranhoparamim.

-OndeestáoseuvelhoGeorge?-inquiri.

O velhoGeorge era bastantemais novo do que Poirot,mas

acompanhara-odurantemuitosanos.

-Quisvoltarparajuntodafamília-respondeuPoirot.-Tinha

o pai doente. Mas espero que regresse qualquer dia destes.

Entretanto...

Sorriuparaocriado.

-...Curtissvaitratandodemim.

Curtiss sorriu respeitosamente. Era um tipo enorme, de

expressãobovinaeaestupidezclaramenteestampadanela.

Enquantomedirigiaparaaporta,noteiquePoirotarrumava

osseuspapéis,cuidadosamente,nacaixa.

Foi comas ideias francamenteperturbadasqueatravessei o

corredorparaenfiarnomeuquarto.

Page 40: Agatha christie - cai o pano

CapítuloIV

Nessanoite,desciparajantarcomasensaçãodequeavida

setornarasubitamenteirreal.

Enquantomevestia,surpreendi-me,maisdoqueumavez,a

perguntar-mesePoirotteriainventadotodoaqueleenredo.

Afinal de contas, o meu querido parceiro era,agora, um

velho, tristemente alquebrado pela doença. Podia, na verdade,

afirmarqueoseucérebroseachavatãobrilhantecomosempre,

mas,estaria,realmente?

Toda a sua vida decorrera no trilho de crimes. Seria de

surpreender que, no seu termo, imaginasse crimes onde não

existissem? A sua imobilidade forçada não o teria afectado

seriamente?A inacçãopodedesenvolverdoentiamenteoespírito

de uma pessoa temperamental e profissionalmente activa. Era

naturalque tivesse inventadomaisumcriminosoparaumadas

suasbrilhantescaçadas,destavezfictícia.

Pensando maduramente, podia achar-me perante um

raciocínioperfeito,masprovenientedeumcérebroafectadopela

neurose.

Coleccionara uma série de recortes de artigos jornalísticos

sobrecrimeseentreleraalgoquenãoestava,certamente,escrito

nem sequer em parte alguma a não ser na sua conturbada

imaginação.

Provavelmente, Mrs. Etherington envenenara mesmo o

marido;olavrador,amulhereoamante;araparigaencheraatia

demorfina,muitoparaalémdaconta;ajovemesposaciumenta

Page 41: Agatha christie - cai o pano

eliminaraoesposoinfiel,eamanasolteiravingara-senopai.Na

verdade,todosestescrimespareciamexactamenteoqueeram,tal

comotinhamsidodescritos.

Contra este lúcidopontode vista, sópodia (e repudiandoo

bom senso) basear-me na proverbial perspicácia do meu velho

amigoPoirot.

Ele afirmava que se preparavaumassassínio. Pela segunda

vezStylesseriaoteatrodeumcrime.

Só o tempo viria a provar ou a desmistificar essa asserção

mas,sefosserealidade,impunha-se-nostentarevitaratragédia.

Poirotconheciaaidentidadedocriminoso.Eu,não.

Quantomaispensavanoassunto,maisaborrecidosetornava

a meus olhos. Na realidade, francamente, Poirot colocava-me

numa terrível desvantagem. Queria a minha cooperação, mas

recusava-seaconfiar-meoelementomaisessencialdoproblema.

Porquê?Arazãoquemederaparecia-meamaisinadequada!

Estavafartodeouvi-loreferir-seàminha“reservaemfalar”.Toda

agentesecala,quandopretendeguardarumsegredo.Ora,Poirot

persistia sempre em afirmar que o meu mutismo se tornava

denunciador das minhas intenções, prevalecendo uma

transparêncianomeusilênciopreventivo.Detalmaneirainsistia

que essa transparência se devia à pureza domeu carácter, que

acabavaporentediar-meouvi-lo.

Certamente,concluíque,setodooenredoapenasselimitara

às fronteiras da sua imaginação, razão tinha para apresentar

aquelasreticências.

Page 42: Agatha christie - cai o pano

Não cheguei a qualquer conclusão específica,e, quando o

gongo me convocou para jantar, avancei sem ideias

preconcebidas,deolhoalerta,prontoadetectaromíticoourealX

dePoirot.

Para já, ia aceitar como verdadeiro tudo quanto ele me

expusera.Estavaalguém,sobonossotecto,quejácometeracinco

crimes e se preparava para reincidir, voltando a matar.Quem

seria?

Nasaladeestar,antesdojantar,fuiapresentadoaMissCole

eaomajorAllerton.Elaeraumamulheralta,aindaformosa,de

trinta e três ou trinta e quatro anos. Instintivamente, o major

desagradou-me.Eraumtipobem-parecido,decercadequarenta

anos,deombros largos, tezqueimadadosol,comumamaneira

desenvolta de falar, imprimindo a quase tudo quanto dizia um

duplo sentido.Apresentavapapos sobosolhos, comoamaioria

daspessoasqueseentregamaumavidadissipada.Suspeiteique

fossedogénerojogador,oubebedore,particularmente,femeeiro.

Peloquevi,tambémocoronelLuttrellnãodeviagostarmuito

dele e Boyd Carrington mostrava-se bastante seco na maneira

comoselhedirigia.

O sucesso de Allerton manifestava-se no partido das

mulheres.Mrs.Luttrellpairavacomele,deliciada,enquantoelea

elogiava preguiçosamente, com urna certa impertinência

descabida.

ComdesgostonoteiquetambémJudithpareciaapreciar-lhe

a conversa e a companhia,mostrando-semenos introvertida do

quehabitualmente.Nãoqueeuapreciasseasuanaturalreserva,

Page 43: Agatha christie - cai o pano

antes pelo contrário, mas incomodava-me a direcção da sua

expansãoemotiva.

As razões que levam as mulheres mais encantadoras a

entusiasmar-se pelos homens mais execrandos foi um mistério

quenuncaconseguiresolver.

Sabia,instintivamente,queAllertoneraumpatife,enoveem

dez homens experientes seriam da minha opinião. Em

contrapartida, nove em dez mulheres enamorar-se-iam dele

imediatamente.

Quandonossentámosàmesa,comospratosemnossafrente

servidoscomum líquidogelatinoso,olhei emredore estudeias

possibilidades.

SePoirottinharazão,emantinhaaindaoseucérebroímpar

e lúcido, um dos convivas seria um perigoso assassino,

provavelmente,umlunático.

Poirotnãoodissera,maspresumiqueXfosseprovavelmente

umhomem.Qualdesseshomenspoderiaser?

Decertonãoseriaocoronel,comassuasindecisõeseaspecto

defraquezageral.Norton,ohomemqueeuvirasairdecasacom

o binóculo, para ver os pássaros fazer ninho? Parecia um tipo

agradável e falto de vitalidade. Contudo, disse para os meus

botões, há assassinos que não são mais do que homenzinhos

insignificantes,impelidosaocrimeporessamesmacircunstância.

Sofremressentimentosporpassaremdesapercebidoseignorados

eNorton poderia ser umhomicida desse tipo.Mas tinha a seu

favor essa loucuraporpássaros, e eusempre consideraraqueo

amoràNaturezaconstituíaumatestadodesaúdemental.

Page 44: Agatha christie - cai o pano

BoydCarrington?Foradequestão.Umhomemcujonomeera

conhecido em todo o mundo; um fino desportista; um hábil

administrador;umafiguraapreciadauniversalmenteeaplaudida

pelo seu carácter, não podia encaixar-se no papel de um

paranóico.

Quanto a Franklin, pu-lo logo de parte, pois sabia como

Judithorespeitavaeadmirava.

Restava-mepoisomajorAllerton.Atirei-meaessaideiacom

aprazimento. O parceiro mais sórdido psiquicamente que eu

jamaisvira.Ogénerodetipoqueécapazdeesfolaraprópriaavó.

E toda a sua imundície moral embrulhada em maneiras de

superficialencanto.

Estavaagoraacontarumahistóriaacercadeum insucesso

que ele próprio sofrera e fazia toda a gente rir pela rude

apreciaçãodesimesmo,numaverdadeiratroçaàsuapessoa.

Se Allerton fosse X, certamente que os seus crimes teriam

sido cometidos por interesse monetário. Pelo menos era esse o

meupressentimento.

A verdade é que Poirot não precisara definitivamente queX

seriaumhomem.ConsidereiMissColecomoumapossibilidadea

observar.Todososseusgestoseramimpacientesenervosos.Por

vezes, dava-me a impressão de uma mulher angustiada. Era

bonita, atraente e de certa maneira talvez até espiritualmente

encantadora, se a pudesse conhecer melhor. Exteriormente

parecia absolutamente normal, mas sabe-se lá o que se passa

dentrodocérebrodeumapessoa,seapenasacontactamos,pela

primeiravez,duranteumarefeição?

Page 45: Agatha christie - cai o pano

Mrs. Luttrell, Miss Cole e Judith eram as únicas três

mulherespresentesàmesa.Mrs.Franklinjantavanoseuquarto,

nopisosuperior,eaenfermeiraquecuidavadelatomavaassuas

refeiçõesdepoisdetodosnós.

Findo o jantar permaneci, pormomentos, na sala de estar,

juntoà janela,olhandoparao jardimerecordandootempoem

queviraCynthiaMurdock,umajovemdecabelocastanho,correr

atravésdaquelamesmaáleaentreoscanteiros.Comomeparecera

encantadora,nasuabatabranca...

Perdido nesses pensamentos do passado, surpreendi-me

quandosentiJudithdar-meobraçoelevar-meconsigo,dajanela

paraoterraço.

Perguntou-medechofre:

-Quesepassa?

Fiqueiadmirado.

-Quesepassa?...Quequeresdizercomisso?

-Opaiestevesempretãosérioeperscrutadordurantetodoo

jantar.Porqueexaminoutãoatentamentetodosospresentes?

Fiqueiaborrecido.Nãomepassarapelacabeçaquepudessem

ler tão facilmente no meu espírito as preocupações que o

dominavam.

- Pareceu-te isso? Suponho queme embrenhei no passado.

Talvezvissefantasmas.

-Éverdade.Opaijácátinhaestadoquandoerarapaz,não

Page 46: Agatha christie - cai o pano

foi?Eocorreuumcrime...umasenhoradeidadefoiassassinada,

ouqualquercoisadessegénero?

-Envenenadacomestricnina.

-Comoeraela?Simpáticaourepelente?

Considereiaperguntacomcertahesitação.

- Era uma pessoa agradável, ou pelomenos boa - respondi

lentamente.-Generosa...muitocaridosaparacominstituiçõesde

pobres,dedoentes...

-Ah!Essegénerodecaridade!

AvozdeJudithsoouáspera,criticante:

- E as pessoas que a rodeavam? Sentiam-se felizes por

conviveremcomela?

Realmente ninguém se sentira feliz junto dela. Finalmente,

reconheciaessefacto.Lentamentetorneiaresponder:

-Não,nãopareciam.

-Porquenão?

- Creio que se sentiam prisioneiros da sua influência.

Mistress Inglethorpe, sabes, possuía tudo isto; era quem

manipulava o dinheiro e dominava a família. Os seus enteados

nãopodiamviverasuaprópriavida...

OuviJudithsoltarumligeirosuspiroeasuamãocontraiu-se

nomeubraço.

Page 47: Agatha christie - cai o pano

- E a isso que o pai chama “generosa”? Uma mulher que

abusava do poder! Não devia ser autorizada uma coisa dessas.

Pessoas velhas, pessoas doentes não deviam ter poder para

dominarasvidasdosmaisjovensemaisfortes,noiníciodavida.

Amarrar-lhesasaspiraçõeseasiniciativas,frear-lhesossonhose

asenergiaséumverdadeirocrime.Umegoísmoquedeveriaser,se

nãoevitado,pelomenospunido.

- Não são só os velhos que têm omonopólio desse tipo de

crime-objectei.

-Pois,opaisemprepensouqueosjovenssãoegoístas!Talvez

realmente o sejamos, mas o nosso egoísmo élimpo. Apenas

desejamos fazer aquilo que efectivamente queremos, por nós

próprios,enãopretendemosqueosoutrossejamforçadosafazer

o que entendemos, prepotentemente. Não queremos tornar os

outrosescravos,eisadiferença.

- Não. Vocês, os jovens, apenas se contentam em derrubar

quantosdeparamnovossocaminho.

Judithsacudiu-meobraço.

-Nãosejatãoazedo,pai.Nuncatenteiderrubar fosseoque

fosseeopainuncatentou,peloseulado,ditar-nosanossavida,

anenhumdenós.Estou-lhegrataporisso.

Honestamenteobservei:

-Lamentodizer-te,querida,queteriagostadodefazê-lo.Foi

tua mãe quem insistiu comigo, nesse ponto. Achava que vocês

deviam ser livres para cometerem todas as asneiras que

entendessemesofressemosresultadosàvossaprópriacusta.

Page 48: Agatha christie - cai o pano

De novo senti os dedos de Judith apertarem-me o braço,

nervosamente.

- Bem sei. O pai teria gostado de poder preocupar-se

connosco,comoumagalinhaaempurrarospintos.Detestoque

me empurrem, que se preocupem comigo, por ninharias. Não o

teriasuportado.Masopaiconcordacomigo,nãoéverdade,queé

umaenormeinjustiçaseravidadealgumaspessoassacrificadas

peloegoísmodeoutras?

-Sim.Àsvezesissotambémacontece.Masnãoérazãopara

setomaremmedidasdrásticas...Qualquerpessoaé livrede ir-se

embora,setivercoragemparafazê-lo.

-Seráapenasumaquestãodecoragem?Terárealmenteessa

liberdade?

O seu tom de réplica era tão veemente que parei e fitei-a

espantado. Estava escuro de mais para que pudesse ver-lhe a

expressão do rosto, Judith prosseguiu, na sua voz grave e

perturbada:

- Há tanta coisa a considerar, antes de poder-se tomar

qualquer atitude de libertação... É tão difícil... Ambiente social,

censura pública, razões de natureza financeira, sentido de

responsabilidade, relutância em magoar-se alguém de quem

gostamos...tudoissoe,dooutrolado,háporvezespessoassem

escrúpulosqueacabampordominar-nos,porquesabemquenos

invadem todos esses sentimentos... Pessoas que são como

sanguessugas.

- Minha querida Judith! - exclamei, verdadeiramente

abismadocomafúriacomqueexprimiaoseuraciocínio.

Page 49: Agatha christie - cai o pano

Apercebeu-sedasuaprópriaexcitação,riu-seedesprendeuo

braçodomeu.

-Achaquefaleicomdemasiadaintensidade?inquiriu.-Eum

assuntoqueme faz exaltar, revoltarmesmo.Saibaque conheço

umcaso...deumvelhobruto.Alguémteveacoragemdeeliminá-

lo,paralibertaraquelesqueamava.Quemofezfoiumamulhere

sabeoquelhechamaram?Louca!Eraaúnicacoisajustaafazer

efê-la;porissofoicondenada.

Umhorrívelpressentimento invadiu-meoespírito.Aindahá

bempoucotempoouviraumahistóriasemelhante.

-Judith-exclamei,alarmado.-Dequecasoestástuafalar?

- De ninguém que conheça... De uns amigos dos Franklin.

Um velho chamado Litchfield. Era muito rico e quase fazia as

filhas passar fome.Nunca as deixava sair de casa, nem receber

visitas. No fundo era demente, mas não no sentido que a

medicinadefine.

-Efoiafilhamaisvelhaquemomatou-concluí.

- Oh! Vejo que leu o caso nos jornais. Suponho que o pai

considera isso assassínio, emboranão tenha sido praticado por

motivospessoais.MargaretLitchfieldentregou-seàPolícia.Penso

quefoiumamulhermuitocorajosa.Nãocreioqueeutivesseessa

coragem.

- A coragem de te entregares à Justiça, ou a coragem para

matar?

Page 50: Agatha christie - cai o pano

-Ambas.

-Satisfaz-meouvirisso,Judith.Nãogostodeteouvirfalarde

umcrimeedeprocuraresjustificá-lo...sejaqualforocaso-disse

severamente.-QuepensaodoutorFranklindesseacto?

-Pensaquefoijustoeeupensoquelheserviaperfeitamente-

retorquiuJudith.-Sabe,pai,algumaspessoasestão,realmente,

apedirqueasmatem!

-Nãogostodeouvir-tefalarnessestermos,Judith-censurei.

-Quemandouameter-teessasideiasnacabeça?

-Ninguém.

-Bem,apenastedigoqueconsiderotudoissoumdisparate

pernicioso.

-Estábem.Fiquemosassim.Apósumapausa,informou:

- Na verdade, vim ter com o pai para transmitir-Ihe uma

mensagem de Mistress Franklin: gostaria de vê-lo, se não se

importadesubiratéaoquartodela.

-Tereimuitogosto.Lamentoquesetenhasentidotãodoente

aopontodenãopoderestaràmesa,connosco.

-Ora-ripostouJudith.-Elaestáperfeitamente.Tudoaquilo

éfita.

Porvezes,osjovensmostram-sedeverasantipáticos.

Page 51: Agatha christie - cai o pano

CapítuloV

Só tivera ocasião de estar comMrs. Franklin uma vez. Era

umamulherdecercadetrintaecincoanosepoderiadescrevê-la

comopertencendoaotipodemadona.Grandesolhoscastanhos,

cabeloapartadoaomeioeumrostooblongoegentil.Eramuito

esbelta, de constituição delicada e a sua pele parecia de uma

fragilidadetransparente.

Estava recostada num canapé, rodeada de almofadas e

envergavaumfinopenteadorazul-pálido.

Franklin e Boyd Carrington também lá estavam, bebendo

café. Mrs. Franklin recebeu-me estendendo a mão, com um

sorrisodeboas-vindas.

-Queprazer tenho emvê-lo, capitãoHastings.Foi tãobom

paraJudith,poderteropaipertodela.Apequenatemtrabalhado

realmentedemasiado.

-Parecedar-sebemcomoseutrabalho-observei,enquanto

mantiveasuamãonaminha.

BárbaraFranklinpestanejouafirmativamente.

-Sim,creioquesesentefeliz.Nãosabeoqueéumapessoa

sentir-se doente. Que pensa, enfermeira? Oh! Deixe-me

apresentá-la.Éa enfermeiraCraven,que temsido terrivelmente

boaparamim.Nemseioquepoderiafazer,senãofosseela!Trata

demimcomodeumbebé.

A enfermeira Craven era alta, jovem, com uma muito bela

aparência e uma maravilhosa cabeça emoldurada por cabelo

Page 52: Agatha christie - cai o pano

castanho.Observei-lhe,derelance,asmãos,longasebrancas,tão

diferentesdamaioriadasenfermeirasdoshospitais.Pareceu-me

umagarotapaciturna.

Nãorespondeu,limitando-seainclinaracabeça.

- Mas, realmente - prosseguiu Mrs. Franklin - John tem

forçadoasuapequenaatrabalhardemasiado.Eleéoquesepode

chamarumcondutordeescravos.Ésumnegreiro,nãoéverdade,

John?

Omaridoestavadepéjuntodajanelaperscrutandoanoite.

Assobiava baixinho e chocalhava qualquer coisa dentro deuma

algibeira.Parousubitamenteaoouviramulhermencionaroseu

nomeeinquiriu:

-Quefoi,Bárbara?

-EstavaadizerqueexigestrabalhodemaisàpobreJudith.

Agora que o capitão Hastings está cá, vamos juntar os nossos

esforçoseimpedirqueabusesdapequenatãovergonhosamente.

A dissimulação não era a qualidade forte do Dr. Franklin.

Olhouemtornodesi,vagamente,evirou-separaJudith,numa

interrogaçãomuda.Depoisquasequemurmurou:

- Deve avisar-me quando se sente sobrecarregada. Judith

respondeu:

-Estãoapenasatentar fazer-seengraçados.Jáque falamos

de trabalho,desejoperguntar-lhe o quepensadaquela segunda

preparação,sabeaqualmerefiro...àquelaque...

JohnFranklinvirou-separaela,bruscamente,eaproveitoua

Page 53: Agatha christie - cai o pano

deixa:

- Tem razão, jáme esquecia... Vamos ao laboratório.Receio

que...Tenhodeassegurar-me...

Semprefalando,retiraram-sedoquarto.

Bárbara Franklin recostou-se nas almofadas e fechou os

olhos.

Algodesagradavelmente,aenfermeiraCravencomentou:

-Parece-mequeacondutoradeescravoséMissHastings!

Depois sorriu para amenizar a observação. Mrs. Franklin

abriuosolhos,pestanejouinfantilmente,emurmurou:

- Sinto-me tãoinadequada! Sei que devia mostrar-memais

interessada no trabalho de John, mas sou incapaz de fingir.

Compreendo que há qualquer coisa errada da minha parte...

mas...

FoiinterrompidaporumpigarreardeBoydCarringtonquese

achavajuntodalareira.Afastou-seligeiramentedofogãodesalae

sorriu:

-Patetice,Babs.Vocêestáperfeitamente,noseupapel.Nãose

apoquente.

-Mas,Bill querido,averdadeéquemepreocupo.Sinto-me

tão desencorajada. Sou incapaz de mostrar-me interessada, de

simular... é horrível! Os porquinhos-da-índia e os ratos e toda

aquelaporcaria...Uhh!

Page 54: Agatha christie - cai o pano

Estremeceu, como que arrepiada. Em seguida, com novo

pestanejarmuitodoceparaBoyd,prosseguiu:

-Seiqueéestúpido,masquequer?Souumatola!Nãonasci

para certas coisas. Confesso que tudo aquilo me mete nojo.

Gostaria apenas de pensar em coisas belas, como flores e

pássarosecriançasbrincandoaosol.Vocêsabeissobem,Bill.

Boyd aproximou-se e pegou na mão que ela lhe estendeu,

queixosamente. Bárbara envolveu-o com um olharmuito terno,

como que agradecida pela protecção que ele lhe dispensava...

como que considerando-o o homem que efectivamente a

compreendiaelheservia.

- Não mudou muito desde os seus dezassete anos, Babs -

disseele,realmentecomarprotector.Lembra-sedojardimdesua

casa, com o tanquezinho para o banho dos pássaros, com os

coqueirosemvolta?

Virou-separamimeesclareceu:

-Bárbaraeeusomosvelhosparceiros.

-Velhos!-protestouela.

-Oh!Nãonegoquevocêtemmenosquinzeanosdoqueeu,

masbrincámosjuntos,quandovocêeraumagarotadedezanos,

ou pouco mais, e eu era um rapaz de barba feita. Quando

regressei,muitodepoisdesi,vimencontrá-latransformadanuma

linda jovem, mesmo na altura de fazer a sua entrada na

sociedade. Tive ainda a sorte de acompanhá-la aos campos de

golfeedeensiná-laaempunharumclub.Lembra-se?

Page 55: Agatha christie - cai o pano

- Oh, Bill! Como poderia esquecer-me dessestão agradáveis

momentos!

Dirigindo-se-me,Bárbaraexplicou:

-Osmeus viviam jánestapartedomundo, tendo-se fixado

emKnatton.EBill,semprequevinhadelicençapassavaunsdias

comseutio,SirEverard,queigualmenteviviaemKnatton.

-Equemausoléueraaquelacasa!-motejouBoyd.-Muitas

vezesdesesperei,receandonãopodertornaroambientevivível!

- Oh Bill! Podia ter sido maravilhoso... verdadeiramente

maravilhoso.

-Sim,Babs,masoproblemafoieunãotertidoideiasnessa

altura a seu respeito. Considerava-a ainda uma criança, sabe?

Banhos e algumas cadeiras realmente confortáveis... era tudo o

que então podia pensar de Knatton. Aquilo precisava de uma

mulher.

-Eutiveocasiãodedizer-lhe.Podiaajudá-lo.Asério.

Sir William Boyd consultou duvidosamente a enfermeira

Cravencomoolhar.

-Sevocêsesentissesuficientementeforte,podíamostentar...

Queacha,enfermeira?

-Certamente, SirWilliam. Penso realmente queumpasseio

só faria bem a Mistress Franklin. É necessário que ela não se

acheimaginativamenteinválida.

- Nesse caso, está combinado - entusiasmou-se Boyd. - E

Page 56: Agatha christie - cai o pano

agoravaidormirtranquila,paraestaremboascondiçõesderever,

amanhã,olocaldasuameninice.

Ambosdesejámosboa-noiteaMrs.Franklinesaímosjuntos.

Enquanto descíamos as escadas, Boyd Carrington disse,

bruscamente:

- Você não faz ideia que adorável criatura ela era, quando

tinha dezassete anos. Eu voltara a casa, quando regressei da

Birmânia... minha mulher morrera lá, não sei se sabe?... Não

importaquelhedigaquefiqueicomocoraçãodespedaçado.Com

otempo,comeceiapensaremBárbara,aprender-meumpoucoà

ideia... mas sabe como as coisas são! Casou com Franklin três

anosmaistarde.Nãocreioquetenhamfeitoumcasamentofeliz.

Estouconvencidoqueé issoquea fazsentir-sedoente.Orapaz

não a entende nem a aprecia. E ela é do género sensitivo,

extremamente nervosa, creio eu. Tirem-na daqui, divirtam-na,

demonstreminteressepelasuapessoaeverãocomosetransforma

numamulhercompletamentediferenteesã.Masaquelacriatura

apenas se interessa por microrganismos, tubos de ensaio e

culturasnativasdaÁfricaOcidental...sabecomoé!

ESirWilliamBoydCarringtonpigarreoucensurador.

Penseiquepudessehaveralgodemuitointeressanteemtudo

quantomedissera.

Primeiramente,fiqueisurpreendidocomapossibilidadedeele

interessar-seporaquelamulher,doenteeaparentementetolinha,

instalada numa autêntica caixa de bombons. Boyd era um

homemdetalvitalidadeeamantedeacçãoedevidaaoarlivre,

que, provavelmente, se sentira impressionado e impaciente

Page 57: Agatha christie - cai o pano

peranteaqueletiponeuróticodeinválida.

Contudo, Bárbara Franklin devia ter sido, realmente, uma

rapariga encantadora na sua juventude e muitos homens,

especialmente os do tipo idealístico, como eu catalogava Sir

William,ficamprofundamenteimpressionadoscomrecordaçõese

apresençadessetipofeminino.

No piso inferior,Mrs. Luttrell carregouna nossa direcção e

sugeriuumjogodebrídege.Descartei-mecomopretextodeque

desejavafazercompanhiaaomeuamigoPoirot.

Fuidarcomomeuamigodeitadonacama.Curtissandava

por ali, às voltas, fazendo ligeiras arrumações, mas foi-se logo

embora,malentrei,efechouaportaatrásdesi.

-Diabosolevem,Poirot,asieàsuamaniadetirarmistérios

damanga.GasteitodaanoiteatentardescobrirqueméX.

-Belo!Issodevetê-lodistraídoumpouco.Ninguémcomentou

asuaabstracção,perguntando-lhequesepassavaconsigo?

Não consegui ocultar um certo embaraço, ao recordar a

abordagemqueJudithme fizera.Noteinos lábiosdePoirotum

sorriso discreto, aparentemente trocista, mas limitou-se a

inquirir:

-Eaqueconclusõeschegou?

-Diz-me,depois,seacertei?

-Demaneiranenhuma.

Sondei-lheorosto,agorainexpressivo.

Page 58: Agatha christie - cai o pano

-EstiveaconsiderarocasodeNorton-comecei.Orostode

Poirotnãodenunciouamenoralteração.

- Não encontrei nada de suspeito nele, a não ser achá-lo

diferente das demais pessoas. Não me pareceu um criminoso

normal.

- Há muitas maneiras de classificar os criminosos típicos,

mas temos de admitir que um criminoso normal pode simular

astutamenteumacertaanormalidade.

-Quequerdizercomisso?

- Suponhamos que um estranho aparece algumas semanas

antesdeserpraticadoumcrime,numdadolocal,semqualquer

razãoaparente.Tornar-se-iaimediatamentenotado,apósocrime.

Contudo, se fosse uma pessoa de aspecto e carácter

desapercebidos, absorvido por um desporto qualquer, como por

exemplo a pesca, atrairiamuitomenos suspeitas sobre as suas

intençõesesobreoseuposterioracto.

-Comoobservarpássaros,porexemplo.Eraoqueeuestavaa

sugerir.

-Poroutrolado-prosseguiuPoirot-,aindaseriamelhorseo

criminosofosseumapessoadesituaçãosocialproeminente.Mais

dificilmenteseriaalvodesuspeitas.

Fitei-oatentamenteparaverse,efectivamente,essahipótese

teria algum fundamento, quanto ao hipotético X, mas o meu

amigo não se descoseu. Como nada apontava de definitivo no

casoNorton,citado,enocasoBoyd,apenassugerido,mencionei

a hipótese do coronel Luttrell. Teria aberto aquela pensão,

Page 59: Agatha christie - cai o pano

unicamentecomofitodenelapoderpraticaro“seu”crime?

Gentilmente,Poirotsacudiuacabeça,masasuanegativanão

sereferiaàsugestão.

-Nãoénomeurostoquevocêvaileraresposta-disse.

- Sabe que éumhomem irritante,meu amigo? desabafei. -

Apesardetudo,Nortonnãoéomeuúnicosuspeito.Quemediza

essetipo,Allerton?

Mantendooseurostoimpassível,indagou:

-Nãogostadele?

-Nemumpedacinho.

- Aposto como é o género de pessoa que você considera

repelente,hem?

-Exacto!-confirmei.-Quepensadele?

-Dir-lhe-eiapenasqueéumhomemmuitoatractivo...para

asmulheres.

Satisfez-me verificar que mantínhamos uma identidade de

opiniões.

- Como as mulheres podem ser idiotas! - exclamei. - Que

diabopodemelasvernumtipocomoaquele?

- Sabe-se lá? Mas é sempre assim. Omauvais sujet... as

mulheressãosempreatraídasporessaespéciedeenergúmenos.

-Masporquê?-insisti.Poirotencolheuosombros.

Page 60: Agatha christie - cai o pano

-Talvezvejamnelesqualquercoisaquenóssomosincapazes

dediscernir.

-Masoquê?

Apósumabrevepausa,declarou:

-Perigo,possivelmente...Todasaspessoasbuscamumpouco

de perigo, como se fosse uma especiaria para excitar a vida.

Algumas procuram-no em espectáculos, como as touradas.

Outras lêem livros acerca de situações emotivas; outras, ainda,

procuram a excitação do perigo nos cinemas. Asmulheres têm

mais razão do que os homens em procurarem esses derivativos

indirectos, porque, enquanto eles correm perigos sob vários

aspectos, elas só podem encontrá-los, na generalidade, em

enredos de sexo. Talvez seja por isso que sentem atracção pelo

bafodotigre;queousamroçar-sepelosespinhosnaPrimavera.O

parceirosadioquedariaumexcelenteeafeiçoadomarido,passam

poreledesinteressadamente.

Durantealgunsminutos,permaneci caladoapensarnestas

considerações.Depois,volteiaotemaprévio:

- Sabe uma coisa, Poirot? Ser-me-ia muito mais fácil

descobrirqueméX,sepudesseinterrogartodasaspessoasacerca

dassuasrelaçõescomalgunsdosindivíduosimplicadosnaqueles

cincocrimes.

Disse isto triunfalmente, considerando a possibilidade

aceitável,masPoirotfitou-mecomumolhartrocistaeretorquiu.

-Nãosoliciteiasuapresença,aqui,Hastings,paraquevocê

fosserepisarotrilhodainvestigaçãoquejálaboriosamentetracei.

Page 61: Agatha christie - cai o pano

Edesde já lhedigoquenãoseria tãosimplescomovocêpensa.

Quatro daqueles casos ocorreram neste mesmo condado. As

pessoas reunidas sob este tecto não são uma colecção de

estranhos, vindos independentemente, por decisão esporádica.

Não é verdadeiramente umhotel, no sentido lato da palavra. É

mais um ponto de reunião do que um centro ocasional de

convívio. Os Luttrell fazem parte deste mundo restrito; vieram

paraaqui,comoqueàaventura.Masosoutros...

Osolhosdomeuamigocintilaramexpressivamente.

- Os outros - continuou - são amigos, ou amigos

recomendados por outros amigos. Sir William persuadiu os

Franklinavirematécá.Estes,porseuturno,desafiaramNorton

ecreioquetambémsugeriramavindadeMissCole...eassimpor

diante.Omesmoédizerquetodosospresentesseconheciamjá

directa ou indirectamente. Esta tese aplica-se igualmente a X,

paraquemosfactosgeraisnãoocultamsurpresas.Elesabeentre

quem vai operar, como sempre o soube nos casos precedentes.

Analise, por exemplo, o crimeRiggs.Aaldeia ondeocorreunão

fica longede casado tiodeBoydCarrington.TambémMistress

Franklin vivia aqui perto. O hotel da aldeia é agora muito

frequentadoporturistas.AlgunsdosamigosdeMistressFranklin

costumavamviratécá.OprópriodoutorFranklinjácáviveu.É

muitopossívelqueNortoneMissColetenhamestadonestaárea

e,provavelmente,estiverammesmo.

Comoeuesboçasseumgestoimpaciente,Poirottravou-mo:

-Não,não,meuamigo.Peco-lhequenão insistaemqueeu

lhereveleumsegredoqueconsideroperigosoparaasuaprópria

segurança.Recuso-me,desdesempre,afazê-lo.

Page 62: Agatha christie - cai o pano

- Acho isso absolutamente tolo - declarei, contrariado. -

Confesso-lhe que me apetece mandar passear tudo isto. Estou

fartodeouvi-loreferir-seàminhaimpossibilidadededisfarçarum

pensamento.Nãotempiadanenhuma.

Calmamente,Poirotinquiriu:

-Estácertodequeéaúnicarazãoquemeimpedededizer-

lhe quem é X? Não compreende, meu amigo, que esse

conhecimentoéverdadeiramenteperigoso?Nãopercebequeestou

profundamentepreocupadocomasuaprópriasegurança?

Olhei-odebocaaberta.Atéàqueleminuto,nãoderaadevida

atenção a esse ângulo da questão. Quando antes mo sugerira,

não lhe ligara a menor importância. Reconhecia agora que ele

tinha razão. Se um criminoso praticara, com efectivo sucesso,

cincocrimes,conseguindomanter-seinsuspeito,nãohesitariaem

eliminaralguémquelheseguisseapista.

-Mas,nessecaso,você...vocêtambémcorreperigo,Poirot!

Comumgestodesupremodesdém,respondeu:

-Bemsabequeestouacostumadoaisso.Possoeseiproteger-

me.Enãotenhoaquicomigoomeufielmastim,paraproteger-me

aindamaiseficientemente?OmeuexcelenteelealHastings?

Page 63: Agatha christie - cai o pano

CapítuloVI

Constava que Poirot gostava de viver diurnamente: deitar

cedoecedoerguer.Portanto,deixei-oparaquedormisseedesci

as escadas, parando alguns momentos para trocar impressões

com o criado de quarto, Curtiss, com quem me cruzei no

caminho.

Achei que era um indivíduo sólido, lento de percepçãomas

sincero e competente. Estava ao serviço de Poirot, desde que

regressaradoEgipto.Informou-medequeasaúdedoseupatrão

parecia ter melhorado grandemente, mas que sofrera, depois

disso, alguns ataques do coração, segundo ele mesmo lhe

confessara, desconfiando tratar-se de angina de peito. Nos

últimos meses, talvez dois, começara a manifestar um certo

agravamento, quanto ao artritismo, amarrando-o à cadeira de

rodasouaoleito.

Penseique,naverdade, tínhamospassado juntosunsbelos

dias, na aventurosa senda anticrime, em que o meu galante

amigo se tornara famoso. Mesmo agora, fraco e coxo, quase

totalmente paralítico, mantinha o mesmo espírito indomável,

prontoainvestirnessamatériaemqueeraomaishábilperitode

todosostempos.

Acabeidedescerasescadas,comumindelévelsentimentode

tristeza.Dificilmentepodiaconcebersentir-mefeliznavida,semo

meuqueridoamigoPoirot.

Tinhamacabadoumapartida de brídegena sala de estar e

convidaram-meacomparticiparnaqueselheseguia.Penseique

issoserviriaparadistrair-meumpoucoeaceitei.BoydCarrington

Page 64: Agatha christie - cai o pano

largouamesaetomei-lheolugar,emfrentedeNorton,tendoos

Luttrellporadversários.

Mrs. Luttrell mostrou-se ostensivamente desagradada com

estadisposiçãodejogo.Mordeuolábiosuperiore,subitamente,

nãosóse lheextinguiuoaparenteencanto,mas tambémoseu

sotaqueirlandês...contudo,sópormomentos.

Embrevepercebiporquê.Ulteriormentetiveocasiãodejogar

váriasvezescomocoronele,naverdade,nãosepoderiadizerque

fosse bom jogador. Era o que poderia chamar-se um bridegista

mediano e imensamente distraído. De quando em quando,

cometia o seuerro,por faltadeatenção,masquando jogavade

parceria comMrs. Luttrell, os disparates sucediam-se comuma

frequência desencorajante. Não havia dúvida de que ela o

enervava,tornando-omuitopiorjogadordoqueelerealmenteera,

naausênciadaesposa.Peloseulado,Mrs.Luttrelljogavamuito

conscienciosamente, com extrema atenção às vozes, observando

até os movimentos dos dedos e perscrutando atentamente as

expressões do rosto não só do seu parceiro, mas também dos

adversários.Poder-se-iadizerquejogavaparaganhar.

DepressacompreendioquePoirotpretenderaexprimircomo

termo “envinagrar”. Não perdoava ao marido o mais pequeno

deslize e a maneira como expressava a sua crítica justificava a

imagem de “língua viperina”. O ambiente tornava-se

verdadeiramente desagradável e tantoNorton como eu sentimo-

nosaliviados,quandoapartidaacabou.

Com o pretexto da hora tardia, ambos recusámos encetar

nova partida e, quando nos retirámos, Norton exprimiu-me

descuidadamenteosseussentimentos.

Page 65: Agatha christie - cai o pano

- Pode crer que não aprecio jogar nestas circunstâncias,

Hastings.Dá-me cabodo fígado ver o pobre coronel ser tratado

daquelamaneira.Pobre tipo!Não sei comoaguentaaquilo, sem

usar os termos apropriadosdeumcoronel que serviuna India.

Poiselamerecia-o...ouvirumaouduasdasboas!

- Pschiu! - avisei Norton, receoso de que a sua voz fosse

ouvida pelo “pobre” coronel que estava atrás denós, nãomuito

distante,equeprovavelmenteouviramesmo.

- É realmente revoltante - insistiu ele. - Mas tem o ferro

cravado na alma. Nem se revolta. Vai atrás dela: “Sim, minha

querida;nãominhaquerida;perdãominhaquerida”, cofiandoo

bigode e curvando-se para que ela lhe ponha a albarda. Nem

poderiaendireitaraespinha,mesmoqueotentasse.

Baixei a cabeça, desconsoladamente, pois parecia-me que

Nortontinharazão.

Parámosnoátrioenoteiqueaportadojardimestavaaberta,

entrandooventoporela.

-Émelhorfecharaquilo,hem?-propus.Nortonhesitouum

momento,antesdedecidir:

- Bem... é possível que nem todos tenham entrado. Uma

súbitasuspeitaatacou-meoespírito.

-Quemestáaindaláfora?-indaguei.

-Asuafilha,creio...e...bem,creioqueAllerton.

Tentou falar com uma intonação casual, mas a informação

vinha na sequência da minha conversa com Poirot e senti-me

Page 66: Agatha christie - cai o pano

subitamentepreocupado.

JuditheAllerton!CertamentequeaminhaJudith,espertae

fria,nãosedeixarialevarporumtipocomoAÍlerton.Decertoque

seriacapazdeleratravésdele,nasentrelinhas.

Repeti,paramimmesmoestaopiniãoque,infelizmente,não

setornavaconvicção.Enquantomedespia,adúvidadesagradável

nãosedesvaneceuepersistiuquandoprocureiconciliarosono,

virando-me na cama de um lado para outro, sem encontrar

posiçãoparaocorpo,nempazparaoespírito.

Tal como sempre nos acontece quando nos deitamos com

umapreocupação,osproblemasressurgem-nosexagerados.Uma

vagadedesesperoinvadiu-me.Seaomenosminhamulherfosse

viva! Neste capítulo, como em alguns outros, era muito mais

avisadadoqueeuesabianãosócompreenderascrianças,mas

também falar com elas e convencê-las. Sem ela, sentia-me

miseravelmenteincapaz,comoquedesarmado.SeJudithiaagora

arruinarassuaspossibilidadesdefelicidade,seiaenveredarpor

umtrilhodesofrimento...

Desesperado, acendi a luz e levantei-me. Aquilo não podia

continuar.Precisavadedormirumpouco.Dirigi-meaolavatórioe

olheiduvidosamenteparaumfrascodeaspirinaqueestavasobre

aprateleira.

Não. Precisava de qualquer coisa mais forte do que isso.

Pensei que talvez Poirot tivesse algo mais forte, do género

calmanteousoporífero.Atravesseiocorredoremdirecçãoaoseu

quarto, mas parei, à porta, envergonhado, com a ideia de ir

acordaromeupobreamigo.

Page 67: Agatha christie - cai o pano

Enquanto hesitava, ouvi passos no corredor, na minha

direcção.EraAllerton.Comoaluzerafracasómeapercebideque

se tratava dele, quando já estava junto a mim. Sorria para si

próprio e não gostei do sorriso. Encarou comigo e ergueu as

sobrancelhas:

-Olá,Hastings!Aindaapé?

-Nãoconseguiadormir-respondisecamente.

-Esóisso?Venhacomigoquejálheresolvooproblema.

Segui-oatéaoquartoqueeraimediatoaomeu.Umaestanha

fascinação impelia-meaestudaressehomem,maisdeperto,na

suaintimidade.

-Vocêdeita-semuitotarde,peloquevejo-comentei.

-Nunca fuidogénerode ir cedoparaa cama.Nemmesmo

quando praticava desporto. As belas noites foram feitas para

seremaproveitadas.

Riu-seetambémnãogosteidoriso.Segui-oatéaoquartode

cama.Abriuumpequenoarmárioeretirouládedentroumfrasco

decápsulas.

-Aquitem-ofereceu.-Istopõe-noadormir,nãotardanada,

elindossonhos.Slumberyl,éonomedessadroga.

Oentusiasmoquemanifestavanavozpareceu-medenunciar

oapreciadordedrogas.

Desconfiado,sondei:

Page 68: Agatha christie - cai o pano

-Eperigoso?

- Se tomar demasiadas cápsulas ao mesmo tempo,

certamente. É um barbitúricomuito forte e, portanto, em dose

excessivatorna-seterrivelmentetóxico.

Sorriuapenascomoscantosdoslábiosdandoaorostouma

expressãodesagradável.

- Não sabia que podia comprar-se uma droga destas, sem

receitamédica-admirei-me,comintencionalingenuidade.

- E não pode, meu velho. Mas é como se pudesse. Tenho

facilidadeemconsegui-la.Sirva-seàvontade.

Suponho que foi loucura de minha parte, mas não pude

resistiraoimpulsodeperguntar-lhe:

- Conheceu Etherington, segundo creio, não? Compreendi,

imediatamente, que lhe tocara em qualquer ponto sensível. Os

seusolhosmostraram-secautelososeduros.

-Sim...pobretipo!Conheci-o,sim.

Comoeunãofizessequalquercomentário,acrescentou:

- Na realidade, Etherington tomava drogas, mas abusou

delas. As pessoas têm de saber quando devem parar. Ele não

soubeedeumauresultado.Quemtevesorte foiamulher.Sea

simpatiadojúrinãoestivessedoseulado,teriasidoenforcada.

Entregou-meumpardecápsulasesondoucasualmente:

-Evocê,conheceuEtherington?Respondi-lhefrancamente:

Page 69: Agatha christie - cai o pano

-Não.

Poruminstante,pareceuperderosestribos,semsabercomo

reagir. Depois disfarçou com uma ruidosa gargalhada. Ainda

menosgosteidela.

- Era um tipo giro. Não se poderia considerar um alegre

compinchadaescola,mas,àsvezes,nãoeramaucompanheiro.

Agradeci-lheascápsulasevolteiparaomeuquarto.

Quandomeestireiaocompridonoscolchõeseapagueialuz,

perguntei-mesenãoteriacometidoumaasneira.

Cadavezsematerializavamaisnomeuespíritoahipótesede

Allerton ser X... E tinha-lhe permitido pensar que suspeitava

dessefacto.

Page 70: Agatha christie - cai o pano

CapítuloVII

I

EstanarrativadosdiasquepasseiemStylesdeveráparecer,

decertomodo,baralhada.Aopretenderreproduzi-la,verificoque

melimiteiacompilarumasériedeconversasdispersas,palavras

sugestivasefrasesquesemegravaramnaconsciência.

A ideia que mais me apoquentou foi verificar que a

enfermidadedePoirotnãoapresentavagrandespossibilidadesde

cura.Seoseucérebropermaneciasão,atrabalharperfeitamente,

todooinvólucrofísicoestavatãofracoquecompreendicompetir-

mesermaisactivonasminhasdiligências.Teriadeagircomose

fosseosolhoseosouvidosdomeuamigoPoirot.

TodososdiasCurtisstinhaderetiraroseupatrãodacamae

carregá-lo para a cadeira de rodas. Depois de tratar dele,

convenientemente, empurrava-o até ao jardim, a menos que o

tempo não fosse propício a esse limitado banho de liberdade.

Nessecaso,conduzia-osimplesmenteparaasaladeestar.

Certamenteque,aí,aspessoaspassavamporeleedirigiam-

lhealgumaspalavras,masnãoeraamesmacoisadoquepoder

procurá-las como e onde quisesse, para interrogá-las sub-

repticiamente,comosóelesabiafazer.Ali,nãopodiaescolhê-las.

Era também uma espécie de caça, mas não como apreciava, à

maneirademastim,masdearanha,nasuateia.

NodiaseguinteàminhachegadafuilevadoporFranklinaté

aum velho estúdio, ao fundo do jardim, agora improvisado em

laboratóriocientífico.

Page 71: Agatha christie - cai o pano

Diga-sedesde jáquenão tenho inclinaçõesespeciaisparaa

ciência e creio que, perante o que animadamente me mostrou,

useidoscomentárioseexpressõesinadequadas.Nãosereipoisa

pessoa indicadapara explicar, precisamente, no que consistia o

seutrabalho.

Como simples homem de leis, depreendi que efectuava

experiênciascomváriosalcalóidesderivadosdeumasementeda

Calábria, conhecida porPsysostigmina venenosum. Só fiquei a

saber mais alguma coisa daquela história, depois de ter falado

acercadela,oumelhor,depoisdeterouvidoFranklinexplicá-laa

Poirot,naminhapresença.

Quando Judith tentou elucidar-me acerca dos seus

trabalhos, fê-lo como é costume da gente nova, que se

especializouemqualquermatéria,eutilizoutalterminologiaque

fiquei namesma, por demasiado técnica. Referiu-se sabiamente

aos alcalóides de fisostigmina, eserina, fisoveína e generesina, e

então embrenhou-se na nomenclatura de uma série de

substâncias que até nos custa pronunciar, como prostigmina

dimetilcarbinol, hidroxiprolina, trimetilomelanina, etc. etc., que

pareciamserosseusencantosemelevaramaperguntar-lheque

raiodeutilidade tinhaaquilo tudoparaaespéciehumana.Não

há nada que mais aborreça um cientista do que ouvir tal

pergunta. Ainda foi mais extensa e complexa nas suas

explicações.Compreendiqueexistiaumacertaetniadeindígenas

na África Ocidental que possuíam uma notável imunidade em

relaçãoaumadoençachamadajordanitite,portersidodetectada

pela primeira vez por um cientista de nome Jordan e que fora

contraídaporalgunseuropeuscomresultadosfatais.

Nãoquisdesencadeara fúriadeJudith,observando-lheque

Page 72: Agatha christie - cai o pano

seriapreferívelprocuraremumadrogaquecurasseaspessoasde

qualqueretniadatãopropagadafaltadenutrição.

Como que adivinhando a minha dúvida quanto à urgente

utilidade de tal estudo, adiantou que não interessava apenas a

ciência com o objectivo do benefício da Humanidade, mas

também pelo puro alargamento de horizontes no campo do

conhecimento.

Observei algumas lamelas com preparações microscópicas,

algumas fotografias de negros de aspecto doentio, custando-me

diferençá-losdossaudáveis,olheiderelanceparaumagaiolacom

ratos e senti-me deveras aliviado quando fruí da primeira

oportunidadedesairparaoarlivre.

Mas,comodisse,aconversaquepresenciei,entrePoiroteo

Dr.Franklin,jámedespertoubastanteinteresse.

Disse-lheesteúltimo:

- Você sabe, Poirot, que os efeitos desta semente se

enquadram mais na sua especialidade do que na minha?

Algumas tribos acreditam que tem o dom de provar a

culpabilidade ou a inocência de uma pessoa. Afirmam com

absolutaconvicçãoqueaingestãodasementeprovocaamortedo

culpadoepoupaoinocente.

-Provavelmente,concluemquetodossãoculpadosdealguma

coisa,porque,seévenenosa,morremtodosdepoisde ingeri-la-

observouPoirot.

- Não, nem todos morrem. O facto foi cientificamente

verificado,masnadatemdesobrenatural.Narealidadeháduas

Page 73: Agatha christie - cai o pano

espécies de sementes, extraordinariamente semelhantes mas,

efectivamente, diferentes. Ambas contêm fisostigmina e

generesinaeasrestantesmatériascomponentes,masumadelas

possui tambémumoutro alcalóide quepodemos isolar, oupelo

menos tentamos isolar, que neutraliza o efeito mortífero dos

outros.Eomaisnotáveléqueaquelesqueingeremessasegunda

espécie,neutralizantedaacçãofataldasprimeiras...oquefazem

num ritual especial, ficam também imunizados em relação à

jordanitite. Esta substância produz um efeito interessantíssimo

sobreo sistemamuscular, semconsequênciasdeletérias.Estáa

ver como se torna empolgante o seu estudo. Infelizmente, o

alcalóide, no seu estado puro, é muito instável. Só há muito

pouco tempo comecei a obter resultados apreciáveis,mas quero

isolá-lodefinitivamente.Compreende,éumtrabalhoquetemde

ser levado a cabo. Quanto mais próximos nos sentimos de

alcançaronossoobjectivo,maioréoestímuloeaânsiadeatingi-

lo.

Calou-sebruscamente,paradepoisdesfechar:

- Perdoem toda esta desarrumação, mas... se não levam a

mal...tenhodecontinuaraocupar-medisto.

-Talcomodisse-comentouPoirot-,aminhaprofissãoseria

altamente simplificada se eu pudesse utilizar essa semente, na

detecçãodosculpados,separando-osdosinocentes,comootrigo

dojoio.Quemmederapossuirumasubstância,aquiàmão,com

asmesmaspropriedadesdessasemente.

Franklinfezumacaretaerespondeu:

-Oproblemanãoficariaporaí.Aquestãoresume-sea:quem

Page 74: Agatha christie - cai o pano

éefectivamenteculpadoequeméinocente?

-Devo depreender - intervim -, que há dúvida acerca desse

assunto?

Franklinvirou-separamimeinterrogou:

-Oqueérealmentemau,nestemundo?Eoqueérealmente

bom? As opiniões dos homens sobre essa matéria tem variado

atravésdosséculos.Oquepodemosdiscernirnoespíritohumano

resume-se, provavelmente, a um sentimento de culpa ou a um

sentimentodeinocência.Masisso,comotesteexperimental,não

valedenada.

- Não vejo como chega a essa conclusão - disse, levemente

confuso.

-Meucaroamigo-retorquiu-me-,suponhaqueumhomem

pensa ter o direito divino de matar; por exemplo, o poder

discriminativo sobre a vida e a morte que alguns ditadores se

atribuíram. Poderá cometer uma acção que você considera

criminosa, mas que ele considera justa e inocente. Onde está

definidoomaleobem?

-Énaturalqueelesintaumsentimentodeculpa-objectei.

- Se considera a sua acção boa e justa, não terá esse

sentimento a atormentá-lo.Há imensa gente que eugostaria de

matar-afirmouoDr.Franklincomveemência.-Nãoacreditoque

a minha consciência me impedisse o sono, depois de eliminar

aquelesque julgueiperniciososà existência, ouà felicidadedos

seussemelhantes.Estouconvencido,sabe?,queoitentaporcento

daHumanidadepensaquedeveriaexterminaralguém.Todosnós

Page 75: Agatha christie - cai o pano

jáodesejámosouaindaodesejamos.

Afastou-se,comexpressãopensativaeassobiandobaixinho.

Fiquei a olhá-lo pasmado, mas uma cotovelada ligeira de

Poirotfez-mevoltaràrealidade.

-Você,meuamigo-motejouele-,parecequecaiunumpoço

de víboras! Esperemos que o doutor Franklin não ponha em

práticaassuasprédicas.

Aindaabismado,observei:

-Mas,suponhaquepõe?

II

Depoisdealgumashesitações,decidisondarJudithacercade

Allerton. Achei dever perscrutar quais eram as suas reacções a

seurespeito.

Sabia que ela era uma moça com a cabeça no seu lugar,

muitocapazdetomarcontadesiprópria,enãopodiaacreditar

quepudesse,dequalquermaneira, interessar-seporumtipodo

génerodeAllerton.Suponhoagoraqueresolvi,então,abordaro

assuntounicamenteparareassegurar-medessaminhaconvicção.

Infelizmente não consegui obter os resultados esperados.

Confesso que entrei no assunto pouco diplomaticamente. Nada

há que os jovensmais detestem do que os conselhos dosmais

velhos. Tentei dar às minhas palavras um tom carinhoso e,

aparentemente,desinteressado.

Judithreagiuimediatamente,comsarcásticahostilidade:

Page 76: Agatha christie - cai o pano

-Queéisso?Umavisopaternocontraolobomau?

-Não,Judith,demaneiranenhuma.

-ApostoquenãogostadomajorAllerton.

-Francamente,nãomeagradamesmonadae suponhoque

tambémsentesomesmo,não?

-Porquenão?

-Bem...creioquenãoéoteutipo...poisnão?

-Queéqueconsideraseromeutipo?Fitava-medirectamente

nosolhos,comoscantosdoslábiossubidos,numartrocista.

- Certamente que não gosta dele -motejou. Não deve ser o

tipodopai,maseugosto.Acho-omuitodivertido.

-Divertido,talvez-retorqui-,masnãopassadisso...espero.

Deliberadamente,Judithripostou:

-Éumhomemmuitoatraente.Todasasmulheresoacham

deverasinteressante.Comoénatural,oshomensnão.

-Evidentementequenão!-afirmeie,descontrolando-meum

pouco,acrescentei:-Estivestecomele,láfora,ontemànoite...

Ainda não tinha acabado a frase, já a tempestade se

desencadeara:

- Francamente, pai, isso parece demasiado idiota de sua

parte.Nãocompreendeque,naminhaidade,umaraparigajáestá

aptaa tratardosseusprópriosassuntos?Ounãomeconsidera

Page 77: Agatha christie - cai o pano

capazdeolharpormim?Sereianormalaseusolhos?Creioque

nãotemodireitodeandaravigiar-meeaverificaroquefaço,ou

quem é que escolho para as minhas amizades. É essa

interferência na vida dos filhos que tem causado o seu

afastamentodospaisedasmães.Gostoimensodesi,pai,masjá

souumamulheradultaeaminhavidasóamimmedizrespeito.

NãovenhaarmarcomigoemMisterBarrett.

Senti-metãomagoadocomaquelaobservaçãoindelicadaque

fiqueiincapazdereplicar,eJudithafastou-serapidamente.

Tive a sensação de que a minha intervenção fora

contraproducente.

Permanecera ali, parado, entregue às minhas preocupadas

cogitações, quando fui sacudido pela voz da enfermeira deMrs.

Franklin:

- Está hoje muito pensativo, capitão Hastings! Virei-me,

satisfeitopelainterrupção.

-Estousemprepensativo-respondi.-Océrebronãomeserve

paraoutracoisa,MissCraven.

A jovem enfermeira era uma mulher realmente bonita, de

formasesbeltasebemdelineadas,emboraassuasmaneirasme

parecessem ficticiamenteanimadas,poisnotava-se-lhenoolhar,

mesmo quando sorria, algo de melancólico. Porém, não tive

dúvida de que era uma mulher inteligente e indubitavelmente

agradável.

Acabaradeinstalarasuapacientenumsolárioimprovisado,

nãomuitolongedolaboratório.

Page 78: Agatha christie - cai o pano

Depois de trocadas as palavras rituais, que o abuso social

tornapoucosignificativas,perguntei:

-AchaqueMistressFranklinseinteressapelostrabalhosdo

marido?

AenfermeiraCravenergueuacabeça,comoseprecisassede

ponderar bem a questão antes de dar uma resposta, mas

formulou-aimediatamente:

-Oh, éumaactividadedemasiado técnicaparaela.Nãoéo

que se possa chamar uma mulher inteligente, sabe, capitão

Hastings?

-Sim,creioquenão!

-Como é natural, o trabalho do doutor Franklin só poderá

agradaraumapessoaquesaibaouseinteressepormedicina.É,

na verdade, um homem inteligente, brilhante, mesmo, sabe?

Pobrehomem!Tenhopenadele.

-Penadele?

-Sim.Játenhovisto issoacontecer frequentemente...Casar

comotipodemulhererrado,queroeudizer.

-Achaportantoqueelaéotipoerradoparaele?

-Eosenhornãoacha?Nadatêmdecomumumcomooutro.

- Ele dá-me a impressão de gostar muito dela arrisquei. -

Muitoatentoatodososseusdesejos...semprepronto...

AenfermeiraCravenriu-seecomentou:

Page 79: Agatha christie - cai o pano

-Elafazporisso,realmente.

- Pensa que ela o ilude... com a sua doença - inquiri,

manifestandocertadúvida.

Desta vez a enfermeira Craven soltou uma pequena

gargalhada.

- Há muito pouca coisa que se possa ensinar-lhe sobre a

maneira de levar a água ao seu moinho. Tudo quanto sua

senhoria pretende, consegue-o habilidosamente. Há pessoas

assim:oquedesejam,acontece.Algumas,sealguémselhesopõe,

fazem uma cena dos diabos e atingem o seu objectivo; outras,

deitam-se revirando os olhos, num trejeito patético, simulam-se

doentes e vencem da mesma maneira, jogando com a nossa

piedade. Mistress Franklin é do tipo patético. Arranja-se de

maneiraanãodormirdurantetodaanoite,deformaamostrar-se

pálidaeexaustanodiaseguinte.

-Masentão-surpreendi-me-,elanãoestáverdadeiramente

doente?

A enfermeira olhou-me de relance e tornou-se subitamente

séria.

-Certamente-confirmou,mudandorapidamentedeassunto.

Perguntou-me se era verdade eu ter estado na guerra... na

PrimeiraGuerraMundial.

-Sim,éverdade-satisfiz.Baixouavozeindagou:

-Deu-seaquiumcrime,não foi?Umadascriadas falou-me

nisso.Assassinaramumasenhoradeidade,segundomeconstou.

Page 80: Agatha christie - cai o pano

-Sim.

-Eocapitãoestavaaqui,nessaaltura?

-Estava.

Fez-meumapequenacaretaecomentou:

-Issoexplicatudo,nãoacha?

-Explicaoquê?

-Esta...estaatmosferaquerespiramos,oambientequenos

rodeia,nãosente isso?Parecequeháqualquercoisanoar,que

estáerrada,semquesaibamosoqueé.

Fiquei momentaneamente calado, considerando a questão.

Seriapossívelquehouvesseumacerta razãodesernaquiloque

elaacabavadedizer-me?Queumfactoproduzidohámuitosanos

possaserpressentidopelaspessoasqueseencontremnomesmo

localemqueeleocorreu?Ospsíquicospensamquesim.Poderia

Stylesconservaraindaentreassuasparedes,sobosseustectos,

nos jardins e no ar que respirávamos indícios imateriais desse

acontecimentotrágicoquetantonospreocuparaoespírito?

A enfermeira Craven interrompeu os meus pensamentos

declarando:

-Estive,umavez,numacasaemquetambémsedeuumcaso

de homicídio. Nunca poderei esquecê-lo. Sinto-me sempre

angustiada, quando pensonisso.Éuma experiência demasiado

duraparaumarapariga.

Page 81: Agatha christie - cai o pano

-Deveserrealmente.Seiissoporexperiênciaprópria,mesmo

sendohomem.

Interrompi-meporqueBoydCarringtonacabavadedobrara

esquinadacasa.

Como de costume, a sua destacada personalidade parecia

afastarassombrasdeintangíveistemores.Talcomonaíndia.Era

tão grande, tão são, tão ar livre, que forçosamente irradiava

segurançaesensocomum.

- ’dia, Hastings; ’dia enfermeira. Como está Mistress

Franklin?

-Bomdia, SirWilliam.Mistress Franklin está ao fundo do

jardim,abronzear-seaosol,juntodafaia,pertodolaboratório.

-EFranklin?Apostoemcomoestádentrodolaboratório.

-Sim,SirWilliam,comMissHastings.

- Pobre moça. É criminoso mante-la a trabalhar, num dia

comoeste.Deviaprotestar,Hastings.

AenfermeiraCraveninterveiorapidamente:

-Oh,MissHastingsdevesentir-seabsolutamentefeliz.Gosta

daquiloeodoutornãopodefazernadasemela.

-Tipomiserável!-disseBoydCarrington.Seeutivesseuma

secretáriatãobonita,comooéasuafilhaJudith,prefeririaolhar

paraela,doqueparaporcos-da-índia,hem,quediz?

EisogénerodepiadaqueJudithnãogostariadeouvir,mas

Page 82: Agatha christie - cai o pano

que agradou claramente à enfermeira Craven. Soltou uma

gargalhadaeexclamou:

-Oh,SirWilliam!Nãodevedizercoisasdessas.Estoucerta

dequetodossabemqueosenhorémesmoassim!Mas,coitadodo

doutor Franklin, é umhomem tão sério que só tem olhos para

seuprópriotrabalho.

BoydCarringtondissejocosamente:

- Bem, de qualquer maneira, a mulher tomou posições

estratégicasquelhepermitemvigiaromaridodeperto.Parece-me

queéciumenta.

-Sabecoisasdemais,SirWilliam!-respondeuaenfermeira

Craven mostrando-se deliciada com toda esta tagarelice. -

Infelizmentetenhodedeixar-vosparacuidardoleitemaltadode

MistressFranklin.

Afastou-se,enquantoBoydCarringtonaseguiucomoolhar.

-Miúdaatraente -apreciou. -Temumbelocabeloedentes

magníficos.Éumfinoespécimendedonadecasa.Éumapena

desperdiçar a vida de volta com doentes. Uma garota como ela

mereciaummelhordestino.

- Também acho. Suponho que, mais cedo ou mais tarde,

acabaráporcasar.

-Tambémoespero.

Ficou pensativo, por momentos, e admiti que estivesse a

recordar-sedasuafalecidaesposa.Depois,desafiou:

Page 83: Agatha christie - cai o pano

-Quervirdaícomigo,atéKnatton,evisitaraquelessítios?

-Commuitoprazer.Deixe-me,contudo,versePoirotprecisa

demim.

Fuiencontraromeuamigosentadonavaranda,muitobem

instalado.Encorajou-meaacompanharSirWilliam.

- Vá, meu caro Hastings, não se prenda. Creio que é uma

propriedademagnífica.Deveirvê-la.

-Gostaria,realmente,mascusta-medeixá-loaqui.Écomose

desertasse.

- Meu fiel amigo! Vá com esse homem encantador. Até

convémquefalecomele.

-Primeiraclasse-classifiquei-o,comentusiasmo.

Poirotsorriuedeclarou:

- Está a extinguir-se essa espécie de homens... como os

rinocerontes.Jásabiaqueeraoseutipo.

III

Aprecieienormementeaexpedição.

Nãosóodiaestavamaravilhoso,umverdadeirodiadeVerão,

dearligeiro,mastambémacompanhiadomeuguia.

Boyd Carrington possuía o magnetismo pessoal que a

experiência da vida em diversos lugares transmite,

transformando-onumexcelenteparceiro.

Page 84: Agatha christie - cai o pano

Contou-me várias histórias do seu tempo de administração

na Índia,alguns intrigantespormenoresdeuma tribodaÁfrica

Oriental, junto da qual também vivera, e entusiasmei-mede tal

maneiraquechegueiaesquecerasminhaspreocupaçõesacerca

deJuditheaprofundaansiedadequemecausaramasrevelações

dePoirot.

TambémgosteidamaneiracomoBoydCarringtonsereferiu

aomeuamigo,nãosófocandooseutrabalho,mastambémoseu

carácter.

Apesar da tristeza que, naturalmente, sentíamos por vê-lo

naqueleestadodesaúde,Boydnãoutilizouquaisquerexpressões

depiedade. Parecia considerar que a sua vida fora tão cheia de

emoções,quepoderiasentir-sefelizsócomrememorá-las.

-Alémdisso-observou-,estoucertodequeoseucérebrose

mantém tão esclarecido como dantes, sem sofrer da menor

amnésiaeargutocomosempre.

-Láissoéverdadeincontestável!-apressei-meaconfirmar.

-Nãohámaiorerrodoquepensar-sequeumhomem,pelo

factodeficarparalítico,podeperderassuasfaculdadesmentais.

Nemumpedacinho.AnnoDominiafectamuitomenosotrabalho

dosmiolos do que vulgarmente se julga. Por isso, em todas as

tribosprimitivas,em todosos reinoscivilizados,osconselheiros

sãosemprepessoasdeidade.Denadalhesserviriaaexperiência,

se estivessem cerebralmente cansados, mas a verdade é que a

espéciehumanasecansamaisdepressadosórgãosvegetativosdo

quedosderaciocínio.

Apósumaligeirapausa,sorriuecomentou:

Page 85: Agatha christie - cai o pano

-Cosdiabos!Ninguémpenseemcometerumassassínionas

barbasdePoirot,nemmesmonosdiascorrentes.

- Hei-de ajudá-lo a caçá-lo, a si, se você se atrever a isso -

motejei.

-Estou certo de quemeapanhavam,masnão seria grande

glória para Poirot coleccionar-me como trofeu. Não devo ter o

menorjeitoparaisso.Edaí,nuncasesabe.Não!Seriaincapazde

sair-mebem.Nãoseialterarprovas,confundirsituações.Depois,

sofro de uma terrível impaciência. Se cometesse um crime só

poderiaexecutá-lo,seesporeadomomentaneamenteporumforte

estímulo. Lamento imenso desapontar o seu amigo Poirot, mas

nãocreiopossuirascondiçõesmínimasqueseexigemaumbom

criminoso.

-Umadascondiçõesfundamentaiséapaciência-sentenciei.

- Também o penso. Estou certo de que deixaria pistas e

indícios por todos os lados. Bem, posso considerar-me ser um

tipodesorte,pornãopossuirtendênciascriminais,comafaltade

aptidãopara esse génerode coisas queme caracteriza.Oúnico

tipo de indivíduo de queme imagino capaz dematar seria um

chantagista. Detesto isso, sabe? Sempre pensei que um

chantagistadeveriaserabatidoatiro.Queacha?

Tivedeconfessarqueconcordavacomoseupontodevista.

Emseguidapassámosaapreciarasreparaçõesemodificações

operadasnacasa,quandoojovemarquitectoseacercoudenós.

AconstruçãodeKnattondatavadoperíodoTudor,comuma

Page 86: Agatha christie - cai o pano

ala posteriormente anexa. Não sofrera ainda qualquer

modernizaçãodesdea instalaçãodedoisquartosdebanho,por

voltadosanosoitocentosequarenta.

Boyd Carrington explicou-me que seu tio fora, mais ou

menos,umeremita,evitandooconvíviodaspessoaseinstalando-

senumcantodavastamansão.Boydeoseuirmãotinhamsido

tolerados durante os períodos de férias escolares, antes deSir

Edwardsetornarnumreclusovoluntário.

Ovelhonuncadecidiratornaracasar-seeapenasgastaraum

décimodosseusrendimentos,deformaque,apósasuamorte,o

presentebaronetepodiaconsiderar-seumhomemmuitorico.

-Mas,muitosolitário-confessou,meditabundo.

Permaneci calado. A minha simpatia por este homem era

demasiado forte para poder exprimi-la por meio de palavras.

Tambémeumesentiaumsolitário.DesdequeCindersmorrera,

sentia-me transformado apenas em meio homem... Um ser

humanoincompleto.

Dei-lheaentenderoquesentia,pessoalmente.

- Ah, sim, Hastings, mas você teve uma coisa que nunca

alcancei.

Fez uma pausa, após a qual, quase soturnamente, me

descreveu,poralto,asuaprópriatragédia.

Suamulherforaumajovemmuitobela,cheiadeencantose

virtudes,mas arrastada pela hereditariedade.Quase toda a sua

família morrera por efeitos de alcoolismo e ela própria fora

Page 87: Agatha christie - cai o pano

vitimadaporessacausa.Praticamente,apenasumanodepoisdo

casamento,perdera-a...mortepordipsomania.

Nãopodiacensurá-la.Atendênciahereditáriaforamaisforte

doqueela.

Depois da sua morte, resolvera manter uma vida solitária.

Magoado pela sua triste experiência determinara não tornar a

casar-se.

-Essa tragédia transformou-mepor completo.Confessoque

mesentienvelhecerprematuramente,comoseoespíritopudesse

repudiaraalegria-confidenciou.-Éverdadequeestive,umavez,

tentadoa refazeraminhavida.Maselaera tãonova...quenão

achei gentil ligá-la a um homem tão desiludido. Considerei-me

velhodemaisparaela...quenãoerasenãoumacriança...muito

bela...aindapordesabrochar.

Interrompeu-se,abanandoacabeça.

-Nãolhecompetiriaaelajulgar?-equacionei.

-Nãosei,Hastings.Penseiquenão.Creioqueela...gostava

de mim. Mas, como lhe disse, era nova de mais. Lembrá-la-ei

semprecomoavinoúltimodiadanossaseparação.Asuacabeça

ligeiramente inclinada para um dos lados, os olhos levemente

orvalhadosdelágrimas...asuapequeninamão...

Calou-se.A imagempareceu-mevagamente familiarmas,de

momento,nãopercebiporquê.

Subitamente, a voz de Boyd Carrington tornou-se áspera,

arrancando-meàsminhasreflexões.

Page 88: Agatha christie - cai o pano

- Fui um tolo! - reconheceu. - Todo o homem é um tolo

quandodeixafugirasuaoportunidade.Dequalquermodo,aqui

estou eu, numa grandemansão, vasta demais paramim, sem

umapresençagraciosaparasentarnaminhafrente,àcabeceira

damesa.

Encantava-me a maneira antiquada como ele expunha os

seussentimentose imagens.Dava-mea ideia,dequevivianum

mundojápassadoderequinteeencanto.

-Poroutrolado,sinto-memaissegurosozinho.

-Sim,compreendooquesente.Estápreservadodetornara

passarporsemelhantedesgosto.

Sacudiuacabeça,confirmativamente.

-Ondeestaelaagora?-inquiri.

-Oh!Casada...

Mudourepentinamentedeassunto.

-Ofactoé,Hastings,quejáestouadaptadoàvidadesolteiro.

Arranjei outras vias de diversão. Venha daí ver os jardins. Têm

sidomuitonegligenciados,mas...nãoestãomaldetodo,mesmo

assim.

Demosumavoltapelolocalefiqueimuitoimpressionadocom

oquevi.

Knatton era indubitavelmente umamagnífica propriedade e

não era de admirar que Boyd Carrington se sentisse orgulhoso

por possuí-la. Conhecia bem a vizinhança e as pessoas dos

Page 89: Agatha christie - cai o pano

arredores, sem falar, naturalmente, dos amigos que o visitavam

amiúde.

ConheceraocoronelLuttrell,nosvelhostempos,eexprimiaa

suaesperançadequeaexploraçãodeStylesresultasserendosa.

- Velhote fixe, Toby Lutrell, cheio de coragem, sabe? Tipo

catita. Um bom militar e esplêndido atirador. Uma vez,

acompanhei-onumsafari,emÁfrica.Ah!Issoéqueeramtempos!

Jáeracasado,nessaaltura,masasenhoranãovinhaatrásdele,

graçasaDeus!Eraumalindamulher,sabe?Masnuncadeixou

de ser uma tártara! É estranho como um homem... o que um

homemécapaz...desujeitar-seaumamulher!

Sorriu,esboçandoumgestovagoeacrescentou:

- O velho Toby Luttrell fazia os seus subalternos tremerem

dentrodossapatos,sempremuitorecto,estritamentecumpridor

dosseusdevereselevandoosoutrosaimitá-lo.Eaíotem,coma

cauda entre as pernas, comoum cão de fila atrás dela.Nãohá

dúvida que todas asmulheres sabem fazer uso da língua,mas

aquela...éautênticoácidosulfúrico!Leva-opelatrelaederoldão.

Sealguémécapazdefazeraquelelugardarlucro,éela.Luttrell

nuncatevemuitojeitoparanegócios...masMistressLuttrellera

capazdesangrarumapedra...comaqueleseuarzinho!

-Parecetãoamável,tãoatenciosa-comentei.

-Pois,pois-riuCarrington.-Todaelaédoçuras,masjáteve

ocasiãodejogarbrídegecomeles?

Foiaminhavezdesorrir.Disse-lhequejátinhasofridoessa

experiência.

Page 90: Agatha christie - cai o pano

- Evito sempre jogar brídege com mulheres que sejam

jogadoras de brídege, não sei seme entende?E se quer omeu

conselho,nãosemetanisso.

Contei-lhe como Norton e eu nos tínhamos sentido

desconfortáveis, durante a partida, logo na primeira noite que

passaraemStyles.

- Exactamente. Nem sabemos para onde olhar. Apetece-nos

enfiarmo-nospelochãoabaixo.

Depoisdeumapequenahesitaçãocomentou:

-Tiposimpático,esseNorton.Muitoquieto...sossegado,não

acha?Sempreàcaçadepássarosedecoisinhas insignificantes!

Nãolheinteressacaçá-losdeclarou-me.Extraordinário,hem?Não

temamenorinclinaçãoparaodesporto!Disse-lhequenãosabia

oqueperdia.Poisohomemnãopercebe...nãoconsegueentender

omeudesinteresseemespiaraintimidadedeumpardemelros

porumbinóculo!Elehácadaum!

Mal sabia Boyd Carrington que esse entretenimento de

Norton poderia vir a desempenhar um importante papel nos

acontecimentosquesesucederiam.

Page 91: Agatha christie - cai o pano

CapítuloVIII

I

Os dias passaram. Foi um período irritante, com a

desagradável sensação de que se aguardava qualquer coisa

indefinida.

Nada,afinaldecontas,setomarmosemdevidaconsideração

o que na verdadeacontecia. Ligeiros incidentes, fragmentos de

conversasaparentementedesconexas,discretoexamedaspessoas

eatitudes,observaçõeselucidativas,quantoaotemperamentodos

váriosconvivasinstaladosemStyles,masnadamais.

Foi Poirot quem, com algumas palavras intencionais, soube

mostrar-mealgoquemepassaracriminosamentedesapercebido.

Estava eu a queixar-me do tempo, estupidamente

desaproveitadopor recusar-seaconfiar-mea identidadedeX;a

censurá-lo pela falta de confiança que parecia depositar nas

minhasfaculdades;arecriminá-lopornãosemostrardesportivo,

quandolevantouamão,impaciente,edeclarou:

- Calma, meu amigo. Admito que nãoé, como você diz,

desportivo,mas isto não é propriamente um jogo. Não foi para

quevocêdescobrissea identidadedeX,que lhepediqueviesse

cooperarcomigo.Seriadesnecessárioocupá-locomumacoisaque

já sei há muito tempo. O que não sei e tenho de descobrir é:

“Quemvai sermorto...muito embreve?”Essaéaquestão,mon

vieux;nãoum jogodeapostas,mas evitar queumserhumano

sejamorto.Embasbaquei.

Page 92: Agatha christie - cai o pano

-Certamente -concordei, lentamente. -Narealidadevocê já

metinhaditoisso,masnãopensei,ainda,quem...

- Bien, chegou a altura de dizer-mo. Quem vai ser

assassinado?

Olhei-oaturdido.

-Nãofaçoamenorideia-confessei.

-Poisjádeviateruma.Quemaisestácáafazer?

-DevehavercertaligaçãoentreavítimaeX.Porisso,sevocê

sedeixassedeteimosiasemedissessequeméele...

Poirotabanouacabeçacomtantovigor,quemedeupenavê-

lofazeraquilo,doentecomoestava.

- Já lhe expliquei que a essência da técnica de X é nunca

permitir que descubram qualquer interligação entre ele e a sua

futuravítima.Poraínuncachegarialá,émaisdoquecerto.

-Queessaligaçãoestáoculta,quervocêdizerrectifiquei.

-Tãoocultaquenemvocê,nemeupoderíamosdescobri-la.

-MascertamentequeinvestigandoopassadodeX...

- Desde já lhe digo que não daria resultado. Pelo menos,

neste momento. E o assassínio pode acontecer, agora, de um

instanteparaooutro,compreende?

-Oassassíniodealguém,nestacasa?

-Sim,oassassíniodealguém,nestaedestacasa.

Page 93: Agatha christie - cai o pano

-E,naverdade,vocênãosabequem,nemcomo?

- Se o soubesse,meu amigo, não estava a pedir-lhe que se

apressasseadescobrirquemseráavítimaimediata.

-EbaseiaasuapresunçãoapenaspelapresençadeX?

O meu tom de voz deve ter soado nitidamente duvidoso.

Poirot cuja impaciência devia ter-se tornado aindamais aguda,

em virtude da imobilidade a que a doença o forçava, não

conseguiudissimulá-la.

-Ah,ma foilQuantas vezes tenhode repetir-lhe osmesmos

princípios?Seumadatadecorrespondentesdeguerrachegamao

mesmo tempo a um mesmo ponto da Europa, que é que isso

significa? Significa guerra. Se uma multidão de médicos

desembarcam,namesmadata,numacidadequalquer,queéque

isso anuncia? Que vai realizar-se uma conferência médica

internacional.Sevirumabutreesvoaçarsobreumdeterminado

ponto, concluirá que está aí uma carcaça. Se um grupo de

velhotas começarem a tagarelar em voz baixa, lançando, de

quandoemquando,umolhar furtivoparaoutrapessoa,poderá

jurarqueestãoafalarmaldela,eseváriaspessoascaminharem

aolongodomesmocorredoreflutuar,noar,oaromadeumbom

pitéu,deduziráqueumarefeiçãoestáprestesaser-lhesservida.

Considerei estas analogias, por alguns segundos, e alvitrei,

baseando-menaprimeira:

- Mas um só correspondente de guerra já não significa

guerra.

-Poisnão,talcomoumaandorinhanãofazoVerão.Masum

Page 94: Agatha christie - cai o pano

assassino,Hastings,ébastanteparafazerumcrime.

Decertoqueaquiloerainegável.Contudo,ocorreu-meaideia

(quepodiaterpassadodesapercebidaaPoirot)dequetambémum

assassinotemosseusperíodosdefolga.XpodiaestaremStyles

simplesmenteapassarfériassemintençõesletais.

Todavia,Poirotestavatãoconvictodaiminênciadocrimeque

nãomeatreviaexpor-lheasugestão.

Disse-lhe apenas que não tinha grandes esperanças de

descobriravítimaantesqueestaofosse,efectivamente.Teríamos

deesperar...

-...ever-concluiuPoirot.-TalcomooseuMisterAsquith,

na última guerra. Isso,mon cher, é exactamente o que não

devemos fazer. Tenho-lhe dito, já várias vezes, na verdade, que

quandoumassassinoestádeterminadoacometerumcrime,não

seráfácildetê-lo,maspodemos,aomenos,tentá-lo.Imagineque

tem defronte de si um problema de brídege no papel. Pode ver

todas as cartas. Tudo o que lhe é exigido é deduzir o resultado

dascombinações.

-Nãodará resultado,Poirot -queixei-me.Não façoamenor

ideia.Aindasevocêcedesseemdizer-mequeméX...

Omeuamigo falou tãoaltoque,destavez,Curtissacorreu,

para inquirir se algo corria mal. Só então Poirot acalmou,

controlandootomdoseuprotesto.

- Com os diabos, Hastings! Você não é tão estúpido como

pretendeparecer.Estudoutodososcasosquelhedeialer.Pode

nãosaberqueméX,masconheceatécnicaqueeleempregapara

Page 95: Agatha christie - cai o pano

cometerosseuscrimes.

-Oh,estouaver...

- Pois está visto! O seu problema é ser mentalmente

preguiçoso.Gostade tornar istonum jogo e fazer apostas,mas

aborrece-o terdeusaracabeça.Qualéoelementoessencialda

técnicadeX?Nãoéverdadeque,sóapósocrimeestarcometido,

é que a sua técnica fica completa? Isso significa que tem um

motivo para o crime, tem uma oportunidade, tem meios para

executá-lo, e, finalmente, o que émais importante, o assassino

estáprontoadesfecharogolpe.

Compreendi, subitamente, o ponto essenciale quanto tinha

sidotoloemnãoodiscernirmaiscedo.

- Estou a ver. Tenho que observar, entre todas as pessoas,

qual é aquela que reúne os requisitos que respondem a essas

perguntas.Obterei,assim,avítimapotencial.

Poirotrecostou-senasalmofadasesuspirou:

-Enfin! Sinto-memuito cansado.Diga aCurtiss que venha

tercomigo.Vocêjápercebeuqualéasuamissão.Eactivo,sabe

observar,podeseguiraspessoas,falar-lhes,espiá-las.

Iaesboçarumprotesto,masdesisti.Eleprosseguiu:

- Pode ouvir as converas que travam entre elas; ainda tem

joelhos que lhe permitem dobrá-los, conseguindo, portanto,

espreitaràsfechaduras...

Destavezinterrompi-o:

Page 96: Agatha christie - cai o pano

-Nãofareiumacoisadessas.Nãocontecomigoparaespreitar

àsfechaduras.

Poirotfechouosolhosdesalentado.

- Muito bem - concedeu. - Não espreitará. Manterá a sua

condição degentleman e alguém será assassinado, por causa

disso.Issonãotemimportância.Ahonraestásempreàfrentede

uminglês!Asuahonraémaisimportantedoqueavidadoseu

semelhante.Bien!Épontoassente.

-Tenhapenademim,Poirot-supliquei.-Hácoisasquenão

soucapazdefazer.

-Certo-anuiu.-Mande-mecáCurtiss.Vá-seembora.Vocêé

extremamenteobstinado.Desejaria ter comigoalguémque fosse

capaz de substituir o meu arruinado físico, alguém em quem

pudesseconfiar,comoemmimmesmo.Deviatercontadocomas

suasabsurdasideiasdecumprirasregrasdojogo.Jáquenãoé

capaz de utilizar as suas células cinzentas, como se as não

possuísse,aomenosuseosolhos,osouvidoseonariz,atéonde

osseussentimentosdehonralhopermitam.

II

Foinodiaseguintequemeresolviapôrempráticaumaideia

que já me aflorara ao cérebro mais do que uma vez. Mas fi-lo

receosamente,poisnuncaseicomoPoirotacabaporreagir.

Contudo,acheiconvenienteexpô-laantecipadamente:

- Tenho estado a pensar, meu caro, que talvez não seja o

parceiro que lhe convém nesta emergência. Você deu-me a

Page 97: Agatha christie - cai o pano

entender que eu era estúpido, bem... e de certa maneira é

verdade.Aindaporcima,sinto-meapenasmeiohomemdoquejá

fui.DesdequeCindersmorreu...

Calei-me e Poirot emitiu um ruído, com o nariz,

testemunhando-mepesar.Prossegui:

- ... Mas está cá um homem que poderia ajudar-nos...

exactamente o género de homem de que precisamos. Miolos,

imaginação, recursos, cheiode imaginaçãoehabituadoa tomar

resoluções.Estouareferir-meaBoydCarrington.Éapessoade

quemprecisamos, Poirot. Porque não lhe confia o seu segredo?

Ponha-lhetodaahistóriaempratoslimpos.

Poirotabriuosolhosedissecomrudedecisão:

-Demaneiranenhuma.

- Mas, porque não? Não pode negar que ele seja esperto...

numacraveiramuitoacimadaminha.

-Isso-retorquiuPoirotcominauditosarcasmo-,nãoédifícil!

Mas tire essa ideia da cabeça, Hastings. Não vamos confiar em

ninguém. Percebeu isso, hem? Veja se entende bem o que lhe

digo:proíbo-odefalarnocaso,sejaaquemfor.

- Muito bem, se assim o deseja - aquiesci -, mas Boyd

Carrington...

- Ah! Ta, ta, ta! Boyd Carrington. Por que razão está tão

obcecadoaseurespeito?Oqueéele,afinaldecontas?Umgrande

homem,bastantepomposoecontentedasuapessoa,porqueas

pessoas lhe chamam “Sua Excelência”. Um homem que,

Page 98: Agatha christie - cai o pano

efectivamente, reconheço-o,possuiumcertoconjuntode tactoe

encanto pessoal. Mas não é tão maravilhoso como você pensa.

Repete-senumbombocado,contaamesmahistóriaduasvezes,

e...oqueépior...asuamemóriaétãomá,quechegaacontar-lhe

amesmahistóriaque jáouviradesi.Dir-me-áquepossuiuma

extrema habilidade? Nem por isso. E um enfatuado, um peito

cheiodevento...enfin...sótemproa!

-Oh!-exclameiindignado.

Segundosdepoisapercebi-medequehaviaumacertaverdade

naquelas palavras. Amemória de Boyd Carrington não era das

melhores. Ainda há pouco tempo cometera umagaffe que dava

presentementeummagníficoargumentoaPoirot.Poirotreferira-

se aos seus temposdaPolícia,naBélgica.Ora,umpardedias

antes,quandoalgunsdenósestávamosreunidosnojardim,Boyd

narraraumamesmaaventuraquePoirotlhedescrevera,comeste

preâmbulo:

-Lembro-medeque,certavez,ochefdeIaSureté,emParis,

relatou-me...

EPoirotestavapresente,mesmonasuafrente...epoder-se-ia

dizer que, ao falar, Sir William parecia dirigir-se-lhe, em

particular!!!

Compreendi que uma má memória, na missão que urgia

desempenhar,nãoseriaumbomcartão-de-visita.

Porisso,nãodissenemmaisumapalavraesaí.

III

Page 99: Agatha christie - cai o pano

Desciasescadasefuiparaojardim.Nãohavianinguémpor

ali e encaminhei-me para um pequenino bosque. Momentos

depoisdescobriaumouteirorelvadonotopodoqualsedivisava

uma espécie de casa de Verão, num avançado estado de

decrepitude. Dirigi-me para lá, acendi o cachimbo e sentei-me

paraalinharasminhasideias.

QuemseriaapessoaqueseachavaemStylesequetinhaum

motivo suficientemente poderoso para matar uma outra... ou

quemteriadadomotivoparaqueamatassem?

Pondode ladoocoronelLuttrell,cujocasoparecia justificar

quedesejasse arejar osmiolos da esposa comumamachadada,

nenhumoutromepareciaevidente.

O meu problema residia em não conhecer ainda

suficientemente a vida e o carácter daquelas pessoas. Por

exemplo,NortoneMissCole?Quaiseramosmotivosusuaispara

homicídio? Dinheiro? Boyd Carrington tinha-o. Talvez fosse o

únicocomparsaricodaqueleenredo.Semorresse,quempoderia

herdar a sua fortuna? Faria o herdeiro parte dos hóspedes

daquela casa? Era um ponto que precisava de ser esclarecido.

Poderia, por exemplo, ter testado a sua fortuna a pesquisas

científicas, tornando Franklin seu legatário, quando morresse.

Isso e os poucos judiciosos comentários do doutor de cabelos

ruivos,acercadaânsiadeexterminaçãodaraçahumana,podia

constituir ummotivo que o apontaria indiscutivelmente. Talvez

Miss Cole ou Norton fossem seus parentes, tornando-se

obviamenteseusherdeiros.Outeriaavelhaamizadedocoronel

Luttrell contribuído para que Boyd o nomeasse no seu

testamento?Pareciaqueestaspossibilidadessatisfaziamtodosos

ângulos do factor dinheiro ou haveria outros? Restavam as

Page 100: Agatha christie - cai o pano

hipótesesdefeiçãoromântica.

OsFranklin.Mrs.Franklin erauma inválida.Seriapossível

que estivesse a ser envenenada lentamente, de maneira que o

crimeviesseaseratribuídoaseumarido?Enãoseriaelepróprio,

narealidade,oautordoenvenenamento?Nãohaviadúvidaque

tinha meios e oportunidade para perpetrar o crime. Quanto a

motivo,tê-lo-ia?Ocorreu-meumaideiadesagradável:poderia,de

qualquermaneira,virJudithaserenvolvidanocaso?Eutinhaa

certeza de que as suas relações se restringiam a contactos

puramente profissionais, entre patrão e empregada, apenas

interessados nas pesquisas científicas de labor quotidiano e

comum;masaopiniãopúblicaacreditarianisso?Juditherauma

moça muito bonita. Uma assistente ou secretária atraente têm

constituídomotivoparamuitascondenações.Essapossibilidade

causou-meumaverdadeiraangústia.

Em seguida considerei o caso de Allerton. Se houvesse um

crime,gostariaquefosseeleoculpado.Sóquenãodeparavacom

ummotivoquepudessesatisfazeressaminhapreferência.

Miss Cole, embora já não fosse muito nova, ainda reunia

fortes encantos pessoais. Seria admissível que tivesse mantido

relaçõescomAllertone fosseagorapastodofogodociúme.Não

mepareciaquefosseesseocaso,massupondoqueexistisseentre

elesqualquer ligaçãosecreta...seAllerton fosseX...sedesejasse

libertar-sedela...

Abanei a cabeça impacientemente. Aquela espécie de

raciocínionãomeconduziaaladonenhum.Passosnosaibro,à

distância, atraíram a minha atenção. Vi Franklin caminhando

rapidamenteemdirecçãoacasa,comasmãosnasalgibeirasea

Page 101: Agatha christie - cai o pano

cabeçalançadaparadiante.

A sua atitude evidenciava desilusão, se não desespero.

Surgiu-meaosolhoscomoumhomemprofundamenteinfeliz.

Estavatãoconcentradoaobservá-loquenãomeapercebide

que alguém se aproximava de mim, pelas costas, caminhando

sobrearelvaquelheabafaraospassos.Virei-medesalto,quando

MissColesemedirigiu:

-Assustei-o,capitãoHastings?

- Não a ouvi chegar - expliquei apologeticamente. Ela

começaraaexaminaraarruinadacasadeVerão.

-Querelíquiavitoriana!-apreciou,emardemofa.

- Receio bem que esteja cheia de aranhas - adverti. - Vou

limparobancoparaquepossasentar-seaopédemim.

Ocorreu-meque surgia, agora,umamagnífica oportunidade

de conhecermelhor aquela conviva de Styles.MalMissCole se

instalou,trateideestudá-ladissimuladamente.

Devia andar entre os trinta e os quarenta anos, de

constituição esbelta, com um perfil bem delineado e olhos

verdadeiramentebonitos.Aparentavaumarreservado...diriaaté

de suspeita. Pensei que tinha junto de mim uma mulher que

sofrera e que, consequenteniente, se sentia profundamente

desgostosadavida.

O meu instinto indicou-me que precisava de saber muito

mais,acercadapersonalidadedeElizabethCole.

Page 102: Agatha christie - cai o pano

-Diga-meemqueestavaapensar-começouela-,quandome

aproximei, sem que desse por mim? Estava verdadeiramente

mergulhadoemprofundameditação.

Calmamenterespondi:

-ObservavaodoutorFranklin.

-Sim?

Nãovirazãoparanãolhetransmitiraquiloemquecogitava.

-Tenhoaimpressãodequeéumhomemmuitoinfeliz.

MissColeconfirmou:

-Certamentequeoé!Sóagoradeuporisso?

-Semprepenseiquefosseumhomemabsorvidopelapaixão

doseutrabalho.

-Eé.

-Chamaaissoinfelicidade?Eudiriaqueéoestadomaisfeliz

quesepossadesejar.

-Sim,nãodiscutoisso.Resta,porém,saberseoseutrabalho

será a sua única paixão. Pode dar-se o caso de dedicar-se

furiosamente a uma ocupação, exactamente porque uma outra,

quepreferiria,lheédefesa.

Fitei-asinceramentesurpreendidoeelaelucidou:

- No Outono passado foi oferecida ao doutor Franklin, a

possibilidadede irparaaÁfrica,a fimdeprosseguiraíassuas

Page 103: Agatha christie - cai o pano

pesquisascientíficas.Éumhomemmuitoesperto,comosabe,e

tem fama de cientista da primeira apanha, em matéria de

medicinatropical.

-Enãofoi,pelosvistos.

-Não.Amulheropôs-se-lhe.Declarouquenão tinhasaúde

parasuportaroclimaeinsurgiu-secontraahipótesedeficarcá,

deixando-o partir sozinho, especialmente porque essa separação

nãorepresentaria,paraela,jásesabe,umavantagempecuniária,

antespelocontrário.Oseuníveldevidadecresceria,vistoqueo

aumentodehonoráriosdomédiconãocompensariaasdespesas

deduascasas,cadaqualemsualatitude.

- Oh, compreendo. Suponho que o doutor considera que,

efectivamente,oestadodesaúdedaesposanãolhepermitelevá-

laconsigo-insinuei.

-Saberealmentealgumacoisaacercadoseuestadodesaúde,

capitãoHastings?-interrogouela,mordaz.

-Bem...não.Apenasoqueelaprópriamedisse...Maséuma

inválida,nãoéverdade?

-Seela lhodisse...Pessoalmente,creioqueumamulherno

seu estado, oumelhor, do seu tipo psíquico,mesmo que venda

saúde,deveestarrealmenteenferma.PensoqueMistressFranklin

temmuitogostoemestar,oufazer-sedoente.

ComoMiss Cole tivesse pronunciado esta última frase com

umáspero tomdesecura, fitei-aatentamentee compreendique

todasassuassimpatiassedirigiamparaoDr.Franklin.

Page 104: Agatha christie - cai o pano

-Suponho-objectei-,quetodasasmulheresdeconstituição

frágiltêminclinaçãoparasetornaremegoístas,nãoseráassim?

-Temrazão.Tambémcreioqueaspessoasinválidassãomais

egoístasdoqueasoutras,masnãopodemoscensurá-las.É tão

fácilser-seegoísta.

-Nãome parece que seja esse o caso deMistress Franklin.

Elapode,naverdade,estardoente...

-Porminhaparte-declarouMissCole-,nãomostrariatanta

convicção nessa hipótese. Sempre me sugeriu a impressão de

uma pessoa capaz de fazer quanto quer, ou melhor, levar os

outrosafazeremsóoqueelaprópriadeseja.

Durante um minuto, reflecti, em silêncio, naquelas

observações. Era evidente queMiss Cole estavamuito a par do

que se passava na intimidade daménage Franklin. Com certa

curiosidade,inquiri:

-SuponhoqueconhecebemodoutorFranklin?

-Nemporisso-respondeuela.-Sóostinhaencontradouma

ouduasvezes,antesdevirparacá.

-Maselefalou-lhedosseusproblemas,segundodepreendo.

MissColeabanouacabeçanegativamente.

- De maneira nenhuma. Tudo quanto acabo de referir-lhe,

soube-oatravésdesuafilhaJudith.

Pensei, com súbita acidez no espírito, que Judith preferia

escolherpessoasestranhas,parasuasconfidentes,aoseupróprio

Page 105: Agatha christie - cai o pano

pai.

Aminhainterlocutoracontinuou:

-Judithéterrivelmentededicadaaopatrãoepreocupa-se,na

verdade,comoseubem-estar...econdenaclaramenteoegoísmo

deMistressFranklin.

-EMissCole?Tambémpensaquesetratadepuroegoísmo?

-Sim...mascompreendooseupontodevista.Seioquesão

inválidosnaturaise...nãodireisimulados,mastemperamentais.

Mas também compreendo perfeitamente o ponto de vista do

marido.JudithachaqueMistressFranklindeveriacompartilhar

dos interesses do doutor e, de qualquermodo, amoldar-semais

aos imperativos da sua profissão, já que é dela que extrai os

proventosquelhefacultamgozaravidaregaladaqueelasempre

levou. De resto, a sua filha é também uma entusiástica

pesquisadoracientífica.

- Bem sei - disse desconsoladamente. - Às vezes isso

apoquenta-me. Não me parece muito natural, sabe?... naquela

idade!Achoquedeviasermaishumana...istoé,maisjovem,mais

preocupadaemgozaravida...enamorar-sedeumoudoisrapazes

novos, como ela... Afinal, a juventude fez-se para aproveitar-se

uma certa liberdade de voo e não para enterrar-se num

laboratório,constantementedebruçadaacontemplarmicróbiose

preparaçõesquímicas.Nãoacho issonatural.Nosmeus tempos

derapaz,queríamosdivertir-nos,namorar...vocêbemsabe!

Estabeleceu-se um momento de silêncio, após o qual Miss

Coledeclarounostalgicamente:

Page 106: Agatha christie - cai o pano

-Não,nãosei!

Fiquei instantaneamentehorrorizado pelagaffe queacabava

de cometer. Inconscientemente, falara como se tivéssemos sido

contemporâneos,mascompreendiqueeladeviasermaisnovado

queeudezanos,pelomenos,seosmeuscálculosbatiamcertos.

Tenteiemendaraindelicadeza,damelhormaneiraquepude,

maselacortou-meafrase,corrigindo:

-Não,nãomerefiroaisso.Porfavor,nãomepeçadesculpa,

poisnãolhefalavadaidade.Quisunicamentesignificaroquelhe

disse:Não sei!Nunca fuiaquiloaquesepossachamar jovem.

Nunca tive...nuncapasseipor issoaqueaspessoasse referem

por“osbonstemposdaminhamocidade”.

Algonasuavoz,umaamargura,umprofundoressentimento,

deixaram-medeverasperturbado.Conseguiapenasmurmurar:

-Lamentoimenso!MissColeriu-se.

- Oh, não tem importância. Não se mostre tão chocado.

Vamosfalardeoutracoisa,sim?

Obedeci:

-Nessecaso,diga-meoquepensadasoutraspessoasquenos

rodeiam,aquiemStyles!...Oudar-se-áocasodetambémserem

todoselesestranhosparasi?

-Nemtodos.ConheciosLuttrelldesdesempre,praticamente,

toda a minha vida. É triste que tenham chegado a isto...

especialmenteele.Ocoroneléumquerido.Eelatambémémuito

melhor do que dá a entender. Tiveram de lutar toda a vida,

Page 107: Agatha christie - cai o pano

especialmenteela,oque lhedeuessaaparênciabeligerante, em

algunscasos...especialmentenaformacomoseexprime,àsvezes,

comomarido.Temumasmaneirasumpoucorudes,emrelaçãoa

ele.

-Fale-medeNorton.Conhece-o?

- Pouco sei acerca deMister Norton. Parece-me umhomem

simpático, talvez demasiado metido consigo... um pouco

estúpido... talvez.Masémuitodelicadocomtodaagente.Viveu

semprecomasuamãe,sabe?Foisempre,segundoouvidizer,“o

meninodesuamamã”econstaqueelaeraumamulherdotipo

mesquinho emuito estúpida, também.Deve ter-lhe transmitido

muito da sua própria personalidade. Há homens que sofrem

imensocomisso.Ficammarcadosparatodaavida.Elamorreu,

há poucos anos, e a sua morte afectou-o muito. E louco por

pássarosefloresecoisasdelicadas,dessegénero.Érealmenteum

homemmuitoatenciosoeatento...esabevermuitacoisa.

-Refere-seaosseusbinóculos,não,MissCole?Elariu,como

semeconsiderassedemasiadoingénuo.

-Bem,nãoeraaissoquemereferia, literalmente.Pretendia

antesdizerqueéumhomemcapazdeveratentamenteoquese

passaàsuavoltaetirarconclusões...Etemprazeremfazê-lo.A

maioria das pessoas tranquilas e desocupadas são assim. Não

serádotipoegoísta,masdirei,antes,desprovidodeafeição,não

seisemeentende?

Aceneiafirmativamentecomacabeça.

-Sim,bemsei.

Page 108: Agatha christie - cai o pano

Subitamente,ElizabethColedisseaindacommaisamargura:

- Isso é o lado depressivo de lugares como estes. Casas de

hóspedes geridas por pessoas fracassadas, frequentadas por

pessoas que falharam na vida; ou que sofrem problemas

sentimentais;ouaindaquesesentemvelhos,oualquebrados,ou

enfermos.

Intimamente concordei com ela. Como aquilo era verdade!

Cabeças grisalhas, corações grisalhos, sonhos grisalhos. Eu

próprio sentia-me triste e solitário e a mulher a meu lado não

passava de uma criatura amargurada e desiludida. O Dr.

Franklin, impaciente e ambicioso, dominado pelos desejos de

uma mulher enferma e igualmente infeliz. O desinteressante e

apagadoNorton,limitadoaoexamedepássaros.AtéPoirot,antes

tãobrilhante,semostravaalquebradoemeioparalítico.

Quãodiferenteeramestesdiasdaquelesemquepelaprimeira

vezvieraaStyles!Oconstrastefez-mesoltarumligeirosuspiro.

-Quesepassa?-interessou-seaminhacompanheira.

- Nada. Estava apenas a comparar o momento presente e

aqueleemquecáestive,quandoeraaindaumhomemnovo.

-Estouaver.Nessaaltura,acasaeraumlarfeliz?

É curioso como, algumas vezes, os pensamentos giram no

nosso cérebro como as imagensmutantes de um caleidoscópio.

Lamentavaopassado,apenasnasuacondiçãodepassado,mas

não como fora, na realidade. Efectivamente, não houvera

felicidade em Styles. Recordando os factos verdadeiros, vi meu

irmãoJohnesuamulher,ambosinfelizesarrastandoavidacomo

Page 109: Agatha christie - cai o pano

eram forçados a aceitá-la. Laurence Cavendisch, afundada em

constante melancolia. Cynthia, com toda a sua acriançada

vivacidade, atrofiada pela dependência que lhe era imposta e a

coibia de expandir-se. Inglethorp casado comumamulher rica,

unicamentepeloseudinheiro.Nenhumdeles fora felize,agora,

também ninguém o era. Decididamente Styles não parecia

transmitir sorte a ninguém e de forma alguma poder-se-ia

considerarumamansãodefelicidade.

-Estavaaser induzidonumsentido falso.Naverdade,esta

casa nunca foi feliz. E não o é. Toda a gente se sente infeliz

dentrodela.

-Não,nemtoda.Suafilha,porexemplo...

-Judithestálongedeserfeliz.

Disse-ocomumasúbitacertezaquemeconfrangia.

-AtéBoydCarrington-lembrei-me-,confessounooutrodia

que se sentiamuito só, nesta vida, emborame pareça que não

temgranderazãoparaqueixar-se,tantoselhedandoestarnesta

casa,comonoutraqualquer.

-ComSirWilliam,ocasoédiferente-observouMissCole.-

Nãopertenceaomesmomundoquenós.Rodeia-sedeumaesfera

de sucesso e independência; circunscreve-se a um mundo

exterior; triunfou na vida e reconhece-o. Não é um dos... dos

estropiados.

Escolheraumtermobemestranhoparanosclassificar.Virei-

meparaela,afimdeencará-labemdefrente,esondei:

Page 110: Agatha christie - cai o pano

-Podeexplicar-meporqueutilizouessaexpressão,tãodura?

- Por ser a que melhor... mais verdadeiramente se adapta.

Pelomenos,amim.Nãosoumaisdoqueumaestropiada!

-Estouaver-declareicomsimpatia-,quefoimuitoinfeliz,

nasuavida.

MissColeolhou-mebemnosolhoseperguntou:

-Nãosabequemsou,poisnão?

-Bem...seiquesechamaCole.

-Nãoéesseomeunome...Querodizer...esseeraonomeda

minhamãe.Foioqueadoptei,depois...

-Depoisdequê?

-OmeuverdadeironomeéLitchfield.

Porsegundos,nãomeapercebidosignificadodesseapelido,

emboramefossefamiliar.Então,lembrei-me.

-MatthewLitchfield?

Acenoucomacabeçaafirmativamente.

-Vejoqueestáapardoassunto.Meupaierauminválidoe

umtirano.Proibiu-nossempre,enquantoviveu,qualquergénero

devidanormal.Privava-nosdetudoemantinha-noscomonuma

prisão.

Calou-se por momentos, e os seus olhos, muito belos,

exprimiramumaprofundamelancolia.

Page 111: Agatha christie - cai o pano

- Foi então queminha irmã...minha irmã...Os lábios bem

delineados fecharam-se, recolhendo-senumtraço fino, ederam-

meaideiaderefrearumsoluço.

-Porfavor-disse-lhe.-Nãocontinue.Édemasiadodoloroso

parasi.Seidocaso.Nãoprecisadecontar-mo.

- Mas não sabe, não. Não pode saber a verdade. É

inconcebível... inacreditável Maggie... sei que se apresentou à

Polícia,queseentregoueconfessouculpada,mas,certasvezes...

quandopensonaquestão,nãopossoacreditá-la!Sintoquenão

foiverdade.Seiqueaquilonãopôdeacontecer,comoelaodisse.

-Querdizerqueosfactosforam...comodirei?...deformados?

Interrompeu-sevivamente:

-Não, não é isso.Mas aquele actonão se coadunou coma

suamaneiradeser.NãopodiatersidoMaggie!

As palavras tremeram-me nos lábios, mas não as proferi.

Aindanãochegaraomomentoemquepoderiadizer-lhe:

-Temrazão.NãofoiMaggie...

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CapítuloIX

Deviam ser cerca de seis horas, quando o coronel Luttrell

atravessou o relvado. Trazia uma carabina debaixo do braço e

baloiçavanaturalmentedoispombos-bravosnaoutramão.

Estacou,surpreso,quandolheacenei.

-Olá!Queestãoaíafazer?Olhemqueessaespéciedetúmulo

nãoélugarseguro,sabem?Estáadesfazer-seaobocados.Ainda

vos cai em cima do toutiço. Receio que lhe suje o vestido,

Elizabeth.

- Oh, não há perigo, quanto a isso. O capitão Hastings

sacrificouabrancuradoseu lenço, limpandoobancoparaque

pudessesentar-me.

Com o seu ar habitualmente vago, o coronel Luttrell

respondeu:

-Ah!Nessecasoestábem...a...pois...perfeito!Ficouparado,

mordiscando o bigode, indeciso, sem saber que fazer, então

levantámo-nosparairaoseuencontro.

Oseuespírito estavamuito longedali,nessa tarde.Fezum

esforçoparadesceràterraeanunciar:

- Consegui apanhar um par destes marotos. Os pombos-

bravosfazemporaíumadatadeestragos,sabem?

-Éumbeloatirador,segundoouvidizer-elogiei.

- Eh? Quem foi que lhe disse isso? Oh! Boyd Carrington,

não? Não era mau, nada mau mesmo, noutros tempos... Mas

Page 113: Agatha christie - cai o pano

muitoenferrujado...agora...aidadenãoperdoa!

-Avista?-sugeri.

-Qualcarapuça!...Disparate!Osolhosestãonamesma...Isto

é,precisodeóculosparaler,naturalmente,masàdistância,vejo

optimamente.

Quaseumminutodepois,repetiu:

-A...optimamente.Nãonessesentido...

E a sua voz enrolou-se num murmúrio de palavras

inaudíveis.

Olhandoemvolta,MissColeobservou:

-Tardemagnífica,nãoacha?

Tinha razão.OSol estava declinando para ocidente e a luz

tornara-se dourada, dando às árvores sombras de verde mais

escuro,numconjuntodeefeitomaravilhoso.

Louvei aquela bela tarde, tépida e calma,muitoinglesa, tal

como as que costumamos recordar, quando estamos longe, nos

países tropicais. Disse-o e o coronel Luttrell concordou

jovialmente:

-Sim,sim.Muitas,vezespenseiemtardescomoesta,quando

estava na Índia, sabe? É o que faz uma pessoa desejar vir-se

emboradevez,reformar-seetudoomais...a...hem?

Neste ponto a voz do coronel alterou-se, ganhando em

azedumeoqueperderadealegria:

Page 114: Agatha christie - cai o pano

-Pois...virparaaPátria,eo lar,e repousar...e talecoisa,

masnãoé,muitasvezes,comoimaginamos...a...não,não!

Pensei que, no caso particular, a desilusão podia ser

verdadeira. Não devia ter pensado, ao retirar-se do comando de

um regimento da índia, vir a trabalhar como hospedeiro e a

aturarumamulherresmungonaeincomodativa.

Aindatagarelámosdurantealgunsminutos,tendoocoronel

ditoumaouduaspiadas,evidenciandomaisespíritodoqueseria

legítimoesperar,pelasamostrasatéentãoexibidas.

CaminhámoslentamenteparacasaefomosencontrarNorton

eBoydna varanda.Enquanto o coronel e eudecidimos juntar-

nosaeles,MissColepreferiuentrar.

-Foiumdiaquente!-disseNorton.-Estousequioso!

-Tomemumabebida...porcontadacasa,hem?-convidouo

coronelLuttrell,comvisívelsatisfação.

Agradecemoseaceitámos.Elelevantou-seedeixou-nos.

A parte do terraço onde estávamos sentados ficava

exactamentepordebaixoda janelada salade jantar que estava

aberta.

Ouvimos o coronel, no interior, abrir um armário, depois o

tinirdevidroseoruídodeumarolhaasairdagarrafa.

Então,abruptamentesoouavoznãooficial,ásperaegritante,

deMrs.“coronela”Luttrell:

-Queestásafazer,George?

Page 115: Agatha christie - cai o pano

A voz do marido reduziu-se a um sussurro. Apenas

conseguimosdiscerniraspalavras“amigos”e“bebida”.

No seu tom agudo e desagradável, Mrs. Luttrell explodiu,

indignada:

-Nãovaisfazernadadisso,George,Queideiaessa!Erasóo

quenosfaltava!Comojulgasquevamospagarestapropriedade,

secomeçasaoferecerbebidasatodaagente?Aqui,quembebe,

paga!Tenhoumacabeçaparanegóciosetu...atua...senãofosse

eu,enfiava-nosatodosnabancarrota.Tenhodeolharporticomo

sefossesumacriança.Éoquetués:umacriançaidiota!Nãotens

omenorsensocomum!Dá-mecáessagarrafa...Dá-macá,estou

adizer-te.

Ainda ouvimos o som de protesto agonizante. Mrs. Luttrell

interrompeuomurmúrio,respondendobruscamente:

-Nãome interessaoquepensemde ti,ouoquedeixemde

pensar.Agarrafavoltaparaoarmárioevoufechá-laàchaveejá.

Oruídodeumachaveagirarnafechaduradoarmárioainda

foiperceptível.

-Oraaíestá-declarouMrs.Luttrell,triunfante.-Aíéqueéo

lugardela.

Desta vez a voz do coronel chegou até nós mais audível e

clara:

-Estásairlongedemais,Daisy.Eunãosuportoisso.

-Hás-desuportar istoemuitomais - retorquiuela. -Quem

pensastu,afinal,queés,aquidentro?Queméquegovernaesta

Page 116: Agatha christie - cai o pano

casa?Nãoteesqueçasdisso,hem?

Apósumrestolhardetecidoemmovimento,quenossugeriu

queMrs.Luttrellabandonaraacena,soaramospassoslentosdo

marido. Momentos depois aparecia, parecendo mais velho e

enfraquecido.

- Lamento imenso - disse, num tom a que faltava

naturalidade.-Julgoqueseacabououísque.

Provavelmente pensou que não teríamos ouvido o que se

passara. Mas se o pensou, logo essa esperança se lhe deve ter

desvanecidodoespírito,poisnenhumdenósconseguiudisfarçar

eficazmenteaperturbaçãoquenosianaalma.Norton,então,era

o que pior sabia representar e apressou-se a declarar que, na

realidade, não lhe apetecia beber nada, antes do jantar.

Acrescentou uma série de observações contra o hábito dos

aperitivos,tãoconfusamente,queaindatornaramasituaçãomais

incómoda.

Eu fiquei praticamente petrificado e Boyd Carrington não

conseguiu travar a disparatada dissertação de Norton, que,

corado,metiaospéspelasmãos.

Pelo canto do olho, vi Mrs. Luttrell atravessar o jardim,

equipadacomassuasluvasdejardinagemeumsachodemonda.

Nãohaviadúvidadequeeraumamulhereficiente,massentipor

ela uma vaga aversão. Nenhum ser humano tem o direito de

humilharoutroserhumano.

Norton falava ainda febrilmente. Pegara num dos pombos-

bravosedesfiouumahistóriaacercadequandoosseuscolegas

Page 117: Agatha christie - cai o pano

de liceu se tinham rido dele quando o viram adoecer perante a

sua primeira preparação de biologia com um coelho morto.

Depois,referiu-seaumacidentequeocorreranaEscócia,quando

umbatedorforamorto,duranteumacaçada.

Falámos então de vários acidentes até que Boyd Carrigton

clareouagargantaedisse:

-Foidivertidooquemeaconteceucomumantigoimpedido

que tive, um irlandês, que fora à terra, de férias. Quando

regressou, perguntei-lhe que tal tinham decorrido.

Entusiasmadamente respondeu-me: “Foram as melhores férias

que tive na minha vida.” “Apraz-me ouvir isso”, disse-lhe eu,

admiradoporvê-lo tãoexcitado.Ele justificou: “Tiveumgrande

dia.Mateiomeuirmão.”Comonãocontivesseomeuespanto,o

homem prosseguiu: “Há anos que desejava fazê-lo. Desta vez

consegui-o. Coloquei-me num telhado e esperei-o. Quando o vi

descer a rua, cautelosamente, com uma carabina na mão,

procurando surpreender-me e mandar-me desta para melhor,

apontei e foi um tiro em cheio. Caiu redondo, como um

passarinho. Foi um momento extraordinário que nunca mais

esquecerei.”

ComoBoydCarríngtontivessenarradoestahistóriacomum

ar comicamente teatral, todos rimos e a tensão desanuviou-se

parcialmente. Quando se levantou, anunciando que tencionava

tomar um banho antes de jantar, Norton comentou, com

entusiasmo:

- É um tipo estupendo, não acham? Concordei e Luttrell

acrescentou:

Page 118: Agatha christie - cai o pano

-Sim,sim,naverdade...umbomcamarada.

- Teve sempre sucesso, segundo tenho ouvido dizer -

continuou Norton. - Tudo quanto lhe cai em mãos é

brilhantemente resolvido. Cabeça privilegiada, ideias claras...

essencialmenteumhomemdeacção.Tudoquantofazsaiperfeito.

Lentamente,Luttrellcomentou:

-Algunshomenssãoassim.Acertamsempre.Algunsoutros

nãotêmessasorte.

Comumligeiromovimentodecabeça,Nortonconfirmou:

-Não,não...nemtodos.Faltadesorte,éoqueé.

- “Não nas nossas estrelas, caro Brutus, mas em nós

próprios!”

-Talveztenharazão-admitiuLuttrell.Apressei-meadesviar

aconversa:

- De certeza foi uma sorte ter herdado Knatton. Que local

maravilhoso! Mas acho que precisa de casar. Sentir-se-á

tremendamentesó,numlugarcomoaquele.

Nortonriuechacoteou:

- Casar e assentar! Mas suponha que a mulher acaba por

dominá-loepôr-lheumacoleira?

Foi uma observação do pior gosto. O género de comentário

que ninguém deveria ter feito naquela altura. Infelizmente as

circunstâncias tinham levado Norton a descair-se e não tinha

Page 119: Agatha christie - cai o pano

agoramododeemendaragaffe.Ficounotoriamenteatrapalhado

oqueaindapiorouasituação.

Ambos começámos a falar ao mesmo tempo. Eu referi-me,

parvamente, à luz crepuscular e ele sugeriu uma partida de

brídege,depoisdojantar,oquejáeranormadacasa.

Todavia, o coronel Luttrell pareceu não nos ter ouvido e

considerou,comvozinexpressiva:

-Não,BoydCarringtonnãosedeixariadominarpelamulher.

Não é o género de homem que consinta uma trela. E um tipo

direito.Eumhomem!

Foi um momento deveras difícil de suportar. Norton

prosseguiugaguejandoacercadobrídege,e,nessemomento,um

grandepombo-bravoveiopousarnumaárvore,nãomuito longe

denós.

OcoronelLuttrellpegounaarmaedeclarou:

- São uma praga. E um bicho nefasto que se farta, nesta

época.Dácabodetudo.

Mas,antesquepudesseapontaraarma,opombovoouparaa

copadeumaárvoremaisdistante.Deondeestava,tornava-se-lhe

impossívelatirarcomêxito.

Contudo,nomesmomomento,asuaatençãofoidesviadapor

umrestolharsúbitonaerva,ànossadireita.

-Raios!-exclamou,excitado.-Estáaliumcoelho,naorlado

pomarnovo,apesardeeuteraramadoaquilotudo.

Page 120: Agatha christie - cai o pano

Meteuaarmaàcaraedisparou.

Ouviu-se um grito de mulher que logo se extinguiu em

estertor.

A carabina caiu das mãos do coronel, que ficou siderado.

Depoismordeuosdedoseexclamou:

-MeuDeus!...EDaisy!

Eujácorriaaolongodojardim,comNortoncoladoaosmeus

passos.Chegueiaolocaleajoelhei.EraMrs.Luttrell.

Estiveradejoelhos,acolocarumasestacasnabasedeumas

hastesdemadeira, recentementeplantadas.Realmente,deonde

estávamos, não seria possível perceber que era ela, pois a erva

estavaaltaesóconseguíamosverqueseagitava.Certamenteque

o coronel tomara o restolhar e a agitação das plantas pela

presençadeumcoelho.Aluz,àquelahora,erabastantemá.

Mrs. Luttrell fora atingida num ombro e sangrava

abundantemente.

Examinei o ferimento e olhei para Norton. Encostara-se a

umaárvoreeoseurostotomaraumacoloraçãoesverdeada.

-Nãopossoversangue-declarou,àlaiadedesculpa.

Secamente,ordenei-lhe:

-CorraaolaboratóriododoutorFranklinediga-Iheparavir

aquiimediatamente...Ouaenfermeira.

Aquiesceucomumgestoaflitoecomeçouacorrer.

Page 121: Agatha christie - cai o pano

FoiaenfermeiraCravenaprimeiraaapareceremcena.Viera

extremamente depressa e começou imediatamente a tentar

estancarahemorragia.

Franklinchegou,ofegante,momentosdepois.Conduzirama

ferida para casa e deitaram-na na cama. O médico fez um

cuidadosopensoedeixouaenfermeiraCravencomasinistrada.

Depoisdirigiu-seaotelefonee ligouparaomédico-assistentede

Mrs.Luttrell.Malpousouoauscultador,perguntei-lhe:

-Comoestáela?

-Vaificarcomonova.Otironãolheatingiuqualquerponto

vital,felizmente.Comofoiqueaquiloaconteceu?

Contei-lhe.Eleinteressou-se:

- Como ficou o velhote? Deve sentir-se muito em baixo.

Provavelmentecarecedemaiscuidadosqueamulher.Nãodevia

mencionarofacto,masaverdadeéqueoseucoraçãoestámuito

embaixo,também.

Fomosdar comelena salade fumo.Notava-se-lheumacor

azulada em torno dos lábios e parecia esgazeado. Bruscamente

inquiriu:

- Daisy?... Como está ela? Apressadamente, Franklin

sossegou-o:

-Perfeitamente.Nãosepreocupe.

- Pensei que se tratasse de um coelho a dar-me cabo das

macieiras novas. Não percebo como pude cometer semelhante

erro.Tinhaaluzcontraosolhos.

Page 122: Agatha christie - cai o pano

-Essascoisasacontecem-cortouFranklin.-Jáassistiauma

ou duas, na minha vida. Olhe, coronel, deixe-me dar-lhe um

estimulante.Nãomeparecequeestejaasentir-semuitobem.

-Não,não,obrigado.Estoufino.Possoir...possovê-la?

- Nestemomento, não. Émelhor não. A enfermeira Craven

estácomela.Masnão temdepreocupar-se.Estáperfeitamente.

Daqui a instantes o doutor Oliver estará aqui e verá como lhe

confirmaoqueagoralhedigo.

Deixei-os juntos e saí para o pôr do Sol. Judith e Allerton

vinhamnaminhadirecçãoaolongodeumadasáleasdojardim.

Acabeçadeleinclinava-sesobreadela,rindoambos.

Aquilo,emsequênciadatragédiaqueacabavadesuceder,fez-

mesentirirritadíssimo.ChameiJudith,numtombastanterudee

ela fitou-me espantada. Em poucas palavras narrei-lhe o que

acontecera.

- Que coisa tão extraordinária havia de suceder! - foi o

comentáriodeminhafilha.

Pareceu-mequenãoficaratãoperturbadacomoserianatural.

A atitude de Allerton chocou-me, pois tinha algo de

ultrajante.Dir-se-iaquetomavaaocorrênciacomoumapiada.

-Esperoqueovelhotenãootenhafeitodepropósito,hem?

-Decertoquenão-retorquisecamente.-Foiumacidente.

-Pois,pois, conheçoessegénerodeacidentes.Às vezes são

Page 123: Agatha christie - cai o pano

tremendamenteoportunoseconvenientes.Palavradehonraque,

se o velho coronel atirou sobre ela, deliberadamente, tiro-lhe o

meuchapéu.Seriacasoparaparabéns.

-Nãofoinadadisso-neguei,zangado.

-Nãosemostre tãosegurodisso -continuouele. -Conheci

doishomensquemataramasrespectivasconsortes.Umdeles,ao

limpar o revólver. O outro, apontando para ela uma pistola, a

brincar... disse ele. Não sabia como a coisa tinha podido

acontecer. Safaram-se ambos. Foi um raio de um alívio, tive de

concordar.

Friamenteafirmei:

-OcoronelLuttrellnãoéumhomemdessetipo.

-Talvez...masconcordaráquetambémseriaumgrandealívio

paraele.Nãoachaqueascoisastêmcorridoopiorpossívelentre

osdois?

Virei-lhe as costas ostensivamente. Allerton tinha-se

aproximadodemasiadamentedaverdade,quantoaomotivo.Pela

primeiravez,adúvidaassaltou-meoespírito.

FoicomsatisfaçãoqueencontreiBoydCarrington.Depoisdo

banho,foradarumavoltaatéaolagoenãofaziaamenorideiado

quesepassara.

Mallhedeianovidade,inquiriu:

- Não pensa que tenha atirado sobre ela propositadamente,

poisnão,Hastings?

Page 124: Agatha christie - cai o pano

-Oh,meuamigo!-protestei.

- Desculpe, desculpe. Não devia ter dito isso. Por um

momentoreceei...Elatem-noprovocadoinfamemente,sabe?

Porsegundosmantivemo-nossilenciosos,recordandoacena

quetínhamosescutadoatravésdajanela.

Decidi subir ao andar superior e, sentindo-me infeliz e

apoquentado,batiàportadoquartodePoirot.

Jásoubera,porCurtiss,oquesucedera,masestavadesejoso

deouvirpormenores.

DesdeaminhachegadaaStyleshabituara-meanarrar-lhe,

quotidianamente, os meus encontros e todas as conversas

travadasentrenós.Dessamaneirapodiadar-lheailusãodeque

comparticipavanavidageral,do“hotel”.Tenho,naverdade,uma

memória privilegiada e posso transmitir uma conversa ouvida,

quaseverbalmente.

Poirot escutou-me com toda a atenção. Estava ansioso por

ouvir-lhe uma opinião acerca da ocorrência que acabava de

contar-lhe,masantesqueosseuslábiossemovessem,bateramà

porta.

EraaenfermeiraCraven,quesedesculpouporinterromper-

nos.

-Lamentoimenso,capitãoHastings,maspenseiqueodoutor

Franklin estivesse aqui. A velha senhora está já consciente e

mostra-semuitopreocupadacomasaúdedomarido.Quervê-loa

todootranse.Sabeondeelepára,capitãoHastings?Nãoqueria

Page 125: Agatha christie - cai o pano

abandonaraminhapaciente.

Ofereci-me para ir procurá-lo e Poirot aquiesceu com um

aceno de cabeça. A enfermeira Craven agradeceu-me

calorosamenteesaímosambosdoquartodomeuamigo.

Encontrei o coronel Luttrell no quartinho que costumava

ocuparduranteamanhã.Estavadepé,juntodajanela,olhando

parafora.

Virou-se repentinamente quando me pressentiu e os seus

olhos formularam uma pergunta. Mostrava-se, aparentemente,

assustado.

- Sua esposa já recuperou a consciência - anunciei -, e

gostariadevê-lo,coronel.

-Oh!-exclamou,regressando-lheacoràsfaces.Ocontraste

da mudança fora tão evidente que me apercebi de quão pálido

deveria estar quando entrei. Hesitante, titubeante, como um

velho,assegurou-se:

-Elaquer,realmente,ver-me?...Vou...vouimediatamente.

Estavatãoemocionadoquecambaleouquandosedirigiupara

a porta. Dei-lhe o braço para ajudá-lo e senti-o apoiar-se nele,

fortemente,quandosubimosasescadas.

TalcomoFranklinprevira,ochoqueabalara-oseveramente.

Penetrámos no quarto da doente, logo que a voz da

enfermeiraCravenconvidara:

-Entrem.

Page 126: Agatha christie - cai o pano

Tinhampostadoumbiomboemvoltadacamaetivemosque

contorná-lo. Parámos a um canto, estando eu ainda a apoiar o

braçodeLuttrell.

- George... George... - disse Mrs. Luttrell, numa voz muito

apagada.

-Daisy,minhaquerida!-balbuciouele.

Um dos braços dela estava envolvido por um lenço, mas

estendeuoquetinhalivre,nadirecçãodomarido.Estedeuum

passoparaelaepegou-lhenapequeninamãocrispada.

-Daisy!-repetiuele.Finalmente,desabafou:

-GraçasaDeusqueestásbem!

Olhando para ele e notando os seus olhos brilhando

angustiados, senti-me verdadeiramente envergonhado de ter

suspeitado,porumsimplesmomento,deumahipotéticaintenção

criminosaporpartedovelhocoronel.

Dissimuladamente,saídoquarto.

Não havia a mais pequena dúvida, agora, quanto aos

sentimentosdomaridoacercadaesposa.Foraefectivamenteum

estúpidoacidenteaqueosnossosmalévolospensamentostinham

dadointencionalrelevo.Senti-mefrancamentealiviado.

O som do gongo sobressaltou-me. Tinha-me esquecido

completamente das horas, já que o acidente atarantara toda a

gente. Só o cozinheiro se mantivera realista, apresentando o

jantaràhorahabitual.

Page 127: Agatha christie - cai o pano

Muitosdenósnãotínhamosmudadoderoupa,parajantar,e

ocoronelnãoapareceu.

Desta vez Mrs. Franklin honrou-nos com a sua presença,

apresentando-se muito atraente, envolta num vestido de noite

rosa-claro.Mostrava-sebemdispostaemcontrastecomomarido

quepareciaabsorto,desobrancelhasfranzidas.

Paraminhapreocupação,depoisdojantar,JuditheAllerton

desapareceram no jardim. Mantive-me sentado, durante algum

tempo, ouvindo Norton e Franklin dissertarem sobre doenças

tropicaise, embora o primeiro pouco soubesse sobre amatéria,

mostrava-seumexcelenteauditoremuitointeressado.

Mrs. Frankline Boyd Carrington estavam a conversar no

extremo oposto da sala. Ele estava a mostrar-Ihe algumas

amostrasdemusselinasecretones.

ElizabethCole tinhaum livronasmãosepareciaabsorvida

na sua leitura.Deu-me a impressão de que se achava, de certo

modo, embaraçada, em relação à minha pessoa, provavelmente

pela conversa que tínhamos travado nessa tarde. Sentia-me

desconsolado por isso e esperava quenão estivesse arrependida

porterdesabafadoeconfiadoemmim.Teriagostadodeafiançar-

lhequepodiacontarcomaminhadiscrição.Masnãotiveraainda

essaoportunidade.

Poucotempodepois,fuitercomPoirot.

Encontrei lá o coronel Luttrell, sob o círculo de luz da

pequena lâmpada. Falava com Poirot, mas parecia que o fazia

maisparasiprópriodoqueparaomeuamigo.

Page 128: Agatha christie - cai o pano

-Lembro-metãobemcomose fossehoje-diziaocoronel. -

Sim,eraumbailedecaça.Ela traziaumvestidodaquele tecido

leve...a...chamadotule,ouláoqueé...creioqueeraisso.Parecia

que lhe flutuava em volta. Uma linda rapariga, digo-lhe eu.

Olhava-medequandoemquandoeeunãopodia tirarosolhos

dela. Disse para comigo: “Eis amoça com quem vou casar.” E,

graças a Deus, consegui-o. Muito bonita, de cauda comprida.

Quando andava, era como se não tocasse no chão. Deus a

abençoe.

Viacenaemimaginação.DaisyLuttrellcomumtrajedebaile

atéaospés,umrostodeexpressãosuaveealínguaviva,comojá

deviatê-la,emboratalvezmenosdilacerantedoqueviriaatornar-

secomodecorrerdosanos.

Maseranessa jovemqueocoronelLuttrellestavaapensar,

naquelanoite:oseuprimeiroamor;asuaDaisy.

Umavezmaissenti-meenvergonhadopelassuspeitasqueme

tinhamassaltadopreviamente.

Comoeradeesperar,malocoronelsedespediu,declarandoir

deitar-se, comecei a desfiar tudo quanto sabia aos ouvidos de

Poirot.

Ouviu-me muito calado. Nada pude deduzir do seu rosto

inexpressivo.

-Foiisso,então,oquevocêpensou-disseele,finalmente.-

Julgou que o coronel disparara, sobre a mulher,

propositadamente?

- Sim, nessa altura, a coisa passou-me pela cabeça -

Page 129: Agatha christie - cai o pano

confessei.

- Não lhe ocorreu, porventura, que alguém poderia ter-lhe

incutido, a ele, esse desejo de desembaraçar-se dela? Ou, pelo

menos,quealguémlheincutiu,asi,essadesconfiança?

- A mim?... Bem, Allerton disse-me qualquer coisa nesse

sentido.

-Maisalguém?

-BoydCarringtontambémosugeriu.

-Ah,BoydCarrington!

-Afinaldecontas,éumhomemdomundoetemexperiência

dessascoisas.

- Pois, pois, é verdade. Mas não assistiu ao acidente, pois

não?

-Não.Primeiroforatomarbanhoedepois,deraumpequeno

passeio até ao lago... Um pouco de exercício, antes do jantar,

comoéseuhábito.

-Estouaver.

Poucoàvontade,comentei:

-Realmentenãopossoacreditarnessateoria.Simplesmente...

Poirotinterrompeu-me:

-Nãoprecisademostrar tanto remorsopelas suasnaturais

suspeitas,Hastings.Eraumahipótesequeocorreria a qualquer

Page 130: Agatha christie - cai o pano

outra pessoa, em face das circunstâncias. Oh, sim!

Absolutamentenatural.

Pressenti qualquer coisa nas maneiras de Poirot que não

percebi.Umaespéciedereserva.Osseusolhosperscrutavamcom

umaexpressãocuriosa.Vagarosamente,articulei:

- Talvez!... Mas, vendo agora como ele lheé devotado...

exteriormentetantapreocupaçãocomoestadodela...

Poirotsacudiuacabeçanumaconfirmação:

-Exactamente.Paraalémdasquezílias,dasincompreensões,

dosdesentendimentoseaparentehostilidadedavidaquotidiana,

podeexistirumaverdadeiraafeição.

Concordei.Lembrei-medoolhardeMrs.Luttrell,quandoviu

omaridoaproximar-sedoleitoe lheestendeuamão.Nãopodia

vislumbrar-lheomenorsinaldeimpaciênciaoudeazedume.

Quando fui deitar-me, cogitei que a vida de casados tem

aspectos deveras curiosos.Depois, pensei em Poirot.Havia algo

nassuasmaneirasquemepreocupava.

Aqueleseuolharprescrutador,comoquetentandodesvendar

quaisquer ideiasqueeureservasse,semdesejarexpor-lhas...Ou

talvez, esperando que eu chegasse a uma conclusão que ainda

nãoentrevia...Masoquê?

Se Mrs. Luttrell tivesse sido morta, ter-se-ia dado

simplesmenteumcasocomomuitosoutroscasos.

Aparentemente,ocoronelLuttrellteriamortoaesposa,num

acto involuntário.O facto teriadeser consideradoumacidente,

Page 131: Agatha christie - cai o pano

sem que ninguém pudesse atribuir-lhe intenção criminosa,

conquantopudessemuitagentepensarqueforapropositada.As

provasseriaminsuficientesparaestabelecer-seumaacusaçãode

homicídio,masbastantes para que semantivesseuma suspeita

decrimepairandosobreaexistênciadoinfelizmarido.

“Oraissosignificava...issosignificava...”

Queraioéqueissopoderiasignificar?

“Talvezque...seMrs.Luttrelltivessesidoassassinada...oseu

assassínionãopoderiaserimputadoaocoronel,masaX.”

Desta vez, porém, essa possibilidade parecia-me inaceitável.

Era indubitável que fora o coronel Luttrell quem disparara a

arma.Maisninguémpoderiatê-lofeito.

Anãoserque...Talveznãofosseimpossível,masmeramente

improvável. Todavia poderia supor-se que alguém esperava o

momentocríticoe,noinstanteexactoemqueocoronelapontava

a arma ao coelho, disparara sobre Mrs. Luttrell. Contudo, só

tinha soado um tiro. Nem sequer se ouvira uma ligeira

discrepânciacronológicaquepudessecausar-nosaimpressãode

umefeitodeeco.

Só então comecei a forçar a minha memória, tentando

recordarsehouveraeco.Nocampo,essefenómenoétãocomum,

quenospassadesapercebido,poissóoactoemotivonosdesperta

interesse. Isto é, ninguém notaria um segundo tiro quase

simultâneo.

Não. Esta hipótese era absurda. Nenhum criminoso, com a

habilidade demonstrada até então por X, cometeria o erro de

Page 132: Agatha christie - cai o pano

matarMrs.Luttrell comumabaladisparadaporoutraarma, já

quehámeios inegáveisdeprovarcientificamenteaproveniência

doprojéctildeumaarma.Hoje,édoconhecimentopúblicoquea

almadeumcanocausariscosnasuperfíciedabalaquetornama

armafacilmenteidentificável.

Poroutrolado,Xnãocorreriagranderisco,porqueaPolícia

sósedáaotrabalhodeexaminarumabalaeaalmadeumcano

emlaboratório,quandosetornanecessárioaveriguaraidentidade

deumaarma.Ora,nopresente caso, sabia-sequal foraaarma

quedisparara.Ocoronelapresentar-se-ia,naturalmente,comoo

causadordoacidenteenãohaveriainquéritopolicial.Ninguémse

preocuparia em fazer testes para averiguar uma coisa tão

evidente, sem quaisquer contradições. Só discutiriam se o tiro

foraefectivamenteacidentalouintencional.

Um segundo tiro nunca seria pesquisado, nem sequer

equacionado.

Talvezomesmosetivessepassadocomotalagricultor,Riggs,

que se apresentou à Polícia confessando-se autor do crime que

nãoselembravadetercometido.Equemsaberiasenãoseteria

passado uma coisa semelhante, com Margareth Cole, que se

convenceradequeapancadaquevibraranacabeçadopai fora

realmente a causa da sua morte? Podia não ter sido... e o

verdadeiroassassino,quesóactuaraposteriormente,teriaficado

nasombra,absolutamenteinsuspeito.

Sim. Este caso merecia maior atenção e, agora, já

compreendia a atitude de Poirot: esperava que eu apreciasse

devidamenteofacto.

Page 133: Agatha christie - cai o pano

CapítuloX

I

Abordeioassuntocomomeuamigo,namanhãseguinte,e

ele sorriu, abanando a cabeça para cima e para baixo,

apreciativamente.

- Excelente, Hastings. Já esperava que você notasse essa

semelhançadeprocessos.Masnãoquisempurrá-lo,percebe?

-Nessecaso,tenhorazão.Houveumaintervençãoastutade

X,nestecaso?

-Indubitavelmente.

-Masporquê,Poirot?Qualomotivo?

Poirotabanouacabeça.

-Nãooantevê?Nãofazjáumaideia?-inquiriexpectante.

Calmamente,respondeu:

-Tenhoumaideia,sim.

-Conseguerelacionartodosestesdiferentescasos?

-Creioquesim.

-Diga-meentãoqualéessarelação.

Não podia conter a minha impaciência, mas o meu amigo

limitou-seasilabar:

Page 134: Agatha christie - cai o pano

-Não,Hastings.

-Mastenhodesabê-la.

-Émuitomelhorquenãoosaiba.

-Porquê?

-Temdecontentar-secomaquiloquepossodizer-lhe.

- Você é incorrigível! - protestei. - Amarrado a essa cadeira

com artritismo, imobilizado e praticamente sem defesa, e ainda

tentandofazertodoojogosozinho!

-Nãopensequeestouajogarsozinho.Demaneiranenhuma.

Pelo contrário, você desempenha um papel primordial neste

imbróglio. E os meus olhos e os meus ouvidos. Sem si, não

poderiaprogrediresinto-meavançar,emboralentamente.Apenas

o privo da informação que considero constituir um perigo real,

porque, no ponto em que estamos, a coisa começa a ser

verdadeiramenteperigosa.

-Paramim?

-Paraocriminoso.

-Pois,jásei.Vocêpretendequeelenuncasuspeitedequelhe

andamosnotrilho-admiti. -Pelomenos,éoquesuponho.Ou

pensa,porventura,quenãopossotomarcontademimpróprio?

- Há uma coisa que você precisa de saber, Hastings. Um

homemquematouumavez,tornaráamatar...outravezeoutra

vez.

Page 135: Agatha christie - cai o pano

- Que eu saiba, ainda não houve mais nenhum crime -

objecteicomligeirosarcasmo.-Abalaacertounumalvo,masnão

atingiuoseuobjectivo.

- Sim, felizmente. Foi uma sorte... uma enorme sorte! Tal

comolhedisse,nemsempresepodemobterresultadospelamão

doDestino.

Fechoumomentaneamenteosolhosequandovoltouaabri-

losnotei-lhenorostoumaexpressãopreocupada.

Deixei-oasossegar,pensandocomtristezanadificuldadeque

o meu amigo tinha, agora, em fazer qualquer esforço. O seu

cérebro conservava ainda a sua antiga acuidade de raciocínio,

masnãohaviadúvidadequeeraumhomemcansadoedoente.

Poirot avisara-me... proibira-me de tentar descobrir a

personalidadedeX.Contudo,pessoalmente,convencia-medeque

já a tinha descoberto. Só havia uma pessoa, em Styles, que

reuniatodasasqualidadesmaléficasdoDiabo.Contudo,poruma

simplespergunta,poderiaficarcertodeumacoisa.Otesteseria

negativo,mas,apesardetudo,sempreteriaalgumvalor.

Depoisdopequeno-almoço,abordeiJudith.

- Onde é que estiveste, ontem à tarde, quando te encontrei

comomajorAllerton?

A dificuldade reside no facto de procurarmos focar um

aspecto de uma questão e as pessoas interpretarem a nossa

intençãonoutrosentido.

-Francamente,pai,nãomeparecequeissosejadasuaconta.

Page 136: Agatha christie - cai o pano

Estaqueiefitei-aembaraçado.

-Maseuapenasperguntei...,

- Eporquê? Porque tem de andar continuamente a fazer

perguntas? Que estava a fazer? Onde fui? Com quem estava?

Realmente,pai,éintolerável.

Oridículodasituaçãoeranãoestareuinteressado,naquele

momento, em saber onde estivera Judith, mas onde estava

Allerton.

Tenteiapaziguá-la.

-Nãovejoporquenãopossofazer-teumasimplespergunta.

-Nãovejo,pelomeulado,porquedesejafazê-la.

-Nãotenhoqualquerinteresseparticularnoqueandarama

fazer, mas preocupa-me... isto é, gostaria de saber porque não

derampeloacidente...ouondeestavam,nomomentodotiro...

-Jáqueestá tão interessado,dir-lhe-eique tinhadescidoà

aldeia,paracomprarselos.Estásatisfeito?

-EAllertonestavacontigo?

A resposta de Judith soou num tom que denunciava

exasperação.

-Não,nãoestavacomigo.Acidentalmenteencontrámo-nos,já

juntodecasa,cercadeumminutooudoisantesdedepararmos

consigo.Esperoqueagorafiquesatisfeito.Masdesdejálhedigo,

pai,quesemedernabolhadepassear todoodiacomomajor

Page 137: Agatha christie - cai o pano

Allerton,nãomeparecequeo assunto lhediga respeito. Tenho

vinteeumanos,ganhoaminhavida,eamaneiracomoemprego

omeutempolivresóamimmedizrespeito.

-Inteiramente-apressei-meaconcordarparadeitaráguana

fervura.

-Apraz-meouvi-loconcordarcomisso-respondeuJudith,já

maismansamente.Esboçouumsorriso.Depoisacrescentou:

- Meu querido pai, tente não ser tão insistentemente

protector. Contende-me com os nervos. Já não sou nenhuma

pintainhaparaopaisearmaremgalinhareceosa.

-Nãoofareimais,podesestartranquila-prometi.

NestemomentosurgiuFranklin.

-OláJudith!Venhadaí.Estamoshojemaisatrasadosdoque

decostume.

Assuasmaneiraspareceram-merudes,desprovidasdamenor

delicadeza. Apesar do meu próprio descontentamento, não

objectei, pois sabia que Judith era sua empregada e estava ali

paratrabalharcomele.Erapagaparaconceder-lheoseutempoe

oseuesforço,competindo-lhereceberordens.

De qualquermaneira, nada o impedia de ter utilizado uma

fórmula mais delicada de expressão. A cortesia não prejudica

ninguémeajudaaencarar-seavidaporumprismamenoscruel.

A verdade era que Judith também possuía um temperamento

brusco e, embora se revoltasse contra qualquer ordem que eu

pudesse dar-lhe, parecia acatar de bom grado as que ele lhe

Page 138: Agatha christie - cai o pano

transmitia.

Depois,nãoseiporquê,compareiFranklinaAllertoneachei

que,conquantooprimeirofossedezvezesmelhor,comocarácter,

doqueosegundo,não lhechegavaaoscalcanharesemmatéria

deencantopessoal...paraquemgostadogénero,jásesabe.

ObserveiFranklin,enquantosedirigiacomminhafilhapara

olaboratório,enãopudeconterumsorrisoaonotar-lheoandar

desajeitado, os gestos sacudidos, a constituição angulosa, os

ossosdorostosalienteseassardasqueopigmentavam.Umtipo

feio,demaneirasbempoucopolidas.

Carecia das mais evidentes qualidades para atrair uma

mulher.Seporum lado, pelo factode ser casado, essa falta de

atractivospodiaconstituirumasegurançaparaJudith,poroutro,

achava lamentável que ela perdesse amaior parte dashorasda

suavidamergulhadanumtrabalhodesprovidodepoesiaebeleza,

ao lado de alguém incapaz de apreciar essa própria beleza e

poesiaqueavidaaindacontém.

Praticamente,minhafilhanuncacontactavacomrapazesda

sua idade, comoutros jovenscommais interessedoqueaquele

queumacobaiaouoDr.Franklinpoderiamdespertar.

A verdade é que, ali, em Styles, só Allerton se achava em

condiçõesdedistraí-laumpouco,minhapobreJudith!

Suponhoqueelaacabavaporentregarocoraçãoaessepatife,

que desgraça! E o que mais me irritava era notar no seu

comportamento,nãodireiumacertainclinação,masumanotória

receptividadeemrelaçãoàssuasgraças.Ora,peloqueeusabia,

Allerton era o que se podia classificar de “má rês”. E ainda era

Page 139: Agatha christie - cai o pano

possívelumacoisamuitopior:seAllertonfosseX?...

Podia muito bem sê-lo. No momento em que o tiro fora

disparado,nãoseencontravanacompanhiadela.Podiateruma

armaescondidaemqualquerladodoterreno...

Mas o motivo? Que relação poderia existir entre Allerton e

todos aqueles crimes que Poirot sabia poderem ser atribuídos a

X?Omajornãomepareciaumloucoparanóico.Sematava,fá-lo-

ia por um interesse qualquer. E, se era efectivamente são de

espírito,admitindoqueumassassinonemsempreéumdemente,

querazãopoderialevá-loacometeressescrimes?

EJudith,aminhaJudith,andavaagoratempodemasiadona

suacompanhia.

II

Poressaaltura,emboraestivesserealmentepreocupadocom

minhafilha,oproblemadaidentidadedeXeapossibilidadede

novocrime(daterrívelsérienegra)virasercometidosobrepunha-

se, pela sua anunciada iminência, às minhas preocupações

pessoais.

Agora que uma tentativa de homicídio falhara,

misericordiosamente, tinha de reflectir com urgência em novas

possibilidades.Equantomaispensavanisso,maisalarmadome

sentia.Porumapalavrasoltaaoacaso, tomara jáconhecimento

dequeAllertoneracasado.

Boyd Carrington, que estava a par da vida de todos eles,

elucidou-me acerca da situação de Allerton. Sua mulher era

católicaromanaedeixou-o,poucotempodepoisdomatrimónio.

Page 140: Agatha christie - cai o pano

Devidoàsuareligião,nãopodiamdivorciar-se.

- Se quer que lho diga - comentou Boyd Carrington,

francamente -, esse impedimento convém-Ihe àsmaravilhas. As

intenções de Allerton são sempre desonestas em relação às

mulheres que corteja, de forma que a sua situação de casado

convém-lheperfeitamente,tantomaisquenãopodedivorciar-se.

Comopai,detesteiouviraquilo.

Os dias que se seguiram ao “acidente de caça” passaram

numaaparentenormalidade,mas sentia crescer dentro demim

umaperturbanteintranquilidade.

O coronel Luttrell gastava a maior parte do seu tempo no

quarto damulher. Viera uma outra enfermeira tomar conta da

ferida, enquanto a enfermeira Craven passara a dedicar-se

exclusivamenteaMrs.Franklin.

Embora correndo o risco de que me julguem mal-

intencionado,direiquesenotavaumacertairritaçãonasatitudes

deMrs.Franklin, comoque ciumentadas atenções que tinham

passado a convergir, nitidamente, para Mrs. Luttrell, após o

sinistro.Dir-se-iaquesesentiapassarpara“inválidadesegunda

classe”.

Permanecia todo o dia deitada no canapé, queixando-se

constantemente de palpitações. Nenhuma refeição estava de

acordocomoseugostoepareciaumamártircheiadepaciênciae

resignaçãoparasuportaravidaemStyles.

Dirigindo-seaPoirot,desabafou:

Page 141: Agatha christie - cai o pano

- Odeio ter de fazer as outras pessoas andarem de volta de

mim, em virtude deste meu estado de saúde. Sinto-me tão

envergonhada deste estado que me priva de levar uma vida

normal! É tão humilhante pedir favores a toda a gente queme

rodeiaquechego,àsvezes,apensarqueestardoenteérealmente

um crime, um atentado para a felicidade de quem convive

connosco. Uma pessoa que não tem saúde deveria ser afastada

destemundo.

-Ah,não,madame-contrariouPoirot,galantecomosempre.

-Asfloresdelicadaseexóticasdevemserconservadasemestufas,

visto não poderem suportar os rigores do frio ou a excessiva

temperatura do Verão calmoso. Considere, por exemplo, o meu

caso:coxo,meioparalítico,muitoenfraquecidoe,todavia,nãome

resignoapassarumavidatranquila.Alegro-mecomaactividade

intelectual, posso ainda raciocinar e, além disso, desfruto dos

prazeres da comida, da bebida, da paisagem e do encanto das

pessoasquemerodeiam.

Mrs. Franklin fez um gesto de abandono e murmurou

queixosamente:

- Mas o seu caso é diferente, Mister Poirot. Só tem de

considerar o seu caso pessoal. Mas eu tenho que pensar na

situaçãodomeupobreJohn.Sinto-me,presentemente,comose

fosseumfardonavidademeumarido.Nãopassodeumapessoa

doenteeinútil...Umaverdadeiramóatadaaoseupescoço.

-Estou certo de que o doutorFranklinnuncapensouuma

coisa dessas a seu respeito. Não é pessoa para dizer-lhe

semelhantecrueldade.

Page 142: Agatha christie - cai o pano

-Oh,não!NuncaodisselMasoshomens,coitados,sãotão

transparentesl E John não tem omenor jeito para esconder os

seus sentimentos e emoções. Certamente que nunca me disse

semelhante coisa, pois não deseja magoar-me. De resto,

felizmente para ele, é uma pessoa deverasinsensitiva. Não tem

sentimentosespeciaisepensaqueosoutrostambémnãoostêm.

É tão feliz uma pessoa nascer apenas preocupada consigo

própria,comoseutrabalho,comosseusprópriosobjectivos!

- Eu não descreveria o doutor Franklin, dessa maneira,

madame - discordou Poirot. - Não acho, demaneira nenhuma,

quesejaumegoísta.

- Não?Oh, isso é porque o senhor não o conhece tão bem

comoeu.Certamentequetenhoaconsciênciadeque,seeunão

existisse,Johnpoderiasermuitomaislivreefeliz.Àsvezessinto-

metãodeprimidaquechegoapensarque,semorresse,seriaum

verdadeiroalívioparaele.

- Oh,madame., não diga uma coisa dessas! alarmou-se

Poirot.

- Afinal de contas de que sirvo eu, nesta vida? Se pudesse

partirparaoGrandeDesconhecido,entãoJohnrecuperariaasua

liberdade.

Quando repeti esta conversa, falando com a enfermeira

Craven,elasacudiuacabeça,sarcasticamente,esossegou-me:

-Umchorrilhodedisparateséoqueissoé,capitãoHastings.

Elanuncafariaumacoisadessas.Deresto,aquelesquefalamem

“acabar com tudo”, com uma voz quase moribunda, nunca

pensamrealmentesenãoempreocuparosoutrosaseurespeito,

Page 143: Agatha christie - cai o pano

atrair a comiseração alheia e continuar a passar, omelhor que

podem, nesta vida. Não se apoquente, pois só quem não a

conhece poderia acreditar que Mistress Franklin alguma vez

pensouemlibertaromarido.

Na realidadepude verificar que,malMrs. Luttrellmelhorou

deixandodeatrairtantoscuidados,logoMrs.Franklinperdeuos

sintomasdedepressãoederrotismo.

Certa manhã, particularmente agradável, Curtiss trouxe

Poirot para um canto do bosquezinho de faias, perto do

laboratório.Eraoseulugarfavorito,poisficavaabrigadodovento

leste e, praticamente, nenhuma brisa conseguia chegar àquele

recanto.Poirotdetestavaterdetomardrogas,quandoengripado,

masconstipava-sefrequentementee,porisso,receavaoarfresco.

Estoucertodequeteriapreferidoficardentrodecasa,seas

demaispessoasnãoandassemcáporfora.Ora,asuacuriosidade

erasuperioraomedodaaragemfria.

Estavaquaseajuntar-meaele,quandoMrs.Franklinsaiudo

laboratório.Vinhavestidaaprimor,oferecendo-nosumaimagem

encantadora.ExplicouirdarumpasseiodeautomóvelcomBoyd

Carrington,atéàcasadele,emKnatton,paraajudá-loaescolher

cretones.

-Tinhadeixadoaminhabolsanolaboratório,quandoontem

lá estive a falar comJohn - esclareceu. - PobreJohn!Fazia-lhe

falta um reagente qualquer e foi, com Judith, buscá-lo a

Tadcaster.

Afundou-se numa cadeira ao lado de Poirot e abanou a

Page 144: Agatha christie - cai o pano

cabeçacomumaexpressãocómica.

- São uns queridos! Pobrezinhos! Estou felicíssima por não

possuiramínimainclinaçãocientífica.Numdiatãobonitocomo

este, irem fazer uma compra daquelas, tão longe, em vez de o

aproveitarem a passear na quinta, parece-me verdadeiramente

pueril.

- Deve evitar que os cientistas a oiçam dizer coisas dessas,

madame - aconselhou Poirot. - Sentir-se-iam ofendidos, pois

consideram o seu trabalho mais importante do que andar a

passearpelocampo.

-Não,nãoodiriademaneiranenhuma-respondeuBárbara

Franklin, mudando subitamente de expressão e tornando-se

séria. - Na verdade, admiro imenso o meu marido. Não deve

pensar, Mister Poirot, que não é esse o caso. Mas acho que a

maneiracomosededicaexclusivamenteaoseutrabalhodeveser

terrívelparaasuasaúde...devesertremenda,paraoseuespírito.

Notava-se-lheumligeirotremornavoz.

Parecia-me agora que Mrs. Franklin gostava de representar

diferentes papéis. Neste momento fazia de esposa leal, heroína

sacrificada e devotada a seu marido. Não sei porquê, isso

despertou-meumacertasuspeita.

Inclinou-se para diante e pousou a mão sobre o joelho de

Poirot.

- John é, realmente... uma espécie desanto. Acredite que

isso,àsvezes,assusta-mebastante.

Page 145: Agatha christie - cai o pano

Chamar santo a Franklin parecia-me um exagero doentio,

masBárbaraprosseguiu,piscandoosolhosemotivamente:

- É capaz de fazer seja o que for, enfrentar qualquer risco,

mesmo o pior... só para avançar um passo na senda do

conhecimentohumano.Terumhomemcorajoso,parasacrificar-

sepelaciência,ébonito,nãoacha?

- Seguramente, seguramente! - apressou-se a confirmar

Poirot.

-Massabe?,àsvezes-continuouMrs.Franklin-,sinto-me

horrivelmente nervosa, preocupada com os riscos que toma...

como por exemplo essa história damedonha semente em que

trabalha agora. Aquilo pode ser desastroso, pois é altamente

venenosa,nãoseisesabe?,ereceioqueseatrevaaexperimentá-

laemsipróprio.

- Não deixará de tomar as suas precauções - observei, para

tranquilizá-la.

Elaabanouacabeçacomumsorrisodesoladoerespondeu:

-BemsevêquenãoconheceJohn!Éumacriançateimosa.

Nãosabeoquesucedeu...oquefezcomaquelenovogás?

Dissemos-lhequenão.

-Eraumnovogáscujaacçãodesejavamexperimentar.John

ofereceu-se voluntariamente. Sujeitou-se a um teste durante o

qual o fecharam, cerca de trinta e seis horas, dentro de um

tanque hermético, tomando-Ihe o pulso e a temperatura e

verificando-lhe a respiração, só para averiguarem se os efeitos

Page 146: Agatha christie - cai o pano

sobreaespéciehumanaeramsimilaresaosqueseproduziamna

constituição de outros animais. Segundo alguns professores,

Johncorreuumrisco terrível,poisaexperiênciapoderia ter-lhe

afectado o cérebro. Mas John é assim mesmo, completamente

alheio à sua própria segurança. Creio que é admirável uma

pessoa possuir esse tipo de coragem!Eu nunca seria capaz de

uma coisa daquelas... mas, por outro lado, tenho um receio

secreto de que possa... numa dessas experiências, atentar

involuntariamentecontraasuaprópriavida.Compreendem-me,

nãoéverdade?

-Naverdade,éprecisoser-semuitocorajosoparafazeressas

experiênciasemsimesmo,asangue-frio-apoiouPoirot.

- Exactamente. Sinto-me imensamente orgulhosa dele mas,

aomesmotempo,muitoreceosacomoque lhepossaacontecer.

Porque,nãosei se sabeque,adadaaltura, os testespraticados

comcobaiasjánãosãosuficienteseexigem-seoutrospraticados

com elementos humanos, para verificar a reacção dos produtos

nas pessoas. Geralmente, são os próprios sábios que realizam

essas experiências em si próprios. Quando penso que John faz

isso, fico absolutamente aterrada. Nunca sei o que lhe possa

acontecer. Mas que querem? Ri-se dos meus receios! O

pobrezinhoé,comovosdigo,umaespéciedesanto!

Nestemomento,BoydCarrington encaminhava-senanossa

direcção.

-Olá,Babs!Pronta?

-Sim,Bill,àsuaespera.

-Esperoquenãosesinta,depois,muitocansada.

Page 147: Agatha christie - cai o pano

-Decertoquenão.Hámuitoquenãomesentiatãobemcomo

hoje.

Levantou-se,dirigiu-nosumsorrisoencantadorecomeçoua

caminhar ao longo da álea, apoiada no braço do seu alto

companheiro.

- Humm! - exclamou Poirot. - Com que então o doutor

Franklinéagoraumsantomoderno!

-Umarápidamudançadeatitude-observei.Maspensoque

estasenhoraédessegénero.

-Dequegénero?

-Gosta de dramatizar e desempenhar diversos papéis.Uma

vezqueixa-sedeserumaincompreendida,umamulhersofredora

queodeiaserumpesomorto,juntodohomemqueama.Hoje,é

atentavigilantedosriscosqueosantodomaridocorreparabem

daHumanidade,tremendopeloquepossaviraacontecer-Ihe.O

sarilho com ela é ninguém dar muito crédito aos papéis que

desempenha.

Pensativamente,Poirotperguntou:

-AchaqueMistressFranklinéumamulheridiota?

- Bem, tanto não diria,mas parece-me que não possui um

intelectoquesepossaconsiderarbrilhante.

-Ah!Vejoquenãoéoseutipo!-comentou.

- Quem diabo é o meu tipo? - inquiri aborrecido.

Inesperadamente,Poirotsugeriu:

Page 148: Agatha christie - cai o pano

-Fecheosolhos,entreabraoslábioseescuteoqueasFadas

lhedizem.

Nãopuderesponder-lheà letra,porqueaenfermeiraCraven

se aproximava correndo, na nossa direcção. Mas não parou.

Dirigiu-se ao laboratório, entrou e tornou logo a sair, fechando

novamenteaporta.Traziaagoraumpardeluvasnasmãos.

-Primeiroabolsaeagoraas luvas -explicouaopassarpor

nós,comumlindosorrisodesaudação-,masaindanãoperdeua

cabeça.

Continuouacorrer,agoraemdirecçãodeBárbaraFranklin,

queaaguardava,maisadiante,agarradaaobraçodasuadistinta

escolta.BoydCarringtonfalava-Iheatenciosamenteaoouvido.

DisseparaosmeusbotõesqueMrs.Franklineradotipode

mulheres que se esquecem de tudo por onde passam. Depois,

pedematodaagentequeseincomodeaprocurá-laseaindapor

cima parecem orgulhosas de que lhas tragam e depositem aos

pés.Então, para consolo dos escravos improvisados, lamentam-

se:“Ai,estaminhacabeçadevento!”

Fiquei-me a ver a enfermeira Craven correr direita a eles.

Fazia-o elegantemente, lançando o corpo para diante,

vigorosamente,deformasaudáveleatraente.

Instintivamentecomentei:

- Aposto que esta garota detesta a vida que leva, sempre

amarradaaumaenferma.Vê-sequeadoraavidaaoarlivreeque

a praticou, na meninice. Tem todo o aspecto de ser uma

enfermeira à força. E não suponho que Mistress Franklin seja

Page 149: Agatha christie - cai o pano

aquiloaquesepossachamarumadoentedócileagradável.

ArespostadePoirot foi,distintamente,provocadora.Fechou

os olhos, balanceou-se ligeiramente na cadeira de rodas e

murmurou:

-Cabeloscastanhos.

Indubitavelmente a enfermeira Craven tinha cabelos

castanhos. Não havia contudo a menor razão para que o meu

amigoproferissetalcomentárionaquelaaltura.

Nãorepliquei.

Page 150: Agatha christie - cai o pano

CapítuloXI

Creio que foi na manhã seguinte, antes do almoço, que

ocorreuaconversaquemedeixouvagamenteinquieto.

Estávamos lá quatro do nosso grupo: Judith, Boyd

Carrington,Nortoneeu.

Não estou agora bem certo damaneira como começámos a

falardeeutanásia:tesesafavorecontra.

Como era de esperar, Boyd Carrington fez quase toda a

despesa da conversa, intervindo Norton com uma ou duas

palavras a esse respeito, aqui e além, e Judith mantendo-se

silenciosamasinvulgarmenteatenta.

Pessoalmente pouco falei, exprimindo uma natural

desaprovação basicamente sentimental, mas também por

observaçãodoprincípiodequeosparentesdeumindivíduonão

podemterpoderdevidaedemorteemrelaçãoaele.

Norton concordou comigo, acrescentando que só poderia

admitirumactodeeutanásia,desdequeautorizadopelopaciente

e depois de provado que só a morte poderia aliviá-lo de um

sofrimentoatrozeprolongado,comacertezadeumfalecimento

próximosobreveniente.

BoydCarringtonobjectou:

- Ah, mas esse é o ponto que interessa discutir. Terá

realmente uma pessoa direito de consentir que o livrem de

sofrimento,pormeiodamorte?

Page 151: Agatha christie - cai o pano

Contou uma história, que afirmou ser autêntica, de um

homemquesofriahorrivelmentedecancroequepediraaomédico

que lhe ministrasse algo que pusesse termo às suas dores. O

médicorespondera-lhe:“Eunãopossofazer-lheisso,meucaro.”

Aodeixá-lo,abandonousobreamesa-de-cabeceiradodoente

váriascápsulasdemorfina,explicando-lhequantaspodiaingerir

equaladosequeseriamortal.

Dessamaneiracolocouopacienteperanteo livre-arbítriode

suicidar-seounão.Ora,ohomemnãotevecoragemdematar-se.

- Isso prova - concluiu Boyd Carrington -, que, apesar das

suas próprias palavras, o doente preferiu sofrer, a uma doce e

misericordiosamorte.

Foi então que Judith interveio, abruptamente e com

entusiásticovigor:

-Certamentequedevia ter sidoauxiliadoamorrer.Não lhe

deviamterconfiadoadecisão.

Boydperguntou-lheoquequeriasignificarcomisso.

- Quero dizer que uma pessoa doente e fraca, não tem

suficientepoderdedecisãoparatomarumaatitudetãodrástica.

Não está racionalmente apta a resolver, sozinha, o seu trágico

caso. Alguém teria de ajudá-la. Quem a amasse deveria... teria

mesmoodireitodedecidirporela.

-Direito?-inquiri,duvidosamente.Judithvirou-separamim

einsistiu:

-Direito, sim. Alguém cujo espírito estivesse lúcido e fosse

Page 152: Agatha christie - cai o pano

capazdetomararesponsabilidade.

BoydCarringtonabanouacabeça,observando:

- E acabaria na forca, sob uma acusação de homicídio

premeditado.

- Não necessariamente - contrariou minha filha -, iríamos

correr esse risco. De resto, se amamos verdadeiramente uma

pessoa,deveríamoscorreresserisco.

-Masrepare,Judith- interveioNorton-,queestáasugerir

umaterrívelresponsabilidadeaarrostar.

- Porquê terrível? As pessoas não deviam temer tomar a

responsabilidade dos actos que se tornam necessários. Se

arrostam essa responsabilidade aomatar um cão, por exemplo,

ou um cavalo, porque não, quando se trata de pôr termo ao

sofrimentodeumapessoa?

- Bem... os exemplos são imensamente diferentes, não é

verdade?Osofrimentodeumapessoadeveserconsideradomais

importantedoqueodeumanimal-sentenciouJudith.

Nortonmurmurou:

-Atémecortaarespiração!

Demonstrandofrancacuriosidade,BoydCarringtoninclinou-

separadianteeinquiriu:

-Portanto,noseucaso,correriaesserisco?

-Creioquesim.Nãotenhomedodecorrerriscos.

Page 153: Agatha christie - cai o pano

UmavezmaisBoydabanouacabeçaecriticou:

-Nãodevia fazê-lo.Aspessoasnãopodemandarporaquie

por ali, a tomarem a Lei nas suas mãos, para decidirem em

matériadevidaedemorte.

Nortoncomentou:

- Sabe que, actualmente, amaioria das pessoas não teriam

nervosuficienteparatomarqualquerresponsabilidade,nãoserá

assim,BoydCarrington?

SorriuparaJudithedeclarouconfiante:

-Nãoacreditoquevocê,apesardoquedisse, fossecapazde

chegar tão longe.Os jovens gabam-se facilmente do que seriam

capazes de executar mas, chegada a altura própria, acabam

sempreporhesitar.Nuncaestãosegurosdecoisanenhuma.

-Certamentequeninguémpodeestarsegurodesercapazde

matar,maspensoque,senecessário,correriaorisco.

Comumbrevegestodedescrédito,Nortonmotejou:

-Nãoacreditoqueofizesse,mesmoquetivesseummachado

àmãodesemear...etambémumarazãodeinteressepessoal.

Corandodeexcitação,Judithretorquiu:

- Issosóprovaquenãopercebenadadeemoçõeshumanas.

Seeutivesse...ummotivopessoal,nãopoderiafazerfosseoque

fosse.

Olhando-nosatodos,numamiradageral,Judithproferiu:

Page 154: Agatha christie - cai o pano

- Não estão a ver que teria de ser um acto absolutamente

impossível?Sópoderia tomara responsabilidadedeantecipar a

morte de uma pessoa, se estivesse inteiramente certa de que

nenhumavantagemmepoderiaadvirdessamorte.Esseactoteria

derevestir-sedeumcaráctertotalmentedesprovidodeegoísmo.

-Vemadaromesmo-contrariouNorton.Vocênemporpura

abnegaçãoseriacapazdematar.

Judithinsistiu:

-Seria,sim!Paracomeçar,nãoconsideroavidaumaessência

sagrada,comoamaiorpartedaspessoasacredita.Vidasnefastas,

vidas inúteis deviam ser afastadas do caminho. Já há gente de

mais, nestemundo, que só serve para prejudicar os outros. Só

aqueles que podem contribuir decentemente para o bem da

comunidadedeveriamserautorizadosaviver.Osoutrosdeveriam

sereliminadosmisericordiosamente,semsofrimento.

Voltando-sesubitamenteparaBoydCarringtondesafiou:

- Concorda comigo, não é verdade? Calmamente, Boyd

respondeu:

-Emprincípio,sim.Sóosbonsdeveriamsobreviver.

- E seria capaz de tomar a Lei nas suas mãos, se fosse

necessário?

Cautelosamente,Boydarriscou:

-Talvez...nãosei.

FoiavezdeNortonsemanifestar:

Page 155: Agatha christie - cai o pano

- Em teoria, muita gente concordaria consigo, mas, na

prática,muitopoucosteriamcoragemparafazê-lo.

-Issonãoélógico-contrariouJudith.Nortonretorquiucom

impaciência:

-Evidentementequenãoé lógico.Érealmenteumaquestão

decoragem,mas nem todos têm “ganas” de pô-la em execução,

comovulgarmentesediz.

Judithmanteve-sesilenciosa,mordendoos lábios,enquanto

Nortonprosseguia:

-Vocêbemsabe,Judith,quenomomentopreciso,faltar-lhe-

iaacoragemparamatar.

Virou-separamimesolicitouaminhaaprovação:

-Nãopensaomesmo?

-Estoucertodisso-afirmei.Boydinterveio.

- Creio que está enganado, Norton. Penso que Judith tem

imensacoragem.Felizmentequeessecasonãosenosapresenta

nestemomento.

Ogongosoounofundodacasa.

Judith ergueu-se. Muito distintamente, declarou para

Norton:

-Estámuitoenganado,sabe?Muitoenganado!Tenhomuito

maisganasdoquepensa.

Encaminhou-selentamenteparaasaladejantar,pensativa.

Page 156: Agatha christie - cai o pano

BoydCarringtonseguiu-adeperto,aconselhando:

-Nãopensemaisnisso,valeu?

Fui atrás deles, angustiado. Norton, sempre pronto a dizer

umapalavracontemporizadora.murmurou:

- Ela não quis dizer, na realidade, o que esteve para ali a

afirmar. E o género de atitude que os jovens gostam de tomar

para se fazerem interessantes.No fundo, tudoaquilonãopassa

de fogo-de-artifício, palrador, sem qualquer significado especial.

Podecrerqueéassimmesmo,Hastings.

Emborativessefaladobaixo,Judith lançou-lheumolharde

relance,porcimadoombro,carregadodefúria.

Elevando a voz, Norton sentenciou: - Não vale a pena

preocuparmo-noscomteorias.

Subitamente,pegou-menumbraçoedisse:

-Olheumacoisa,Hastings...

-Sim?

Norton mostrava-se agora embaraçado e hesitou antes de

perguntar:

-QuesabevocêdeAllerton?Nãogostode falarnosoutros,

mas...

-DeAllerton?

-Sim.Desculpe.Nãogostodearmar-meemconselheiromas,

Page 157: Agatha christie - cai o pano

se fosseasi,nãodeixariaasuagarotaandar,poraí,tantocom

ele.Ohomemtem...bem,asuareputaçãonãoédasmelhores.

- Já percebi o género desse cavalheiro - admiti -,mas sabe

que,nosnossosdias,nãonoséfácilintervir.

Apósumabrevehesitação,confidenciou:

-Oiça,Hastings,creioquedevoavisá-lo.Nãoodeixeirmuito

longe.Acontecequeseialgumacoisaacercadele...

Contou-meváriascoisasetiveoportunidadedeverificar,mais

tarde, serem verdadeiras em todo o seu pormenor. Era uma

históriarevoltante.Ocasodeumarapariga,muitoseguradesi,

moderna e independente que Allerton tivera artes mágicas de

desencaminhar.Oromanceterminaraemtragédia,comamoçaa

pôrtermoàvidacomumadoseexcessivadeveronal.

E o mais horrível da história era a sua heroína parecer-se

extraordinariamente com a minha Judith. A mocinha

independente de ideias avançadas. O género de jovem que,

quandoentregaocoração,fá-lointensamente,comoabandonoe

desesperodequesóessetipodemiúdasécapaz.

Fui almoçar com uma horrível sensação de impotência e

revoltaconcentrada.

Page 158: Agatha christie - cai o pano

CapítuloXII

I

- Tem alguma coisa que o apoquente,monami - perguntou

Poirot,nessatarde.

Limitei-measacudiracabeça,emvezderesponder.

Sentiquenão tinhaodireitode incomodarPoirot comesse

problema,puramentepessoal,quesóamimdiziarespeito.Para

todososefeitos,nãoeraassuntoemquepudesseser-meútil.

Mesmoqueomeuamigoestivessenadisposiçãodefalarcom

Judith,elaouvi-lo-iacomosorrisosuperior,oubenevolente,que

osjovensafivelamnorostoparaacolherosaborrecidosconselhos

dosvelhos.

Judith,minhaJudith...

É difícil descrever agora o que nesse dia me passou pela

mente. Pensando nisso,a posteriori, estou inclinado a atribuir

partedaperturbaçãoàprópriaatmosferadeStyles.Ali,asideias

doDiabopenetravamfacilmentenanossaimaginação.Nãohavia

unicamente um trágico passado, mas também um presente

sinistro.

Oespectrodeumassassínioeumassassinoassombravama

casa.

Acreditava que Allerton era o criminoso encapotado e que

Judith ia entregar-lhe o coração. Era inacreditável...

monstruoso...eeunãosabiaquefazer.

Page 159: Agatha christie - cai o pano

Foi depois do almoço queBoydCarrington veio ter comigo.

Andouumpoucoàvoltadoassunto,atédecidirdizer-me:

- Não pense que quero interferir nos seus atributos, mas

pensodever falar-lhena suapequena.Diga-Iheumapalavrade

aviso, hem? Você sabe, esse tipo, Allerton, tem uma péssima

reputaçãoeela...bem,parecequeestá,decertomodo,tocada.

Comoerafácil,paraesseshomenssemfilhosaconselharem:

“Diga-lheumapalavra!”

Serviriaissodealgumacoisa?Nãoseriaaindapior?

Se ao menos Cinders fosse viva e estivesse ao pé de mim!

Decertosaberiaquedizerefazer.

Sentia-me tentado a aguardar mais um dia ou dois, na

expectativa,semdesafiaratempestade,masreflectieconcluíque

issonãoseriamaisdoqueumactodecomodismooucobardia.

Receava, ao mesmo tempo, enfrentar mais uma situação

desagradável dedesrespeitosa rebeldia.Comopodemver, estava

commedodaminhaprópriafilha.

Tentei espairecer um pouco o espírito, oferecendo-me um

passeio pelo jardim, quando vi Judith sentada sozinha num

banco. Era como se o Destino me conduzisse até ela, naquele

momento.

Nunca na minha vida tinha visto uma expressão de tanto

desalentoeinfelicidadenumrostodemulher.

Enchi-me de coragem e dirigi-me para ela. Não me ouviu

aproximar,atéaomomentoemquemesenteiaseulado.

Page 160: Agatha christie - cai o pano

- Judith - disse-lhe suavemente -, pelo amor de Deus, não

estejastãoapreensiva.Pensasdemais,sabes?

Virou-separamim,quaseassustadacomaminhaaparição.

-Pai,nãooouvichegar!

Prossegui, conquanto tivesse a noção de que a minha

diligência seria baldada se ela se rebelasse, como de costume,

repudiandoomenorconselho.

-Oh,minhamuitoqueridaJudith,nãopensesquenãosei

aquilo que está diante dos meus olhos. Ele não merece isto,

acredita-me,meuamor.Elenãomereceisso.

O seu rosto alarmado virou-se para mim. Calmamente

perguntou:

-Saberealmentedoqueestáafalar?

-Certamentequesei.Estouprofundamentepreocupadocom

essehomem.Masminhaquerida,podescrerquenãoteserve.

Sorriusombriamenteemurmurou:

-Talvezeusaibaissotãobemcomoopai.

-Não, não sabes.Não podes sabê-lo.Onde é que isso pode

levar-te?Éumhomemcasado.Nãopodeproporcionar-teomenor

futuro; apenas tristeza e vergonha; finalmente, amargura e

recriminaçõesmútuas.

Oseusorrisotornou-seglacial,talvezmaistristeainda.

-Comoestáeloquente,estamanhã!

Page 161: Agatha christie - cai o pano

-Põeessaideiadeparte,Judith!Nãopensesmaisnisso.

-Não.

- Ele não te serve, meu amor. Muita calma, respondeu

surdamente:

-Étudoquantodesejonestemundo.

-Não,nãoJudith.Suplico-te.

O sorriso desvaneceu-se-lhe nos lábios. Virou-se para mim

furiosamenteedesfechou:

-Comoseatreve?Comoseatreveainterferirnaminhavida!

Não o tolero. Nunca torne a falar-me nesses termos. Detesto-o!

Odeio-o! Não tem nada com isso. E aminha vida... o meu

segredo....aminhaalma.

Levantou-se e, com umamão firme, empurrou-me o ombro

para trás. Passou pela minha frente, como que desvairada, e

deixou-me estarrecido a olhar para ela, profundamente

desalentado.

II

Durante mais de um quarto de hora permaneci no mesmo

local, mergulhado nos mais contraditórios pensamentos. Que

resoluçãotomar?

FoiaíqueElizabethColeeNortonvieramencontrar-me.

Mostraram-se, como concluí mais tarde, imensamente

Page 162: Agatha christie - cai o pano

amáveis comigo, o que prova terem-se apercebido de que me

achavanumestadodegrandeperturbaçãomental.

Contudo,commuitotacto,nãofizeramamaisligeiraalusão

aoquepressentiamnomeuespíritoconturbado.Arrastaram-me

num passeio pelo bosque e mostraram-se ambos grandes

adoradores da natureza. Elizabeth Cole apontava-me as flores:

Norton,asaves.

Falavamgentilmentee,poucoapouco,readquiriacalma.

Subitamente, porém, Norton, com o binóculo assestado,

exclamou:

-Olá!Aquilonãoéumpica-pau?Éaprimeiravez...

Calou-se bruscamente mostrando-se claramente

comprometido.

Asuspeitainvadiu-meeestendiasmãosparaoinstrumento.

-Deixe-mever...

A minha voz foi peremptória, mas Norton encolheu-se e

articuloutitubeante:

-Eu...eu...enganei-me.Jávooudeondeestava.Deresto,era

umpássarovulgar.

Oseurostoestavatãoperturbadoque,noutrasituação,ter-

me-ia parecido ridículo. Mostrava-se simultaneamente

envergonhadoeassustado.

Nãohaviadúvidaqueacabaradepresenciaralgoquedesejava

Page 163: Agatha christie - cai o pano

impedir-medever.

Só então me apercebi de que assestara o binóculo numa

direcção desviada do bosque, após ter feito a sua inicial

descoberta.

-Deixe-mever-insisti,maisordenandodoquepedindo.

Praticamentetirei-lheobinóculo.Recordo-medequetentou

aindarecusar-mo.Protestouemvozsumida:

-Nãoénada.Opássarojávoou.

Erauminstrumentodelentespoderosas.Levei-oaosolhose

apontei-onadirecçãodaúltimamiradadeNorton.

Mas nada consegui ver, além de uma mancha branca

desaparecendo entre as árvores. O vestido branco de uma

rapariga?

Baixeiobinóculoe,semumapalavra,estendi-oaNorton.

Confuso eperplexo, evitou olharparamim, como se tivesse

praticadoumaacçãocondenável.

Voltámospara casa e recordo-medequeNortonmanteve-se

todoocaminhonumabsolutomutismo.

III

Mrs. Franklin e Boyd Carrington chegaram pouco tempo

depois de termos entrado em casa. Ele levara-a no carro, até

Tadcaster,porqueeladesejarafazeralgumascompras.

Podia apostar que o passeio lhe fizera imensamente bem.

Page 164: Agatha christie - cai o pano

TiraramnumerososvolumesdedentrodocarroeMrs.Franklin

mostrava-se deveras animada, gesticulando e rindo, com

magníficascoresnasfaces.

MandouBoyd,àfrente,comumacompraqualquerquedevia

ser frágil, e galantemente encarreguei-me de transportar outro

grandeembrulho.

Bárbara falava mais apressada e nervosamente do que de

costume!

- Calor terrível, não é verdade? Receio que venha aí

tempestade.

Virou-separaElizabethCole:

-Quefizeramvocês,durantetodoodia?OndeestáJohn?Ele

disse-mequeestavacomdoresdecabeçaequeiadarumpasseio

para ver se lhe passava. Uma dor de cabeça é sempre

desagradável,especialmenteparaele...Nãoseisesabemqueanda

muitopreocupadocomassuasexperiências.Parecequeestãoa

correr-lhemal.Gostariaquefalassemaisdeoutrosassuntos.

Fezumapausae,emseguida,dirigiu-seaNorton:

-Estámuitocalado,MisterNorton.Aconteceualgumacoisa?

Parece... parece abismado! Viu o fantasma dessa velhaMistress

Qualquer-Coisa?

Nortongaguejou:

- Na-ão, Mistress Frank-klin. Não vi fantasma algum. Eu...

estavaapenasapensarnumproblemasemimportância.

Page 165: Agatha christie - cai o pano

Foi nesse momento que Curtiss entrou, empurrando a

cadeiraderodasdePoirot.

Parounoátrioeiapreparar-separatirarPoirotdacadeirae

carregarcomele,escadaacima,quandoovelhodetectiveinquiriu

derepente:

-Quesepassou?Aconteceualgumacoisa?

Os seus olhos brilhavam, perscrutando as fisionomias das

pessoaspresentes.

Durante um minuto, ninguém respondeu. Depois Bárbara

Franklinsoltouumrisinhoartificialedisse:

- Não, nada de especial. Creio que é da tempestade que se

avizinha. Oh, Céus! Estou tremendamente cansada! Traga-me

essascoisascáparacima,sim,capitãoHastings.Muitoobrigada.

Segui-acarregado,pelasescadasdaalaoriental.Oseuquarto

eraoúltimodesselado.

Mrs.Franklinabriuaporta,comigoatrásdela,comosbraços

carregadosdeembrulhos.

Bruscamente,estacouàentrada.BoydCarringtonestavade

pé,juntoàjanela,eaenfermeiraCravenpegava-lhenamão.

Estavaaler-lheasina.

-Olá!-saudouelecomumsorrisoligeiramentecontrafeito.-

Estava a descobrir o meu destino. A enfermeira Craven é

quiromante, sabia? Mas ainda não me disse o que mais me

interessa.

Page 166: Agatha christie - cai o pano

- Realmente, lê a sina? Não fazia a menor ideia - disse

BárbaraFranklin,numtomdevozcortante.

Virou-separaelacomcertabrusquidãoeordenou:

-Peguenestascoisas,senãoseimporta,enfermeira.Ebata-

me um ovo com porto, sim? Sinto-me muito cansada. Quero

tambémumabotijadeáguaquente.Ireiparaacamaomaiscedo

possível.

-Certamente,MistressFranklin.

A jovem apressou-se a desempenhar a sua missão não

denunciandooutrosentimentoquenãofosseodacomplacência

profissional.

Então,BárbaraFranklinpediu:

- Por favor, vá-se embora, Bill, sim? Estou terrivelmente

exausta.

BoydCarringtonpareceucontristadoeaquiesceu:

-Oh,Babs!Certamente.Opasseio deve ter sido demasiado

esgotante para si! Lamento imenso! Que pateta fui em tê-la

cansadodessamaneira!

Mrs.Franklinlançou-lheumolhardemártir,angelical.

- Não devia dizer-lhe nada, Bill. Detesto serdesmancha-

prazeres.

Boyd e eu saímos do quarto, deixando as duas mulheres

juntas.Nocorredor,censurou-se:

Page 167: Agatha christie - cai o pano

-Queparvoquefui.Vi-atãoalegreeviva,duranteopasseio,

que me esqueci do seu estado de saúde. Espero que não sofra

umarecaída.

Mecanicamenteanimei:

-Verácomoficaráóptima,apósumanoitededescanso.

Enquantoovidescerasescadas,hesiteinorumoatomar,até

que me decidi a dirigir-me ao fundo do corredor, onde se

situavamosquartosdePoiroteomeu.

O homenzinho devia estar à minha espera, mas, pela

primeira vez, senti certa relutância em ir ter com ele. Estava

preocupadocomosmeuspensamentose sentiaumadoraguda

noestômago.

Caminheivagarosamenteaolongodocorredor.

Ao passar pelo quarto de Allerton ouvi vozes, e,

instintivamente, abrandei o passo. Então, subitamente, a porta

abriu-seeminhafilhasaiu.

-Queestavasafazernessequarto?-inquirizangado.

Fitou-mesilenciosa.Nãoseenfureceumasevidenciouamaior

frialdade.Durantealgunssegundosnãorespondeu.

Abanei-aporumbraço,levei-aparaomeuquartoedisse-lhe:

-Tenhodireitoaumaresposta.Nãosabesoqueestásafazer.

Finalmente,comentou:

-Vejoquetemumamentalidadeabsolutamenteultrapassada.

Page 168: Agatha christie - cai o pano

-Ehonro-medisso-retorqui-lhe.-Pelomenos,respeitamos

certos padrões de vida. Quero que compreendas isto, Judith:

proíbo-tequetenhasmaisrelaçõescomessehomem.

-Ah!Eentãoisso?-perguntoucalmamente.

-Negasestarapaixonadaporele?

-Não.

-Masnãosabesqueespéciedehomemé.Nãopodessaber.

Deliberadamente, sem rodeios, contei-lhe a história que

ouvira,nessatarde,arespeitodeAllerton.

-Estásaveraespéciedehomemqueé?-inquiri,nofinal.

- Nunca tive dúvidas a esse respeito - replicou ela. - Posso

assegurar-lhequenuncapenseiquefosseumsanto.

-Nãotefazdiferença,Judith,tornares-tenumadepravada?

-Chame-lheisso,seassimoentender.

-Judith,tunãoés...Tunãotens...

Não encontrei as palavras que exprimissem justamente a

minhaindignação.Elalibertouobraçodaminhamãoedeclarou:

-Oiça,pai.Euestounomeudireitode fazeroqueescolho.

Nãopodeimpedir-mo.Fareiexactamentedaminhavidaoqueme

apetecerenãopoderádeter-me.

Noinstanteimediatosaiuparaocorredor.

Page 169: Agatha christie - cai o pano

Sentiosjoelhostremerem.

Afundei-me numa cadeira. A situação era pior...muito pior

doqueimaginara.Acriançarebeldepareciaobcecadaemperder-

se.Nãohavianinguémquepudesseacorreremmeuauxílio,em

seu auxílio. Sua mãe, a única pessoa a quem ela poderia dar

ouvidosestavamorta.Tudodependiaagorademim.

Não creio que tenha sofrido tanto, como sofri naquele

momento.

IV

Reuni todas as minhas forças psíquicas para recuperar a

presença de espírito e acalmar. Precisava de manter-me

aparentemente tranquilo. Lavei-me e barbeei-me para jantar.

Devo ter conseguido readquirir as minhas maneiras naturais,

poisninguémdeumostrasdenotarqualquerdiferençanaminha

atitude.

Por uma ou duas vezes vi Judith dirigir-me um olhar de

relance. Devia estar siderada pela forma como me mostrava

normalesossegado.

E, cada segundo que passava,mais se avolumava aminha

determinação.

Tudoquantoagoraprecisavaeradecoragemeraciocínio.

Depois do jantar saí para o jardim e contemplei o céu. A

atmosferacompactaprenunciavachuva,trovoada,tempestade.

Pelocantodoolho,viJudithdesaparecernaesquinadacasa.

Page 170: Agatha christie - cai o pano

Momentosdepois,Allertonseguianamesmadirecção.

Acabei o que estava a dizer a Boyd Carrington e tomei o

mesmocaminho.

Julgo que Norton tentou deter-me, segurando-me o braço.

Propôs-me ainda dar uma volta para os lados do roseiral. Agi

comosenãootivesseouvido.

Ainda me acompanhava, quando dobrei a esquina da

mansão.

Lá estavam eles. Não pude ver o rosto de Judith porque

estava virada de costas para o nosso lado e naquele local não

havialuz,eocéuestavacompletamenteencoberto.Masdistingui

ovultodeAllertoninclinar-sesobreelaebeijá-la.

Separaram-se rapidamente, como se nos pressentissem.

Aindadeiumpassoparadiante,masdestavez,comumaforçade

que eu não o julgava capaz, Norton segurou-me e fez-me

contornardenovoocantodacasa.

Falandobaixo,mascomdecisão,disse-me:

-Escutelá.Nãopodefazerisso...Interrompi-o,ameaçador:

-Possoehei-defazê-lo.

-Nãoservedenada,meuamigo.Aliviamomentaneamentea

raiva,masjánãohánadaquepossafazer.

Fiquei calado. Ele podia realmente pensar que era um caso

perdido,maseusabiaqualamelhorsoluçãoparaumasituação

daquelas.

Page 171: Agatha christie - cai o pano

Nortonpersistianasuatentativadedissuasão:

-Seicomosedevesentir,revoltadoeimpotente,masaúnica

coisaquelherestaéaceitaraderrota.Aceite-a,homem!

Não o contradisse. Esperei, deixando-o falar à vontade.

Depois,dobreinovamenteaesquinadacasa.

Tinham ambos desaparecido, mas fiquei com uma ideia do

localparaondeteriamido.HaviaumaoutracasadeVerão,entre

unscanteirosdelilases,nãomuitolongedali.

Avanceinessadirecção,comNortonsemprecoladoaosmeus

ombros.QuandomeacerqueiouviavozdeAllertoneestaquei.

-Bem,minhaquerida.Estáentãocombinadodiziaele.-Não

façamaisobjecções.Você vai à cidade,amanhã.Pelomeu lado,

ireiatéIpswicheficareiemcasadeumamigo,porumanoiteou

duas.Então,vocêtelefonarádeLondresainformarquenãopode

regressar. Quem poderá saber desse encantador jantarinho no

meuapartamento?Prometo-lhequenãosearrependerá.

Senti Norton pressionar-me o braço procurando fazer-me

retroceder.Então,repentinamente,virei-meparaele.Quaselheri

na cara, ao notar a profunda ansiedade estampada na sua

expressão.Mansamente, deixei-o reconduzir-me a casa. Simulei

desistirdequalquertomadadeatitude,visto,naquelemomento,

estarcertodoqueconviriafazer...doqueiriafazer.

Disse-lheclaramente:

-Nãosepreocupe,meucaro.Jácompreendiquenãohánada

que eu possa resolver. Ninguém pode controlar a vida dos

Page 172: Agatha christie - cai o pano

jovens... É escusado... Só reconhecem os erros, depois de

sofrerem-nos,naprópriaalma.

Mostrou-se-me ridiculamente aliviado. Pouco tempo depois,

anunciei-lhequeiadeitar-memaiscedo.

-Estoucomumaestúpidadordecabeça-justifiquei.

Nortonnãoteveamenorsuspeitadoqueeuiafazer.

V

Parei um instante no corredor. Não havia ninguém nas

proximidades.Ascamasestavamjáabertasparaoshóspedesse

deitarem.Norton,quetinhaoquartodesselado,ficaranoandar

de baixo. Miss Cole estava a jogar brídege. Sabia que Curtiss

estava na cozinha a cear. Tinha o terreno livre, à minha

disposição.

Congratulei-me pelo facto de não ter trabalhado, em vão,

tantosanoscomPoirot.Sabiaquaisasprecauçõesatomarede

umacoisaestavaagoracerto:Allertonnão iriaencontrar-secom

Judithnodiaseguinte.Tudoomaisera ridiculamentesimples.

Fuiaomeuquartobuscarumfrascodeaspirinas.Seguidamente

dirigi-meaoquartodeAllertoneentreinasaladebanho.

As cápsulas deSlumberyl estavam na prateleira. Considerei

queoitoseriamsuficientes, jáqueduaseraadosemáximaque

qualquerorganismopoderiasuportar.OpróprioAllertondissera-

mequeoseuefeitoeraaltamentetóxicoeorótuloanunciava:“E

perigosoexcederadoseprescrita.”

Utilizando um lenço para pegar no frasco, desrolhei-o. Era

Page 173: Agatha christie - cai o pano

necessário que as minhas impressões digitais não ficassem

impressasempartealguma.

Esvaziei oito cápsulas de hipnótico e troquei-as com outras

oito de aspirina. Como ambos os tipos de comprimidos se

assemelhavam, ninguém notaria a troca. Coloquei o frasco,

exactamente,ondeotinhaencontrado.Allertonnãopoderiadar

peladiferença.

Regressei ao meu quarto, peguei em dois copos, na minha

garrafadeuísqueenosifão.NuncaAllertonrecusarabeberum

copo. Quando subisse, desafiá-lo-ia a acompanhar-me numa

bebida, antes de nos deitarmos.Dissolvi facilmente as cápsulas

deSlumberyleachei-aumpoucomaisamargadoqueodabebida

pura, mas pouco diferençável. Tinha o meu plano: quando

Allertonsubisse,ver-me-iaservirinocentementeumabebidapara

mim próprio. Oferecer-lha-ia com a maior naturalidade,

acrescentandoadosedeuísqueejuntando-lheaáguagasificada.

Passar-lhe-iaessecopoquemeestava,aparentemente,destinado

eencheriaumadosesimilarparamim.Fácilenatural.

Nãopoderiasuspeitardosmeussentimentosaseurespeito,a

menos que Judith lhe tivesse transmitido a nossa conversa.

Considerei essa hipótese, mas parti do princípio que Judith

nuncafalariadoassuntoamaisninguém.

Apenasmerestavaesperar.Talvezfaltasseaindaumahoraou

duas,antesqueAllertonsubisseparadeitar-se.Erabastanteave

nocturna.

Sentei-mecalmamenteeaguardei.

Bateramà porta.EraCurtiss que vinha da parte de Poirot.

Page 174: Agatha christie - cai o pano

Pedia-mequedesseláumsalto.

Sentiremorsos.Naverdade,nãopensaraneledurantetodaa

noite, pelo menos, em visitá-lo. Agora não poderia deixar de

acorreraoseuchamamento,tantomaisquenãodesejavalevantar

amínimasuspeitaacercadosmeusdesígnios.

Segui Curtiss e ao entrar no quarto do meu amigo, este

saudou:

-Ehbien!Comqueentão,desertou,hem,Hastings?

Desculpei-mecomomelhordosmeussorrisosealegueiuma

fortedordecabeça.Imediatamentesolícito,Poirotofereceu-meos

seus remédios. Recusei a aspirina que me quis fazer ingerir,

explicando-lhe que já tomara um comprimido, mas não pude

furtar-meaengolirumachávenadoseuenjoativochocolate.

-Restabeleceosnervos,compreende?-explicouPoirot.

Bebiparamostrar-lhequeaceitavaoargumento.Momentos

depois, ainda com as exclamações de afeição do meu amigo a

soarem-meaosouvidos,fuiansiosamenteparaomeuquarto.

Malentrei,fecheiaportaostensivamente.Emseguida,tornei

aabri-la,semruído.Poirotficariaconvencidodequetencionava

efectivamente deitar-me, mas, na realidade, eu não queria, de

modo algum deixar passar Allerton, sem dar por ele. Teria

contudodeesperaraindaumbompedaço.

Sentei-me e pus-me a pensar na minha falecida mulher.

Surpreendi-meamurmurarcomosmeusbotões:

-Compreendes,querida.Vousalvá-la.

Page 175: Agatha christie - cai o pano

CindersdeixaraJudithaomeucuidado.Nãoqueriafalharna

únicamissãoquemeconfiara.

Nosilêncioexpectantequemeenvolvia,sentia-amuitoperto

demim.

Alifiqueiàespera,meditando,nosofá,juntoàporta.

Page 176: Agatha christie - cai o pano

CapítuloXIII

I

Semprequeescrevemosumanticlimaxasangue-frio,háalgo

quenoscontendecomoamor-próprio.

Para falar verdade, confesso que me sentara à espera de

Allertonedeixei-medormir.

Suponho que o facto não seria de surpreender, já que

dormira pessimamente na noite anterior. Depois, estivera ao ar

livre todo o dia, o que igualmente quebra bastante as energias,

sobretudoquandootempoestácarregado,naiminênciadeuma

tempestade.

Aconteceu. Adormecera, junto da entrada, com a porta

entreaberta e, quando os pássaros começaram a trinar lá fora,

acordeicomoSoljáalto,enterradonosofá,aindavestidocomo

trajedejantar,comumdesagradávelgostonabocaeumaterrível

dordecabeça.

Senti-meprimeiro incrédulo, depois desiludido e finalmente

desesperado.

Os meus olhos pousaram-se sobre a garrafa de uísque, na

minhafrente,depoisnoscopos,umdelesjápreparadoeooutro

vazio,elevantei-me,desalto.Pegueinaquelequecontinhaparte

da bebida destinada a Allerton, dirigi-me à janela, corri as

cortinasedespejei-anojardim.

Deviaterestadodoido,nanoiteanterior.

Page 177: Agatha christie - cai o pano

Barbeei-me,banhei-meevesti-me.Sentindo-meentãomuito

melhor,fuitercomPoirot.Sabiaqueeleacordavasempremuito

cedo.Sentei-meenarrei-lhetudoquantosepassaranavésperae

naminhamente.

Abanouacabeçaecomentougentilmente:

-Ah!Queloucuras,quetentaçõesarrebataramomeuquerido

amigo! Apraz-me muito que tenha vindo confessar-me os seus

pecados.Mas,meubomHastings,porquerazãonãoveioontem

tercomigoeexpor-meoseuproblema?

Algoenvergonhado,justifiquei:

- Suponho ter receado que você quisesse travar as minhas

intenções.

-Certamentequeteriaimpedidoumaloucuradessanatureza.

Julgaquegostariadevê-losuspensopelopescoço,porcausade

umtipodetestávelcomoomajorAllerton?

-Nãodeveriaserapanhado.Tomaratodasasprecauções.

-Osassassinospensamsempre issomas, deixe-meque lhe

diga,manami,quevocênãoétãoespertocomopensa.

- Ora, Poirot! Limpei as minhas impressões digitais dos

frascos...

-...masnãoreparouque,dessamaneira,tambémeliminava

asdeAllerton.Seoencontrassemmorto,queaconteceria?Fariam

aautópsia edescobririamquemorrera emvirtudedeumadose

excessiva deSlumberyl. Tê-la-ia ingerido por acidente, ou

intencionalmente?Tiens! As suas impressões digitais não estão

Page 178: Agatha christie - cai o pano

nofrascodecápsulas!Comoseexplicaisso?Nocasodeacidente

oudesuicídio,nãosejustificariaessaprecaução.Notariamentão

que algumas dessas cápsulas tinham sido substituídas por

aspirina.

-Praticamentetodaagentetemaspirinaconsigo-murmurei.

-Sim,masnemtodaagente,aquiemStyles,temumafilha

que anda a ser desencaminhada pelo patife do Allerton. Duas

pessoas, pelo menos, Boyd Carrington e Norton poderiam

testemunharquevocêestavafuriosocomotipo.Depois,francoe

honesto como você é, não conseguiria sustentar uma negativa

convicente, sob a pressão de um interrogatório da Polícia.

Qualquer bom inspector arrancar-lhe-ia a verdade. De resto,

quemlhedizasiquenãoovirammanipularoscomprimidos?

-Seriaimpossível.Sóeuestavanoquarto.

-Ora, ora,meucaroHastings.Háumavarandacorrida em

frentedasjanelasealuzinteriorestavaacesa.Podiamterestado

a espiá-lo. Além disso, não se esqueça, há quem espreite às

fechaduras.

-Vocêpassaavidaasonharcomfechaduras,Poirot.Navida

real,aspessoasnãopassamotempoaespreitaroqueosoutros

fazem,pelosburacosdasfechaduras.

Poirotfechouosolhos,comumsorrisofolgazão.

- Sempre lhe digo que se passam coisas muito estranhas,

nestacasa,comchaves,meuamigo.Pessoalmente,tenhosempre

ocuidadodefecharaportaàchave,peloladodedentro,quando

Curtissvaiparaoquartocontíguo.Pois,poucotempodepoisde

Page 179: Agatha christie - cai o pano

cáterchegado,aminhachavedesapareceu.Tivedemandarfazer

umaoutra.

- Bem, de qualquermaneira - observei com um suspiro de

alívio-,acoisanãoaconteceu.Éhorrívelpensarqueumhomem

podedesesperar-seaesseponto.

DepoisfiteiPoirotintensamenteesondei:

-Nãoachapossívelqueaqueleassassínioqueocorreuaqui,

háanos,tenhacontaminadooar?

- Um vírus de homicídio, quer você dizer? É uma sugestão

interessante.

- As casas têmuma atmosfera própria, particular- declarei,

pensativo.-Estamansãotemumahistóriasinistra!

Poirotconcordou,comumgestosolene.

- Sim, na verdade, tem estado aqui muita gente a desejar

intensamentequealguémmorra.Láissoéverdade.

- Creio que, mais tarde ou mais cedo, um crime será

inevitável.Masagora,diga-me,quevoufazeracercadestecaso...

refiro-meaJuditheaAllerton?Tenhode travá-losdequalquer

modo.Quemeaconselhaque faça?Quemétodomelhorpoderei

utilizar?

-Nenhum.

-Oh!Mas...

-Acredite-me.Atingirámelhorosseusfinssenãointerferir.

Page 180: Agatha christie - cai o pano

-Mas,seatacarAllerton...

- Não lhe serve de nada. Judith tem vinte e um anos e é

senhoradosseusdireitos.

-Masachoquedevo...

Poirotinterrompeu-meenergicamente:

-Não,Hastings.Nãoimaginequeésuficientementeespertoe

convincente para persuadir essas duas pessoas e impor-lhes a

sua personalidade. Allerton está habituado a lidar com papás

impotentese,provavelmente,atégozaumbompedaçocomisso.

EJutithnãoéogéneroderaparigaquevocêpossaconduziraos

empurrões. Aconselho-o... e faço-o plenamente convicto de que

tenhorazão...aterconfiançanela.

Olhei-opasmado.Poirotprosseguiu:

-Judithtemmuitobomestofo.Admiro-amuito,sabe?

Comvozinsegura,declarei:

-Tambémaadmiro,masreceiopeloquelhepossasuceder.

Comsúbitaenergia,Poirotsacudiuacabeça.

- Pode crer que estou igualmente muito preocupado a seu

respeito,masnãodamaneiraqueoapoquenta,nempelomesmo

motivo. Tenho um medo terrível do que lhe possa acontecer e

sinto-meimpotenteparaevitá-lo.MeucaroHastings,operigoque

elacorreédeoutranatureza.Eterríveleassusta-mepensarque

podeestarmuitopróximo.

Page 181: Agatha christie - cai o pano

II

SabiatãobemcomoPoirotqueoperigoestavapróximo.

Tinha mais razões para sabê-lo do que ele, porquanto eu

estiveraquaseamatarnanoiteanterior.

Apesar de tudo, ponderei naquela sua frase, quando me

aconselhou“aterconfiança”emJudith,edesciparaalmoçar.

Momentosdepois, a verdadeacercadaquele conselho estava

plenamentejustificada.ObviamenteJudithmudaradeintenções,

quantoairaLondresnessedia.

Preferira ir com Franklin para o laboratório onde se

mantiveramatrabalhartodoodia.

DeigraçasaDeusporestamudançadedecisão,porpartede

Judith.

Allerton almoçara mais cedo e partira para Ipswich.

Provavelmente pensou que Judith cumpriria o plano como fora

combinado. Congratulei-me com a ideia de que ficaria

extremamentedesapontado.

BoydCarringtonveioaomeuencontrocomexpressãopouco

jovialeanunciou:

-Tivehojenotíciasdesmoralizantes.

Explicou que o arquitecto que trabalhava em Knatton

deparara com dificuldades na construção em curso; recebera

cartaspreocupantes eparecia-lhe que opasseioda véspera fora

demasiadoexaustivoparaMrs.Franklin.

Page 182: Agatha christie - cai o pano

Averdadeéque,desdemanhã,BárbaraFranklinfaziaavida

negraàenfermeiraCraven.Estanãoparava,deumladoparao

outro. Era o seu dia de folga e tinha-lhe sido prometido poder

visitar alguns amigos fora de Styles, mas não fez outra coisa

senãotransportarsais,botijasdeáguaquenteeatendertodasas

queixasdapaciente:nevralgia,doremvoltadocoração, cãibras

nospésenaspernas,arrepiosdefrio,etc.

Todos demos o devido desconto, pois sabíamos das

tendências hipocondríacas de Mrs. Franklin, de resto

confirmadaspelomaridoepelaenfermeira.

Aquele ouvira as queixas da mulher e decidira mandar

chamaromédicolocal,maselaopusera-seterminantemente,pelo

queselimitouaministrar-lheumsedativoeaprovidenciarpara

queficassebemprecavidacontraofrio,apósoqueregressouao

seulaboratório.

AenfermeiraCraven,falandocomigo,comentou:

- Ele sabe perfeitamente que tudo aquilo não passa de

comédia.Opulsoeatemperaturaestãoabsolutamentenormais.

É a fita do costume. Gosta de interferir com a vida de toda a

gente.Estádanadaporqueomaridoresolveuirtrabalharemvez

deficar,derodadela, feitoparvo.Vinga-seemmim,impedindo-

medegozaraminhafolgaemultiplicandoospequenosserviços

quenuncaa satisfazem,poismuda constantementede opinião.

Finalmente queixa-se agora de que Sir William é um bruto,

porqueaobrigouaumpasseioestafante.Estáaverogénerode

senhoraqueelaé!

Compreendi que Mrs. Franklin era uma doente difícil de

Page 183: Agatha christie - cai o pano

aturar,nãosópelaquantidadedetarefasqueinventava,paraque

a enfermeira estivesse continuamente a ocupar-se dela, mas

também pelamaneira rude e desconsiderante como às vezes se

lhedirigia.

Portanto, ninguém considerou a indisposição de Mrs.

Franklin coisa de remonta e só Boyd Carrington parecia

arrependidodetê-lafatigado,navéspera,demasiadamente.Subiu

aperguntarporeladuasvezesenãoconseguindovê-la,dirigiu-se

àaldeiaonde comprouumavistosa caixadebombons.Quando

regressouficoudesolado,poraenfermeira lheexplicarqueMrs.

Franklinnãopodiacomerchocolate.

Desceu com o presente, abriu-o solenemente para que nos

servíssemoseNortoneeunãonosfizemosrogados.

Norton devia estar preocupado com qualquer coisa, nessa

manhã,poismostrava-semaisabstractodoquedecostumeefoi

comumardistraídoevagoquecomeçouacomerbombons,uns

atrásdosoutros.Deviaserloucoporchocolates.

Otempopioraraedesdeasdezhorasquecomeçaraachover.

Poirot fora trazidoparabaixo,porCurtiss,e instalara-sena

saladeestar.ElizabethColejuntou-se-lheesentou-seaopiano,

tocandoalgumasáriaspara ele ouvir, comoapreciador que era,

especialmentedeBach edeChopin.MissCole era,na verdade,

umaboaintérpreteeeuprópriomedelicieiaescutá-la.

Faltava um quarto para a uma, quando Franklin e Judith

regressaram do laboratório. Minha filha vinha muito séria e

calada.Elesentou-sejuntodenós,cansadoeabsorto,parecendo

muitomais velho do que efectivamente era, pois podia sermeu

Page 184: Agatha christie - cai o pano

filho.

Acertaalturareferiu-seaotempoedissequalquercoisasobre

atempestadequejáprenunciaraparaessedia.Omaisestranhoé

quenospareceualudiraqualquercoisamaisdoqueàscondições

atmosféricas,taleraoestadodeespíritoemquenosachávamos.

ODr.Franklinlevantou-sedesúbito,embateucontraamesa

eentornounochãoacaixadechocolates.

- Oh! Perdão! - desculpou-se, procurando desajeitadamente

apanhá-losdacarpeta,ondeesmagouum,comopé.

Com um ar pueril, Norton perguntou-lhe se tivera uma

manhãmuitoatarefada,nolaboratório.

- Não, não... nem por isso - respondeu Franklin

distraidamente. - O costume. Estamos agora a utilizar um

processoparaacelerar...Paracortarcaminho,nainvestigação.

Dirigiu-separaajanela,olhoupormomentosachuvaacair

sobreoscanteiroserepetiu,nummurmúrio:

-Sim.Temosdeatalharcaminho.

III

Tínhamosestadonervososeincomodadostodaamanhã,mas

a tardesurgiu inesperadamenteagradável.OSoldespontoupor

entreasnuvens,atéentãocompactas,eparoudechover.

TrouxeramMrs.Luttrellparaoandardebaixoesentaram-na

na varanda. Parecia achar-se em excelente forma. Fez uma ou

duas censuras ao marido, mas em termos abolutamente

Page 185: Agatha christie - cai o pano

suportáveis.

Poirot permitiu-se emitir alguns gracejos emostrava-se feliz

porverosmodosafectuososdocasal.Atéocoronelpareciamais

novo.Estavaincontestavelmentemenosvacilante,puxavamenos

pelasguiasdobigodeefoidelequepartiuasugestãoparauma

jogatanadebrídege,nessanoite.

Norton insinuou que isso seria cansativo para a

convalescente.

-Umjoguinhodecartasfaz-mefalta-afirmouMrs.Luttrell,

acrescentando,deseguida.-Prometonão“castigar”muitoomeu

pobreGeorge.

-Seiquesoumaujogador,querida-disseocoronel.

-Eissooquetem?-retorquiuela.-Edamaneiraquemedás

pretextoparacriticar-te.Nãomequeiramprivardesseprazer.

Rimo-nosbemhumorados.

Pensei em quantos homens e mulheres que se divorciam

movidos por um período temporário de irritação, quando

poderiam reconciliar-se e acabar por dar-se bem, se deixassem

correralgumtempo.

Sabia,contudo,quenemtodososcasossãoidênticos,jáque

nãoháduaspessoasiguaisnestemundo.Porexemplo,eu,cujo

casamento foi omais feliz possível, sempredefendi apráticado

divórcio; Boyd Carrington, que tivera tanto azar com o seu,

considerava-o uma instituição do Estado e pugnava pela sua

indissolubilidade.

Page 186: Agatha christie - cai o pano

Norton,quesemantiverasolteiro,apoiavaaminhamaneira

de pensar e, estranhamente, o Dr. Franklin, opunha-se

tenazmente ao divórcio como solução para incompatibilidade

matrimonial.Istoformavaparadoxocomafrasematinal:“Temos

deatalharcaminho.”Pareciapoisque,paraele,ocasamentonão

seprocessavasegundoummétodocientífico.

Recostando-senacadeira,estendeuaspernasedeclarou:

- Um homem escolhe a sua mulher. Toma portanto a

responsabilidade do seu acto, até que elamorra... ou elemorra

primeiro.

Comicamente,Nortonobservou:

- E, quantas vezes, qualquer deles dirá: “Que morte

abençoada!...”

TodosrimoseBoydCarringtoncomentou:

-Bempregaquemnuncacasou!Nortonabanoua cabeçae

disse:

-Eagora,jáétardedemais.

- Está certo disso? - motejou Boyd Carrington. Foi neste

momentoqueElizabethColesenosjuntou.Estiveranoandarde

cima,comMrs.Franklin.

Nãosei seBoydaviraaproximar-se,quandodisseraaquela

graçaaNorton,eseofizeraintencionalmente,masocertoéque

Nortoncorouatéàsorelhas.ExamineiMissColeatentamentee

pareceu-me umamulher bastante nova ainda emuito formosa.

Além disso, tinha imensos outros encantos que poderiam

Page 187: Agatha christie - cai o pano

permitir-lhefazerqualquerhomemfeliz.Nãohaviadúvidaquese

dava bem com Norton, na sua caça à poesia das flores e dos

pássaros. Lembrei-me que ela se referira a ele, classificando-o

comoumapessoadebomcarácter.

Seassimera,talvezpudesseapagardoseuespíritoatragédia

que a assombrara na adolescência. Na realidade, Miss Cole

parecia-me agoramuitomais feliz do que quando eu chegara a

Stylesetiveraocasiãodevê-lapelaprimeiravez.

ElizabethColeeNorton!Sim,talvezpudessemligarumcom

ooutro.

Subitamente, tornei a pensar que havia algo de sinistro na

atmosferadeStylesesenti-mecansadoe...receoso.

Creio que só Boyd Carrington deu por essa mudança na

minhaexpressão,poisinquiriu:

-Quesepassa,Hastings?

-Nada.Apenasumaestúpidaeincompreensívelapreensão.

-UmpressentimentodequeoDiaboandaporaí?

- Sim. Sinto que está para acontecer qualquer coisa...

desagradável.

-Tempiada!Tambémjáhojepressentiisso,maisdoqueuma

vez,masnãoconsigodescobrirporquêlFazalgumaideiadoque

seja?

Abaneiacabeçanumanegativa.

Page 188: Agatha christie - cai o pano

Nestemomento,Judithentrouemcasa.Encaminhou-separa

nóslentamente,comacabeçaerguida,oslábioscerradoseuma

expressãogravenoolharqueatornavaaindamaislinda.

Pensei como era diferente, tanto de mim como de Cinders.

Lembrava-me uma sacerdotisa das imagens antigas, ou uma

freira,austeraebela.

Nortondevetersentidoimpressãosemelhanteegracejou:

- A nossa Judith lembra a jovem Salomé, antes de ter

decapitadoHolofernes.

Minhafilhaergueuassobrancelhaserespondeu:

-Esperonãovosdesiludir,mas,francamente,nãomelembro

doqueelapretendia,aocortar-lheacabeça.

- Oh! Qualquer objectivo altamente moral, para bem da

comunidade-retorquiuNorton,comveladosarcasmo.

MasJudithnãoreplicou,indosentar-seaoladodeFranklin.

Momentosdepoisanunciava:

- Mrs. Franklin sente-se muito melhor e pediu-me que vos

comunicasse que teria muito gosto se quisessem, esta noite, ir

tomarcafé,nasuacompanhia.

IV

NãohaviadúvidadequeMrs.Franklineraumasenhorade

marés.Mostrara-seinsuportávelcomtodaagente,duranteodia

inteiro e, à noite, quando nos deslocámos, em bando, escada

acima, para lhe prestar as nossas homenagens, surgiu-nos

Page 189: Agatha christie - cai o pano

extremamenteafável, recostadanoseucanapéeenvergandoum

negligétransparente,deumverde-água-do-nilo.

AenfermeiraCravencomeçouaservir-nosocafé.Estávamos

todosreunidos,exceptoPoirotqueseretiraraparaoseuquarto,

comodecostume,apósojantar.

Abebidaexpandiaumaromadelicioso.Devoesclarecerqueo

café,emStyles,eraumainfusãoinsípidaeinodora,decorescura

que,decafé,sótinhaonome,peloqueMrs.Franklincompravao

seu,directamente,noutrolocal.

Franklin sentara-se junto da mulher e ia passando as

chávenasàenfermeiraCraven,que,porsuavez,no-lasestendia.

Boyd Carrington sentara-se junto ao extremo do canapé;

ElizabethColeeNortontinham-secolocadodoladodajanelaea

enfermeira Craven acabou por sentar-se ao fundo do quarto,

juntoàcabeceiradacama.EupegaranoTimeseentretinha-me

comumproblemadepalavrascruzadas.Acertaaltura,lialto:

- “Personagem shakespeariana, que, pela palavra,

transformouociúmeemmorte...”Quatroletras.

-Otelo-sugeriuMrs.Franklin.

-Não,Babs-discordouBoydCarrington.Deveserlago...Há

uma parte em que se refere ao “monstro-de-olhos-verdes”, na

qual...

Judith, que se achava à varanda olhando para o exterior,

gritousubitamente:

-Olhem,umaestrela-cadente!...Olhem,outra!

Page 190: Agatha christie - cai o pano

BoydCarringtonpropôs:

-Vamosformularumdesejo.

Todossedirigiramparaavaranda.BoydCarringtoncolocou-

sepordetrásdeElizabeth,JuditheNorton.AenfermeiraCraven

também quis observar as estrelas-cadentes e o último foi

Franklin, notoriamente pouco interessado. Colocou a sua

chávena de café sobre a mesa estante, mesmo ao lado da da

mulher.

Ouviram-se exclamações desencontradas, enquanto

contemplavamocéu,agoradesanuviado.

Deixei-me ficar onde estava, mergulhando nas minhas

palavrascruzadas.Penseiquenãotinhanenhumdesejoespecial

aformular...àsestrelas.

Alguns momentos depois, Boyd Carrington virou-se para

dentrodoquartoeconvidou:

-Oh,Babs,achoquedeveiràvaranda.Levanteiosolhosdo

Times e notei que Mrs. Franklin ficara muito perturbada.

Secamente,retorquiu:

-Nãoposso.Estoucansada.

-Nãosejatolinha,Babs.VenhafazerumvotoinsistiuBoyd,

comumaligeiragargalhada.

Subitamente,pegou-anosbraçoscomosefosseumapena.

Elariuemurmurou,aindanervosa:

Page 191: Agatha christie - cai o pano

-Ponha-menochão,Bill!Nãosejapateta.Maselelevou-aaté

àvaranda.

Recordei-medeter feitoomesmo,certavez,aCinders,para

quecontemplasseumlindopôrdoSol.

Judithvoltouparadentrodoquartoe,paraquenãomevisse

com os olhos húmidos, rodei a mesa-estante procurando um

livro.Aovirá-lanoteiumacolecçãobrochadaebaratadasobras

deShakespeare.LáestavaOtelo.Folheei-oeachei:

- Que está a ver, meu pai? - interessou-se. Murmurei-lhe

qualquer coisa acerca das palavras cruzadas e confirmei: - É

realmentelago:

“Oh! Guarde-se, meu senhor, do ciúme do qual se nutre o

monstro-de-olhos-verdes”...

Encostando a cabeça ao meu ombro, Judith leu mais

.algumaslinhas:

“Nem papoila, ou mandrágora, ou outro entorpecente deste

mundo:terá,namedicina,quepossaconceder-lheumsonomais

profundoesuave.”

A sua voz soava grave e bela. Neste momento, os outros

regressavamdavaranda,falandoerindo.

Mrs. Franklin retomou o seu lugar no canapé. Franklin

voltouparaacadeira,juntodamesa-estante.Bebeuoseucafée

serviu-sedeoutro.

NortoneElizabethdesculparam-seporteremderetirar-se,a

fimde jogarembrídege, comosLuttrell, queosaguardavamno

Page 192: Agatha christie - cai o pano

andarinferior.

Então, Bárbara acabou de beber a sua chávena e pediu os

comprimidos.

Como a enfermeira Craven se tivesse ausentado, Judith foi

buscar-lhosaoquartodebanho.

Franklindeambulavapeloaposento,deumladoparaooutro,

eembateunamesa-estante.

-Nãosejasdesastrado,John-censurouBárbara.

- Desculpa, querida. Estava a pensar numa coisa... Com

afectaçãoquasetrocista,Mrs.Franklindisse-lhe:

- És um verdadeiro urso, não és, querido? Ele olhou-a

abstractamenteedespediu-se:

-Boanoiteatodos.Voudarumavoltaláporfora.Saiu.

-Éumgénio,sabem?-comentouBárbaraFranklin.-Têmde

desculpar-lhe as maneiras desajeitadas, pois está sempre a

pensarnoutra coisa. Admiro-o terrivelmente. Vive apaixonado

exclusivamentepeloseutrabalho.

-Sim,sim-apoiouBoydCarrington,paranãoficarcalado-,

éumrapazesperto.

Judith, abruptamente, abandonouoquarto equase chocou

comaenfermeira,quevinha,nessemomento,aentrar.

- Que tal um joguinho de cartas, Babs? - propôs Boyd

Carrington.

Page 193: Agatha christie - cai o pano

-Oh,sim,magníficaideia-aplaudiuMrs.Franklin.

Virando-separaaenfermeiraCraven,ordenou:

-Vejasedescobreondeparamascartas,sim?

Enquanto a enfermeira Craven lhas entregava, desejei-lhes

boa-noite e retirei-me. Fui encontrar Judith e Franklin, de pé,

juntodeumajanelaaberta,contemplandoanoite.

Omédicoquebrouosilêncioparaperguntar-lhe:

-Quervirdarumavolta?

-Não-recusouJudith.-Nãoestanoite.Queroirdeitar-me.

Atéamanhã.

DescicomFranklinasescadas.Ouviou-oassobiarbaixinho,

sorridente.

Noteiofactoporsentir-mepessoalmentedeprimido.

-Parecemuitosatisfeitoconsigo,estanoiteobservei.

Eleadmitiu-osacudindoacabeça.

- Sim, efectivamente. Consegui levar a cabo uma coisa que

tencionava realizar há muito tempo. Creio tê-lo feito

satisfatoriamente.

Separei-me dele ao fundo das escadas e, durante alguns

minutos,entretive-meaacompanharasjogadasdosparceirosde

brídege. Numa altura em que os Luttrell não estavam a olhar,

Norton piscou-me o olho. A jogatana, como ele dissera, parecia

decorrercomumaharmoniaextraordinária.

Page 194: Agatha christie - cai o pano

Allertonnãotinharegressadoaindae tiveanoçãodequea

suaausênciatransmitiaàcasaumaatmosferamenosopressiva.

Finalmentedirigi-meaoquartodePoirot,ondefuiencontrar

Judith sentadaao seu lado.Quando entrei sorriu-me,masnão

mefalou.

- Ela perdoou-lhe,man ami - disse Poirot. Soou-me aos

ouvidoscomosefosseumaobservaçãoultrajante.

-Realmente?Poispenseique fosseeu...Judith levantou-se,

passouosbraçosemtornodomeupescoçoebeijou-me.

-Pobrepai!-exclamouela.-OtioPoirot,nãodeviaatacara

suadignidade.Euéquepeçoparaserperdoada.Portanto,venha

daíoseuperdãoe...boanoite.

Aindanãoseiporquê,masdisse-lhe:

- Desculpa-me, Judith. Lamento imenso. Não quis, de

maneiranenhuma...

Elainterrompeu-me:

- Está tudo bem. Esqueçamos o que se passou, sim?... A

sério,estátudobem,agora.

E,tranquilamente,saiudoquarto.

Logoaseguir,Poirot,perguntou-me:

-Quetemacontecido,poraí,estanoite?

Afastei as mãos abertas e encolhi os ombros. - Nada

Page 195: Agatha christie - cai o pano

aconteceueparecequenadasucederá.

Mal sabia nesse momento como estava longe da verdade.

Porquealgoacontecera,demuitograve.Mrs.Franklinadoecera,

realmente, achando-se num estado muito crítico. Em vão

chamarammaisdoismédicosdacidade.

Morreunamanhãseguinte.

Sóvinteequatrohorasmaistardetomámosconhecimentode

que a sua morte fora causada por envenenamento com

fisostigmina.

Page 196: Agatha christie - cai o pano

CapítuloXIV

I

Oinquéritoverificou-sedoisdiasmaistarde.Eraasegunda

vez que assistia a um inquérito daquela natureza, no mesmo

pontodomundo.

O coroner (1) era um homem de meia-idade, evidenciando

capacidadeprofissional,comumolharpenetranteeumamaneira

deexpressar-sedeverasseca.

Primeiro, foram consideradas as provas médico-legais. A

autópsia provara, de facto, que a morte fora causada por

envenenamento com fisostigmina, embora também se tivessem

detectadooutrosalcalóidesextraídosdasementecalabar.

Ovenenodeviatersidoingeridonaquelanoite,entreassete

horas da tarde e a meia-noite. O cirurgião da Polícia que

procederaàautópsiaeoseucolegamédico-legistarecusaram-sea

sermaisprecisos,quantoaofactortempo.

A testemunha ouvida em segundo lugar foi o Dr. John

Franklin.Deixouatodosumaboaimpressão.Oseudepoimento

foiclaroesimples.Depoisdamortedamulher,foraaolaboratório

verificar as suas soluções e descobrira que certo frasco, que

deveria conter um forte soluto de alcalóides de semente de

calabar, fora cheio com água da torneira, na qual ainda se

notavam vestígios do anterior conteúdo. Não podia informar

quando é que tal podia ter sido operado, visto não proceder a

experiênciascomaqueleproduto,jáhaviaalgunsdias.

Page 197: Agatha christie - cai o pano

Aquestãodeacessoao laboratório foi trazidaàbaila.ODr.

Franklin confirmou que, usualmente, fechava a porta do

laboratórioàchaveequecostumavatrazê-laconsigonaalgibeira.

A sua assistente, Miss Judith Hastings, tinha um duplicado

dessachave.Quemquerquedesejasseentrarno laboratório,na

ausênciadeambos,teriadepedirachaveaqualquerumdeles,e,

geralmente,aele,Dr.Franklin.

Acontecera,umaouduasvezes,ter-lhesuamulherpedidoa

chaveparairaolaboratóriobuscarcoisasdequeocasionalmente

seesquecera.Pessoalmente,nuncatrouxeraqualquersoluçãode

fisostigmina para o quarto e considerava improvável que ela o

tivessefeito.

(1) Magistrado distrital encarregado de investigar casos de

mortesúbitaouviolenta.(N.doT.)

Posteriormente interrogado pelocoroner sobre a saúde de

Mrs.Franklin,declarouqueelasofriadeumacertafraquezageral

eparticularmentedosnervos.Nãohaviaqualquerenfermidadede

outranatureza;maisdepressãopsíquicadoqueoutracoisa.

Negou ter travado com ela a mais pequena discussão e

afirmou que viviam em boas relações de amizade. Mencionou

contudo que, no dia da morte, a tinha achado demasiado

melancólica.

ConfirmouterMrs.Franklin,ocasionalmente, faladoempôr

termoàvida,maisdoqueumavez,masquenuncaa tomaraa

sério, pois esse tipo de manifestações é típico entre as pessoas

neurasténicas. Finalmente, depois de instado, repudiou a

hipótese do suicídio, pois, na sua opinião, a esposa não seria

Page 198: Agatha christie - cai o pano

capazdefazê-lo,nemteriarazãoparatal.

Seguiu-se-lhe a enfermeira Craven, que, sendo interrogada,

respondeu com concisão e clareza. Envergando a sua farda

profissional, declarou que estivera ao serviço de Mrs. Franklin

durantemais dedoismeses; que a enferma sofria de depressão

nervosa; testemunhara ouvi-la dizer, frequentemente, desejar

“acabar com tudo isto” e queixar-se de que se considerava uma

“móamarradaaopescoço”domarido.

-Porqueteriaditoisso?Ocorreraalgumadiscussãoentreela

eoDr.Franklin?

- Oh, não! De maneira nenhuma, mas dizia que tinham

oferecido ao marido uma nova colocação que ele sempre

ambicionara e fora forçado a recusar por não querer separar-se

dela.

-Achaqueasuapacientenutriasentimentosmórbidospor

essefacto?

- Sim. Passava dias inteiros a lamentar-se da sua doença e

inutilidade...

-SabeseodoutorFranklintinhaconhecimentodesseestado

deespírito?

-Nãocreioqueelaotenharepetido,muitasvezes,aomarido.

Queixava-sehabitualmenteàsoutraspessoas,dizendo-se inapta

para ajudá-lo e incapaz de interessar-se pelo seu trabalho, que

lherepugnava.

-Massofria,portanto,deataquesdeabatimentoedepressão?

Page 199: Agatha christie - cai o pano

-Oh,sim.Absolutamente.

- Alguma vez mencionou, especificamente, desejar cometer

suicídio?

-Nunca empregou esse termo. Apenas dizia: “Quero acabar

comtudoisto.”

- Referiu-se porventura aométodo que empregaria para pôr

termoàvida?

-Não.Erasempremuitovagaeeu...ninguém,segundojulgo,

lhedavacrédito.

-Concorda comodoutorFranklin... oumelhor, confirmaa

declaraçãodomarido, de quenodia damorte se achavamuito

melancólica?

AenfermeiraCravenhesitounesteponto.

-Bem...não lhechamariamelancolia.Achei-amaisnervosa

do quehabitualmente.Estavamuito excitada, pois passaramal

todoodia,queixando-sededoresedecansaço.Melhorouparaa

noite,maspareciafebrileartificial.

-Viuqualquerfrascoquepudesseconteroveneno?

-Não.

-Quefoiqueelacomeuebebeu?

- Sopa, costeletas, ervilhas e puré de batata... e torta de

cerejas.Acompanhouarefeiçãocomumcopodeborgonha.

-Deondeveioesseborgonha?

Page 200: Agatha christie - cai o pano

- Tínhamosa garrafano quarto. Ficouum resto, no fundo,

mascreioquejáfoianalisadoenadacontinhadeespecial.

-Teriatidooportunidadededeitarovenenonocopo,semque

aenfermeirativessevisto?

-Oh,sim.Facilmente.Euandavadeumladoparaooutroa

arranjar-lhe coisas, enquanto ela comia. Não estava a vigiá-la,

poisnãopodiadesconfiardecoisaalguma.Tinhajuntodesiuma

pequenacaixa,ondeguardavaacorrespondência, ea suabolsa

demão de que nunca se separava. Podia, portanto, ter deitado

qualquerdroganocopo,tantodoborgonha,comonodoleiteque

tomoumaistarde,antesdeadormecer...ouantesdisso...como

café.

- Faz alguma ideia de como poderia ela ter-se desfeito do

frascodoveneno?

AenfermeiraCravenconsiderouaperguntaesugeriu:

- Talvez pudesse lançá-lo pela janela, ou colocado no cesto

dos papéis... ou talvez o tivesse lavado no quarto de banho e

arrumado entre os outros frascos que lá se encontram em

profusão.Estãoláoutrosvazios.Tenho-osconservadoporque,às

vezes,sãoúteis.

-QuandoviuMistressFranklinpelaúltimavez?

- Às dez emeia da noite. Recostei-a na cama, para dormir.

Bebeu um copo de leite quente e disse-me ter também tomado

umaaspirina.

Page 201: Agatha christie - cai o pano

-Comoaachou,nessaaltura?

- Bem, como habitualmente... Isto é... talvez um pouco

sobreexcitada.

-Nãomuitodeprimida?

- Nãomais do que de costume.Mas, se estão a pensar em

suicídio,tereidediscordardessahipótese.Sepensasseemmatar-

se,ter-se-iamostradonobre,ouexaltada,nãoseisemeexprimo

bem?

-Considerava-aumapessoacapazdeatentarcontraaprópria

vida?

Fez-se uma pausa. A enfermeira Craven meditou na

pergunta,cuidadosamente.

- Considero-a capaz disso e aomesmo tempo... custa-me a

crer. Talvez, sim. De umamaneira geral, era uma senhora um

tantoouquantodesequilibrada.

Sir William Boyd Carrington veio a seguir. Parecia

genuinamentealarmado,masprestouassuasdeclaraçõescoma

máximaclareza.

Estiveraa jogaràs cartas comadoente,nanoitedamorte.

Nãonotaraquaisquersinaisdedepressãonessaaltura.Contudo,

algunsdiasantes,Mrs.Franklinconfidenciara-lheasuaintenção

de acabar com a vida. Era umamulher generosa e demaneira

algumaegoísta.Convencera-seter-setornadoumempecilhopara

a carreira do marido. Era-lhe muito devotada e ambiciosa a

respeito do seu futuro, como médico e cientista. Por vezes,

Page 202: Agatha christie - cai o pano

mostrava-se,efectivamente,bastantedeprimidacomasuaprópria

saúde.

Judithtambémfoichamada,maspoucotinhaadizer.Nada

sabia acerca da utilização da fisostigmina nem da sua remoção

para fora do laboratório. Na noite da tragédia, Mrs. Franklin

parecera-lhe um pouco mais excitada do que habitualmente.

Nuncaaouvirafalaremsuicídio.

AúltimatestemunhafoiHerculePoirot.

As suas declarações foram prestadas com muita ênfase e

causaramvivaimpressão.Relatouaconversaqueentabularacom

Mrs.Franklinnavésperadoseu falecimento.Mostrara-se então

muito deprimida e falara, efectivamente, em pôr termo à vida.

Declarara-Ihequeseriamaravilhosoebemdesejaria“adormecere

nuncamaisacordar”.

As respostas às perguntas imediatas causaram a maior

sensação.

Ocoronerinquiriu:

-NodiadezdeJulho,pelamanhã,estevesentadoàportado

laboratório?

-Sim.

-ViuMistressFranklinsairdesselaboratório?

-Vi.

-Notouquetrouxessequalquercoisanamão?

Page 203: Agatha christie - cai o pano

- Sim. Vi,distintamente, que segurava um frasco na mão

direita,emboraparecessetentarescondê-lo.

-Estácertodisso?

-Absolutamente.

-Mostrou-seconfusa,quandoseviuobservadaporsi?

-Fitou-meassustada...paraserconciso.

O coroner sumariou o conjunto das declarações das

testemunhas, referiu-se a Poirot considerando-o um elemento

muitoválidonoinquéritoeafirmandoqueofactodetervistoMrs.

Franklin sair com um frasco do laboratório, dera um sentido

positivoà investigação.Finalmente,observouquenãoeramuito

usual, em casos semelhantes, verificar-se o desaparecimento do

frasco continente do veneno, mas admitia-se a possibilidade,

sugeridapelaenfermeiraCraven,deadoentetê-lorecolocadona

prateleiradeondeoretirara,depoisdelavá-lo.Cumpriaagoraao

júritirarassuasconclusõesetomarumadecisãodefinitiva.

Asentençachegouaocabodeumcurtoprazo:Mrs.Bárbara

Franklincometerasuicídio,emvirtudedeumestadodedemência

temporário.

II

Meia hora depois, entrei no quarto de Poirot. Mostrava-se

deveras exausto.Curtissmetera-ona camaeministrara-lheum

estimulante.

Estavaansiosoporqueocriadonosdeixasseasós.

Page 204: Agatha christie - cai o pano

Quandofinalmenteestesaiu,inquiri:

- Foi realmente verdade, Poirot... o que disse? Você viu, de

facto, Mistress Franklin sair do laboratório com um frasco na

mão?

Malentreabrindooslábios,murmurou:

-Vocênãoviuisso,meuamigo?

-Não,nãovi.

-Talveznãotivessereparado,hem?

-Não,talveznão.Certamentequenãopossojurarqueelanão

otrazia.

Fitei-obemnosolhoseinsisti:

-Vocêfalou,realmente,verdade?

-Estáasugerirquementi?

- Bem... não acredito que você fosse capaz de cometer

perjúrio...

Surdamente,Poirotretorquiu:

-Nãoseriaperjúrio,porquenãosetratoudeumdepoimento

ajuramentado.Nãopresteiqualquerjuramento.

- Nesse caso, foi uma mentira? Automaticamente o meu

amigoreplicou:

- O que disse,mon ami, está dito. Agora é desnecessário

Page 205: Agatha christie - cai o pano

discuti-lo.

-Nãoconsigopercebê-lo-quasegritei.

-Oquêquenãopercebe?

-Oseutestemunho...todaessahistóriadoterrívelestadode

depressão de Mistress Franklin, quando lhe relatou pretender

suicidar-se.

-Enfin,vocêouviu-adizercoisassemelhantes,nãoéverdade?

- Sim, mas nunca tão peremptoriamente. Vocêpretendeu

mesmoqueasentençafossesuicídio?

Antesderesponder,Poirotfezumapausa.Depois,disse:

- Penso que você, Hastings, ainda não se apercebeu da

gravidade da situação. Sim, se você prefere, confesso que quis

provocarumadecisãodesuicídio.

-Masnãopensaqueelaotenhacometido,nãoéverdade?

Lentamente,Poirotabanouacabeça.

-Pensa,portanto,quefoiassassinada?

-Sim,Hastings.Foiassassinada.

-Nessecasoporqueosforçouapararemainvestigação?

Ergueuassobrancelhas,desalentado,edeclarou:

- E admissível que você não possa discernir o motivo. Não

interessa. Ponhamos isso de lado. Terá que aceitar a minha

Page 206: Agatha christie - cai o pano

conclusãodeque foihomicídiopremeditado,porumcriminoso,

nãosóastuto,mastambémdeterminadoamatar.

-Equevaifazeraseguir,paraocaçar?

-Estecasoestáarrumadoerotulado:suicídio.Masvocêeeu,

Hastings, vamos prosseguir no nosso trabalho de sapa, como

toupeiras.Maistardeoumaiscedo,apanharemosX.

-Massuponhaque,entretanto,eleassassinamaisalguém?

Poirotabanouacabeça.

-Nãopensonisso.Amenosquealguémtenhavistoqualquer

coisa ou saiba qualquer coisa. Mas se assim fosse, já o teria

declarado...não?

Page 207: Agatha christie - cai o pano

CapítuloXV

I

Aminhamemóriaébastantevagaacercadosacontecimentos

que se sucederam imediatamente ao inquérito sobre amorte de

Mrs.Franklin.

Houveumfuneralaquecompareceraminúmeraspessoasde

St.MarydeStyles.Aopiniãogeralentreoscircunstanteserade

queessahistóriadesuicídiosoavaligeiramentefalso.

Como disse, recordo com pouca precisão esses dias que se

seguiramaoarquivodoprocesso.AsaúdedePoirotcomeçavaa

preocupar-memuitoe,certodia,Curtiss,comasuacaradepau,

anunciou-mequeomeuamigosofreranovoataquedecoração.

Aconselhei-oaconsultarummédico,masPoirot insurgiu-se

violentamentecontraaminhasugestão.Depoisdediscutirmoso

assunto,decidiu:

-Quandomesentirverdadeiramentemal,entãochamareium

médico.Derestojáconsulteidois,noEgiptoe...fiqueimuitopior.

Depoisfuiverumespecialista...

- Que disse ele? - interrompi ansioso. Poirot riu daminha

preocupaçãoerespondeu:

-Fezoquetinhaafazerereceitou-meoquetinhaareceitar.

-Nãoquer,realmente,consultaresseespecialista,umaoutra

vez?

Page 208: Agatha christie - cai o pano

Gentilmente,mascomrealdeterminação,declarou:

-Este,meucaroHastings, éomeuúltimocaso...Eomais

interessante, sob o aspecto criminal, X utiliza uma técnica

soberbaqueotornamerecedordaminhaadmiração.Quasediria

que operou tão habilmente que me derrotou,mon cher.

Conseguiudesfecharumataqueparaoqualnãoacheidefesa.

- Se você estivesse com saúde... - condicionei, voltando à

carga.

- Quantas vezes terei de repetir-lhe que, nesta luta, não

necessitodefazeromenoresforçofísico?protestou,quaseirado.-

Afirmo-lhe,Hastings,queomeucérebrofuncionaperfeitamente.

Continua,comodantes,deprimeiraclasse.

- Issoé esplêndido - respondi, mas receio ter-memostrado

poucocrédulo.

Desci as escadas lentamente, duvidando das famosas

faculdades domeu amigo. Pareciamdebilitadas, em relação aos

tempos antigos. Afinal de contas, verificara-se o homicídio

frustrado... bem... se fora acidental, nem se poderia considerar

homicídio;porém,dotirodocoronelLuttrellteriaresultadouma

morte,senãofosseasortecircunstancial;verificara-seamortede

Mrs. Franklin que, graças à intervenção de Poirot, fora julgada

suicídio,emvezdeassassínio,comoele,deresto,afirmava.Quem

mais se seguiria? Poderia estar assim tão certo da inacção do

criminoso? E que faria... que poderes teria o meu amigo, para

deter aquele, se se decidisse prosseguir na sua senda

destruidora?

Praticamente,nada!

Page 209: Agatha christie - cai o pano

II

FoinodiaseguintequePoirotmedisse:

- Você, Hastings, ficariamuitomais feliz se eu consultasse

ummédico?

-Certamentequesim-assegurei-lhe.

-Ehbien,far-lhe-eiavontade.QueroqueFranklinmeveja.

-Franklin?-estranhei.

-Emédico,nãoéverdade?

- Indubitavelmente, mas não tem praticado, ultimamente.

Tem-sededicadoquaseexclusivamenteàspesquisascientíficas...

Fuichamá-loeficaramambosmuitotemponoquarto,asós.

Eufora,discretamente,paraomeueaguardeiofimdaconsulta.

Quando Franklin saiu, trouxe-o para o meu quarto e fechei a

porta.

-Então?-sondeiansiosamente.

-Éumhomemnotável-respondeuele.

-Mas...easaúde?Comoéqueoachou?

- A saúde? - Franklin pareceu surpreendido, como se eu

mencionasse qualquer coisa de menor importância. - Ah! Um

poucogasto,evidentemente.

-Eocoração?

Page 210: Agatha christie - cai o pano

-Sabecomoé,naquela idade?Pode falhardeummomento

paraooutro.

-Portanto...elesabe?

- Certamente que sim. Mas nunca se pode dizerquando.

Naquelaidade...

Masqueidade?Poirotnãoeratãovelhocomoisso.Comeceia

duvidar da competência de Franklin. Parecia que nem o tinha

vistoasério.

-Quefoiquelhereceitou?-interessei-me.

-Nada. Já temconsigo ampolasdenitritode amilo, para o

caso de sofrer novo ataque cardíaco. Segundome disse, já teve

alguns.

-Enãosesentedeprimido,nesseestadodemorteiminente,

istoé...podendomorrerdeummomentoparaooutro,semsaber

quando?

-Nãovejorazãoparatal.Todostemosdemorrer,maiscedo

oumaistarde.Viversóinteressaenquantoestamossãos.Porisso

lutamos por descobrir os meios de perservar a saúde. Quando

começamos a estar cansados da vida e já a vivemos

intensamente...umdiaamaisouamenos,poucointeressa.

Achei estranhíssima aquelamaneira de pensar, da parte de

ummédico.Noteitambémquenãoapresentavaomenorsinalde

luto.

Enquantopensavanisso,Franklinperguntoudechofre:

Page 211: Agatha christie - cai o pano

-Judithnãoseparecemuitoconsigo,poisnão?...Refiro-meà

maneiradeagiresentir?

-Não.Suponhoquenão.

-Parece-secomamãe?

- Também não - respondi, depois de pensar um pouco. -

Cinders era umamulher alegre, risonha.Não gostava de tomar

nada muito a sério e tentava transformar-me... levar-me a ser

comoela.

- Judithnão rimuito.Éuma jovemmuito séria.Creio que

trabalhademais...eaculpaéminha...

Convencionalmente,comentei:

-Oseutrabalhoémuitointeressante.

-Hem?

-Dissequeoseutrabalhodeveserinteressantíssimo-repeti.

- Sóparaumameiadúziadepessoas.Mas vouagora ter a

minha grande oportunidade: o Ministério comunicou-me, hoje,

quepoderiapartirquandoquiser.

-ParaÁfrica?

-Sim.Émagnífico!

-Tãocedo?

- Como tão cedo? - admirou-se. - Ah, refere-se à morte de

Bárbara?Porquenão?Nãoseriasincero,senãoconfessassequea

Page 212: Agatha christie - cai o pano

suamorteconstituiuumgrandealívioparamim.

- Mas recusou-se a ir para África, por causa dela, não foi

verdade?

- Sim... naverdade,maispor razões financeiras.Nãopodia

suportaradespesadedoislares,compreende?Masagora,asorte

bafejou-me.

Sorria-mecomoumrapazinhosatisfeitocomumprogramade

excursão.

Senti-merevoltado.Pensavaqueumhomemaquemmorresse

amulherdever-se-iaachardecoraçãodespedaçado.

-Enãooperturbaofactodesuamulhersetersuicidado?-

sondei.

Olhou-mevagamentesurpreendidoerespondeu:

- Para falar francamente, não creio que se tenha suicidado.

Nãomepareciamulherparaisso.Achoofactomuitoestranho.

-Nessecaso,quepensaquesetenhapassado?

- Não sei. Nem creio que queira saber, realmente, o que se

passou.

Fiquei a olhar para ele, pasmado. Fitou-me com uma

expressãoduraerepetiu:

- Não quero saber. Não estou interessado nesse problema.

Compreende?

Nãocompreendi...enãogostei.

Page 213: Agatha christie - cai o pano

III

NãoseiquandonoteiqueNortontinhaqualquerproblemaem

mente.

Andavaperplexoemostravaumaestranhaausência,quando

se falava com ele. Perguntei-lhe que diabo o preocupava e

respondeu-mefriamente.

-Nada.

Comoinsistisse,abriu-secomigo.

-Sabe,Hastings,deviasersimplesumapessoaconsideraras

coisas certas ou erradas. Mas, às vezes, somos envolvidos em

problemas que não nos permitem actuar, por ignorarmos se

fazemosbemoumal.Estáacompreender?

-Nãomuitobem-confessei.

- É difícil explicar. Suponha que abriu uma carta, por

engano,eleuqualquercoisaprivada,confidencial...Suponhaque

começou a ler, porque inicialmente pensou que a carta lhe era

dirigida e só depois, pelo seu teor, compreendeu o erro... Pode

acontecer,sabe?

-Sim,certamente.

- Suponha agora que vamos ter com essa pessoa e lhe

dizemos: “Desculpe, mas abri a sua carta por engano...” Mas

suponha que o conteúdo da mensagem é terrivelmente

embaraçoso...

-Embaraçosoparaessaoutrapessoa?

Page 214: Agatha christie - cai o pano

-Sim.Gostariadesaberoquepoderiafazer,nessecaso.

-Tenteexplicar-meissoemtermosmaisconcretos-propus.

Lentamente,Nortondisse:

- Suponha, por exemplo, que viu qualquer coisa por um

buracodefechadura...

Aquilofez-melogopensaremPoirot.

-...enuncapoderiaesperarveroqueviuprosseguiuele.

Por momentos, analisei a sua expressão embaraçada e

pressenti que se referia a qualquer coisa queme dizia respeito.

DepoispenseiqueestivesserelacionadacomJuditheAllerton.

Abruptamente,inquiri:

-Foiqualquercoisaqueviuatravésdoseubinóculo?

Olhou-meestupefactoeperguntou:

-Oh,Hastings.Comoéqueadivinhou?

- Isso passou-se naquele dia em que estávamos os dois na

companhiadeMissCole?

-Exactamente.

-Quefoiqueviu?

- Bem, foi qualquer coisa que não tencionava ver. Estava

realmente a admirarumbelo pica-pau e, subitamente, descobri

outracoisa.

Page 215: Agatha christie - cai o pano

Calou-se,comoqueabafadoporrenascidosescrúpulos.

-Foialgodemuitoimportante?

-Receioquesim...

- Alguma coisa relacionada com a morte de Mistress

Franklin?-inquiri,repentinamenteinspirado.

- Como adivinhou? - indagou admirado. Depois,

confusamente,titubeou:

-Nãoseioquefazer.

Também me achava agora num dilema, entre a minha

natural curiosidade e o desejo de não parecer curioso, nem

pressionarasuarelutantereserva.

Tiveentãoumaideiabrilhante.

-PorquenãoconsultaaopiniãodePoirot?-sugeri.

-Poirot?

Nortonmostrava-seduvidoso.

-Sim.Peca-lheumconselho.

-Bem-anuiucomdificuldade.-Éumaideia.

- Verá como ele respeitará a sua confidência. Émuitíssimo

discretoevocêficalivreparaseguir,ounão,oseuconselho.

-Issoéverdade-declarouNorton,aparentementealiviado.-

Sabe,Hastings?Creioqueéexactamenteissoquevoufazer.

Page 216: Agatha christie - cai o pano

IV

Poirotficoupasmadoquandolhecontei.

-Queestáadizer-me,Hastings?

Repeti-lheahistória.

- Norton disse-lhe que tinha visto qualquer coisa, no outro

dia,atravésdobinóculoenãoquiscontar-Ihe,asi,oqueera?-

precisouPoirot.

-Exactamente.

Omeuamigoagarrou-meobraço,comforçaeinquiriu:

-Enãocontouoqueviuamaisninguém?

-Creio quenão.Direimesmoque... estou certode quenão

contou.

- Tenha cuidado, Hastings. É urgente... impedir que ele o

digaaquemquerqueseja.Seofizer...émuitoperigoso.

-Perigoso?-admirei-me.

-Terrivelmenteperigoso.

OrostodePoirotevidenciavagravepreocupação.

- Veja se o convence a vir falar-me, esta noite. Como se

tratasse de uma simples e amigável visita, compreende? Não

permita que ninguém suspeite de que se trata de um encontro

com fins especiais. E tenha cuidado, Hastings, muito cuidado.

Quemfoiquevocêdissequeestavaconsigo,nessemomento?

Page 217: Agatha christie - cai o pano

-ElizabethCole.

-Teriaelanotadoqualquercoisanasuaatitude?

-Émuitoprovável.Decertoquenotou.

-Nãodiganadadesseassuntoaninguém,Hastings,ouviu?

Absolutamentenada.

Page 218: Agatha christie - cai o pano

CapítuloXVI

I

TransmitiaNortonamensagemdePoirot.

-Estábem-anuiu.-Ireivê-lo,massabe,Hastings?Lamento

imensoterfaladonisto,mesmoasi,compreende?

-Apropósito,falounissoamaisalguém?sondei.

-Não,meuDeus!Demaneiranenhuma.

-Estáabsolutamentecerto?

-Nemumapalavra.

-Bem,nãoofaça,antesdefalarcomPoirot...

Notei-lheumaligeirahesitaçãonaprimeiranegativa,masna

segunda, fora absolutamente firme. Apesar de tudo, não

esqueceriaaquelaprimeirahesitação.

II

Dirigi-meao localondeocorrerao incidentecomobinóculo

de Norton. Já lá estava outra pessoa: Elizabeth Cole. Ao

pressentir-mevirouacabeçae,momentosdepoisdizia-me:

- Parecemuito excitado, capitão Hastings. Sucedeu alguma

coisa?

Tenteiacalmar-me.

- Não. Nada aconteceu de especial. Falta-me um pouco o

Page 219: Agatha christie - cai o pano

fôlegoportervindoaandardepressa.

Depois, para mostrar-me natural, servi-me de um lugar-

comum:

-Creioquevaichover.

Elaolhouparaocéueconfirmou:

-Sim,parecequenãotarda.

Duranteumminutopermanecemossilenciosos.Achavaessa

mulherextremamentesimpática,paraalémdeserformosa.Desde

quemerelataraatragédiadasuavida,sentidespertar,emmim,

um grande interesse por ela. Duas pessoas que já sofreram a

infelicidade têmsemprequalquer coisa emcomum, sóquepara

ela,aindapodiahaverPrimavera.Impulsivamente,declarei:

- Bem longe de estar excitado, pelo contrário, sinto-me até

bastantedeprimido.Tivehojemásnotíciasacercadomeuquerido

amigoPoirot.

O interesse que manifestou convidou-me a contar-Ihe a

situação.

Quandoterminei,admitiu:

-Seelepodefinar-se,deummomentoparaooutro,énatural

asuapreocupação!

- Quando Poirot morrer, sentir-me-ei, realmente só, neste

mundo.

-Oh,não-contrariouela.-TemaindaasuafilhaJudith...e

Page 220: Agatha christie - cai o pano

osseusoutrosfilhos.

-Osmaisvelhos-respondi-,estãoespalhadospelomundo...

eJudithtemoseutrabalhoenãoprecisademim.

- Sinto-me muito mais só, capitão Hastings. Tenho, na

verdade, duas irmãs, mas uma está na América e a outra na

Itália.

-Minhaqueridaamiga-exortei. -Asuavidaestáaindano

princípio!

-Aostrintaecincoanos?

-Quesãotrintaecincoanos,MissCole?Quemmederatê-

los-acrescenteimaliciosamente.-Nãosoucego,sabe?

Elaolhou-mederelanceecorou:

-Nãoseiaquese...Oh!StephenNortoneeusomosapenas

amigos.Nadamais.

-Enuncapensouemcasar?

Elizabeth Cole tornou-se subitamente pálida e disse,

gravemente:

- Como quer que tenha pensado nisso, com a minha

história?...Comumairmãassassina,senãolouca?

-Nãoestejaobcecadacomessaideia.Podenãoserverdade.

-Comonão?

-Lembre-sedequeumavezmedisse:“Maggienãofariauma

Page 221: Agatha christie - cai o pano

coisadaquelas.”

-Issoéoquesenti...

-Oqueumapessoasenteémuitasvezesverdade.

-Quequerdizercomisso?-interrogou,expectante.

-Asuairmãnãomatouseupai-afirmei.

-Deveestarlouco.Quemlhecontouisso?

-Nãointeressa.Eaverdade.Umdiapodereiprovar-lhe.

III

Pertodecasa,corriparaBoydCarrington.

-ÉomeuúltimodiaemStyles-anunciou.Partoamanhã.

-ParaKnatton?

- Sim. Espero vir a gostar de viver ali. Sinto, nesta casa...

pairar sobre nós uma influência maligna. Primeiro deu-se o

acidente comMistressLuttrell.Depois... o que sucedeuàpobre

Bárbara.Nuncameconvencereidequecometeusuicídio.Elaera

sãdeespíritoeapenassepreocupavacomoexcessivotrabalhodo

marido.Nãotinhaamenorrazãoparafazerumacoisadaquelas...

sem uma carta... sem mais nem menos... Sabe o que penso,

Hastings?

-Não.

-Franklinfoioresponsávelpelasuamorte.Senãoamatou

directamente,foielequemalevouaumactodesesperado...Mas

Page 222: Agatha christie - cai o pano

nem nisso acredito... Digo-Ihe uma coisa que nunca referi a

ninguém...Sintoquefoielequemaassassinou.

-Nãodigaumacoisadessas!-censurei.

-Nãooafirmo.Disse-lheunicamentequeo“sentia”.Masnão

souoúnicoquepensaisso.

-Quemmais?-interessei-me.

- A enfermeira Craven. Nunca gostou dele. Pensei que, na

realidade,eladeviasaber,maisdoquenós,oquesepassavana

vidaíntimadosFranklin.

-Eladormecáestanoite- informouBoyd.Partiudepoisdo

funeral,masregressou,novamente.

Estranhei a razão desse regresso. Se não gostava de John

Franklin...

- A enfermeira não tem o direito de caluniar o doutor

Franklin - protestei. - Poirot foi absolutamente positivo quando

testemunhou acerca do frasco que viu na mão de Mistress

Bárbara...

BoydCarringtoninterrompeu:

- Que significa um frasco, Hastings? As mulheres andam

sempre com coisas dessas nas mãos. Perfumes, cremes,

cosméticos,vernizes.O factodetersidovistacomumfrascona

mãonãosignificasuicídio.Quedisparate!

Calou-seàaproximaçãodeAllerton.

Page 223: Agatha christie - cai o pano

Penseicomoteriagostadoqueelefosseovilãodapeça,mas

achava-seafastado,nanoitedamortedeBárbara.Equemotivo

poderiaterparaagirdessamaneira?

Lembrei-me, depois, que X nunca tinha ummotivo. Nisso

residiaasuaintangibilidade.

IV

Chegado a este ponto, devo sublinhar que nunca julgara

possívelquePoirotpudessefalhar.Noconflitoentreomeuamigo

e X, nunca esperara que este levasse a melhor. A despeito da

doença e fraqueza de Poirot, estava certo de que o meu amigo

acabaria por triunfar. Contudo, subitamente, alarmei-me. Fora

Poirotquemmeinculcaraadúvidanamente,aoadmitir:“Sealgo

meacontecer...”Recordeitextualmenteassuaspalavras:

-Possomorrerdeummomentoparaooutro.Sim,Hastings,

nãomeinterrompa,porfavor.Quandoocomandantemorre,man

ami,oseusubalternodevesubstitui-lo.

- Como? - desesperei. - Se me acho completamente nas

trevas?

-Trateidisso-assegurouele,batendonacaixaondeestavam

osrecortesdosjornais.-Deixar-lhe-eiumamensagem.

-Vaiescrever-metodososelementos?-pergunteiansioso.

-Não,meuamigo.O factode vocênão saberoque sei, é o

meiomais válidopara a suaprópria segurança. Indicar-lhe-ei o

caminho,masdemaneiraque,seXencontraramensagem,não

poderáentendê-la.Sóvocêserácapazdedecifrá-la.

Page 224: Agatha christie - cai o pano

- Porque terá sempre uma mente tão tortuosa, Poirot? -

critiquei.

- É a minha paixão, não é o que você pensa? Talvez! Mas

esteja descansado que fornecerei todas as indicações que o

conduzamàverdade.

ParaPoirot,avidadesenrolava-secomoumapeçadeteatro:

apósatrágicaapoteose,cairiaopano.

Tenteiafastaraquelaideiadomeucérebroefuijantar.

Page 225: Agatha christie - cai o pano

CapítuloXVII

I

Arefeiçãofoibastantesatisfatória,Mrs.Luttrellexteriorizava,

novamente,asuaalegriaartificial irlandesa;Franklinmostrava-

se mais animado do que nunca e, pela primeira vez, vi a

enfermeiraCravensemoseuausterouniforme.Era,decerto,uma

mulhermuitoatraente,especialmenteagoraquesedespojarada

suareservaprofissional.

Depoisdojantar,Mrs.Luttrellsugeriu,comohabitualmente,

umapartidadebrídege,masacabámosporjogarumapartidade

cartasvulgar.Aocabodemeiahora,Nortonanuncioutencionar

fazerumapequenavisitaaPoirot.

- Boa ideia - aplaudiu Boyd Carrington. Tive de intervir

rapidamente:

-Olhemquevãocansá-lodemasiadamente.Nãodevereceber

maisdoqueumapessoadecadavezaconselhei.

Nortonjustificou-se.

-Vouapenasemprestar-lheumlivrosobrepássaros,queme

pediu.

-Vocêvolta? - interrogouBoydCarrington,consultando-me

comoolhar.

-Sim.Nãomedemoro.

Subi com Norton. Poirot estava à nossa espera. Depois de

Page 226: Agatha christie - cai o pano

trocarcomeleumasbrevespalavras,torneiadescereiniciámos

novapartidadecartas.

Como Boyd estivesse, nessa noite, muito distraído,

desculpou-se e abandonou a mesa, dirigindo-se para a janela.

Voltou a ver-nos jogar, durante algunsminutos e, em seguida,

retirou-sediscretamente.

Fui deitar-me às onze menos um quarto e não quis

incomodar Poirot que já devia estar a dormir. Sentia cada vez

maior relutância em pensar no problema de Styles e, confesso,

apenasdesejavadormir...esquecertudoaquilo.Láfora,trovejava

tempestuosamente.

Jádormitava,quandoouviumaligeirapancadanaporta.

-Entre-convidei.

Como ninguém aparecesse, acendi a luz, levantei-me e fui

espreitar.

Devia ter sidoNorton, involuntariamente.Viu-o jáao fundo

docorredor,emdirecçãoaoquarto.Comodecostume,envergava

oseuhorrívelroupãodecoresberrantes,otufodocabeloainda

mais espetadodoquehabitualmente enotei-lhe o característico

arrastardapernaesquerda;pareciaatéquecoxeavaligeiramente,

oque,sóagora,nolongoplanodocorredor,setornavaevidente.

Entrounoquartoeouvi-onitidamentefecharaportaàchave.

Tornei a deitar-memas, desta vez, custou-me a conciliar o

sono,emvirtudedocontínuoribombardostrovõesquejádurava

haviaváriashoras.

Page 227: Agatha christie - cai o pano

II

Antesdedescerparaopequeno-almoço,fuiverPoirot.

Achei-o ainda deitado e notei-lhe profundos vincos de

cansaço,norosto.

- Como vai isso, meu amigo? - interessei-me. Sorriu-me

pacientemente,erespondeu:

-Aindaexisto,meucaroHastings,aindaexisto.Entrei logo

noassunto:

-Nortoncontou-lhe,ontemànoite,quefoiqueviranaquela

tarde?

-Sim.

-Quefoi?

- Acho que é melhor não lho dizer, meu amigo. Para sua

segurança.

-Nãohádireito,Poirot-protestei.-Quediabosepassou?

-Dir-lhe-eiapenasqueNortonviuduaspessoas...

-AllertoneJudith-gritei.-Jáoadivinhara,naaltura.

-Não,Hastings,nãoeramJuditheAllerton.

-Diga-me,nessecaso,quemeram...?

-Hojenão.Sópodereidizer-lhoamanhã.

Page 228: Agatha christie - cai o pano

Senti-meenfurecer,mascontive-meeinquiri:

-Issoajudaaresolverocaso?

Poirot confirmou com um aceno de cabeça, e, fechando os

olhos,anunciou:

- O caso está encerrado. Acabou. Falta unicamente ligar

algumas pontas da meada, para tudo ficar plenamente

esclarecido. Vá tomar o seu pequeno-almoço e, de caminho,

mande-mecáCurtiss.

Fizoquemepediuedesciasescadas.Estavaansiosoporver

Norton.

Subconscientemente, não me sentia satisfeito. Porquê a

constante reserva de Poirot em guardar segredo quanto à

resoluçãodoproblema?Porquêasuainexplicáveltristeza?Quala

verdadedetudoaquilo?

Nortonnãodesceraparaopequeno-almoço.

Mais tarde, dei umpasseio pelo jardim e notei que chovera

copiosamente. Encontrei Boyd Carrington, que se mostrava,

nessamanhã,deverasjovialesegurodesi.Pareciarenovado.

-Ouviuatrovoada,ontemànoite?-perguntou-me.

-Quasemeimpediudedormirdecentementerespondi.

- Também a mim mas, mesmo assim, sinto-me hoje

perfeitamente, comoque aliviado. Jánão tenho aquele peso em

cimadosombros...

Page 229: Agatha christie - cai o pano

- Onde está Norton? - interrompi, distraidamente,

preocupadocomasuaausência.

-Naturalmenteaindanãoselevantou,omandrião.

Erguemossimultaneamenteosolhosparaas janelasdoseu

quarto.Tinhaaindaasportasinterioresfechadas.

-Eestranho.Ter-se-ãoesquecidodeacordá-lo?-comentei.

- Espero que não tenha adoecido. Vamos lá acima ver -

propôsBoydCarrington.

Acriadadequartosexplicou-nosquelhebateraàportaduas

vezes, mas que ele não respondera. Fiz o mesmo, muito

sonoramente,egritei:

-Norton...Norton.Acorde.

Nada.Oquartoestavaimersoemcompletosilêncio.

III

Comonãoobtivéssemosamenorresposta, fomosprocuraro

coronelLuttrell.

Escutou-nos, vagamente alarmado e puxando as guias do

bigode.Momentosdepois,Mrs.Luttrellfoiinteiradadasituaçãoe

nãohesitouemtomarumadecisão:

-Temosdeabriressaporta,dequalquermaneira.Éaúnica

coisaafazer.

Pelasegundaveznaminhavida,assistiaoarrombamentode

Page 230: Agatha christie - cai o pano

uma porta, naquela assombrada mansão de Styles. For detrás

dessaporta,fechadaàchave,depareicomomesmofactoqueme

chocara,muitosanosantes,quandodoprimeirocasodePoirot,

emInglaterra:MorteporViolência.

Norton estava deitado na cama, ainda envergando o seu

roupão colorido. A chave da porta achava-se dentro de um dos

seus bolsos. Na mão, empunhava ainda uma pequena pistola,

quaseumbrinquedo,mascapazdecumprirasuamissão.Mesmo

nocentrodatesta,umorifício.

Aquele ferimento de bala, tão simetricamente produzido no

centrodafronte,queriaindicar-mequalquercoisa...Masoquê?

Estavademasiadocansadoparaconseguirlembrar-me.

CorriaoquartodePoiroteeleleuosinistro,nomeurosto.

-Queaconteceu?-inquiriurapidamente.Norton?

-Morto-respondi.

-Como?Quando?

Embrevespalavrascontei-lheanossadescoberta.Terminei,

declarando:

-Todosdizemtratar-sedesuicídio.Queoutra teoriapodem

formular? A porta estava fechada à chave. Esta encontrava-se

dentrodeumadassuasalgibeiras.Eupróprioovi,ontemànoite

entrarnoquartoeouvi-o,distintamente,fecharaportaàchave.

Masporquê,cosdiabos?

-Viu-o?...Afirmaqueoviu,Hastings,ontemànoite,fechar-

Page 231: Agatha christie - cai o pano

senoquarto?

Expliquei o que sucedera, após ter ouvido a pancada

acidentalnaporta.

-EstácertodequeeraNorton?

- Certamente. Reconheço à légua aquele horrível roupão

furta-cores.

Numinstante,Poirot,tornou-seigualaoqueforasempre.

-Oh,Hastings!Maséumhomemquevocêtemdeidentificar!

Nãoum roupão.Mafoi!Qualquerumpodeenvergarumroupão

deoutrapessoa.

- Isso é verdade - concordei, embora ligeiramente irritado. -

Mastambémoviarrastaraperna...

-Ora,Deus! -protestouPoirot. -Qualquerumpodecoxear.

Atéeucoxeio!MonDieu!Nãohánadamaisfácildoqueimitarum

coxo.

Fitei-oabismado.

-QuerdizerquenãofoiNortonquemeuvi?

-Nãoestouasugeririsso,positivamente.Meramente,aponto

nãohaveramínimarazãocientíficaparaquepossaconcluirque

se tenha tratado, efectivamente, indubitavelmente, de Norton.

Mas não digo que não tenha sido ele. De resto, note: qualquer

outrapessoa,nestacasa,émaisaltadoqueele.Enfin,vocêpode,

pelomenosdistinguir-lheaaltura?

Page 232: Agatha christie - cai o pano

Confirmei,comacabeça.

-Tout de même - prosseguiu ele. - Há-de concordar que é

muito estranho o homem ter ido para o quarto, terfechado a

porta à chave, para, no dia seguinte, terem de arrombá-la e

encontrá-locomapistolinhanamãoeumfuromesmoaomeio

dafronte.

- Portanto, não acredita que se tenha suicidado? Poirot

abanoulentamenteacabeça.

- Não. Norton não se matou. Foi assassinado

deliberadamente.

IV

Desci as escadas completamente confuso. O facto era tão

inexplicávelquenãoconseguiaconciliarasideiasracionalmente.

Aomesmotempo,aquiloparecia-me lógico.MasNorton fora

morto,porquê?Paraimpedi-lodecontaroquevira?

Maseleconfiaraessesegredoaoutrapessoa...

Eessapessoaestavaagoranãosóemperigo,mastotalmente

indefesa.

Eudeviaterprevisto...

Deviateradivinhadooqueiriaforçosamentesuceder...

“Cher ami” foram as últimas palavras com que Poirot se

despedirademim,quandoodeixeinoquarto.

Page 233: Agatha christie - cai o pano

Foram mesmo as últimas palavras que o ouvi pronunciar.

QuandoCurtissentrouparacuidardele,encontrou-omorto...

Page 234: Agatha christie - cai o pano

CapítuloXVIII

I

Nãoqueroescreveracercadoassunto.

Desejopensaromenospossívelnessefacto.Comamortede

Poirot,morreragrandepartedeArthurHastings.

Concluíram que morrera demorte natural. Diagnosticaram

“ataque cardíaco”. Fora também o que Franklin já dissera. Sem

dúvidaqueochoqueproduzidopelamortedeNortoncontribuíra

paraaqueleinfelizdesenlace.

Caíraopanosobreo“últimoacto”davidadomeuamigo.

Contudo,porumarazãoinexplicável,nãoseencontraramas

ampolasdenitritodeamilo,juntodasuacama.

Teriaalguém,deliberadamente,retiradoomedicamento?

Não. Devia haver mais qualquer coisa, além disso. X não

poderiapreveromomentodoataquecardíaco.

Pelaminhaparte,nãopodiaacreditarqueamortedePoirot

tivesse sido devida a causas naturais. Fora certamente

assassinado, talcomoNorton, talcomoBárbara, talcomotodos

osoutrosqueeunãoconhecera...

Eeunãosabiaporquetinhamsidomortos...nãosabiaquem

ostinhaassassinado.

O inquérito sobre a morte de Norton resultara numa

conclusão de suicídio, embora o médico-legista declarasse,

Page 235: Agatha christie - cai o pano

peremptoriamente, ter estranhado a localização do ferimento,

abertomesmonomeiodatesta.Nuncatalsedepararanosanais

criminológicos, em casos de suicídio. Geralmente os suicidas

visamatêmporaouocéudaboca.Massósurgiuessasombrade

dúvida.Tudoorestoeraclaro:aportafechadaàchave;achavena

algibeiradomorto.Queoutracoisapoderiatersido?

Norton queixara-se de dores de cabeça, de preocupações, e

declara que os seus últimos investimentos tinham sido

desastrosos.Nãoestavapobre,masháquemdesmoralizeporter

perdido algum dinheiro. Seria o caso? Se o fosse, havia um

motivo...masbemfracoparalevarumhomemsãoaosuicídio!

Aparentemente,apistolaerasua.Acriadadequartojáavira,

por duas vezes, sobre a mesinha-de-cabeceira, durante a sua

estadaemStyles.

Aí estava eu perante um novo caso de assassínio,

perfeitamenteplaneadoepraticado,semamínimaalternativade

solução.

NaqueledueloentrePoiroteX...Xtinhasaídovencedor.

Soavaagoraaminhavez.

FuiaoquartodePoirotetrouxecomigoacaixadosrecortes.

Sabia que me tinha nomeado executor das suas vontades,

portanto,tinhatodoodireitodefazê-lo.Retirei-lhedopescoçoa

chave,fuiparaomeuquarto,fecheiaportaeabriacaixa.

Sofri então o meu primeiro desapontamento:a pasta que

continha os casos de X desaparecera. Ora, eu tinha-a visto na

Page 236: Agatha christie - cai o pano

véspera,quandoPoirotabriraacaixanaminhapresença.Issoera

aprovadequeXjáentraraemacção.

Porém,acaixanãoestavavazia.Lembrei-medequePoirotme

avisara:deixar-me-iaindicaçõesqueXnãopoderiaentender.Que

indicaçõeseramessas?

Encontrei um exemplar, em brochura barata, da tragédia

Otelo, de Shakespeare. O outro livro era a peça teatralJohn

Fergueson,deSt.JohnErvine.Tinhaummarcador inseridono

terceiroacto.

Examinei os livros em vão. Eram as pistas que Poirot me

legavaenadasignificavamparamim.

Quediabopoderiamsignificar?

Penseinumcódigo,baseadonessaspeças,masdesconhecia-

lheachavedacifra.Li todooterceiroactoeadmireiacenaem

queClutieJohnfala,terminandocomaperseguiçãoqueomais

jovem dos Ferguesonmove ao homem que enganara sua irmã.

Contudo,nadadescobrideespecialecertamentequePoirotnão

me legara o livro unicamente para que eu ampliasse os meus

conhecimentosdelínguainglesa,nemincrementasseogostopela

literatura.Aofecharolivro,encontreiumapequenatiradepapel,

ondeselia,escritopelopunhodePoirot,aseguintemensagem:

“FalecomomeucriadoGeorge.”

Já era alguma coisa. Possivelmente, a chave do código

achava-seempoderdeGeorge.Tinhadedescobrir-lheadirecção

eprocurá-lo.

Page 237: Agatha christie - cai o pano

Mas,primeiro,teriadetratardoenterrodomeuamigo.

Ficousepultadona terraondevivera,quando,pelaprimeira

vez,estiveraemInglaterra.

Durante esses dias, Judith mostrou-se muito atenciosa,

carinhosamesmo.ElizabethColeeBoydCarrington tambémse

mostraramextremamentegentisesimpáticos.

Comsurpresaminha,Elizabethnão ficarade formaalguma

afectadapelamortedeNorton.

E,destamaneira,tudoacabou.

II

Sim, tenho de registar isto. Quando o funeral terminou,

sentei-me juntodeJudith, tentando fazerplanosparao futuro.

Foientãoqueelameanunciou:

-Mas,pai,jánãoestareicá.

-Tambémnãotencionopermaneceraqui-esclareci.

-EquenãoestareinaInglaterra.Fitei-a,admirado,eJudith

explicou:

-Nãoquis tornarascoisasaindapioresparasi e,por isso,

nadalhedisse;esperoquenãoseimportemuito...Masvoupara

África,comodoutorFranklin.

Tentei dissuadi-la e deixou-me falar até ao fim, esgotando

todos os argumentos reprovativos, com a impropriedade de um

empregodeassistentenumclimahostil,tivedeouvi-la:

Page 238: Agatha christie - cai o pano

-Mas,meuqueridopai,nãovoucomoassistente;voucomo

suamulher.

Omeuespantoredobroueobservei:

-NãopodescasarcomFranklin,tãocedo.

-Posso,sim.Nãohánadarealqueno-lopossaimpedir.

JuditheFranklin.Nãosetratara,pois,deAllerton.

Judith e Franklin. Subitamente, um terrível pensamento

atravessou-meoespírito;Judithcomumfrasconamão;Judith

nasuavozapaixonada,declarandoqueavidadosinúteisdeveria

sersacrificadaaosquesãoúteisàcomunidade.

AJudithqueeuePoirotamávamos!PorissoPoirotinventara

a história do suicídio, para protegê-la... e Franklin,

provavelmente, seria o estranho homem que a influenciara a

cometerocrime...equepoderiacontinuaramatareamatar!

Poirot quisera consultar Franklin, sobre a sua doença.

Porquê?Quelheteriadito,nessamanhã?

Contudo, imediatamente, a ideia pareceu-me mostruosa,

impossíveldeaceitar.Aminhaquerida,aminhatãosériaJudith

nãopoderiaterfeitoumacoisadaquelas.

Seria toda a história de X uma invenção de Poirot? Um

produto da sua fertilíssima imaginação? Seria por isso que se

negaraaprestar-mequalquerinformação?

Ouestaria,efectivamente,Judithnocoraçãodatragédia?

Page 239: Agatha christie - cai o pano

Otelo!Seriaessaachavedomistério?

Talcomoalguémdisserananoiteemqueeutiveraesselivro

nas mãos, na noite em que Mrs. Franklin fora assassinada,

Judith cortaria a cabeça de Holofernes... como Salome, com a

mortenocoração.

Page 240: Agatha christie - cai o pano

CapítuloXIX

EstouaescreveristoemEastbourne.

VimatécáparafalarcomGeorge,antigocriadodePoirot.

George esteve ao seu serviço durantemuitos anos. Era um

mordomocompetentíssimo,totalmentedesprovidodeimaginação.

Cumprirasempretodasasindicações,àletra,edavaacadacoisa

oseudevidovalor.

Dei-lhe a notícia da morte de Poirot e ele ficou deveras

desgostoso.Finalmenteindaguei:

-Omeuamigodeixou-lhealgumamensagemparamim?

Georgerespondeuprontamente:

-Não!Nãorecebinada.

Fiqueisurpreendido,masdecidisondarmelhoraquestão:

-Foiconfusãominha,decerto.Porquequisseparar-sedoseu

antigo patrão? Pessoalmente, teria gostado que você

permanecessejuntodele,atéaoseuúltimomomento.

-Tambémeu,senhor.

-Suponhoquefoiadoençadeseupaiqueoforçouaseparar-

sedomeuamigo,não?

-Desculpe,senhor,masnãoseidequeestáafalar.

-Nãofoiparavirfazercompanhiaaseupaiqueabandonouo

serviçodePoirot?

Page 241: Agatha christie - cai o pano

- Eu não queria separar-me dele, senhor. Foi Mister Poirot

quemmemandouembora.

-Despediu-o?-espantei-me.

-Bem,nãoexpressariaofactonessestermos.Digamosantes

quedispensouosmeusserviços,muitogentilmente.Declarou-me

tratar-sedeumasituaçãotemporáriaeque,embreve,regressaria

ao seu serviço.Mas, durante todo este tempo, em que, por sua

sugestão,fizcompanhiaameupai,pagou-mesempreumamuito

generosaremuneração.

-Masporquê,George,porquê?

-Nãopodereiesclarecê-lo,senhor.Nuncamodisse.

-Nãolheperguntou?

- Não, senhor. Na minha posição, não me competia fazer

perguntas. Era um homem muito inteligente e sempre o

considereicomomaiorrespeito.

-Pois,pois-murmureiabstractamente.

- Umcavalheiro, peculiarmente cuidadoso com as suas

roupas; por vezes, aparentemente exótico, por ser estrangeiro;

tambémmuitoescrupulosocomoaspectodocabelo,dobigode...

“Os seus famosos bigodes!”, comentei interiormente,

lembrando-me do grande orgulho que tinha nesse ornamento

piloso.

-Era particularmente exigente como seubigode.Não seria

Page 242: Agatha christie - cai o pano

muito elegante amaneira como o usava,mas condizia comele,

nãoseisemefaçoentender,senhor?

Delicadamente,pergunteiaGeorge:

-Suponhoqueotingia,talcomoocabelo,não?

-Sim...davaumligeirotoquenobigode,masnãonocabelo...

nãonosúltimosanos.

-Podeláser!-estranhei.-Eranegrocomoasadecorvo.Até

pareciaumchino.

Georgeentreolhou-meeredarguiuapologeticamente:

-Desculpe,senhor,maseramesmoumpostiço.

Considereiqueumcriadodequartodeveconhecermelhoro

patrão,queo seumais íntimoamigo.Voltei aoassuntoqueme

desnorteara:

-Nãofazrealmenteideia,George,domotivoquelevouMister

Poirotadispensarosseusserviços?Pense,porfavor...penselá.

Apósunssegundosdemeditação,respondeu:

- Posso unicamente sugerir, senhor, que a razão do meu

afastamentofoiterMisterPoirotdesejadocontratarCurtiss.

-Curtiss?Paraquediaboquereriaelecontratarosserviçosde

Curtiss?

Georgemostrou-seembaraçado.

- Bem, senhor, na verdade, não sei dizê-lo. Se me permite

Page 243: Agatha christie - cai o pano

uma observação, ousaria dizer queCurtiss nãome pareceuum

espécimen particularmente brilhante. Era realmente forte,

fisicamente, mas custa-me a considerá-lo da classe que Mister

Poirot gostaria de ter ao seu serviço. Fora enfermeiro num

sanatóriopsiquiátrico,salvoerro.

Fitei-oassombrado.

Curtiss!

Teria sido por essa razão que Poirot se negara a dar-me

informações precisas? Curtiss, o homem de quem eu nunca

suspeitara!Sim.Aquiloeramesmodele!Lançara-menapistade

hóspedes de Styles quando o misterioso Xnão era nenhum

hóspede.

Curtiss,enfermeirodealienados!Lembrei-medeque,muitas

vezes, alguns pacientes de asilos psiquiátricos tornam-se

assistentes, junto de outros doentes, quando registam notórias

melhoras.

Queestupidez!Conservar juntodesiumhomemquepodia

matá-lo,emqualquerocasião!Porquê?Paraquê,meuDeus?

Foi como se uma grande nuvem desassombrasse o meu

espírito.

Curtiss!

Page 244: Agatha christie - cai o pano

Epílogo

Nota:Omanuscrito seguinte entrou na minha posse, quatro

mesesdepoisdamortedomeuamigoHerculePoirot.Recebiuma

comunicação de uma firma de advogados, solicitando-me que

entrasse em contacto com o seu escritório. De acordo com as

instruçõesdoseucliente,ofalecidoM.HerculePoirot,iriamenviar-

me um sobrescrito lacrado. Aqui passo a reproduzir o seu

conteúdo.

CapitãoArthurHastings

ManuscritoredigidoporHerculePoirot:

Moncherami,”

Já deverei estar morto, há quatro meses, quando ler estas

palavras. Longamente debati, com a minha consciência, se

deveriaounãoescreveroqueaquirelato.Decidi,finalmente,que

é necessário que alguém saiba a verdade acerca do segundo

affaire Styles. Também porque conjecturo que, quando estemeu

escrito lhechegaràsmãos,estaráenvolvidonasmaisabsurdas

teoriase,possivelmente,preocupadocomelas.

Masdeixe-mequelhediga:deviatersidocapaz,monami,de

desvendar facilmente a verdade. Creio ter-lhe já fornecido todas

as indicações necessárias para a solução domistério. Se não o

conseguiu,foiporque,comosempre,vocêédeumanaturezapura

econfiante.Alafin,commeaucommencement.

Pelo menos deveria ter descoberto quem matou Norton...

mesmoquepermanecessenaescuridãoquantoaoassassíniode

BárbaraFranklin.Esteúltimopoderáchocá-lo.

Page 245: Agatha christie - cai o pano

Como sabe, comecei pormandar chamá-lo comoargumento

dequeprecisavadesi.Eraverdade.Necessitavaquesetornasse

osmeusouvidoseosmeusolhos.Tambéméverdade,masnão

no sentido que pensa. Precisava que visse o que eu queria que

visseeouvisseoqueeuqueriaqueouvisse.

Queixou-se-me, frequentemente, cher ami, que eu não era

desportivo na minha apresentação do caso. Recusei-me a

transmitir-lhe o que sabia, isto é, neguei-me a desvendar-lhe a

identidadedeX.Tivedefazê-lo,nãopelasrazõesquelheexpus,

maspor outras, verá agora omotivo real dessaminhaaparente

deslealdade.

Eanalisemos,primeiramente,aquestãodeX.

Mostrei-lheumresumodosvárioscasoseapontei-Iheofacto

de, em cada um deles, separadamente, a pessoa acusada ou

suspeitade ter cometidoos crimeshão ter tidooutraalternativa,

quantoàsolução.

Indigitei-lheaindaosegundofactoimportante:emcadacaso,

X tinha estado presente na cena do crime, ou proximamente

envolvidonela.

Então você lançou-se numa dedução que, paradokalmente,

eraverdadeiraefalsa,aomesmotempo:ConcluiuqueXcometera

todososcrimes.

Mas,meu caro amigo, as circunstâncias eram tais Ique, em

cadacaso(ouemquasetodos),sóoacusadopoderiatercometido

ohomicídio. Por outro lado, se assim era, comoatribuí-los aX?

Comexclusãode umapessoa relacionada coma Polícia ou com

Page 246: Agatha christie - cai o pano

uma firma de advogados criminais, não peria razoável que

alguém, homem ou mulher, pudesse estar envolvido em cinco

casos de assassínio. Não, mon ami, isso não seria possível.

Portanto atingimos o curioso resultado de depararmos com um

caso de catálise: uma reacção entre duas substâncias que

apenas se opera na presença de uma terceira substância, não

participando esta terceira substância, aparentemente, nessa

reacção e mantendo-se inalterável. sso significa que os crimes

apenasse verificavam, quandoXestavapresente, porémnunca

participando neles activamente. Uma situação

extraordinariamente anormal! Eis que enfrentava, no fim da

minhacarreira,ocriminosoperfeito,ocriminosoqueinventouuma

taltécnicaquejamaispoderiaseracusadodecrime.

Empolgante,mas não situação nova. Teve paralelas. E aqui

seinsereaprimeiradaspistasquelhedeixei:apeçaOtelo.Nela

vamos achar,magnificamente delineado, omodelo original deX:

lago,oassassinoperfeito.AsmortesdeDesdémona,deCassioe

dopróprioOtelo,podemser-lheatribuídas,portê-lasplaneadoea

elasinstigadooexecutor.

Eelepermaneceforadocírculo,intocávelpelasuspeita...ou,

pelo menos, podê-lo-ia ter conseguido. Pois o seu grande

Shakespeare,meu amigo, achou-se perante o dilema que a arte

lhe impunha: ou mantinha a impunidade de lago, o que seria

imoral, ou servir-se-ia - como fez - de um expediente grosseiro,

materializado por um lenço; uma prova material forjada de

improviso,peloautor, inadequadaà técnicadopersonagemque,

sóporessemeio,pôdeserinculpado.

Sim, foi aí atingida a perfeição na arte do assassínio, pois

nemsequersurgeumasugestãodirecta,na instigaçãoao crime.

Page 247: Agatha christie - cai o pano

Sistematicamenteeleaconselhaosoutrosaevitaremaviolência,

refutandoe condenandoas suspeitasqueninguém teria tido, se

não viesse, intencionalmente, levantar com o seu conselho a

repulsa.

Estamesma técnicasenosdeparanobrilhante terceiroacto

de John Fergueson, em que St. John Ervine coloca a sua

personagem, a meio jocosa figura de Clutie John, induzindo os

outros amatarem o homem que ele próprio odeia. Em cada um

delesdesponta,dequandoemquando,odesejodematar,não,a

vontadedematar.Eháumavalaabissalentredesejarequerer.

Para transpô-la,ohomemprecisadeummaiorestímulo,deuma

instigação.

Quantasvezesnãotemosouvidoalguémdizer:“Desesperou-

medetalmaneira,fiqueitãofurioso,queestiveprestesamatá-lo!”

“Podia tê-lo morto, só por ouvi-lo dizer aquilo!” “Estava tão

exasperado que devia tê-lomorto!” Ora todas estas declarações

são literalmente verdadeiras, porque amente deseja claramente

matar.Sóquenãoofaz.Faltaaodesejoadecisão.

A arte de X não residia em sugerir o desejo, mas sim em

quebrararesistênciamoral,natural.Aperfeiçoou-senessaarte,ao

cabo de longa prática, e conhecia a palavra exacta, a frase

necessária,aintonaçãoeficienteparaavolumarapressãosobreo

espírito previamente revoltado. Isto era executado, sem que a

pessoaosuspeitasse.Nãosetratavadehipnotismo,masdealgo

mais insidioso,maismortal;eraoapeloaoqueohomemtemde

melhorparaqueactuasseemaliançacomopior.

Você, Hastings, devia sabê-lo, porque lhe aconteceu a si

mesmo.

Page 248: Agatha christie - cai o pano

Talvezagoraconsigaperceberalgumasdasobservaçõesque

lhefizequetantooconfundirameaborreceram.Quandolhedizia

que“serácometidoumcrime”nãomereferiaaomesmocrimeem

que você pensava. Anunciei-lhe que estava em Styles, com um

propósito determinado, e que um crime seria aí comeItido. Você

admirou-sedaminhacerteza,quantoaessefactofuturo.Ora,eu

tinha-a, porque era eu, exactamente, quem ia cometer o crime.

E..... Sim,meuamigo, éumasituaçãosimultaneamente irisível e

terrível.EuquesempredefendiavidahumanaecombatioCrime

ia terminar a minha carreira perpetrando um, talvez em

consequência de demasiada rectidão, de excesso de sentido do

dever.Averdadeéquedediqueitodaaminhavidaatentarevitar

oCrime e acabara por enfrentar um caso em quematar seria a

únicaformaviáveldeobstaràcontinuaçãodeumasérieletal.

Mesmoassimestava relutante.Sabiaoquedeviaser feitoe

como, mas não conseguia atingir o ponto de decisão. Foi então

que ocorreu o atentado contra Mrs. Luttrell. Foi realmente uma

tentativa de assassínio, um homicídio frustrado, seguido de

imediato e sentido arrependimento. E você, dessa vez, esteve

muito próximo da solução: desconfiou de Norton. Você fez então

uma observação deveras significativa, quando me relatou a

necessidadedeNortonprocurarimpressionarosoutros,emvão,e

darepulsaquelhecausaraverumcoelhomorto,quandoandava

naescola,nãopodendoversangue.Pensoqueaquele incidente,

na sua juventude, o deve ter impressionado e marcado para

sempre.Abominavaosangueeaviolênciaeissocontribuírapara

o desprestígio. Subconscientemente, necessitava de redimir-se

dessainferioridade,provocandoviolênciaesangue.

Sabia ouvir e era simpático. Descobriu ter o poder de

Page 249: Agatha christie - cai o pano

influenciarosoutros,semquedissoseapercebessem.Descobriu

comoeraridiculamentefácil levarosoutrosaagirdeacordocom

as suas sugestões. Bastava-lhe compreendê-los, penetrar-lhes o

pensamento,adivinhar-lhesosdesejoseasreacções,osinstintos

secretos.

Norton, que toda a gente estimava e ao mesmo tempo

desprezava, por insignificante, tinha o poder de fazer os outros

praticarem o que não queriam, ou (note bem isto, Hastings)

pensaremquetinhamfeitooqueefectivamentenãotinham.

Esse poder transformou-se numa paixão que se tornou

necessidade e cresceu, avolumou-se no seu íntimo ao ponto de

dominá-locomoumadroga,umópiodequejánãopodiaprivar-se.

Norton, de natureza gentil, era um sádico secreto. L’appelit

vientenmangeant.

Precisavadenutrir-seda luxúriadosadismoeda luxúriado

poder: Tinha a chave da vida e da morte. Deliciava-se com o

sabordatragédiaporeleprópriocondimentada.Asuadrogaeram

as suas vítimas. Achou uma após outra, provavelmente muito

mais do que cinco. Em todos os seus crimes, desempenhou o

mesmo papel sempre à parte, aparentemente secundário; na

realidade,principal.

Conheceu Etherington. Permaneceu uma época estival na

aldeia em que Riggs vivia e costumava beber com ele, numa

tavernalocal.Relacionou-secomFredaClay,duranteumcruzeiro

marítimo,eencorajou-anaideiadequedesembaraçar-sedasua

velha tia trá-lhe-ianãosóa liberdade,masa riqueza.Eraamigo

dos Litchfield e induziu no espírito de Margaret a convicção Ide

Page 250: Agatha christie - cai o pano

queseriaumaheroína, se salvasseo futurodas irmãsem troca

deumacondenaçãoàprisãoperpétua.

Oraeu,meucaroHastings,nãoacreditoquenenhumadestas

pessoasagissecomoagiu,senãofosseainfluênciadeNorton.

E, desta maneira, chegamos aos acontecimentos de Styles.

Havia algum tempo que eu andava na pista deNorton.Quando

travou relações com os Franklin, pressenti o perigo,

imediatamente. Franklin oferecia a Norton magníficas

possibilidades: estava apaixonado por Judith e esta por ele;

contudo, era um homem de forte carácter e grande rectidão de

princípios.Quandoosdescobriunocanteirodasrosasepercebeu

que você pensava tratar-se de AlIlerton, cortejando sua filha,

porque ela lhe tolerava uma corte inconsequente, achou-se em

ambiente propício à realização dos seus desígnios. Como a

absorção de Franklin pelo seu trabalho o tornava praticamente

alheadodorestodomundoe,portanto,quaseinvulnerável,virou-

separaJudith.Desafiou-lheoorgulhoeacoragem.

Lembra-se de quando lhe disse, sarcasticamente: “Isso são

coisasqueosjovensproclamam,massãoincapazesdepraticar”?

E realçou a inutilidade da vida de Bárbara, prejudicando a

felicidadedosoutros:domaridoedeJudith.

Vejaseserecorda,Hastings,nocasodosLuttrell,quando,na

primeiranoiteemStyles,vocêjogavabrídegecomeles.Nortonfez-

lhe algumas observações em voz baixa, que você receou que o

coroneltivessepodidoouvir.OraNortonnãoasfizerainabilmente,

masintencionalmente,paraqueeleasouvisseeoinfluenciassem.

Mais tarde, declarando sentir sede, após o passeio ao sol,

Page 251: Agatha christie - cai o pano

induz o coronel a oferecer umas bebidas. Vocês testemunhama

cena, através da janela, quando Mrs. Luttrell se opõe à oferta.

Toda a perturbação de Norton foi, depois, simulada, para

avolumarahumilhaçãodovelhomilitar.

Recorda-se daquela história que Boyd Carrington contou do

impedido irlandês que matara o próprio irmão? Pois, na sua

distracção proverbial, Sir William esquecera-se de que fora

exactamenteNortonquemlhacontaralEcomovê,maisumavez,

asugestãonãopareceuprovirdeNorton.MomDieul

Tudofoiporeleestabelecido:oefeitoacumulativoeopontode

fractura. O coronel Luttrell desespera-se e desabafa: “Hei-de

mostrar-lhe!... Quem dera que ela morresse!... Ainda acabo por

matá-la!”

Não a matou e, meu caro Hastings, estou convencido que

falhou,porquequisfalhar.FoioDiaboquemficoudesfeiteado.Eis

pois,umdoscrimesqueNortonnãoconseguiuultimar.

Allertoneraogénerodehomemquevocêdetestava:otipode

pessoa que você pensava dever ser abolido de uma sociedade.

Nortonconta-lheumahistóriaaseurespeito,derestoverdadeira,

que o levou a si, Hastings, ao ponto de fractura. Para que você

não recusasse, Norton induziu Boyd Carrington a dar-lhe uma

achega:adverte-odoperigo,fraternalmente.

Judith dirige-se, certa noite, ao laboratório. Você começa a

segui-la.Mostrando-sesemprevirtuoso,Nortonconvence-oaside

queamoçaqueAllertonbeijaedepoisconduzàcasadeVerãoé

Judith, só porque ela usou, nesse dia, um vestido branco. Você

nãoaouviu falar.SóouviuavozdeAllerton.PensouqueJudith

Page 252: Agatha christie - cai o pano

irianodiaseguinteparaLondrescomomiserávelconquistadore

dispôs-se a matar. Francamente, Hastings, tudo isso aconteceu

porquevocêestava incapazde raciocinara frio,deadmitir outra

hipótesequenãofosseaqueoobcecava.Nãoconseguiulembrar-

se de que havia nessa casa, mais alguém vestida de

branco...sempre vestida de branco: a enfermeira Craven. Se,

acidentalmente, por desporto, Allerton cortejava Judith, que lhe

aceitavaojogo,pormeradistracção,comoéusualentremoçasda

actual geração, a verdade era que as relações entre ele e a

enfermeira Craven estavam muito mais avançadas... muitíssimo

maisdoquevocêpoderiaimaginar.

Na realidade, Norton surpreendera uma conversa entre

Allertoneaenfermeira,tomandoentãoconhecimentodequeiriam

encontrar-se,nessanoite,nacasadeVerão.Issobastou-lhepara

induzi-lo, a si, na presunção de que Judith seria a cúmplice... a

vítima.

Asuareacção,meuamigo,foiimediata.Mentalmente,decidiu-

seamatar.

Felizmente para si, Hastings, você tinha ali um amigo cujos

miolosaindafuncionavam.Enãoapenasosmiolos!

Tive já ocasião de dizer-lhe que você seria incapaz de

desvendar a verdade, por possuir uma natureza demasido

crédula. Acredita no que lhe dizem. Acreditou no que eu lhe

disse...Poisser-lhe-iabemfácilterresolvidosozinhooproblema.

PorquerazãoteriaeudespedidoGeorge?

Substituí-o por um criado menos experiente e notoriamente

menosinteligentedoqueele...Porquê?

Page 253: Agatha christie - cai o pano

E por que razão não estava eu a ser assistido por um

médico... eu que sempre me mostrara tão preocupado com a

minhasaúde?...Porquê?Porquediabonãodesejavaservistopor

nenhummédicoexperiente?...Porquê?

CompreendeagoraporquerazãoprecisavadesiemStyles?

Tinhadeutilizar alguémqueaceitasse tudo quanto eudissesse,

semqualquerdúvida.VocêacreditouqueeuregressaradoEgipto

muitopiordoquequandopara lápartira.Ora,acontecequevim

muito melhor. Se se tivesse dado ao trabalho de perguntar a

outraspessoas queme conheceme que estiveram comigoantes

deeuvirparaStyles,teriaobtidoaconfirmaçãodessefacto.

Tive de afastar George, porque ele não acreditaria nesta

minha súbita recaída que perceberia ser simulada. Ele é muito

perspicaz quanto ao que observa e concluiria que a minha

apregoadaenfermidadenãopassavadeumfingimento.

Estáacompreender,Hastings’?Durantetodootempoemque

desempenhei o papel de artrítico, semiparalítico, coxo, cardíaco,

preciseideum tipo comoCurtiss,nadaarguto,para carregar-me

deumladoparaooutro.

Ora eu estavaabsolutamente apto a andar e demuitomais

coisas, incluindo fingir que coxeava, ou que simplesmente

arrastavaumpoucoumaperna,percebe?

Naquelanoite,ouvi-osubiraescadaehesitaràportadomeu

quarto;emseguida,dirigir-seaodeAllerton.Fiqueiimediatamente

alerta.

Curtissforacear.Saídoquartoe,damaneiraquevocêtanto

deplora,espreiteipeloburacoda fechadura.Oqueadvinharado

Page 254: Agatha christie - cai o pano

seu estado de espírito confirmou-se. Como deve lembrar-se, a

chavenãoficaranafechadura.Vi-omexernofrascodascápsulas

soporíferasecompreendiassuasintenções.

Por isso, meu amigo, agi. Regressei ao quarto e preparei o

meugolpe.MalCurtisschegou,pedi-lhequefossechamá-lo.Você

começouadesculpar-secomdoresdecabeçaeaterrorizei-ocom

remédios.Acabouporaceitarumachávenadomeuchocolatee,a

fimdedespachar-seepoderirparaoseuquarto,bebeu-odeum

trago.Nemlhenotouumgostoinvulgar.

Ora,meuamigo,eutambémtinhacápsulassoporíferas.

Dessa maneira, dormiu até à manhã seguinte e, quando

acordou, jámaisconsciente, ficouhorrorizadocomoqueestivera

prestesafazer.

Salvei-oe issodecidiu-meaexecutaraquiloparaquevieraa

Styles.Você,Hastings,nãoéumassassino,masseriaenforcado

por um assassínio cometido por influência de outrem e todos

considerá-lo-iamculpado.

Você,meubom,meuconsciencioso,meuinocenteamigo!

Tinhadeactuar enãome restavamuito tempopara fazê-lo.

ReceeioqueNortonpoderiamanobraremrelaçãoaJudith...

EfoientãoqueBárbaraFranklinmorreu.

Quaisquer que tenham sido as suas ideias acerca desta

morte,nãocreioquetenhadescobertoaverdade.

Para que saiba, Hastings, digo-lhe agora que você matou

Page 255: Agatha christie - cai o pano

BárbaraFranklin.Maisoui,monami!

Havia um outro ângulo do problema que eu não tinha

analisado.Sómaistardedesvendei.

OângulodeinteressedeMrs.Franklin.

Passou-lhe alguma vez pela cabeça, Hastings, a razão que

teria levadoBárbara a vir para Styles?Ela gostava de conforto,

boacomidaecontactossociais.Eraextremamenteambiciosa,não

sósocialmente,mastambémfinanceiramenteecasaracomJohn

Franklinporqueesperava,comotodaagente,queele tivessena

suafrenteumabrilhantecarreka.OraoDr.Franklinerarealmente

brilhante,masnãodamaneiraqueelaodesejara.Nãogranjeara

a fama de ummédico damoda e as suas pesquisas científicas

nãolheproporcionavamumaapreciávelriqueza.

Porém, enquanto decorriam as obras de Knatton, Boyd

Carrington, recém-chegado do Oriente, herdando uma baronia e

umaconsiderável fortuna, instalara-seemStyles, cujamansãoo

seu velho camarada coronel Luttrell adaptara em hotel. Bárbara

sabiaqueeleseapaixonaraporela,quandoeraaindameninade

dezassete anos... Pois bem, sugeriu ao marido que a trouxesse

tambémparaStyles.

Contudo, Bárbara sabia que Franklin não era homem para

conceder um divórcio. Portanto, só lhe restava pensar que, se o

marido morresse, ela poderia tornar-se Lady Boyd Carrington.

Comoseriamaravilhosotornar-semulherdomuitoricoSirWilliam!

Nortondeve ter esfregadoasmãos,de entusiasmo,ao vê-la

tãopropíciaparaumadassuasmanipulações.

Page 256: Agatha christie - cai o pano

Bárbara começou por demonstrar, ostensivamente, quanto

admirava o marido, chegando a exagerar um pouco, quando

murmurou pensar em aliviá-lo do seu peso morto e em “acabar

com tudo aquilo”. Depois, utilizou uma linha de dissimulação

inteiramentenovaeardilosa:mostrou-sereceosacomoperigoque

Franklin corria se experimentasse, em si próprio, o veneno de

físostigmina. Não para envenenar-se, obviamente, mas apenas

paraobservar cientificamenteosefeitos, comooutrossábios jáo

têmfeito.Enistotambémexagerou,considerando-o,imbecilmente,

umsanto.

Simplesmente,osfactosaceleraram-sedemasiadamente.

Lembra-se, Hastings, de ter-me contado que Bárbara ficara

irritada por ver a enfermeira Craven ler a sina de Boyd

Carrington? Esta era uma jovem atraente, de olho atento nos

homens. Tentara a sorte com Franklin, sem o menor sucesso.

Andava com Allerton, mas sabia que não era o homem que lhe

convinha. Inevitavelmente, acabou por deitar os olhos ao rico e

ainda encantador SirWilliam... E acontece que este estavamais

do que pronto para ser cativado. Nessa altura já notara que a

enfermeira Craven era “muito formosa, saudável e eficiente”. As

melhores qualidades que um cavalheiro inglês pode encontrar

num cavalo. Além disso, viu-a correr lestamente através do

campo.

Bárbara Franklin pressentiu o perigo e decidiu agir

rapidamente.Quantomaiscedopudessemostrar-seumapatética

einconsolávelviúva,tantomelhor.

Dessa maneira, depois de uma manhã em que interpretara

umamaravilhosacenadenervos,preparouacenafinal.

Page 257: Agatha christie - cai o pano

Afirmo-lhe, meu amigo, que fiquei com imenso respeito pela

semente de calabar. Desta vez, a coisa bateu certo. Absolveu o

inocenteecondenouoculpado.

Mrs. Franklin pediu-lhes que subissem todos ao seu quarto.

Ofereceu-vos café, entre lamentos e mimos, e toda a gente a

rodeouatenciosamente.

Ora,talcomovocêmedisse,ocafédelaestavasobreamesa-

estante, e o do marido, ao lado. Foi nessa altura que viram as

estrelas-cadentes e correram à varanda. Porém, você, meu

nostálgicoamigo, ficou comas suas recordações e umproblema

depalavrascruzadas.

Vejaagoraseserecordadoquemecontou.

ParaocultaraosolhosdeJudithasuaemoção,virouamesa-

estante, de onde tirou um livro em que encontrou a citação de

Shakespeareque,momentosantes,BoydCarringtonmencionara.

Nãofoiisso?

Poisao rodar o pequenomóvel, numameia voltade cento e

oitenta graus, você fez com que Mrs. Franklin bebesse o café

drogadocomalcalóidedesementede calabar, queeladestinara

aomarido,eesteingeriuoconteúdoinócuodachávenaqueasua

belaenvenenadoraantestiveraemfrente.

Compreendi o que realmenteacontecera, porque eraaúnica

coisa que podia ter acontecido, naquelas circunstâncias, mas

nuncapoderiaprová-lo.

Não podendo prová-lo, as suspeitas de envenenamento

intencionalehomicídiopremeditadorecairiamsobreJohnFranklin

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ou...sobreasuaJudith.

Ora, tantoumcomooutroestavamcompletamente inocentes.

Quequeriaqueeufizesse?

TestemunheitervistoMrs.Franklinsairdolaboratóriocomum

frasconamãoemostrar-seassustadaaorepararemmim.

Opesode todaaminhacarreiradedetectiveajudou.Seum

homem com a minha experiência criminal testemunhava (com

plena convicção de que se tratava de suicídio), uma atitude tão

suspeita de Mrs. Franklin, o investigador seria naturalmente

induzidoaoptarporessasolução.Foioqueaconteceu.

Isso deixou-o, a si, deveras confuso, chegando a discutir o

casocomigomas,misericordiosamente,nãochegouasuspeitardo

perigoqueentãopairarasobreacabeça inocentedesuaprópria

filha.

Maistarde,sim,seriapossívelqueadúvidalheassaltasseo

espírito:“TeriaJudith...?”

Époressarazãoquelheescrevo.Precisadesaberaverdade.

Só houve uma pessoa a quem a solução de suicídio não

agradou:aNorton.

Comolhedisse,eleeraumsádico.Precisavadetodaagama

de emoções de suspeita, medo e punição. Foi privado de tudo

isso. O assassínio que tão cuidadosamente preparara diluíra-se

numsuicídio...

Portanto,monami,decidiqueoquetinhadeserfeito,deveria

executar-se imediatamente. Arranjei as coisas de maneira que

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você trouxesse Norton ao meu quarto. Vou contar-lhe, agora,

exactamente,oqueaconteceu.

Semdúvidaalguma,Nortondesejarianarrar-measuaversão

dahistória,demaneiraaimplicarFranklineJudithnocrime,mas

não lhe dei tempo.Disse-lhe clara e definitivamente tudo quanto

sabiaaseurespeito.

Nemsedeuàfarsadenegá-lo.Não,monami,recostou-sena

cadeira e sorriu tolamente. Mais oui... tolamente, é o termo.

Perguntou-mequetencionavaeufazercomaquelaminhadivertida

ideia.Respondi-lhequeestavadispostoaexecutá-lo.

-Ah,estouaver-motejou.-Opunhalouataçadeveneno?

Iamos, nesse mesmo momento, tomar uma chávena de

chocolate.Eusabiaqueeleeraguloso.Tínhamosduaschávenas

limpas, em nossa frente e servimo-nos cordialmente, do mesmo

bule.

-Omaissimples-disse-lheeu-,seriaataçadeveneno.

- Nesse caso - propôs -, importa-se que beba pela sua

chávenaouvêalguminconvenienteembeberpelaminha?

Era uma troca escusada, já que os recipientes sé

apresentavambem lavadoseenxutoseo chocolateprovinhada

mesmafonte.

-Certamente-anuí.-Asuahoraaindanãochegou,Norton,e

nãotencionosuicidar-me.

Como já lhe disse, meu caro amigo, eu também tinha

cápsulas soporíferas. Simplesmente, como durante um longo

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período começara a toma-las quotidianamente, omeu organismo

adquirira uma forte tolerância àquela droga e a dose que iria,

agora, pôrMr. Norton a dormir, causar-me-ia amim, bem pouco

efeito.

O hipnótico fora diluído no chocolate contido nomesmo bule

de que ambos nos servíramos.Bebemo-lo até à última gota. Ele

confiante no que eu acabaradedizer-lhe e eu não só naminha

habituação,mas também na dose aumentada domeu tónico de

estricnina, que ingerira, instantesantesde lhedizerpara entrar,

quandobateraàportadoquarto.

E chegamosassimao último capítulo,meu caroHastings.O

soporíferoexerceusobreeleasuaacçãonormalequasenadame

afectou.Quandooviadormecidoprofundamente, transferi-opara

a minha cadeira de rodas e conduzi-o para junto da janela,

ocultando-oatrásdosespessoscortinados.EntãochameiCurtiss.

-Ponha-menacama-indiquei.Quandoomeucriadosaiudo

quarto, esperei que tudo se aquietasse. Levantei-me, fui buscar

Nortonàjanelaelevei-oparaoseuquarto.Sórestavautilizar-me

dosouvidoseolhosdomeuqueridoamigoHastings.

Talvezvocênãosetivesseapercebidodequeeuusavachino.

Muitomenos,dequetinhaagoraumbigodefalso.NemGeorgeo

sabe.QuandoodispenseidosserviçoseadmitiCurtiss,dissea

este que queimara, por acidente, as guias do bigode, pelo que

mandarafazerumaréplicaexacta.

Enverguei o roupão multicolor de Norton, levantei uma

madeixadomeucabelogrisalho,caminheiaolongodocorredore

rocei, sonoramente, com as costas damão pela sua porta,meu

Page 261: Agatha christie - cai o pano

amigo.Vocêabriu-a,comolhossonolentos,eviuNortondirigir-se

ao quarto. Ouviu-o fechar a porta à chave, pelo lado de dentro,

nãoéverdade?

Era exactamente isso que eu pretendia de si, em Styles: os

seusolhoseosseusouvidos.

No quarto deNorton, vesti-lhe o roupão, deitei-o na cama e,

com a pequena pistola que eu comprara, em tempos, no

estrangeiro,dei-lheumtironatesta.Devoexplicar-lhe,porém,que

por duas vezes (quando Norton tinha saído de manhã cedo)

mandara Curtiss fazer-me um recado e deixei essa pistolinha

sobreamesa-de-cabeceiradeNorton,paraqueacriadadequarto

notasseasuaexistência.

Depois de disparar a arma, de fraca detonação, quase

inaudívelnessanoitedetrovoada(eaguardeiumlongoribombar

de trovão para fazê-lo, por pura precaução, já que eram muito

frequenteseseprolongaramdurantequasetodaanoite),meti-lhe

achavenaalgibeiradoroupão.

Saídoquartoefecheiaporta,àchave,peloladodefora.

Lembra-sedeeulheterditoquemetinhamroubadoachave,

logonosprimeirosdiasapósaminhachegadaaStyles?

Então,rodeiacadeiraatéaomeuquarto.

Háaindaumaouduascoisasquegostariadeacentuar.

Os crimes de Norton tinham sido perfeitos. O meu, não foi.

Nempretendiquefosse.

A maneira mais fácil... a melhor, de matá-lo, era fazê-lo

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abertamente,descaradamente.Bastava-meter-Ihemetidoaarma

namão,depoisdesfechadootiro,etodaagenteteriaconcluído:

-Oh,opobreNorton!Nãoreparouqueestavacarregada.Que

lamentávelacidente!

Masnãoescolhiessasaída..

Voudizer-lheporquê.

Unicamente,Hastings,porquequisserdesportivo.

Mais oui, desportivo! Tantas vezes você me censurou de o

não ser que, desta vez, resolvi fazer jogo franco consigo.Dei-lhe

umapossibilidadededesvendarasolução,seguindoasregrasdo

jogo;umaoportunidadededescobriraverdade.

Nocasodenãoacreditar,deixe-meenumerar-lheaspistas.

Aschaves.

Você sabe, porque lho disse, que Norton chegara a Styles

depoisdemim.Vocêsabe,porquelhodisse,quemudeidequarto

pouco tempo depois de cá ter chegado. E sabe também, porque

não deixei de dizer-lho, desportivamente, que a chave do meu

quartodesaparecera,peloquetiverademandarfazerumaoutra.

Lembra-se?

Ora,eumudeidequarto,quandoNortonchegou,paraqueele

ocupasseaqueleondeeuestiveraedoqualpossuíaumachave.

Sim,aquedesaparecera.

Portanto,quandovocêseinquiriu,intrigado,quempoderiater

morto Norton, tendo ele a chave do seu quarto na algibeira do

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próprioroupão...arespostacorrectaseria:HerculePoirot,aúnica

pessoaquemandara fazerumduplicadodeumachave,quando

estiveranoutroquarto.

Bastar-lhe-ia terperguntadoemquequartoeuestiveraantes

damudançae logo compreenderiaquea chaveoriginalnão fora

perdida.

Agora, vejamos: o homem que você viu na passagem do

corredor.

Insisti consigonapergunta,quantoaestar,ounão, certode

que foraNortonapessoaqueviranaquelanoite.Você chegoua

inquirir-me se eu estava a sugerir-lhe que não era Norton quem

vocêvira.

Lembra-sede ter-lhechamadoaatençãoparaaalturadele?

Atésublinheiofactodemaisnenhumdosoutroshóspedesserem

daalturadeNortonevocêconcordouquetodososrestanteseram

mais altos. Mas havia um homem, em Styles, tão baixo como

Norton: Hercule Poirot. Na realidade, até mais baixo, mas é

semprefácilaumentarmosaalturadostacõesdossapatosefoio

quefiz.

Você raciocinou sempre sob a impressão de que eu estava

inválido.Eporquê?Apenasporqueeulhodisse.

EudespediraGeorge.Porquê?Foiessaaúltimaindicaçãoque

lhedei:“VáefalecomGeorge.”

Otelo e Clutie John demonstraram-lhe que X era Norton.

Agora,quempoderiatermortoNorton?

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SomenteHerculePoirot.

Desde que tivesse suspeitado disso, tudo o mais se

encaixarianoseudevidolugar.Deveriater-seinformadojuntodos

médicos que me haviam tratado, no Egipto; interrogado o meu

médico assistente de Londres. Qualquer deles lhe afirmaria ser

falsoestareuimpossibilitadodeandar.

Georgetestemunhar-lhe-iausareuumchino.

E devia ter notado que arrasto uma perna, ao andar, ainda

maisdoqueNorton.

Paraterminar,voltemosaoassuntodotirodepistola.

Foi essa a minha única fraqueza. Devê-lo-ia ter atingido na

têmporado ladodireito, jáqueNortonnãoeracanhoto,masnão

pudedominar-me.Eradificultar-lhemuitoapista.Alémdisso,era

contra a minha tendência natural. Não, não o faria. Disparei a

bala, num ponto central, absolutamente simétrico, a meio da

fronte.Ora,vocêsabiaquesoudoenteporsimetria.

Oh, Hastings, Hastings! Só esse pormenor bastaria para

indicar-lheaverdade.

Durante tantos casos criminais em que actuámos juntos, a

simetriafoisempreumainclinaçãominha,lembra-se?

Talvez você tenha suspeitado da verdade. Talvez, ao ler-me

nestemomento,vocêsintaquejáosoubera.

Por outro lado, creio que não. Você é demasiado confiante.

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Tem uma natureza demasiado pura. Que mais posso dizer-lhe?

Penso que tanto Franklin como Judith descobriram a verdade,

masnão lhadisseram.Essesdoisconseguirãoser felizes.Serão

sugados por inúmeros insectos tropicais, padecerão de febres

incómodas (todos nós temos o direito de opinião sobre o que é

umavidaperfeita,nãoseráassim?),masserãofelizes.

E você, meu pobre e solitário Hastings! Ah, o meu coração

sangraporsi,meuqueridoamigo.

Quererá,porumaúltimavez,seguirumconselhodoseuvelho

Poirot?

Logoquetenhalidoestalongacarta,apanheumcomboio,ou

umcarro,ouumasériedeautocarroseváàprocuradeElizabeth

ColequeétambémElizabethLitchfield.Diga-lhequevocêtambém

podia ter feitooque feza irmãdela,Margaret...sóqueestanão

teveaprotegê-laumPoirotvigilante.

Livre-adopesadeloqueapersegueeprove-lhequeopainão

foimortoporMargaret,masporessesimpáticoamigodafamília,o

“honestolago”,StephenNorton.

Porque,meu amigo, não está certo que umamulher com as

suasqualidades,aindanovaemuitoatraente,serecuseaviver,

sóporacreditarqueficou“marcada”.

Diga-lhe isso, meu amigo, e não se esqueça de que, na

verdade,vocêéumhomemqueaindapodedespertarinteressea

umamulher.

Ehbien,não tenhomaisadizer-lhe.Nãosei,Hastings,seo

quefizestájustificado,ounão.Realmente,nãosei.

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Não acredito que um ser humano deva executar a Lei por

suasprópriasmãos...mas,poroutro lado,eusouaLei!Quando

era novo e pertencia à Polícia belga, tive de matar um

desesperadoquesesentaraemcimadeumtelhadoedisparava

sobre quem passava na rua. Num estado de emergência,

proclama-sealeimarcial.

Tirando a vida a Norton, salvei outras vidas... vidas

inocentes.Talvezoquefizestejacerto,porém,eu,quesempreme

mostreitãosegurodosmeusactoseraciocínios,destavez,desta

vez,nãosei...

Adeus,cherami.Afasteipara longedomeuleitoasampolas

de nitrito de amilo. Prefiro agora entregar-me às mãos do bon

Dieu.

Queoseucastigoouperdãosejamrápidos!

Nãotornaremosacaçarjuntos,meuamigo.Foiaquianossa

primeiracaçada...eanossaúltima.

Forambonstempos.

Sim,houverealmentebonstempos...

(FimdomanuscritodeHerculePoirot)

Notafinal:Acabeideler...Aindanãopossoacreditar. ..Mas

ele tem razão. Eu devia ter sabido. Devia ter compreendido a

verdade,quandovioorifíciodabalatãoperfeitamentesimétrico,

ameiodatesta.

Singular (acabo de aperceber-me) o pensamento que se me

incrustounamente,nessamanhã.

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Osinal firmadona frontedeNorton... eracomoamarcade

Caim...

CapitãoArthurHastings

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SobreaAutora

AgathaChristieiniciousuabrilhantecarreiraliteráriacomo

livro “Omisterioso casodeStyles”em1921.Desdeseuprimeiro

romance, revelou uma habilidade fantástica para arquitetar um

mistério policial, engendrando uma série de pistas falsas. Ao

mesmo tempo, demonstrava um notável senso de observação

psicológica.

NascidaemTorquay,na Inglaterra,emsetembrode1891,

Agatha Mary Clarissa Miller era filha de mãe inglesa e pai

americano, que morreu quando ela ainda era bem criança. Na

infânciae juventude,dedicou-secomentusiasmoàleitura,e logo

descobriu seusautorespreferidos.Emvezdehistóriasdeamor,

seu interessevoltava-separaCharlesDickenseConanDoyle,o

criadordeSherlockHolmes.

Seusconhecimentosdequímica,poçõesevenenos,quetêm

papelrelevanteemquasetodasassuastramas,foramadquiridos

quando trabalhou como voluntária em um hospital da Cruz

Vermelha, durante a Primeira Guerra Mundial, ajudando

especialmenteosrefugiadosbelgas.

Dame Agatha sempre foi excelente cozinheira, gostava da

vidadomésticaeodiavaapublicidadeeasocasiõesemquetinha

de aparecer em público. Construía seus mistérios caminhando

pelos parques ou devorando maças em grande quantidade,

durante seus banhos de imersão. Lia muita poesia moderna e

detestava o revólver e o punhal: “Prefiro as mortes por

envenenamento”,costumavadeclarar.

“Aparticipaçãodo leitorêessencial.Eledevedesvendaro

mistério lentamente, como se estivesse sendo envenenado.” Tão

traduzida quanto Shakespeare, com quase quatrocentosmilhões

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deexemplaresvendidos,a“damadocrime”éaresponsávelpela

quarta tiragemmundial de todos os tempos: à sua frente estão

apenasLênin,JúlioVerneeLievTolstói.

Ao falecer, em 1976, deixou uma obra que continua a

mereceraadmiraçãodeleitoresdomundointeiro.