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Agatha christie - o cavalo amarelo

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Page 1: Agatha christie - o cavalo amarelo
Page 2: Agatha christie - o cavalo amarelo

Forças estranhas e perigosas, que aliam as velhas crenças aos novos conhecimentos científicos, são responsáveis por assassinatos a distância, por telepatia. Uma organização particular criminosa dedicada à eliminação de pessoas ricas, que não emprega assassinos profissionais, uma vez que suas vítimas morrem de ”doenças”. Deixando sempre, é claro sobreviventes que lucram com as mortes. E o inspetor Lejeune, um homem de imaginação capaz de considerar as possibilidades menos ortodoxas, consegue chegar so terrível deslindamento de uma trama macabra, que arrebata a fantasia e a imaginação.

Page 3: Agatha christie - o cavalo amarelo

Prefácio

porMarkEasterbrook

Existem duas maneiras, me parece, de encarar o estranho

caso do Cavalo Amarelo. Apesar dos conselhos dos estetas, é

difícilatingir-seasimplicidadeNãosepodesempre“começarpelo

começo,chegaraofimeparar”,pois,àsvezes,nãosesabebem

ondeestáocomeço.

Esta é a dificuldade do historiador. De que ponto deve-se

partir para relatar um fato histórico? Neste caso, podemos

começarnomomentoemqueoPadreGormansaiudaparóquiae

foiatenderumamoribunda.Outalvez,antesdisso,numacerta

noiteemChelsea.

Talvez,comosouoescritordamaiorpartedestanarrativa,é

nestemomentoquedevocomeçarmeurelato.

Page 4: Agatha christie - o cavalo amarelo

Capítulo1

NarrativadeMarkEasterbrook

I

Amáquinadecaféexpressosibilouatrásdemimcomouma

serpente enraivecida; um som sugestivamente sinistro e

demoníaco.Porunsinstantes,fiqueiacismarseosbarulhosda

vida moderna não possuíam esta implicação: o grito

intimidadoramenteraivosodosaviõesajato,cruzandooscéus;o

som vagaroso e ameaçador de um trem subterrâneo,

aproximando-sedeumtúnel;o rumordoscaminhões,sobreas

calçadas, sacudindo as fundações das casas... até os pequenos

ruídosdomésticos,emboraúteis,carregamconsigoumaespécie

de sinal de alarme: lavadores de pratos, geladeiras, panelas de

pressão,aspiradoresdepó.—Cuidado!—parecemmurmurar—

Souumgênioobrigadoaservi-lo,massevocêfalhar...

Ummundoperigoso,semdúvida!

Levanteiaxícaraescaldanteeaspireioagradávelodor.

—Quemais deseja? Que tal um bom sanduíche de bacon

combanana?

Pareceu-me uma combinação esdrúxula. Banana paramim

estava associada aminha infância ou como sobremesa servida

flambéecomrum;baconsemprecomovos.Porémeuestavaem

Chelsea[01],portantodeviaseguiroscostumes locais.Concordei

comasugestãoepedibananacombacon.

Page 5: Agatha christie - o cavalo amarelo

EmboraeuestivessemorandoemChelsea,nosúltimos três

meses,aindaeraumestranhonobairro.

Estava escrevendo um livro sobre arquiteturamongólica, o

quesignificavaqueeupoderiaestarvivendoemqualqueroutro

bairro de Londres. Não precisava participar da vida do bairro,

paraexercerminhaprofissão.Poroutrolado,nãotinhaomenor

interessenavidadavizinhança.Viviaencasuladonomeumundo

particular.

Nestanoite,porém, eu estava emcasa, quando fui atacado

pelarevoltatãocomumaosescritores.

Arquitetura mongólica, imperadores mongóis. O cotidiano

mongol e todos os seus fascinantes problemas tinham se

transformado, para mim, numa montoeira de cinzas. O que

importava tudo isso? Por que escrever sobre este assunto?

Folheei distraidamente o manuscrito, relendo algumas

passagens. Pareceu-meuniformemente fraco,mal escrito e sem

interesse.Quemdisse (HenryFord, talvez),queaHistóriaéum

montãodebesteiras!estavacomarazão.Empurreiomanuscrito

parao lado, levantei-me e olhei o relógio.Quaseonzehorasda

noite. Tentei lembrar-me se tinha jantado... pelomovimento do

meu estômago achei que não. Que tinha almoçado eu me

lembravaperfeitamente, sabia até onomedo restaurante.Mas,

jantado?

Deiumaolhadanageladeira:umrestode línguadefumada

quenãome inspirou.Resolvi sair e eventualmente fuipararno

Bar Café Expresso Luigi, atraído pelas luzes de gás néon

vermelho da porta envidraçada. Agora estava diante de um

sanduíchedebananacombaconenquantoconjeturavasobreas

Page 6: Agatha christie - o cavalo amarelo

sinistras implicações dos barulhos da vida moderna e seus

eventuaisefeitosatmosféricos.

Esses barulhos para mim se relacionavam com minhas

recordaçõesinfantissobrepantomima.Omocinhoaparecendodo

espaçoenvolvidoemfumaça!Alçapõesejanelasquepuxavamas

vítimas para o inferno desafiando a vontade da Fada Boa que

sacudiasuainevitávelvarinhadecondão,recitavaumacansativa

preleçãosobreasvantagensdobemecantavaoúltimosucesso

das paradas de música, que geralmente não tinha a menor

relação com a história. Veio-me a idéia de que o mal era

geralmentemais imponente do que o bem. Omal precisava se

exibir, assustar e desafiar. Era a instabilidade atacando a

estabilidade.No finalaestabilidadesempreacabavatriunfando;

suplantandomesmo a doçura e a chatice da FadaBoa.Débeis

armasquenofinalsempretriunfavam,encerrandoapantomima

com otimismo. Na hora dos agradecimentos, seguindo a

procissãoaFadaBoaprocuravanãoficarnafrente(mastambém

não no fundo) e colocava-se ao lado do vilão diabólico, agora

totalmentemansoedominadopelasforçasdoBem.

Amáquina de café sibilou novamente aomeu ouvido. Pedi

outraxícaraeexamineiobar.Minhairmãviviameacusandode

faltadesensodeobservaçãoedesinteressepelosoutros.—Você

vivenoseumundo—acusava-meela.Tentandocorrigirminhas

faltas, comecei a olhar para os freqüentadores do bar.

Diariamente os jornais publicavam algo sobre osmoradores de

Chelsea e suas excentricidades. Cá estava minha chance de

examinardepertoaveracidadedasnotícias.

Comoobarestavameionoescuro,eunãopodiaverbem.Os

freqüentadores eram todos jovens e membros da chamada

Page 7: Agatha christie - o cavalo amarelo

geraçãoLSD.Asmoças,comseuscabeloseriçadosesuasroupas

estranhas, só me davam a impressão de serem sujas e

superagasalhadas. Umas noites antes, quando eu jantava com

uns amigos, num restaurante, notei uma moça de uns vinte

anos,numamesapróxima.Orestauranteestavaquentemasela

estavausandouma suéter de lã amarela, saia de veludopreta,

meias de lã e durante toda a refeição o suor escorria pelo seu

rosto;cheiravaalãensopadadesuorecabelossujos.

Meusamigosacharamqueelaeramuitoatraente,masnão

para mim. Minha única vontade era oferecer-lhe um bom

sabonete,antesdeatirá-lanumabanheiradeáguaquente.Acho

que este pequeno parêntese serve para demonstrar quanto sou

quadrado! Talvez o fato de eu ter vivido no estrangeiro tantos

anos, vendo as belas indianas com seus saris coloridos e seus

cabeloscheirosos,tenhainfluenciadomeurelacionamentocoma

juventudeatual.

Fuiacordadodessespensamentospelobarulho.Duasjovens,

namesa ao lado, começarama brigar.Os dois acompanhantes

tentavamacalmá-las,massemsucesso.Derepente,elasestavam

aosgritos.Umadelas,aloura,esbofeteouaruiva;estaarrancou

a outra do lugar e a briga degenerou num quebra-quebra

histéricoeviolento.Asduaspareciampeixeirasbrigando.

Oporquêdabriganãoentendi.

Asoutrasmesasparticipavamvaiandoouaplaudindo.

—Viva!Muitobem!Dá-lhe!Agora!

O dono do bar, que presumi fosse o italiano Luigi, saiu de

trásdobalcãoparaapartaraluta.

Page 8: Agatha christie - o cavalo amarelo

— Vamos com isso! — gritou com seu puro sotaque

Cockney[02].—Daquiapoucoapolíciabaixaaqui.Parem!

Alouraaestaalturaestavaagarradanacabeleiradaruiva.

—Vocênãopassadeumacadelanocio!

—Cadelaévocê!

Luigi e os dois acompanhantes conseguiram separar as

litigantes.

Via-se nas mãos da loura um enorme tufo de cabelos

vermelhosquefoiatiradoaochãocomdesprezo.

A porta da rua foi aberta e a Autoridade, toda de azul,

entrou.

—O que está acontecendo aqui? Imediatamente formou-se

umafrenteunidacontraaLei.

—Estávamosbrincando—disseumdosacompanhantes.

— Era só brincadeira — interveio o proprietário, enquanto

empurrava com o pé o tufo de cabelos ruivos para baixo do

balcão.Aslutadorastrocavamsorrisosdeamabilidade.

Opolicialnãopareceuconvencido.

—Estávamosdesaída—dissealoura.—Venha,Doug.

Por coincidência estavam todos de saída. O guarda, sem

sorrir,viu-ospartir,insinuandocomoolharque,napróximavez,

nãoseriatãoleniente.Emseguidaretirou-setambém.

Ocompanheirodaruivapagouaconta.

Page 9: Agatha christie - o cavalo amarelo

—Vocêestábem?—perguntouLuigi,paraaruiva,enquanto

esta amarrava um lenço na cabeça. — Lou levou a melhor,

arrancandoosseuscachos!

—Nãodoeu—respondeuamoça.—Desculpeaconfusão,

Luigi—acrescentouela,sorrindo.

Comasaídadocasalobarficoupraticamentevazio.Procurei

unstrocadosnobolso.

—Ela émuitoboazinha—explicouLuigi, apanhandouma

vassouraparavarrerotufodecabeloeoscacosdevidro.

—Devetersentidoumadorhorrível—comentei,pensando

nochumaçocaídoaochão.

— Se fosse comigo eu teria gritado atéme acabar— disse

Luigi.—MasTommyémuitobacana...

—Conhece-abem?

— Ela vem aqui todas as noites. Chama-se Thomasina

Tuckerton,masaquiéconhecidaporTommy.Ricaaténãopoder

mais. O pai deixou uma fortuna para ela. Resultado: elamora

aquipertonumquartinhocobertodepercevejoseandacomeste

pessoal mulambento. Todos ricos, podiam morar onde

quisessem, mas não, o “quente” é viver num cortiço. Vá se

entenderumacoisadessas!

—Osenhornãofariaisso?

—Eu!?Nãosou tão louco—respondeuLuigi.—Só faturo

nascostasdeles.

Levantei-meparasair.

Page 10: Agatha christie - o cavalo amarelo

—Porquefoiabriga?—perguntei.

— Tommy conquistou o namorado da outra. Ele não vale

umabriga.

— A outra moça não parece ser da mesma opinião —

observei.

— Ah! Lou é muito romântica — disse Luigi, num tom

benevolente.

—Queromance!—quasecomenteiantesdemeretirar.

II

Umasemanadepois,maisoumenos,nacolunadeóbitosdo

jornal,eu liaseguintenota:“TUCKERTON—Dia2deoutubro

noHospitaldeFallowfield.ThomasinaAnn,20anos,filhaúnica

do falecido Thomas Tuckerton. O féretro sairá da capela do

Hospital.Pede-senãoenviarfloresnemcoroas.”

NadadefloresparaapobreTommyeadeusvidaboêmiaem

Chelsea.Sentiumagrandepenaportodasessasmoçasperdidas.

Mas me perguntei se tinha motivo para sentir pena. Como

poderiasaberseavidadelatinhasidodesperdiçada?Quemsabe

nãoseriaminhavidadepesquisador,mergulhadonoslivros,fora

domundo,queeradesperdiçada?Averdadeéqueeunãoandava

àcatadesensaçõesnovas.Masseráquenãodeveriaandar?Um

novoenfoquesobreminhavidaqueeudeveriaexaminarmelhor.

EsquecideTommyTuckertonevolteiminhaatençãoparaas

Page 11: Agatha christie - o cavalo amarelo

cartasquehaviarecebido.

Uma delas, daminha prima Rhoda Despard, pedia-me um

favor.Agarrei-meàincumbência,poisnãoestavacomvontadede

trabalhar,adiandominhapesquisaparamaistarde.

Pegueiumtáxiedirigi-mepáraacasadeumaamiga,aSra.

AriadneOliver,famosaescritoradenovelaspoliciais.

Milly,aempregadaeeficienteguardiãdaSra.Oliver,abriua

porta.Ao vê-la levantei as sobrancelhas comoqueperguntando

emquehumorseencontravaadonadacasa.

—Émelhor o senhor subir, Sr.Mark—disse ela.—Está

comumhumordaqueles!Talvezosenhorconsigamelhorarsua

disposição.

Subi os dois lances de escada, bati na porta e entrei sem

esperar pela resposta.O escritório da Sra.Oliver era uma sala

espaçosa, toda forrada de papel de parede, representando

pássarosexóticos.ASra.Oliver,numestadopré-esquizofrênico,

passeava de um lado para outro, resmungando. Deu-me um

rápido olhar, desinteressada, e continuou a andar, abrindo e

fechando os olhos.De vez em quando olhava pela janela ou se

apoiava na parede, sofrendo o que parecia ser um grande

espasmodeagonia.

—Mas, por que— perguntou ela ao universo— o imbecil

nãodizlogoqueviuacacatua?Porquê?Nãopodiadeixardetê-

la visto! Se ele não falar nela, a história perde o sentido. Deve

haverumasaída... devehaverumasaída...Emseguida, aSra.

Oliver gemeu, passou os dedos sobre os cabelos grisalhos e

agarrou um punhado deles com energia. De repente, como se

Page 12: Agatha christie - o cavalo amarelo

estivesseme vendo naquele instante, disse:—Alô,Mark! Sabe

queestouenlouquecendo?

Aslamúrias,porém,nãotinhamacabado.

—EMonica?Quantomaisfaçoelaficarboamaisirritantese

torna...umaperfeitaidiota...burra...Monica?Estenomenãolhe

vai bem. Que tal Mary? Será que faria alguma diferença? Ou

Joan?Éumnomemuitocomum.Annetambém.Susan?Játive

umaSusan.Lucia?Lucia!PossovisualizarumaLucia...cabelos

ruivos,colroulé,meiaspretas...Porquenão?

Estemomento de satisfação foi rapidamente eclipsado pelo

problema da cacatua. A Sra. Oliver voltou a andar pela sala,

pegandocoisasaesmodamesaecolocando-asnoslugaresmais

incríveis.Depoisguardoucuidadosamenteosóculos,numestojo

demadrepérola, junto comum leque chinês, e deu um grande

suspiro.

—Quebomquevocêveio!

—Muitoobrigado.

— Podia ser uma outra pessoa, uma tola qualquer que

precisadaminhapresençanumbailea fantasia,ouumsenhor

quetratedosegurodeMilly(aliás,nãoconsigofazê-laguardaras

apólicesnumlugarsó)ouobombeiro...masistojáseriademais,

nãoacha?Ouquemsabeumjornalistaquerendoumaentrevista,

só para poder perguntar: — O que fez a senhora dedicar-se à

literatura? Quantos livros escreveu? Quanto ganha por mês?

Geralmentenãoseiresponderestasperguntaseficocomcarade

idiota. Hoje naturalmente não tem importância, porque estou

enlouquecendocomestamalditacacatua.

Page 13: Agatha christie - o cavalo amarelo

—Querqueeuváembora?—perguntei.

—Não,fique.Precisomedistrair.

—Aceiteiesteelogiodúbio.

—Querumcigarro?—perguntou,tentandoserhospitaleira.

—Devoterummaçoporaí.Olheembaixodatampadamáquina

deescrever...

—Eutrouxecigarros,obrigado.Aceitaum?Ah!Éverdade,a

senhoranãofuma.

—Nembebo—disseaSra.Oliver.—Noquefaçomuitomal.

Eu queria ser como os detetives dos policiais americanos, que

vivemcomgarrafasdeuísqueembaixodacama;parecequeéo

suficiente para solucionar todos os problemas. Eu não acho

possível uma pessoa cometer um crime e não ser preso. Na

minha opinião, assim que se comete um crime todas as pistas

apontamparaoculpado.

—Nãoéissoqueasenhoracontaaosseusleitores.

— Nem sempre — disse a Sra. Oliver. — A parte do

assassinatoéfácil,odifíciléencobriraspistas.Oculpadopassa

abrilharquenemgásnéon.

— Quando eu leio um livro seu quase nunca acerto o

assassino.

— E o que isto me custa! — sorriu a Sra. Oliver,

amargamente.—Paracomeçar,nãoénaturalquecincoouseis

pessoasestejamnolocaldocrimequandoBéassassinado;além

domais,paraocúmulodascoincidências, todasessaspessoas

têmummotivoparaquerereliminarB...anãoserqueBsejaum

Page 14: Agatha christie - o cavalo amarelo

homemtãodesagradávelquequalquerumgostariadeseverlivre

dele... mas neste caso ninguém vai se preocupar em achar o

assassinoesimsoltarumprofundosuspirodealívio.

— Compreendo o seu problema — disse eu. — Mas se já

resolveutantoscasoscomplicados,vaisercapazderesolvereste

também.

— É o que eu vivo me dizendo, mas não acredito e o

resultado é que vivo em eterna agonia— gemeu a Sra. Oliver,

dandomaisumapuxadelanoscabelos.

—Parecomisso!—disseeu.—Vaiacabararrancandoum

tufopelaraiz!

—Nãodigabobagem—respondeuaSra.Oliver.—Cabelo

nãosaiassim,anãoserquandoeutivesarampo,aosquatorze

anos,eardiadefebre.Caiuumaporçãodecabelo,bemaquida

frente.Fiqueimortadevergonha.Demorouunsseismesespara

crescer de novo. É uma experiência horrível para umamulher.

Ainda ontem pensei nisto quando fui visitarMary Delafontaine

nohospital.O cabelodela está caindoaos chumaços; eladisse

quequandoficarboavaiterquecomprarumaperuca.Achoque

depoisdossessentaocabelonãocrescemais.

—Outrodiaviumagarotaarrancarocabelodaoutrapela

raiz— disse eu, orgulhoso de poder relatar um acontecimento

inédito, além de demonstrar como eu estava participando

ativamentedomundo.

—Porondevocêtemandado?

—UmcaféemChelsea.

Page 15: Agatha christie - o cavalo amarelo

— Ah! Parece que tudo de insólito acontece em Chelsea.

Beatniks,Sputniks,caretasquadrados...nãoescrevosobreeles

porquetenhomedodeusarasexpressõeserradas.Émaisseguro

escreversobreoqueeusei.

—Porexemplo?

— Turistas veraneando, cruzeiros pelo Caribe, hospitais,

paróquias,vendedoras,festivaisdemúsica,comitêsdesenhoras,

jovensquepedemcaronaparaconheceromundo...

Elaparouuminstanteparatomarfôlego.

—Jámepareceosuficiente—eudisse.

—Mesmoassimvocêbemquepodiamelevaraumbarem

Chelsea...paraalargarmeushorizontes—disseaSra.Oliver.

—Quandoasenhoraquiser.Hoje?

—Hojenãoposso.Estouocupadaescrevendooupreocupada

porquenãoconsigoescrever;éapiorcoisaemliteratura,embora

tudonelasejaterrível,anãoserquandovemumaidéiaquevocê

acha que vai funcionar e fica louca enquanto não sentar na

máquina.Diga-meMark, vocêachapossívelmatarpor controle

remoto?

— Como assim? Apertando um botão, emitindo um raio

mortalradioativo?

—Não,não,nadadeficçãocientífica—disseaSra.Oliver.—

Eumerefiroàmagianegra.

—Bonecosdeceracheiosdealfinetes?

—Bonecosdeceranãoseusammais—disseaSra.Oliver

Page 16: Agatha christie - o cavalo amarelo

com desprezo. — Não se pode negar que coisas estranhas

acontecemnaÁfricaenasCaraíbas.Éoquedizem.Contamque

certosnativosseenroscamemorrem...VoodooouJoojoo...Você

sabeoqueeuquerodizer...

ExpliqueiàSra.Oliverqueamaiorpartedascoisas,hojeem

dia,éatribuídaaopoderdesugestão. Informa-seaonativoque

ele foi condenado pelo pajé e o subconsciente completa o

trabalho.

ASra.Oliverdeuumagargalhada.

— Se alguém viesse me dar esta informação eu ficaria

encantadaesósobreviveriaparadesapontá-lo.

— A senhora tem séculos de ceticismo no seu sangue

ocidental.Nãopossuiapredisposiçãonecessária.

—Masvocêachaqueistoépossível?

—Nãoconheçooassuntoprofundamenteapontodediscuti-

lo. Por que está pensando nisso? Sua última obra-prima vai

chamar-seMorteporSugestão?

— De jeito algum. Sou fã do arsênico e do veneno contra

ratos.Ouumaboa faca.Nãosimpatizocomrevólver,porqueas

armasdefogosãogeralmenteimprevisíveis.Afinalvocênãoveio

aquiparadiscutirsobremeuslivros.

—Paradizeraverdadevimtrazerumrecadodaminhaprima

Rhoda Despard. Ela está organizando uma quermesse para a

igreja...

—Nemmefalenisso—interrompeuaSra.Oliver.—Sabeo

queaconteceunaúltimaquermesseaqueeu fui?Organizaram

Page 17: Agatha christie - o cavalo amarelo

um jogo chamado Caça ao Assassino e acabaram descobrindo

umcadáver.Atéhojeaindanãomerecupereidosusto!

—Nãovaiternadadisto,asenhoravaisentarnumabarraca

evenderseuslivrosautografados.

—Ah!Bom,issojáéoutrahistória.Nãovouterqueabrira

quermesse,cortandoafitasimbólica?Oufazerdiscursos?

Garantiquenão.

— Além disso será apenas por uma ou duas horas no

máximo — acrescentei, encorajando-a. — Depois deve ter um

jogodebolaouumbailecampestreou...

ASra.Oliverinterrompeu-mecomumgritoagudo.

—Achei!—exclamou.—Achei!Eleassisteatudodajanela,

ojogo,agritaria,enaconfusãoesquecedemencionaracacatua!

Meuquerido,quebomquevocêveio.Foiumavisitamaravilhosa!

—Eunão...

—Claroquenão,maseuentendoeéobastante—dissea

Sra.Oliver.—Éumahistóriamuitocomplicadaeeunãoposso

perder tempo explicando. Apesar de adorar sua companhia

prefiroqueagoraváparacasa...

—Eaquermesse?

—Voupensarnocaso.Agoranãomeamolecombobagens.

Ondetereipostomeusóculos?Afacilidadequeascoisastêmde

desaparecer...

Page 18: Agatha christie - o cavalo amarelo

Capítulo2

I

A Sra. Gerahty abriu a porta da sacristia com a habitual

eficiência;ofatodeouviracampainhaeconseqüentementelutar

contraaportaemperradaeraumdesafiodoqualelasempresaía

vencedora.

—Oque quer?—perguntoumal-humorada aummenino,

igualamuitosoutros,queestavaparadonaporta.Pareciaestar

resfriadopoisfungavaquandofalava.

—Éaquiacasadopadre?

—EstáprocurandooPadreGorman?

—Estão.

—Quem,onde,eporquê?

— Na Rua Benthal, 23. Uma mulher que está morrendo

pediu um padre. Quem me mandou foi a Sra. Coppins, a

senhoria.

ASra.Gerahtydisseaomeninoparaesperarefoichamaro

padre.

— Sou o Padre Gorman — disse o velho religioso. — Rua

Benthal,é?Pertodostrilhosdaestação?

—Élámesmo.

Opadreapanhouumapastaesaiucomomenino.

Page 19: Agatha christie - o cavalo amarelo

—VocêfalounaSra.Coppins?

— É a senhoria. Parece que aluga quartos. Uma das

pensionistas é que chamou pelo senhor. Acho que se chama

Davis...

—Davis?Nãoconheço.Porqueserá?

—Elaécatólica,sim.Dissequeumoutropadrenãoservia...

O padre fez um sinal de assentimento com a cabeça.

Rapidamente atingiram a Rua Benthal; o menino indicou uma

dascasas.

—Éali.

—Vocênãovem?

—Eunãomoroaqui.SóganheiumagorjetadaSra.Coppins

parairchamarosenhor.

—Ah!Comoéseunome?

—MikePotter.

—Obrigado,Mike.

— Não tem de quê— respondeu omenino, que se retirou

assobiando.

Apresençadamortenãopareciaimpressioná-lo.

Umamulherdecabelosvermelhos,aSra.Coppins,abriua

portaerecebeuopadre.

—Entre,entre—dissesementusiasmo.—Achoqueelaestá

péssima. Devia estar no hospital e não aqui. Já chamei a

Page 20: Agatha christie - o cavalo amarelo

ambulância mas sabe Deus quando pretendem chegar. Meu

cunhadoquandoquebrouapernatevequeesperarseishoras.É

umabsurdo!Medicinasocializada!Levamodinheiromasquando

seprecisadeles...

Enquanto falava, conduzia o padre, pelas escadas, até o

segundoandar.

—Oqueelatem?

— Uma gripe muito forte. Quando parecia bem melhor

resolveu sair. Ontem, quando voltou, parecia um cadáver. Foi

diretoparacamasemcomer.Tambémnãoqueriamédico.Hoje

de manhã encontrei-a ardendo de febre. Acho que pegou os

pulmões.

—Pneumonia—disseopadre.

ASra.Coppins, quase sem fôlego pelo esforço de galgar as

escadas, fez um ruído semelhante a um apito para expressar

concordância. Abriu a porta e postou-se de lado, para dar

entradaaopadre,gritandoparaadoente:

—Nãoeraopadrequevocêqueria?Cáestáele!Agoratudo

vaidarcerto.

Comestealegreprognósticoretirou-se.

Opadreentrounumquartomuitobemarrumado,mobiliado

àvitoriana.Sobreacama,pertoda janela,umamulhervirouo

rostocomdificuldade.Opadrepercebeulogoqueestavaprestes

amorrer.

— O senhor veio... não tenho tempo — disse ela, lutando

contraafaltadear.

Page 21: Agatha christie - o cavalo amarelo

— A maldade, a maldade... preciso... não posso morrer

assim...confessar...confessar...meuspecados.

Os olhos da doente reviraram e por uns instantes ficaram

semicerrados. Um cantochão monocórdico escapou de seus

lábios.

OpadreGormanaproximou-sedacama.Falou,comosempre

fazia,asmesmas frasesdeautoridade,apoio, fé e esperança.A

pazinvadiuoquarto;dissipou-seaagoniadorostotorturado.

Assimqueterminouaextrema-unçãoamoribundafalou.

—Deveimpedi-los...impedi-los...osenhorconseguirá.

—Fareitudooquefornecessário.Confieemmim—disseo

padrenumtomconfiante.

AambulânciachegouefoirecebidapelaSra.Coppins.

— Como sempre tarde demais! — disse ela num tom

triunfante.—Elajámorreu!

II

OpadreGormanvoltouparacasa,enfrentandoaescuridão.

O nevoeiro crescia de densidade a cadaminuto. Ele parou um

momento: “Que história impressionante”, pensou. “Seria delírio

da pobre mulher? Ou uma confissão motivada pela febre?” É

claro que existia um fundo de verdade. De qualquer maneira

seriaconvenienteanotarosnomesenquantoestavamfrescosna

memória.Olhouorelógio,epercebeuquejáestavaatrasadopara

areuniãocomosassociadosdeSãoFrancisco.

Entrounumbar,pediuumcaféesentou-se.Apalpouobolso

Page 22: Agatha christie - o cavalo amarelo

interno da batina. — Ah! A Sra. Gerathy havia esquecido de

costurarobolso.Comosemprealiás!Acadernetadenotas,um

lápisealgumasmoedastinhamescorregadoparadentrodoforro.

Conseguiuapanharolápisealgumasmoedas,masacaderneta,

apesar dos esforços, foi impossível. Quando o café chegou ele

pediuumpedaçodepapel.

—Esteserve?

Eraumpedaçodepapeldeembrulho.Opadreagradeceue

começouaescreverunsnomes—oimportanteeranãoesquecer

osnomes,aindamaiselequenãoconseguiaguardaronomede

ninguém.

A porta abriu-se e três rapazes entraram, fazendo uma

grandealgazarra.

O padre terminou a lista; dobrou o papel e ia colocá-lo no

bolso quando lembrou-se do furo. Resolveu colocar dentro do

sapato,comoeraseuhábito.

Um homem entrou e sentou-se num canto. O padre

bebericoumaisunsgolpesdoralocafé,pediuacontaesaiu.

O homem que acabara de entrar pareceu mudar de idéia.

Olhou o relógio como se tivesse perdido a hora e saiu

rapidamente.

O nevoeiro aumentou de densidade. O padre apressou o

passo;comoconheciabemazona,resolveutomarumatalhoque

encurtaria o caminho, ou talvez ele tivesse ouvido passos que

pareciamsegui-lo.Mas,porquê?

Apauladaoapanhoudesprevenido.Elecambaleouecaiu...

Page 23: Agatha christie - o cavalo amarelo

III

O Dr. Corrigan entrou na sala do Inspetor Lejeune

assobiando.

—Jáfizopadre—disse.

—Eoresultado?

—Voudeixarostermostécnicosdelado.Umaboapaulada.

Morreunahora.Oassassinoporémquistercerteza,porissofez

aqueleestrago.

—Nemfale—comentouLejeune.

O Inspetor era um homem forte, de olhos verdes e cabelos

castanhos. Apesar de parecer calmo, seus gestos, as vezes

bruscos,revelavamsuaascendênciahunguenote.

— Não havia necessidade de ter tanta certeza se fosse um

roubo.

—Efoiumroubo?—perguntouomédico.

— É o que se suspeita. Os bolsos revirados e o forro da

batinarasgado.

— Não deviam estar contando commuita coisa — disse o

médico.— Geralmente esses padres são pobres como ratos de

igreja.

— Esmagaram a cabeça do homem — disse Lejeune. —

Gostariadesaberporquê!

— Por dois motivos — disse Corrigan. — Primeiro: um

delinqüente tarado que gosta de ver sangue, espécie que

Page 24: Agatha christie - o cavalo amarelo

infelizmenteproliferaatualmente.

—Esegundo?

Omédicodeudeombros.

—Alguémtinharaivadopadre.Nãoépossível?

Lejeunesacudiuacabeça.

—Dejeitoalgum.Opadreeramuitoqueridonobairro,não

tinhainimigos.

Umassaltotambémnãopareceprovável,anãoserque...

— Não me diga que a Polícia já tem uma pista — disse

Corrigan.

—Nãolevaramumacoisaqueeleguardounosapato.

Corriganassoviou.

—Parecehistóriadeespionagem.

Lejeunesorriu.

—Émaissimplestalvez.Eleestavacomumbolsodabatina

furado.OsargentoPineconversoucomagovernantaqueparece

sermeiorelaxada;nãoremendavaasroupasdelecomodevia,ela

mesmaconcordou.Paranãoperderascoisasopadretinhapor

hábitoenfiardinheirooucertosbilhetesnossapatos.

—Masoassassinonãosabiadisso?

—Nempensounisso.Seéqueoqueeleestavaprocurando

eraaquelepedaçodepapelenãoalgunstrocadosparaoônibus.

Page 25: Agatha christie - o cavalo amarelo

—Oqueestáescritonotalpapel?

Lejeunetirouumpedaçodepapeldagaveta.

—Umalistadenomes!

Corriganexaminoualistacomcuriosidade.

ORMEROD

SANDFORD

PARKINSON

HESKETH-DUBOIS

SHAW

HARMONDSWORTH

TUCKERTON

CORRIGAN?

DELAFONTAINE?

—Vejoquemeusobrenomeestánalista—disseomédico,

levantandoassobrancelhas.

— Estes nomes significam alguma coisa para você? —

perguntouLejeune.

—Não.

—VocênãoconheceuopadreGorman?

—Não.

—Entãonãovaipodernosajudar.

Page 26: Agatha christie - o cavalo amarelo

—Temalgumaidéiasobreosignificadodestalista?

—UmmeninochamouopadreGorman,às7horasdanoite,

pedindoqueelefosseatenderumamulherqueestavamorrendo

equequeriaseconfessar.Opadrefoi.

—Masondeestavaessamulher?

— Nós soubemos logo. Rua Benthal 23, na casa da Sra.

Coppins. A moribunda chamava-se Davis. O padre chegou lá

maisoumenosas7h15meficoucomamulherumameiahora.

Ela morreu, assim que a ambulância chegou para levá-la ao

hospital.

—Sei.

—Emseguidaopadrefoiaumcafé.Umbardecente,pobre

epoucofreqüentado.Opadrepediuumcafé,mexeunosbolsose

certamentenãoencontrouoqueprecisavapoispediuumpedaço

de papel ao dono. Este pedaço de papel — disse Lejeune,

apontandocomodedo.

—Edepois?

—QuandoTonytrouxeocaféopadrejáestavaescrevendo.

Logo depois saiu, deixando a xícara quase cheia (Com certa

razão, diga-se de passagem). Antes porém deve ter colocado a

listanosapato.

—Quemmaisestavanobar?

— Três rapazes e um senhor que saiu sem pedir coisa

alguma.

—Seráqueeleseguiuopadre?

Page 27: Agatha christie - o cavalo amarelo

— Talvez. Tony, o proprietário, não o viu sair, nem notou

comoeleera.Fezumadescriçãovaga:umsujeitorespeitávelcom

umacaracomum,parecidocomtodoomundo;estaturamediana

evestidodeazul-marinhooumarrom.Nadanoslevaacrerque

tenha sido ele. Porémnão temos certeza.Estamospedindoque

as pessoas que viram o padre, àquela hora, se comuniquem

conosco.Porenquantonãoapareceuninguém,masaindaécedo.

Duas pessoas já vieram: umamulher e um farmacêutico, aliás

voufalarcomelesagora.Doisgarotinhosencontraramocaderno

do padre às 8h 15m, caído num beco perto dos trilhos da

estação.Orestovocêjásabe.

Corriganassentiucomacabeça.

—Queachadisso?—perguntou,apontandoparaalista.

—Achoqueéfundamental.

—Amulher,antesdemorrer,deuestalistadenomesparao

padre.Eleosanotouassimquesaiucommedodeesquecer.Mas

seráqueelepoderiarevelaralgocontadosobconfissão?

— Mas se a morta quisesse que seus segredos fossem

revelados? — perguntou Lejeune. — E se estes nomes têm

algumaligaçãocomumachantagem?

—Éoquevocêimagina?

—Não imaginonada, por enquanto.Éumahipótese: estas

pessoas estavam sendo achacadas. A falecida poderia ser uma

chantagista ou uma conivente. Quis confessar a fim de obter

perdão. O padre ficou encarregado de impedir que isto

continuasse.

Page 28: Agatha christie - o cavalo amarelo

—Edaí?

—Orestosãoconjeturas—respondeuLejeune.—Podiaser

um caso de extorsão e alguém não quisesse que o pagamento

fosse suspenso. Esta pessoa sabia que a Sra. Davis estava à

morteeiriaquererseconfessar.Oresultadofoieste.

— Por que será — perguntou Corrigan — que existe um

pontodeinterrogaçãonosdoisúltimosnomes?

—Talvezopadretivessealgumadúvidasobreeles...

—Porexemplo:MulliganemvezdeCorrigan?—perguntouo

médico,sorrindo.

—Podeser.Agora,comumnomecomoDelafontainenãohá

jeito. É o tipo do nome que a gente guarda ou esquece. O

estranho é que não existe nenhum telefone — continuou

Corrigan,examinandoa lista.—Parkinsonéumnomecomum,

Sandfordtambém,Hesketh-Dubois.Nãodeveexistirumafamília

muitonumerosacomestesobrenome.

Omédicoapanhouocatálogodeassinantes.

— J... H... Hesketh... Sra. John... Sir Isidore... Hasketh-

Dubois, Lady. Praça Ellesmere, 49. Que tal darmos um

telefonema?

—Dizendooquê?

—Nahoraagentevê—respondeuCorrigan.

—Ligue—disseLejeune.

—Como?

Page 29: Agatha christie - o cavalo amarelo

—Ligue—repetiuLejeune,—nãofaçaestacaradeespanto.

Lejeuneapanhouotelefoneepediuumalinhaexterna.

—Qualéonúmero?—perguntou.

—Grovesnor64578.

Lejeunerepetiuonúmeroàtelefonistaepassouoaparelhoa

Corrigan.

—Divirta-se—recomendouLejeune.

Espantado,Corrigancolocouotelefoneaoouvido.Depoisde

tocarporunsinstantesumavozofegantedemulheratendeu.

—Alô,Grovesnor64578.

—ÉaresidênciadeLadyHesketh-Dubois?

—Bem...é...

ODr.Corrigannãotinhatempoparahesitações.

—Possofalarcomela?

—Demaneiraalguma.Elamorreuemabril.

—Oh!—exclamouCorrigan, ignorandoa interlocutoraque

perguntavaquemestavanoaparelho.

DesligoucuidadosamenteeencarouLejeunecomfrieza.

—Jáseiporquevocêqueriaqueeufalassecomela.

Lejeunesorriumaliciosamente.

—Nãopodemosnosdaraoluxodenegligenciaroóbvio.

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—Emabril—disseCorrigan, pensativamente.—Há cinco

meses que ela não se preocupa com chantagem ou coisas

parecidas.Elaporacasocometeusuicídio?

—Não,morreuvitimadaporumtumorcerebral.

— Vamos dar outra olhada na lista — disse Corrigan

desanimado.

Lejeunesuspirou.

— Não sabemos se esta lista tem alguma relação com o

assassinatodopadre.Elepodetersidorealmentevítimadeum

delinqüentequesóapanharemossetivermossorte.

—Vocêseimportaseeutirarumacópiadestalista?

—Não.Desejo-lhesorte!

— Você diz isto porque acha que eu não vou conseguir

descobrir mais nada do que vocês já descobriram. Vou me

concentrarnonomeCorrigan.Senhor,senhoraousenhoritacom

umgrandepontodeinterrogação.

Page 31: Agatha christie - o cavalo amarelo

Capítulo3

I

—Ora,Sr.Lejeune,nãoseimaisoquedizer!Jáfaleihoras

comosargento.NãoconheciabemaSra.Davis,nãoseideonde

veio.Morouaquiuns6meses,pagavaoaluguelemdiaeparecia

umapessoadistinta.Nãoentendooqueosenhorquermaisde

mim.

A Sra. Coppins parou um instante para tomar fôlego,

encarandooInspetorcomimpaciência.Este,porsuavez,sorriu

commelancoliacomoseestivessepedindodesculpas.

—Não é que eunãoqueira ajudar— falouaSra.Coppins

maiscalma.

— Obrigado. É da sua ajuda que nós precisamos. As

mulheres geralmente, por instinto, percebemmais as coisas do

queoshomens.

Elamordeuaisca.

— Ah! — exclamou a Sra. Coppins — se meu marido

estivesse aqui para ouvi-lo. Achava que eu tinha muita

imaginação,queviviainventandocoisas.Enamaioriadasvezes

eutinharazão.

—Por isso gostaria da sua opinião sobre a Sra.Davis. Ela

erainfeliz,porexemplo?

— Não, não creio. Muito trabalhadora, na minha opinião.

Metódica, como se tivesse construído a vida e agisse de acordo

Page 32: Agatha christie - o cavalo amarelo

comumesquema.Achoque trabalhavanumadessas firmasde

opiniãopública.Essasquevãodecasaemcasa,perguntandoo

saboneteouafarinhaqueagenteusa,quantoseganhapormês

etc.Tipodonegócioparamexeriqueiros!Atéhojenãoentendipor

que o governo ou as fábricas se interessam tanto pela vida

particular das pessoas. A conclusão desses inquéritos é

simplesmente uma resposta que todo o mundo já sabe. Mas

enfim, é a moda hoje em dia! Acho que a Sra. Davis

desempenhava bem esta função; era uma pessoa agradável e

profissional.

—Poracasoasenhoranãosabeonomedafirmaemqueela

trabalhava?

—Não.Nãosei.

—Elaalgumavezfalounosparentes?

—Não.Eusempreacheique fosseviúvaháanos.Umavez

elafalounomaridoinválidomaseunãoentreiemdetalhes.

—Dequelugarelaera?

—AchoquedoNorte.

TenhocertezadequenãoeradeLondres.

—Nãohaviaalgodemisteriosonavidadela?

LejeunehesitouantesdeperguntarcommedodequeaSra.

Coppinsfossesugestionável...ela,porém,nãoaproveitouadeixa.

—Não.Eraumamulheratébastantecomum.Aúnicacoisa

quemeintrigavaeraamala,deboaqualidade,meiousada,com

as iniciais pintadas por cima de outras. J.D... Jessie Davis. O

Page 33: Agatha christie - o cavalo amarelo

jota estavapintadopor cimadeumagáoudeuma.Na época

nãodeimuitabolaparaisso;afinalelapodiatercompradouma

mala de segundamão e naturalmente alterado as iniciais. Era

tudooquetinhanomundo,aquelamala!

Lejeune sabia disso e achou estranho que uma mulher

pudesse ter tão poucos objetos pessoais. Não encontraram

cartas, fotografias, cartões de identidade, talões de cheques.As

roupaseraboasenovas,parausodiário.

—Elapareciasatisfeita?

—Achoquesim.

Lejeunenotouumtomdedúvidanaresposta.

—Achamesmo?

—Nãoerabemdaminhaconta,nãoé?Euachavaqueela

ganhava bem, tinha um bom emprego, portanto devia estar

satisfeita. Não era umamulher esfuziante. É claro que quando

elaficoudoente...

—Oquehouve?

—Assimqueapareceuoresfriadoelapareceuassustada.Ia

transtornar-lheavida,disse-meela,teriaquedesmarcartantos

compromissos...Bem,masumagripeéumagripe,agentenão

podefazerdecontaquenãoestáacontecendonada.Elafoipara

a camacomumchá eumcomprimido.Eu recomendei que ela

chamasse ummédicomas não houve jeito. Ela respondeu que

para curar uma gripe bastava ficar de repouso, se cobrir e

pronto.Alémdisso, recomendouquenãochegassepertosenão

quisesseficardoentetambém.Assimqueelamelhorouumpouco

Page 34: Agatha christie - o cavalo amarelo

cozinhei umas coisinhas para ela. Caldo quente com torradas,

arroz doce, coisas leves. Ela ficoumuito abatida por causa da

febre,comotodoomundofica...osenhorsabe,aqueladepressão

quedáquandoacabaagripe.Elaficavasentadajuntodalareira

emedizia:—Seaomenosagentenãopensassetanto!Nãogosto

deficarparada,pensando.Étãodeprimente!

LejeunecontinuouolhandofixamenteparaaSra.Coppins.

— Emprestei umas revistas para ela, mas coisa alguma

pareciadistraí-la.Umdiaeladisse:—Setodasascoisasnãosão

o que parecem ser é melhor a gente nem saber, não é? Eu

concordei.Ai,eladisse:Nãosei,nunca tivecerteza.Sempreagi

corretamentenavida.Nãotenhodoquemerecriminar.Eudisse:

Claroquenão tem,minhaquerida.Mas,cácomigo, trapaçano

lugaremqueelatrabalhava,algoqueelativessedescobertomas

quenãotinhaligaçãoalgumacomela.

—Talvez—disseoinspetor.

—Enfim elamelhorou ou achou quemelhorou e voltou ao

trabalho.Eurecomendeiqueelaficasseemcasamaisunsdias,

maselanãomedeuatenção.Foitiroequeda.Denoitequando

ela chegou mal podia subir a escada. Eu disse que ela devia

chamarummédicomaseladissequenão.Sóseiquepioroua

olhosvistos,ficouvermelhaemalpodiarespirar.Nodiaseguinte

pediu um padre: “Um padre, depressa, antes que seja tarde

demais.” Também não servia qualquer padre, tinha que ser

católico.Paradizeraverdadeeunemsabiaqueelaeracatólica...

O inspetor Lejeune havia encontrado um crucifixo namala

daSra.Davis,mas achoumelhornão fazer comentários coma

Sra.Coppins.

Page 35: Agatha christie - o cavalo amarelo

—AíeuviMikenaruaepediqueelefossechamaropadre

Gorman na igreja. Telefonei para o hospital e pedi uma

ambulânciasemfalarcomela.

—Foiasenhoraquemlevouopadreatéláemcima?

—Foi.Deixeiosdoissozinhos.

—Ouviuelesdizeremqualquercoisa?

— Não sei bem. Eu estava apresentando o padre a ela,

dizendoquetudoiadarcerto, tentandoalegrá-la,sabecomoé?

Mas, enquanto fechava a porta ouvi ela dizer qualquer coisa

sobremaldade. Falou tambémde um cavalo, talvez de corrida.

Eu, às vezes, jogo no turfe, mas já ouvi falar que há muita

malandragemnestenegócio...

— Maldade! — repetiu Lejeune, impressionado com a

palavra.

— Os católicos precisam confessar os pecados antes de

morrer,nãoé?Poisfoioqueelafez.

Lejeunenãotinhadúvidassobreasintençõesdafalecida.O

queintrigavasuaimaginaçãoeraapalavra:maldade.

Equemaldadeseriaestaquejustificariaatéoassassinatode

umpadre?

II

Dos outros três inquilinos pouco se conseguiu apurar. O

primeiroeosegundo,umbancárioeumvelhocaixeirodeuma

sapataria, só conheciam a Sra.Davis de vista. A terceira, uma

moçadevinteedoisanos,trabalhavanumalojaemalconheciaa

Page 36: Agatha christie - o cavalo amarelo

falecida.

AmulherquetinhavistoopadreGorman,narua,nanoite

docrime,nãopôdeauxiliaraPolícia.Conheciaopadredevista,

pois não freqüentava aquela igreja, mas tinha visto o mesmo

entrarnumcafé.

Um farmacêutico chamadoOsborne,donodeuma farmácia

naRuaBaron,foioúnicoquepôdedaràpolíciaumapistamais

concreta. Osborne era um homem pequeno, de meia-idade,

careca,deóculos,derostoredondoeingênuo.

—Boa noite, inspetor. Pode entrar— disse o Sr. Osborne,

abrindoatampadobalcãoparaLejeune.

Passaramporumquarto,ondeumrapazdeaventalbranco

preparavauns líquidos, engarrafando-os emvidrosde remédios

com a rapidez de um feiticeiro profissional. O Sr. Osborne

conduziu Lejeune a uma saletamobiliada com duas poltronas,

uma mesa e uma escrivaninha. Em seguida, o farmacêutico

puxouumacortinaesentou-seaoladodeLejeunecomumarde

espião profissional. Seus olhos brilhavam de antecipação e

excitamento.

—Acontecequeestouemcondiçõesde lheajudar.Foiuma

noite fraca,aquinafarmácia,devidoaomautempo.Amocinha

estavaatrásdobalcão, pois quinta-feira ficamosabertos até as

oitohoras.Onevoeirovinhabaixandoearuaestavaquasesem

movimento. Fui até a porta, para ver melhor o tempo, que

segundoasprevisões iabaixar. Fiqueiuns instantes olhandoa

rua pela vitrine, despreocupado com a farmácia... tinha uma

freguesa só, querendouns sais de banho e cremes de limpeza,

coisas que a balconista sabe atender direito. Aí vi o padre

Page 37: Agatha christie - o cavalo amarelo

Gorman,vindodooutroladodarua.Euoconheciadevista,aliás

quecoisabrutalfoiestecrime!Atacarumhomemtãodistinto.Lá

vai o padre, pensei, cá comigo. Ele ia indo em direção à Rua

Oeste, quase na esquina dos trilhos da estrada de ferro. Um

pouco atrás dele, vinha vindo um homem. Não me ocorreria

prestaratençãoseelenãotivesseparadobruscamente,quasena

portadafarmácia.Nãoentendiporqueeleparou,maseunotei

que o padre, um pouco adiante, também tinha diminuído o

passo;nãochegouaparar,mascaminhavacomoseestivessetão

absortoemseuspensamentosqueaté tivesseesquecidodeque

estava andando. O padre voltou a apertar o passo e o homem

também,sóquedestavezcommaisdecisão.Pensei—seéque

pensei em alguma coisa — devia ser alguém que conhecia o

padredevistaequeresolverafalarcomele.

— Quando na verdade é possível que estivesse seguindo o

padre?

— Agora tenho certeza, mas naquela noite não dei mais

atenção ao fato. Com o nevoeiro perdi os dois de vista, logo

depois.

—Osenhorseriacapazdedescreveressehomem?

Lejeunepareciahesitante.Suaexperiêncialhediziaqueesse

tipodedescriçãogeralmente era falhoou impreciso.Mas, oSr.

Osborneeramaisobservadordoqueodonodocafé.

—Achoquesim—disseofarmacêutico,calmamente.—Era

umhomemalto...

—Alto?Dequealtura,maisoumenos?

—Ummetroeoitentaaummetroeoitentaequatro...poraí.

Page 38: Agatha christie - o cavalo amarelo

Talvezfosseatémaisalto,poiseramuitomagro.Osombrosmeio

caídoseumpomodeAdãomuitopronunciado.Sobochapéuum

cabelo bastante comprido, cinzento, e um nariz bem adunco.

Naturalmentenãopudeveracordosolhos.Sóovideperfil.Pelo

jeitodeandardeveterpertodeunscinqüentaanos.Umapessoa

maisjovemsemovimentadeoutramaneira,commaisagilidade.

Lejeunementalmente relembrou a distância da rua para a

farmácia e duvidou da eficácia da informação. Duvidou

seriamente,poisestetipodedescriçãomuitoprecisasópoderia

significar duas coisas: uma imaginação muito fértil, que ele já

conhecia de sobra, principalmente das testemunhas femininas,

mestras em criarem assassinos de acordo com seus desejos e

fantasias, mas facilmente elimináveis pelo número espúrio de

detalhes: olhos arregalados, sobrancelhas cerradas, queixos

prognáticos,ouardeferocidadeanimal.Asegunda,quepoderia

ser o caso do Sr. Osborne, era fantasticamente real e precisa

para ser verdadeira. Mas quem sabe o Sr. Osborne fosse um

homem que observa as coisas desinteressadamente e se

preocupacomosmínimosdetalhes?

Lejeune pensou novamente na distância entre a vitrine e a

rua.OlhoucalmamenteparaOsborne.

—Osenhorseriacapazdereconheceressehomemseovisse

novamente?

—Claro—respondeuOsborne,confiante.—Nuncaesqueço

umafisionomia.Éomeupassatempo.Sempredissequeseum

desses envenenadores de esposa viesse a minha farmácia

comprarumpacotinhodearsênico,euseriaatestemunha-chave

dapromotoria.Aliás,sempredesejeiqueissoacontecesse.

Page 39: Agatha christie - o cavalo amarelo

—Masaindanãoaconteceu?

— Ainda não — admitiu Osborne, contrariado. — E não

acreditoqueváacontecer.Conseguiumbompreçopelafarmácia

e quando fechar o negócio vou me aposentar. Vou me mudar

paraBournemouth.

—Afarmáciaestánumbomponto—comentouLejeune.

—Éumlugardeclasse—disseOsbornecomorgulho.—Já

estamos aqui a uns cemanos. Antes demim, erameupai e o

meu avô.Umnegócio de família, bastante rendoso.Quando eu

era jovem, porém, me rebelei. Não queria ser farmacêutico.

Queriaserator,tinhacertezadequeseriaumgrandeator.Meu

painãotentourefrearminhavocação.—Vêsedácerto,filho!—

disse-meele.—VádescobrirquenãoéSirLaurenceOlivier!Ele

tinha razão... era um homemmuito inteligente. Fiz teatro uns

meses e voltei para casa. Com o tempo passei a gostar do

negócio,ameorgulhardele.Nóssempretivemosmercadoriade

primeira,podemosestarforademodamasvendemosqualidade.

Osbornesacudiuacabeça.

—Hojeemdia—prosseguiuele,—umfarmacêuticoquese

preza não se interessa mais por isto. Todas estas loções de

toalete.Sea gentenãocomprar,não fatura;metadedos lucros

vem desta porcaria: pó, batom, creme, shampoo, estojos de

maquilagem.Eunãolidocomisso.Boteiamocinha,lánafrente,

para tratar do assunto. Não é como antigamente, que o

farmacêutico aviava pessoalmente todas as receitas. Contudo,

como guardei um bom dinheiro, vou vender bem a farmácia.

Paguei aprimeiraprestaçãodeumacasinha emBournemouth.

Meu lema é: “Aposentar-se enquanto é tempo” — continuou

Page 40: Agatha christie - o cavalo amarelo

Osborne. — Tenho vários passatempos: coleciono borboletas,

adoropássaros,jardinagem(estoucheiodelivrossobreplantas)e

gostodeviajar.Talvezeufaçaumcruzeiroporumdesseslugares

exóticos.

Lejeunelevantou-se.

—Bem,desejo-lhesorte—disseoinspetor.—Seporacaso,

numadestasviagens,osenhorencontrar...

— Comunico-lhe imediatamente, é claro — interrompeu

Osborne. — Pode contar comigo, como já disse, sou ótimo

fisionomista. Estarei sempre alerta e paramim será umprazer

entregarumassassinoaosbraçosdalei.

Page 41: Agatha christie - o cavalo amarelo

Capítulo4

NarrativadeMarkEasterbrook

I

Hermia Redcliffe e eu fomos ao teatro assistir a Macbeth.

Quandosaímos,choviaacântaros.Hermiacomentou,semrazão,

quesemprequeíamosaoteatrochovia.

—Vocênuncareparou?—perguntouela.

Discordei, comentandoque ela invariavelmente só lembrava

àsvezesquechoviaquandoiaaoteatro.

—NosfestivaisdemúsicadeGlyndebourne—disseHermia,

quandoentramosnocarro,—doumuitasorte.Tudoperfeito!A

música,osjardinsemflor,principalmenteoscanteirosdecravos

brancos...

FalamossobreoFestivalporunsmomentos.

—VamostomarcafénoCanal?

—Porquê?Queidéia!PenseiqueíamosaoFantasie.Depois

devertantosangue,precisamoscomerbem.Shakespearemedá

sempremultafome.

—Wagnertambém.Ossanduíchesdesalmãodefumadoque

servemnos intervalosnãodãoparaogasto.Pergunteise íamos

aoCanalporquevocêestátomandoaestradadeDover.

—Masprecisamosdaravolta—protestei.

Page 42: Agatha christie - o cavalo amarelo

—Mas você já deu duas voltas. Já estamos na estrada de

Kent.

Examineibemasindicaçõesdaestradaepercebique,como

sempre,Hermiaestavacomarazão.

—Sempremepercoporaqui—disseeu.

— É confusomesmo— disse Hermia.— Temos que dar a

voltapelaPontedeWaterloo.

Assim que tomamos o rumo certo, continuamos a discutir

sobre a peça. Minha amiga Hermia Redcliffe era uma bonita

moçade vinte e oito anos,deumabeleza clássica,perfil grego,

cabelos castanhos. Minha irmã a chamava de “A Garota de

Marte”, enfatizando as aspas num tom que me irritava

sobremaneira.

No restaurante, fomos recebidos com a costumeira

hospitalidade; o Fantasie é um restaurante bastante popular,

ondeasmesassãocolocadasbempertoumasdasoutras.Assim

que sentamos fomos cumprimentados efusivamente por David

Ardingly, um professor de História da Universidade de Oxford,

que,emseguida,nosapresentousuaacompanhante,umamoça

muito bonita que exibia um complicadíssimo penteado e um

simplíssimo decote. Tinha uns enormes olhos azuis, uma boca

sensual, eternamente entreaberta e, como todas as namoradas

de David, a mentalidade e a inteligência de uma garota de 8

anos. David, um jovem brilhante, só conseguia relaxar em

companhiademulheresquasedébeismentais.

—Minha namorada favorita, Poppy— disse ele.— Poppy,

esteéMarkEasterbrookeHermiaRedcliffe,umcasalmuitosério

Page 43: Agatha christie - o cavalo amarelo

eintelectual.Prestemuitaatençãonoqueelesdizem.Acabamos

de ver uma revista chamada: Agora a Coisa Vai! Uma beleza!

ApostoquevocêsforamverShakespeareouIbsen.

—Macbeth.

—OqueachoudadireçãodeBatterson?

— Gostei — respondeu Hermia. — A iluminação é muito

interessanteeacenadobanqueteéespecialmentebemmontada.

—Eoquedizemdasbruxas?

—Comosemprehorríveis—respondeuHermia.

Davidconcordou.

—Éinevitáveloelementopantomímiconestascenas—disse

David.—Astrêsbruxas,pulandoesecomportandocomooRei

Maudeumapeçainfantil.AgenteficaesperandoqueaFadaBoa

apareçaequebreoencantocomsuavarinhadecondão.

Rimos,masDavid,sempremuitoobservador,perguntou:

—Emquevocêestápensando?

— Nada — respondi. — É que outro dia estava refletindo

sobreapantomima,pensandonoReiMauenaFadaBoa...

—Aproposdequoi?

—NumbaremChelsea...

— Como estamos para frente! Você em Chelsea... é lá que

Poppydeviair.Dizemqueasmilionáriascasamcomosgigolôs...

—Mas eudetestoChelsea—protestouPoppy.—Gostodo

Page 44: Agatha christie - o cavalo amarelo

Fantasie,adoroacomida.

—VivaPoppy!Alémdomaisvocênãoésuficientementerica

para morar em Chelsea. Fale mais sobre Macbeth e sobre as

bruxas,Mark.Seeufossedirigirestapeça,seicomoapresentaria

asbruxas.

David,nostemposdeestudante,tinhafeitosucessonoteatro

universitário.

—Comoseria?

—Euasapresentariacomotrêsvelhinhascomuns.Comoas

feiticeirasdascidadesdointerior.

— Como, se hoje em dia não existem mais feiticeiras? —

perguntouPoppy.

— Você diz isto porque mora em Londres. Em qualquer

cidadedointeriordaInglaterraexisteumafeiticeira.Hásempre

umaSra.Blackaquemosmeninosnãodevemincomodareque

recebeovosebolosdavizinhança.Sabemporquê?—perguntou

David, sacudindoo indicador,numgestodeameaça.—Porque

se ela se zanga comalguém, a vacadeixadedar leite, a praga

invadeopomarouofilhodaSra.Smithtorceopé.Étacitamente

aceitoquenãosedevecontrariaraSra.Black.

—Vocêestábrincando!—dissePoppy.

—Nãoestounão.Diga,Mark,seeunãotenhorazão?

— Hoje em dia estas superstições já acabaram— declarou

Hermia,incrédula.

—Nãonazonarural.Oquevocêacha,Mark?

Page 45: Agatha christie - o cavalo amarelo

— Creio que tem razão — respondi embora nunca tenha

moradonointerior.

—Nãovejocomo,emMacbeth,seriapossívelapresentaras

bruxascomosefossemvelhasdeumasilo.Afeitiçariaécercada

deumaatmosferasobrenatural—disseHermia.

—Pensebem—insistiuDavid.—Oproblemaéigualaoda

loucura.Seapareceemcenaumator fazendo-sede louco,com

oscabelosdesgrenhados,gritando,ninguémficacommedo.Uma

vez, fui entregarumacartaaummédico,numasilode loucos.

Pediram que eu esperasse pela resposta numa sala de visitas

ondeencontreiumavelhinhamuitosimpática,tomandoumcopo

de leite. Ela puxou prosa comigo, fazendo alguns comentários

bastante banais. De repente ela debruçou-se para frente e

perguntou:Ésuaacriançaqueestáenterradanestalareira?Em

seguida sacudiu a cabeça e concluiu: Doze e dez em ponto!

Sempre a mesma coisa a esta hora. Faça de conta que não

percebeosangue.Oquemaismeapavoroufoiotomnaturaldo

comentário!

— E tinha mesmo uma criança enterrada na lareira? —

perguntouPoppy.

Davidfingiunãoouvir.

— Veja as médiuns, por exemplo. Passam do transe, em

salas escuras,batidasnamesa, transformando-se emsenhoras

distintas, arrumadas que ouvem novela, cozinham para os

maridos.

— Então, para você as bruxas — disse eu — seriam três

velhas escocesas que praticam suas seitas em segredo,

Page 46: Agatha christie - o cavalo amarelo

murmurandomaldições em torno de um caldeirão, conjurando

espíritos, mas aparentando ser boas donas de casa. Acho que

poderiacausarumbomefeito!

—Se é que você conseguiria que algum ator representasse

destaforma—disseHermia.

—Você tem razão—disseDavid.—Qualquer sugestãode

loucuraemumapeçaeimediatamenteoatorresolvedartudoo

que tem. Já viram algum ator morrer de repente em cena?

Nunca! Eles caem, se esgoelam, viram os olhos, apertam o

coração, se descabelam! Que você achou da interpretação de

Fielding comoMacbeth? A opinião dos críticos parece bastante

dividida.

— Eu achei sensacional! — disse Hermia.— Acho que ele

representou divinamente a luta entre o medo e o amor. Suas

inflexõesmepareceramperfeitas.

— Shakespeare ia levar um susto se visse suas peças

representadashojeemdia—comentei.

—Osautoressempresesurpreendemcomasinterpretações

dassuaspeças—disseHermia.

—NãofoiumtaldeBaconquerealmenteescreveuaspeças

deShakespeare?—perguntouPoppy.

— Esta teoria já saiu de moda — disse David,

carinhosamente.—OndevocêouviufalaremBacon?

— Foi o inventor da pólvora, ora essa! — exclamou Poppy

numtomdetriunfo.

Davidolhouparanós.

Page 47: Agatha christie - o cavalo amarelo

— Compreendem agora por que amo esta mulher? —

perguntou. — Sempre sai com uma novidade. Não confunda

FranciscomRogerBacon,meubem!

—Achei interessante—prosseguiuHermia—que Fielding

representasse tambémopapeldo terceiroassassino.Já tinham

feitoissoantes?

— Creio que sim — respondeu David. — No tempo de

Macbethéquedeviaserbom.Seagentequeria se ver livrede

alguém bastava chamar um sicário. Pena que não possamos

maisfazerisso.

—Quemdisse?— perguntou Poppy.—E os gangsters, os

capangas,opessoaldeChicago?

—Nãoestoumereferindoaquadrilhasorganizadas—disse

David.—Estoumereferindoagentecomumquegostariadese

ver livre de algum... um sócio incômodo, uma tia rica e

centenária,ummaridoonipresente.Imaginemseagentepudesse

telefonar para uma loja e pedir: Quer mandar dois bons

assassinos,porfavor?

Rimoscomapiada.

—Masachoqueistoéfeitohojeemdia—dissePoppy.

Amesainteiravoltouosolhosparaela.

—Comoassim?—perguntouDavid.

—Achoquehojetambémsefazisso,sóquesaimuitocaro

—murmurouPoppy,arregalandoosolhos

—Explique-se—exigiuDavid.

Page 48: Agatha christie - o cavalo amarelo

Poppypareceuconfusa.

— Acho que fiz confusão. É aquela história do Cavalo

Amarelo.

—CavaloAmarelo?

Poppycorouatéaraizdoscabelos.

—Besteiraminha— disse, abaixando os olhos.— Alguém

deve ter falado numa coisa parecida e eu acabei fazendo uma

grandeconfusão.

—Comaumasobremesa,meuamor—disseDavid.—Você

deveestarprecisandodeaçúcar.

II

Uma das coincidências mais estranhas da vida é quando

ouvimos pela primeira vez falar num assunto e vinte e quatro

horas depois omesmo tema volta à baila. Foi o que aconteceu

comigonodiaseguintedemanhã.

Otelefonetocou.

—Flaxman73841—respondi.

Ouviumaespéciedegemidopeloaparelho.

— Pensei sobre o assunto e resolvi ir — disse uma voz

estertorantenumtomdedesafio.

— Ótimo— disse eu perplexo, tentando ganhar tempo até

identificaramisteriosavoz.

—Alémdomais—continuouamulhermistério,asortenão

Page 49: Agatha christie - o cavalo amarelo

bateduasvezesnamesmapessoa.

—Asenhoratemcertezadequeligouonúmerocerto?

—Claro.VocênãoéMarkEasterbrook?

—Ora,éaSra.Oliver—exclameitriunfante.

—Como,vocênãoreconheceuminhavoz?Nempenseinisso!

Estoutelefonandoparafalardaquermesse.Ireiautografarmeus

livrosseRhodaquiser.

—Que ótimo. A senhora certamente ficará hospedada com

eles!

— Só se garantirem que não haverá festas e coquetéis —

disse a Sra. Oliver, apreensiva. — Tenho horror a reuniões

sociaisondeaspessoassesentemnaobrigaçãodeelogiarmeus

livros e perguntar se ainda estou escrevendo. Se agradeço os

elogiosparecequeestoudandobomdiaouatélogo.Esperoque

nãoprecisetambémtomardrinquesnoCavaloCor-de-Rosa.

—CavaloCor-de-Rosa?

—Essesbaresmodernostipo inferninho.Senãoforcor-de-

rosaéamarelo!

—OqueasenhoraquerdizercomCavaloAmarelo?

—Nãoéonomedaboate local?Ouserácor-de-rosa?Oué

outraloucuraqueeuimaginei...

—Comovaiacacatua?—perguntei.

—Acacatua?—perguntouaSra.Oliver,atônita.

Page 50: Agatha christie - o cavalo amarelo

—Eojogodefutebol?

—Francamente—disseaSra.Oliver,indignada.—Ouvocê

estáloucoouandoubebendo.Queconversa!Cavalocor-de-rosa,

cacatua,jogodefutebol!

Desligou o telefone. Fiquei uns instantes pensando sobre o

Cavalo Amarelo quando o telefone tocou. Era Soames White,

famosoadvogado,meinformandodeque,segundootestamento

da minha madrinha Lady Hesketh-Dubois, eu deveria escolher

trêsquadrosdacoleçãodafalecida.

—Nadade grande valor, é claro—disseoDr.Soames,no

seu tradicional tom de derrotismo. — Mas sei que o senhor

desejariaguardaralgumarecordaçãodasuamadrinha.

— Ela tinha umas aquarelas com cenas indianas muito

bonitas — disse eu. — Creio que o senhor me escreveu sobre

isso,masachoquemeesqueci.

— É verdade — disse o advogado. — Porém o inventário

chegou ao fim e temos que distribuir as peças aos herdeiros

antes do leilão. Por favor, passe pela casa de LadyHesketh na

PraçaEllsmere.

— Pode deixar — disse eu— vou agora mesmo. Afinal de

contasnãoestavacomamenorvontadedetrabalhar.

III

Comas trêsaquarelasdebaixodobraço, retirei-medacasa

daminhatia.Naentradaesbarreicomumcavalheiroeenquanto

pediadesculpaspercebiquesetratavadeumvelhoconhecido.

Page 51: Agatha christie - o cavalo amarelo

—Corrigan?—exclamei.

—Ora...MarkEasterbrook?

Tínhamos sido colegas emOxford,mas não nos víamos há

unsquinzeanos.

—Quandoesbarreiemvocê,acheiqueoconhecia,masnão

sabiadeonde—disseCorrigan.—Voltaemeialeioseusartigos

nojornal.Sãoexcelentes!

—Evocê,continuafazendopesquisas?—perguntei.

Corrigansuspirou.

—Muitopouco.Saimuitocaroporcontaprópria...anãoser

queapareçaummilionárioquequeirafinanciarmeusestudos.

—Aindasobreosparasitasdofígado?

— Que memória! Não, esse trabalho eu abandonei.

Atualmente me dedico às propriedades das secreções das

glândulas mandarianas. Você naturalmente não sabe o que é

isso! Mas tem uma grande relação com o humor, apesar de

aparentementenãoserviremparanada.

Corriganfalavacomoentusiasmodeumcientista.

—Porqueesteinteressepelasglândulas?

—Bem—respondeuCorrigan,quasesedesculpando.—Eu

acho que elas influenciam o comportamento. Para ser mais

específico, paramim essas glândulas funcionam como o fluido

dos freiosdeumautomóvel. Senãopomos fluido os freiosnão

funcionam.Nossereshumanos,umadeficiênciadestassecreções

poderáounãotransformá-lonumassassino.

Page 52: Agatha christie - o cavalo amarelo

Deiumassobiodeadmiração.

—Masaondevaipararopecadooriginal?

—Seilá—respondeuCorrigan.—Seiqueospadresnãovão

gostar desta história. Até o presente não consegui interessar

pessoaalgumanestateoria.

— Estou trabalhando comomédico legista da Polícia. Para

mimé interessanteporque encontro vários tiposdeassassinos.

Se quiser se aborrecer mais um pouco eu o convido para

almoçar.

—Comprazer—respondi.—Masvocênãoiaentrar?

—Nãopropriamente,euiasódarumaespiada.

—Temumaserventetomandoconta.

—Foioquepensei.Estouquerendosaberumacoisasobrea

falecidaLadyHesketh-Dubois.

—Achoquepossoinformá-lomelhordoqueaservente.Ela

eraminhamadrinha.

— É mesmo? Que sorte a minha! Onde vamos almoçar!

ConheçoumrestaurantenaPraçaLowndesqueserveumasopa

demariscosmaravilhosa.

Fomos ao restaurante indicado por Corrigan. Os garçons,

vestidos de marinheiros franceses, nos serviram um enorme

bouillabesse.

— Está ótimo — comentei. — Diga, Corrigan, o que quer

sabersobreminhamadrinha?Eporquê?

Page 53: Agatha christie - o cavalo amarelo

—Éumahistóriabastante longa—respondeuCorrigan.—

Primeirodescrevasuamadrinha.

Fiqueiunsinstantespensativo.

— Era uma senhora convencional, tipo viúva vitoriana. O

marido tinha sido ex-governador numa das ilhas. Era rica,

gostavadeviverbem;costumavapassaro invernonoEstoril.A

casa era horrenda, repleta de mobília vitoriana e da mais

hedionda coleção de prata da Inglaterra. Lady Hesketh-Dubois

não tinha filhos mas cuidava de um casal de poodles. Era

dogmáticaereacionária,boamascontraditória.Sabiasempreo

quequeria.Quemaisquersaber?

—Nãosei—disseCorrigan.—Vocêachaqueelaseriacapaz

deservítimadeumachantagem?

— Chantagem? — perguntei espantado. — Não posso

imaginarcomo!Afinal,oquehouve?

Soube então, pela primeira vez, das circunstâncias que

envolveramocrimedopadreGorman.

— A lista de nomes, deixe-me ver— disse eu, apoiando a

colhernoprato.

—Estaaquiéumacópia.

Pegueiopapel.

—Parkinson?Conheço dois Parkinsons. Arthur que entrou

na Marinha e Henry que trabalha no Ministério. Ormerod...

conheço um major Ormerod Tuckerton? Será Thomasina

Tuckerton,poracaso?

Page 54: Agatha christie - o cavalo amarelo

Corriganolhouparamimcurioso.

—Podeser.Oquevocêsabesobreela?

—Nada.Lianotíciadamortedelanojornal.

Corrigansuspirou.

—Shaw...conheçoumdentistachamadoShaw—disseeu,

prosseguindo a leitura da lista. — Além de Jerome Shaw...

Delafontaine... ouvi este nome recentemente, não me lembro

onde.Corrigan...serávocê?

—Desejo ardentemente quenão. Tenho a sensação de que

quemestánestalistatemosdiascontados.

—Podeser.Porquevocêpensouemchantagem?

— Foi uma sugestão do Inspetor Lejeune. Parecia a razão

maisprovável... sebemquepossa seruma listade traficantes,

espiões, contrabandistas, enfimqualquer coisa.Aúnicapista é

que a lista é tão valiosa que para consegui-la cometeram um

assassinato.

— Você sempre se interessa pelo lado policial do seu

trabalho?—perguntei.

Corrigansacudiuacabeça.

—Não.Meu interesseénocaráter,nodesenvolvimento,na

criaçãoenasglândulasdoscriminosos.

—Porqueesteinteressenestalistadenomes?

—Nemeumesmosei—respondeuCorrigan,vagarosamente.

— Talvez por constar nela o meu sobrenome. Sempre estarei

Page 55: Agatha christie - o cavalo amarelo

dispostoadefenderonomedosCorrigan.

— Se está disposto a defender quer dizer que acha que os

componentes desta lista são vítimas e não agressores.

Convenhamosquetantopodemserumacoisacomooutra...

—Vocêtemrazão.Oestranhoéestepressentimentodeque

algoiráacontecercomessaspessoas.Outalvezalgorelacionado

comopadreGormanaquemeuconhecialigeiramentemassabia

ser um sujeito respeitado e querido pela congregação. Não

consigotirardacabeçaaidéiadequeparaeleestalistaerauma

questãodevidaoudemorte...

—EaPolíciaoqueacha?

—Essas coisas levam tempo.Verificam todososdetalhes...

as discrepâncias. Estão verificando as informações da mulher

quechamouopadre.

—Edescobriram?

—Até agora, nada. Era viúva. No começo pensamos que o

falecidomarido tivesse alguma relação com corridas de cavalo,

mas não era verdade. Ela trabalhava em consultas de opinião

pública,umafirmapequenamasconhecida.Opessoal lánãoa

conhecia bem, só sabiam que ela era proveniente do Norte da

Inglaterra. A única coisa estranha sobre ela era a pequena

quantidadedeobjetospessoaisquepossuía.

Encolhiosombros.

—Éummundodesolitários,meucaroCorrigan,muitomais

doquenósimaginamos.

—Achoquetemrazão.

Page 56: Agatha christie - o cavalo amarelo

—Masenfim,vocêresolveufazeralgumasaveriguações?

— É. Hesketh-Dubois por exemplo é um sobrenome raro.

Penseiperguntarcoisassobrea...—Corrigan fezumapequena

pausa — mas pelo que você já disse não tem coisa alguma a

descobrir.

— Minha madrinha não era viciada, nem traficante de

entorpecentes— frisei.—Certamentenão era espiã e sua vida

particular era tão imaculada que não oferecia campo para

chantagens.Nãoseiporqueelaestarianesta lista... lembro-me

também de que elamantinha as jóias num cofre do banco, de

maneiraquenãopoderiaserassaltada...

—ExistemoutrosHesketh-Dubois?

—Elanãotinhafilhos.Sóumsobrinhoeumasobrinhamas

usamoutrosobrenome.Meupadrinhoerafilhoúnico.

Corriganagradeceuazedamenteminhacolaboração.Olhouo

relógio,dissequeestavaatrasadoparaumaautópsiaepartiu.

Fui para casa, mas não consegui trabalhar. Finalmente

telefoneiparaDavidArdingly.

— David? Aqui é Mark. Lembra-se daquela pequena que

estava com você outra noite? A Poppy? Como é o sobrenome

dela?

— Vai querer cantar minha garota? — perguntou David,

dandoumagargalhada.

—Vocêtemtantas—respondi—quepodiamecederuma...

—Masvocêjátemumagarota,penseiquefossecasarcom

Page 57: Agatha christie - o cavalo amarelo

ela...

—Casar!?

Por uns instantes pensei no assunto. Meu relacionamento

comHermiasópoderiaserdescritoassim:casamentoàvista.E

noentanto,aidéiamedeprimiaemboraeusempreachasseque

iria, um dia, casar-me com ela. Afinal... gostava de Hermia,

tínhamostantaafinidade...masotédioquemeinvadiunaquele

momentomefezbocejar.Vidiantedosolhosmeufuturocomela;

indoao teatro assistir a peças clássicas, discussões sobre arte,

música.É, semdúvidaHermia seriaminha companheira ideal.

Umaluzinhaacendeu-senaminhamente:Masquetédio!Fiquei

chocadocomminhafrieza.

—Adormeceu?—perguntouDavid.

—Claro quenão; para ser sincero, achei sua amiga Poppy

umrefrigério.

—Boapalavra...precisaporémtomá-laempequenasdoses.

OnomedaditaéPamelaStirling,trabalhanumacasadeflores

muitochiqueemMayfair, vocêconheceessas lojas!Trêsgalhos

secos, uma tulipa desfolhada e uma folha de louro pintada de

purpurina,pelomódicopreçodecentenasdelibras.

Daviddeuoendereço.

—Leve-aparajantar,édivertida—recomendouele.—Vão

passarumanoitemaravilhosa.Elanãosabenada,nãoentende

de nada e não pensa em nada. Acreditará em tudo que você

disser,masnãoavanceosinalporqueelaémoçadefamília.

Edesligou.

Page 58: Agatha christie - o cavalo amarelo

IV

Cruzei osumbrais da LojaEstudosFlorais Ltda. com certo

receio. Um forte aroma de flor de gardênia invadiu minhas

narinas quase me asfixiando; várias moças, vestidas de batas

verde alface, absolutamente iguais a Poppy, atendiam à ilustre

clientela.Nomeiodaconfusãoconsegui,finalmente,identificá-la.

Poppy estava ocupada, escrevendo com certa dificuldade o

endereço de uma cliente. Em seguida, debateu-se um certo

tempocomotroco.

—Nósnosencontramosasemanapassada—disseeu,me

aproximando.—SouamigodeDavidArdingly.

— Queria lhe fazer uma pergunta — disse eu, sentindo o

coração bater, — mas para não tomar muito seu tempo seria

aconselhávelqueeucomprasseumasflores.

—Recebemoshojeestasmaravilhosasrosas—dissePoppy,

mecanicamente.

— Que tal estas amarelas?— perguntei.— Quanto está a

dúzia?

—Baratíssimo—respondeuPoppy,numtomprofissional.—

Cincoshillings,cada.

Engoliemsecoepedimeiadúzia.

—Comfolhasdelouro?

Olhei as folhas com certa dúvida e preferi uma folhagem

menosviçosa,oquenãopareceuagradarmuitoaPoppy.

— O que eu queria saber — disse eu, observando Poppy

Page 59: Agatha christie - o cavalo amarelo

arrumarcanhestramenteoramoderosas—serelacionacomo

CavaloAmarelo.

Como se tivesse levadoum jato de água fria, Poppy deixou

cairasrosasnochão.

—Gostariadesabermaioresdetalhes—insisti.

Poppycontrolou-seeapanhouomaçodochão.

—Oquê?

—GostariadesaberalgosobreoCavaloAmarelo.

—Quecavaloamarelo?Nãoseioqueéisto!

—Masfalamosneleoutranoite.

—Eu!?Nunca!Jamaisouvifalarnisso.

—Quemfoiquecontouavocêestahistória?

Poppyprendeuarespiração.

— Não sei do que está falando. Além do mais estamos

proibidasdeconversarcomosfregueses;quermedarodinheiro

porfavor?

EntregueiodinheiroaPoppy,elamedevolveuo troco,mas

noteiquesuasmãostremiam.Quandoolheinovamenteparaela

viqueestavaocupadacomoutrofreguês.Saídalojadevagar.No

caminho me dei conta de que ela tinha feito o troco errado,

devolvendomuitomaisdoquedevia.Penseinabelezaopacado

seurostoesorri...seusolhosrevelaramalgo...

—Medo—pensei.—Pavor!Masporquê?Porquê?

Page 60: Agatha christie - o cavalo amarelo

Capítulo5

NarrativadeMarkEasterbrook

I

—Quealívio!—suspirouaSra.Oliver.—Tudo sepassou

semproblemas...

A quermesse organizada por Rhoda tinha ocorrido como

todasasquermessesdomundo.Aansiedadeinicialemrelaçãoà

temperatura; as eternas discussões sobre a colocação das

marquises;apreocupaçãosobreofornecimentodedocesetc....

TudoresolvidoacontentoporRhoda.

Outra preocupação dos organizadores concentrou-se nos

cachorros de Rhoda que periodicamente ameaçavam irromper

por entreasbarracaseos convidados.Por fimaquermesse foi

inaugurada com a indefectível presença de uma estrelinha de

cinema coberta de peles que encantou os presentes com sua

belezaeamabilidade.Claroquefaltoutroco,queasbebidasnão

estavam bastante geladas, nem foram suficientes para os

consumidores. À noite, as mesmas quadrilhas e os fogos de

artifício.

—Esteanorendeumaisdoqueoanopassado—comentou

Rhoda.

—Oqueeuachofantástico—comentouaSrta.Macallister,

a governanta escocesa de Rhoda — é a facilidade com que

Michael Brent descobre o mapa do tesouro. É o terceiro ano

Page 61: Agatha christie - o cavalo amarelo

consecutivo que isto acontece! Será que alguém não lhe dá a

pista?

—LadyBrookbankganhouumporquinho—disseRhoda.—

Pelacaradelaachoquenãoerabemoquedesejava.

Estávamos reunidos no jardim: minha prima Rhoda e o

marido,oCoronelDespard,aSrta.Macallister,umajovemruiva

chamadaGinger,aSra.Oliver,oreverendoCalebDaneCalthrop

esuaesposa.O reverendoeraumsenhorsimpático, estudioso,

cuja principal distração era citar um provérbio clássico,

relacionando-ocomumacontecimentomomentâneo.Estehábito

murchava qualquer conversa, possuía o dom de embaraçar os

presentes, e sósatisfaziaopróprio reverendopoisgeralmentea

maioriadaspessoasdesconhecialatimougrego.

— Como dizia Horácio... etc. etc.— observou ele, sorrindo

paraospresentes.

DepoisdeumapequenapausaGingerinterveio.

—AchoqueaSra.Horsefalltrapaceoucomaquelagarrafade

champanha.Quemacabouganhandofoiasobrinha!

A Sra. Dane Calthrop, uma mulher imprevisível, de olhar

aguçado,observavaaSra.Oliver.

—Oqueasenhoraesperavafosseacontecernestafesta?—

perguntouabruptamente.

—Ora,umcrimeouqualquercoisaexcitante.

—Porquê?—perguntouaSra.DaneCalthrop,interessada.

— Por nada. Por ser improvável talvez. Lembro-me de um

Page 62: Agatha christie - o cavalo amarelo

crimequeocorreunumaquermesse...

—Ah!Asenhoraficouimpressionada?

—Muito.

Oreverendofezumacitaçãoemgrego.

Seguiu-seoutrobrevesilêncio.

—Acheimuita vantagem o dono doBar Armas doRei nos

mandaraquelascervejasparaotiroaoalvo.

—ArmasdoRei?—perguntei.

—Éonomedobarlocal,meucaro—explicouRhoda.

— Não existe outro pelas redondezas... O Cavalo Amarelo,

nãofoi?—pergunteiolhandoparaaSra.Oliver.

Nenhuma reação por parte dos presentes. Todos olharam

paramimimperturbáveis.

—O Cavalo Amarelo não é um bar— disse Rhoda.—Ou

melhor,nãoémaisumbar.

—Masjáfoi—disseDespard,—lápeloséculoXVI.Hojeem

dia,éumacasa,emboraaproprietáriatenhamantidoomesmo

nome.

— Por que havia de mudar? — quis saber Ginger. — Um

lugardaquelesnãopoderiaterumnomebobocomoNossoLarou

RecantoFeliz.AchoonomedeCavaloAmarelodivino.Elastêm

uma plaqueta antiga colocada em cima da lareira que é uma

beleza.

Page 63: Agatha christie - o cavalo amarelo

—Quemsãoelas?—perguntei.

—AcasaédeThyrzaGrey—informouRhoda.—Nãoseise

vocêviuumamulheralta,decabeloscinzentos?

— É dada ao ocultismo— disse Despard. — Dedica-se ao

espiritismo,aotranse,àmagia.NãotemnadacomMissaNegra

oucoisasassim...

Gingerdeuumagargalhada.

— Desculpe — disse a ruiva. — Mas por um instante eu

imagineiaSrta.GreyvestidadeMme.deMontespan,numaltar

develudonegro.

—Ginger,respeiteoreverendo!—disseRhoda.

—Desculpe,reverendo.

—Nãotemamenor importância—disseoSr.Calthrop.—

Comodizemosantigos...

Seguiu-seumalongacitaçãoemgrego,acompanhadadeum

respeitososilênciodeaprovação.

—Mesmoassimquemsãoelas?

— Uma amiga, que mora com ela e chama-se Sybil

Stamfordis que acho que funciona comomédium. Você já deve

tê-lavisto,cheiadecolareseescaravelhos;àsvezes,veste-secom

umsari,nãomepergunteporque...achoqueelanemconhecea

Índia...

—NãoesqueçadeBella—interveioaSra.DaneCalthrop,a

cozinheira que dizem ser uma feiticeira nascida num vilarejo,

onde era famosa por suas bruxarias. Dizem que a mãe dela

Page 64: Agatha christie - o cavalo amarelo

tambémerabruxa.

— A senhora fala em bruxaria como se fosse a coisamais

naturaldomundo!—exclamei.

—Eémesmo!Nãoexistemistérioalgum.Asvezeséumdom

defamília...quandoosenhorerapequeno,nãoselembradeuma

vizinhaaquemsedeviadarbolosedoces?

Olhei para ela como ceticismo mas parecia falar com

sinceridade.

— Sybil nos ajudou hoje na quermesse— disse Rhoda.—

Lendoasorte.Elaficounabarracaverdeefezmuitosucesso.

—Predisseparamimumfuturomaravilhoso—disseGinger.

—Dinheiro,umamante estrangeiro, doismaridos e seis filhos.

Quemaispoderiadesejar?

— A filha dos Curtis saiu da barraca às gargalhadas —

comentouRhoda.—Maistarde,quandoavidenovo,elarepetiu

paraonamoradoqueelenãoeraoúnicogalodogalinheiro.

—Coitado de Tom!— suspirou omarido deRhoda.—Ele

respondeualgumacoisa?

— Respondeu que não podia dizer o que Dona Sybil tinha

lidonamãodele.

—Bemfeito!

—AvelhaParkeréquenãogostoudasorte—disseGinger.

— É tudo bobagem! me disse ela, só espero que vocês não

acreditem nessas histórias. A Sra. Cripps, porém, interrompeu

paradizerqueaSrta.Greyprevêamortedequalquerpessoae

Page 65: Agatha christie - o cavalo amarelo

quenunca se engana!ASra. Parker concordou,masdisse que

morte já é outra conversa.FinalmenteaSra.Crippsarrematou

quenãovaliaapenaofendernenhumadastrês.

—Que interessante!—exclamouaSra.Oliver.—Gostaria

deconhecê-las.

— Podemos dar um pulo lá amanhã — prometeu o Cel.

Despard.—Valeapenaveracasa.Elasadecoraramcommuito

gostoeinteligência...ficouumlugarconfortáveledeestilo.

—AmanhãdouumtelefonemaparaThyrza—disseRhoda.

Confessoquefuidormirligeiramentedesapontado.OCavalo

Amareloqueparamimtinhase tornadoosímbolodosinistroe

do desconhecido, de repente tinha se transformado numa

históriadaCarochinha.

AnãoserqueexistisseumoutroCavaloAmarelo!

Nestasconjeturasacabeiadormecendo.

II

O domingo amanheceu preguiçoso e azul; o ar parecia

invadido pela ressaca. As tendas e barracas armadas sobre a

relva balançavam as bandeirolas, esperando a hora de serem

desmontadas. Segunda-feira, todos recomeçariam a trabalhar e

avaliar os lucros e perdas da quermesse... por isso Rhoda

resolveupassarodomingoforacomosamigos.

Fomosà igrejaeouvimosrespeitosamenteoeruditosermão

doSr.DaneCalthrop,baseadonumtextode Isaíasqueparecia

termaisafinidadecomahistóriadaPérsiadoquecomreligião.

Page 66: Agatha christie - o cavalo amarelo

— Vamos almoçar com o Sr. Venables — disse Rhoda, à

saída da igreja.— Você vai gostar dele, Mark. Trata-se de um

homemfascinante,quejáfezdetudoejáviudetudo.Comprou

umacasaporaquiháunstrêsanosque,julgandopelareforma,

deve ter custado uma fortuna. Teve paralisia infantil, por isso

andadecadeiraderodas,oquedeveserhorrívelparaele,pois

viviaviajando.Como jádisse,deveserriquíssimo,a julgarpela

maravilha que fez da casa... quando ele a comprou estava

praticamenteemruínas.Hojeemdiaseumaiorinteressesãoos

leilões.

ChegamosàmansãodoSr.Venablese fomosrecebidospor

elenohall.

—Quebomquevieram—disseele,cordialmente.—Devem

estarexaustosdeontem.Aliásvocêestádeparabéns,Rhoda.

O Sr. Venables era um homem de uns cincoenta anos, de

rosto magro, um ar de falcão com um nariz adunco, bastante

agressivo. Suas roupas eram caras e convencionais, o que lhe

davaumaspectoligeiramentedemodé.

Rhodafezasapresentações.

OSr.VenablessorriuparaaSra.Oliver.

— Conheci-a profissionalmente — disse o Sr. Venables. —

Comprei seis livros seus autografados que servirão de ótimos

presentes de Natal. Gostomuito do que escreve; por favor não

pare,souseufãincondicional.VenablessorriuparaGinger.Por

sua causa quase ganhei ontem na tômbola! — Em seguida,

voltou-separamim:—Gosteimuitodoseuartigopublicadono

Suplementodomêspassado.

Page 67: Agatha christie - o cavalo amarelo

— Foi muita bondade sua ter vindo à quermesse, Sr.

Venables — disse Rhoda. — Depois daquela sua magnífica

doaçãofinanceiranãoesperavacontarcomsuapresença.

—Maseuadoroquermesses.Fazpartedavidaruralinglesa,

nãoacha?Volteiparacasacomumahorrendabonecadepano.

Achei muito divertido ouvir as relações proféticas da nossa

querida Sybil, envolta naquele turbante fantástico com todos

aquelescolarespseudo-egípcios!

— Sybil é muito divertida — comentou o Cel. Despard. —

Hoje à tarde vamos tomar chá comThyrza.Creio que o senhor

concordacomigoqueacasaébastanteinteressante.

— O Cavalo Amarelo? Mas no fundo eu preferiria que

tivessem deixado como estava, intocada no seu manto de

maldadeemistério.Nãocreioque fosseusadaporpiratas,pois

estamoslongedemaisdacosta...talvezfosseumaestalagempara

bandoleiros?Ou ricos viajantes que resolviam passar a noite e

nuncamaisapareciam?Hojeemdiaeuconsideroumainjustiça

uma casa daquelas ter se transformado numa simpática

residênciadetrêssolteironas.

— Mas eu não as considero assim— exclamou Rhoda. —

Talvez Sybil seja ligeiramente ridícula com suas fantasias

indianasevisõesesotéricas.MaspenseemThyrza.Nãoachaque

existealgodeaterradornela?Comoseelasoubessesempreoque

agenteestápensando...Oestranhoéqueelanãosevangloriade

possuirumaintuiçãoforadocomum,mastodomundosabeque

elapossuipoderesextraordinários.

— E Bella não pode ser considerada uma solteirona —

interrompeuDespard.—Jáenterroudoismaridos.

Page 68: Agatha christie - o cavalo amarelo

—Peçodesculpas,então—disseVenables.

—Alémdepossuirodomdematarosvizinhos—continuou

Despard — quando estes a aborrecem. Dizem que quando ela

olhaarrevezadoparaalguémapessoacomeçaadefinhareacaba

morrendo!

—Elaéafeiticeiradacidade?

—SegundoaSra.DaneCalthrop.

— A bruxaria não deixa de ser um assunto fascinante —

disse Venables pensativo. — É encontrada em todas as

modalidade possíveis pelomundo afora. Lembro-me de quando

estavanaÁfrica...

Aconversadoanfitrião fluíacomoumcórregomanso; falou

sobre pajés africanos; cultos desconhecidos de Bornéu, e

prometeu nos mostrar algumas máscaras africanas depois do

almoço.

—Temdetudonestacasa—comentouRhoda,rindo.

— Já que não posso ver tudo que existe — disse o Sr.

Venables—procuroarrebanharpertodemimomaiornúmerode

curiosidades.

Naquele instante sua voz revelou certo amargor. O Sr.

Venables lançou um rápido olhar de desprezo para as pernas

paralisadas.

—“Omundoestácheiodecoisas”—citouele.Creioqueesta

curiosidade em conhecer tudo é que me prejudica. Existem

tantascoisasqueeuquerover!Masnãopossomequeixar,jáfiz

mais do que devia, e mesmo hoje ainda encontro muitas

Page 69: Agatha christie - o cavalo amarelo

distrações.

—Porque,aqui?—perguntouaSra.Oliver,derepente.

O ambiente estava ligeiramente carregado como sempre

acontece quando se menciona algum assunto delicado ou

desagradável. A Sra. Oliver porém não pareceu tomar

conhecimento disso. Fez a pergunta porque queria saber a

resposta. Sua curiosidade devolveu ao ambiente a antiga

atmosferadecaloresimpatia.

OSr.Venablesolhouparaelasurpreendido.

— Por que veio para cá? — perguntou novamente a Sra.

Oliver. — Não é longe demais da civilização e do convívio

cultural?Ouosenhortemamigosporaqui?

—Não.Aliás,jáqueasenhoraperguntou,escolhiestaregião

porquenãoconheciaumapessoasequer.

UmsorrisoirônicoassomouaoslábiosdeVenables.

Até que ponto, pensei, a paralisia tinha afetado aquele

homem?Seriapossível quea incapacidadedeandar, a faltade

liberdadeparaexploraromundo,tivessedeixadoumamarcatão

profunda na sua alma? Ou será que ele havia se adaptado às

circunstânciascomequanimidadeegrandezadeespírito?

ComoseVenablestivesselidomeuspensamentos,disse:

—Noseuartigo,osenhorquestionaosignificadodo termo

“grandeza”, comparando-o com seus diversos significados tanto

no Oriente quanto no Ocidente. Gostaria de saber como se

considera,porexemplo,umgrandehomemnaInglaterra?

Page 70: Agatha christie - o cavalo amarelo

— Grandeza de intelecto — respondi — e certamente pela

forçamoral!

Venablesolhouparamimcomumestranhobrilhonosolhos.

— Não poderia então existir um homem mau dotado de

grandeza?—perguntou.

—Claro—gritouRhoda.—VejaNapoleão,Hitler,emilhares

deoutros.Todosgrandeshomens!

— Por causa dos distúrbios que causaram? — perguntou

Despard. — Se você os conhecesse pessoalmente talvez não

tivesseestaimpressão.

Ginger debruçou-se para a frente e correu os dedos pelos

cabelosruivos.

— Que interessante! — comentou. — Será que eles foram

pessoaspatéticasemesquinhas?Comportando-secomogalosde

briga, sentindo-se inferiores aos outros,mesmo que tivessem o

mundonasmãos?

—Ah!não!—replicouRhoda.—Seelesfossemcomovocêos

descrevenãopoderiamtercausadotantacomoção.

— Não sei — interveio a Sra. Oliver. — Afinal, até uma

criançapodeincendiarumacasa.

—Ora,ora—disseoSr.Venables.—Nãovamosentrarna

modaesubestimaromalcomoseelenãoexistisse.Omalexiste,

é poderoso. Geralmente mais poderoso do que o bem. É uma

entidade que precisa ser reconhecida e combatida, senão... —

Venablesfezumgestolargocomasmãos—mergulharemosna

escuridão.

Page 71: Agatha christie - o cavalo amarelo

—Eufuicriadaacreditandonodiabo—disseaSra.Oliver,

comosedesculpando.—Apesardeachá-loumtantotolo.Para

queorabo,oscascosdecabra,eocomportamentodecanastrão

de opereta? Mas minhas novelas sempre tem um personagem

que é um criminoso genial, o público adora este tipo de coisa.

Mas, cada vez se torna mais difícil dar veracidade aos

estereótipos.Émuitomaisnaturalumgerentedebancocometer

um estelionato, ummarido querer se ver livre damulher para

casarcomagovernanta.

Todosriram.

— Não sei se me expliquei bem — disse a Sra. Oliver,

timidamente.—Masvocêsperceberamaondeeuquerochegar...

Concordamoscomela.

Page 72: Agatha christie - o cavalo amarelo

Capítulo6

NarrativadeMarkEasterbrook

Eram mais de quatro horas quando saímos da casa de

Venables.Depoisdoalmoçooanfitriãonosconduziuportodaa

casa,divertindo-seemmostrarsuaspreciosidades.

— Ele deve estar nadando em dinheiro— comentei, assim

que saímos. — As peças de jade, as esculturas africanas, a

coleçãodeprata.Vocêstêmsorteemtê-locomovizinho.

— Nós sabemos disso muito bem — replicou Rhoda. — A

maioria do pessoal das redondezas é simpático mas meio sem

graça.Comparadoaeles,oSr.Venablesédefinitivamenteforade

série.

—Odinheiroqueeletemédefamília?—perguntouaSra.

Oliver.

Despard comentou que atualmente ninguém podia

enriquecer com uma herança por causa dos impostos de

transmissão.

— Contaram-me que ele começou como estivador —

continuou ele — mas acho pouco provável. Venables não fala

sobre a família ou sobre a infância. Um verdadeiro homem

mistério—concluiu,voltando-separaaSra.Oliver.

Esta replicou, prontamente, que estava cansada de

personagens misteriosos. O Cavalo Amarelo era um prédio de

pedra emadeira, ligeiramente afastado da estrada, cercado por

Page 73: Agatha christie - o cavalo amarelo

um jardim murado que dava à casa um agradável aspecto de

outraera.

Confesseimeudesapontamento.

— Não é bastante sinistro — queixei-me. — Não tem

atmosfera.

—Espereatéveracasapordentro—prometeuGinger.

Saltamosdocarroenosdirigimosparaaentrada.Aportafoi

aberta e deparamos com uma mulher alta, ligeiramente

masculina, vestida num tailleur severo de tweed; cabelos

cinzentos e ásperos saltando da cabeça, nariz adunco e olhos

azuis.EraaSrta.ThyrzaGrey.

— Finalmente — disse ela com sua voz de contralto. —

Penseiquetivessemseperdido.

Noteiumaestranhaedisformefiguraatrásdadonadacasa

nosespiandopelassombras,comcuriosidade.Orosto,disforme,

pareciafeitodebarroporumacriança.Umrostosemelhanteaos

que se encontram numa multidão de um quadro primitivo

italianoouflamengo.

Rhoda nos apresentou e explicou que nos demoramos por

causadoalmoçocomoSr.Venables.

— Ah! — exclamou a Srta. Grey. — Eis a razão! Aquela

maravilhosa cozinheira italiana e aqueles tesouros encerrados

naquelamaravilhosa casa.Aindabemque o pobrehomem tem

com que se divertir. Entrem... entrem. Nós também nos

orgulhamos da nossa casinha, século quinze e algumas partes

séculodezesseis.

Page 74: Agatha christie - o cavalo amarelo

Aentradaeraescuraepequena,comumasinuosaescadaria

aofundo.Umagrandelareiraeumquadrocompletavamohall.

—Éaplacado albergue—explicouaSrta.Grey,notando

meuolhar.—Nestaluznãodáparaverbem.OCavaloAmarelo.

—Voulimpá-loparavocê—disseGinger—assimquetiver

tempo.Vaiverquemaravilhavaificar.

—Nãoseibem—disseThyrzaGrey.—Esevocêestragara

placa?—acrescentoubruscamente.

— Claro que não vou estragar! — exclamou Ginger

indignada.—Éminhaprofissão!TrabalhonoMuseudeLondres

—disse,voltando-separamim.—Divirto-meimensamentecom

essascoisas.

— A gente precisa se acostumar com as novas técnicas de

restauração—interveioThyrza.—Quasedesmaioquandovoua

ummuseu,hojeemdia.Todososquadrosparecemquelevaram

umbanhodedetergente.

—Você não vaime dizer que os prefere em tonsmostarda

escuroecinza!—protestouGinger.Elaolhounovamenteparaa

placa. — Iam aparecer tantas coisas. Talvez tivesse até um

cavaleirosobreocavalo!

Passeiaolharaplacacomatenção,ao ladodeGinger.Era

umquadromalfeito,cujoúnicoméritoresidianaantiguidadee

sujeira.Umafiguraamareladeumcavalobrilhandofoscamente

sobreumfundopreto.

—Ei, Sybil, nossos convidados estão falandomal donosso

cavalo!—gritouThyrza.—Jáseviutalimpertinência?

Page 75: Agatha christie - o cavalo amarelo

SybilStamfordisapareceu.Eraumamulheralta,decabelos

escuroseoleosos,umaexpressãodechoroeternaeumabocade

peixeforadoaquário.Usavaumsariverdeescuroquenãolheia

bem.Falavanumavozfracaedesafinada.

— Nosso querido cavalo — disse. — Nos apaixonamos por

estaplacaeachoquefoiacausadeacabarmoscomprandoesta

casa.Nãofoi,Thyrza?Masvamosentrar.

Elanosconduziuparaumpequenoaposentoquedeveriater

sido,antigamente,umbar.Atualmente,tinhasidotransformado

numasaladevisitascampestrecommóveisChippendaleevasos

decrisântemos.

Fomos levados para ver o jardim que deveria ser uma

maravilha no verão e depois voltamos para a casa onde

encontramos a mesa preparada para o chá com sanduíches e

bolos.Carregandoobuledeprataavelhaqueeutinhavistode

relancenaentrada.Estacriadausavaumsimplesaventalverde

e, se bem que seu rosto tivesse um aspecto primitivo, nãome

pareciamaistãosinistro.

Derepente,senti-meirritadocomminhasfantasias.Quanta

bobagememtornodetrêssenhoraseumvelhoalbergue.

—ObrigadaBella—disseThyrza.

—Temtudodequeprecisa?

AvozdeBellapareciaumresmungo.

—Sim,obrigada.

Bella retirou-se sem olhar para os convidados. Antes de

fechar a porta, porém, dirigiu-me um breve olhar. Fiquei

Page 76: Agatha christie - o cavalo amarelo

espantado, sem saber por quê. Naquele olhar haviamaldade e

umaestranhaeíntimacognição.Sentiqueela,semseesforçare

semquerer,sabiaexatamenteoqueeuestavapensando.

ThyrzaGreynotouminhaperplexidade.

— Bella é estranha, não é, Sr. Easterbrook? — perguntou

delicadamente.—Repareicomoosenhoraobservou.

— Ela é das redondezas? — perguntei, tentando parecer

apenasinteressadoporeducação.

— Sim, apesar dos boatos implicarem que ela seja uma

bruxa.

SybilStamfordisbateucomocolares.

—ConfesseSr...Sr...

—Easterbrook.

—Easterbrook.Tenhocertezadequeosenhorjáouviudizer

quepraticamosbruxarias.Confesse!Somosatébemconhecidas

poraqui!

—Enão é paramenos— interveio Thyrza.—Sybil possui

grandespoderes.

Sybilsuspiroufeliz.

—Semprefuifascinadapelooculto—murmurou.—Desde

criançapercebiquepossuíapoderesraros.Aescritaautomática

veio naturalmente, quando eu ainda nem sabia escrever. Eu

costumavaficarsentadacomumlápisnamãoeimediatamente

perdia a noção de tempo e espaço. Claro que eu sempre fui

supersensível...umavezdesmaieiquandofuitomarchánacasa

Page 77: Agatha christie - o cavalo amarelo

deuns amigos. Algo de horrível havia acontecido naquela sala.

Eutinhacerteza!Maistardesoubemosoqueera.Naquelasala,

haviaocorridoumcrimevinteecincoanosantes!

Elaolhouemtomo,triunfante.

— Extraordinário! — comentou o Cel. Despard, tentando

disfarçarairritação.

— Nesta casa, mesmo, ocorreram coisas sinistras — disse

Sybilsombriamente.—Masnós já tomamosasprecauções... já

conseguimoslibertarosespíritosacorrentados.

—Umaespéciedefaxinaespiritual?—sugeri.

Sybilencarou-meduvidosa.

— Que maravilhosa a cor do seu sari — interveio Rhoda,

desconversando.

Sybilsorriu.

— Não é mesmo? Comprei na Índia, onde vivi aventuras

extraordinárias.Estudei iogaeoutras religiõesmasachei todas

muito sofisticadas, distantes demais do primitivo, do natural.

Devemos voltar às origens, aos poderes primitivos. Sou das

poucasmulheresqueconhecemoHaitiprofundamente.Lásim,a

gente toca as fontes naturais do ocultismo,misturadas é claro

comumpequenograudedistorçãoecorrupção.Masaraizestá

presente.

—Quando souberam que eu tinha uma irmã gêmea,mais

velha do que eu apenas algunsminutos—prosseguiuSybil—

resolveramabrirojogo.Osegundogêmeo,dizem,possuisempre

poderes sobrenaturais. Estranho, não é? O senhor precisa

Page 78: Agatha christie - o cavalo amarelo

assistirasdançasdamorte!Elesusamcaveiras,ossosetodosos

apetrechosdoscoveiros.Pás...enxadas...aliásatésevestemde

coveiros... O sacerdote supremo é o Barão Samedi e o deus

invocado é o Legba, único capaz de “remover as barreiras”. O

cultoconsisteemevocarosmortosparaqueelestragamamorte.

Estranho,nãoé?

— Veja — continuou Sybil animadamente, dirigindo-se ao

peitorildajanela.—EsteéomeuAsson,ummorceguinhoseco

todo enfeitado de contas; está vendo estes rabinhos? São de

cascavel!

Olhamos para o objeto com interesse, mas pouco

entusiasmados, enquanto Sybil chacoalhava carinhosamente o

amuleto.

—Muitointeressante—comentouDespardporcortesia.

—Masnãoésóisso...

Porestaaltura,perdio interessepelaconversaecomeceia

olhar em volta. Ao longe, ouvia Sybil discursar sobre feitiçaria,

voodoo,MaitreCarrefour,aCoa,FamíliaGuidé.

Voltei-me e deparei com Thyrza Grey me examinando com

curiosidade.

—Osenhornãoacreditanestashistórias?—murmurouela.

—Poisdevia!Nãopodemosexplicarosobrenatural,apelidando-o

de superstição, ou medo ou preconceito religioso. Existem

verdades e poderes elementares... sempre existiram e sempre

existirão.

—Dissonãotenhoamenordúvida—respondi.

Page 79: Agatha christie - o cavalo amarelo

—Muitobem,venhacomigoàbiblioteca.

Encaminhamo-nospeloterraçoatéojardim.

— Fica ali ao lado da antiga estrebaria— explicou Thyrza

Grey.

A estrebaria tinha sido reconstruída e transformada numa

enorme sala. Dirigi-me, imediatamente, para uma das paredes,

cobertasdeestantesdelivros.

—Asenhorapossuialgumasraridades—comentei.—Este

MalleusMaleficoruméumoriginal?Vejoquepossuiverdadeiros

tesouros!

—Eusei.

—EsteGrimoire,porexemplo,éraríssimo!—retireialguns

volumesdasestantes.Thyrzameobservavacomumestranhoar

desatisfação.RecoloqueinolugaroSadducismusTriumphatus.

— É bom encontrar uma pessoa que sabe admirar meus

tesouros.Amaiorialimita-seabocejaroumanterabocaaberta.

—Podehaveroperigodeexageronapráticadafeitiçariaedo

ocultismo—disseeu.—Comocomeçouaseinteressarporisso?

—Nãoseibem...faztantotempo.Umdiafolheeiumlivroe

devo ter-me impressionado com alguma coisa. É fascinante

estudar o comportamento das pessoas que acreditam no

sobrenatural.

Deiumapequenarisada.

—Aindabemquenãoacreditaemtudooquelê—comentei.

Page 80: Agatha christie - o cavalo amarelo

— Não me julgue pela pobre Sybil. Percebi seu olhar de

superioridade enquanto ela falava! Devo dizer que o senhor se

engana, ela pode ser uma simplória que mistura voodoo com

demoniologia,maspossuiopoder.

—Opoder?

—Nãosaberiadefini-lodeoutromodo.Existempessoasque

se tornam ligações vivas entre este mundo e o mundo dos

poderes invisíveis.Sybil éumadessaspessoas.Éumamédium

deprimeira.Nuncafazcomérciodestedomexcepcional.Quando

eu,elaeBella...

—Bella?

—Sim,Bellatambémpossuipoderes,comotodoomundo.É

apenasumaquestãodegrau.Emconjunto...

Elacalou-se.

—BruxariaLtda.?—sugeri,sorrindo.

—Sequiser.

Olheiparaumvolumequetinhaentreasmãos.

—Nostradamuseetc.?

—Nostradamuseetc.!—concordouela.

—Asenhorarealmenteacreditanisso—disseeu.

—Nãoéquestãodecrença,eusei—disseelatriunfante.

— Como? De que maneira? Por que razão? — perguntei,

olhando-acomcuriosidade.

Page 81: Agatha christie - o cavalo amarelo

Elafezumgestolargocomasmãos,abrangendoasestantes.

— Tudo isso! Tanta bobagem, tantas frases bombásticas!

Mas tente afastar as superstições e os preconceitos da época e

verá que a base é verdadeira. É como religião... vem enfeitada,

semprefoienfeitadaparaimpressionaropovo!

—Nãoentendo.

— Meu caro, o que motiva os homens a procurarem os

feiticeiros,ospajés?

Porduasrazõestãofortesquejustificamoriscodadanação

eterna:apoçãodoamoreovenenodamorte.

—Ah!

—Simples,nãoé?Amoremorte.Apoçãodoamorparase

conseguir a pessoa desejada; a missa negra para conservar o

amante. Esta poção deve ser ingerida em noite de lua cheia,

recitandoosnomesdosdemôniosoudosespíritos,enquantose

desenhanochãoounaparedealgunsrabiscosestranhos.Tudo

isto não adianta nada porque a verdade está no conteúdo

afrodisíacodapoção.

—Eamorte?

—Amorte?—repetiuThyrzacomumrisinhoperturbador.

—Osenhorseinteressapelamorte?

—Comotodoomundo—respondi.

— Será mesmo? — perguntou, sorrindo com um olhar

perscrutador que me surpreendeu. — Sempre houve mais

intercâmbio com a morte do que com o amor. Antigamente,

Page 82: Agatha christie - o cavalo amarelo

porém, faziam tanta encenação. Veja os Borgias e os venenos

secretos. Sabe o que eles usavam? Arsênico comum, como

qualquermulherquedesejaseverlivredomarido.Hojeemdia,

porém, já estamosmais adiantados.A ciência expandiunossas

fronteiras.

—Venenosquenãodeixamvestígios?—pergunteinumtom

cético.

—Venenos!Bah!Istoéparaamadores.Vieuxjeu,monami.

Existemnovoscaminhos.

—Quais,porexemplo?

—Amente.O conhecimento do que é amente, do que ela

podefazeredoquepodemosfazercomela.

—Queinteressante.Continue.

—Oprincípioébastantedivulgado.Éomesmoqueospajés

empregavamnascomunidadesprimitivas.Nãosemataavítima,

simplesmenteordena-sequeelamorra.

—Sugestão?Masnãofuncionaseavítimaédescrente!

— Talvez com os europeus não funcione— ela corrigiu.—

Não tenho tanta certeza. Mas não é aí que eu quero chegar.

Através da psicologia já nos desenvolvemos mais do que os

feiticeiros.Odesejodemorrerexisteeestápresenteemtodosos

homens.Nissoéquesetrabalha.

—Interessante!—murmureinumtomcientífico.—Deve-se

influenciaravítimaacometersuicídio.Éisto?

— Não exatamente. O senhor já ouviu falar nas doenças

Page 83: Agatha christie - o cavalo amarelo

traumáticas?

—Claro.

—Daspessoasqueinconscientementenãodesejamvoltarao

trabalho e que por isso ficam realmente doentes, e passam a

sentir todos os sintomas de uma enfermidade, às vezes até

dores? Os médicos até hoje são incapazes de explicar este

fenômenosatisfatoriamente.

— Estou começando a compreender — disse eu

vagarosamente.

—Paradestruiravítimaprecisa-seexercerumpertopoder

sobreo “eu” inconsciente.Deve-se estimular odesejodemorte.

Percebeagora?—perguntou ela entusiasmada.—Umadoença

verdadeira poderá ser induzida, causada pelo próprio desejo de

autodestruição.Uma pessoa deseja ficar doente, desejamorrer,

portantoficadoenteemorre.

Elaatirouacabeçaparatrásnummeneiodetriunfo.Senti-

mecompletamentegelado.Quantabesteira,pensei,Estamulher

élouca...mas,mesmoassim...

ThyrzaGreysoltouumarisada.

—Osenhornãomeacredita?

—Achosuasteoriasfascinantes,Srta.Grey,porém,comoa

senhoritapretendeestimularestedesejodemortequetodosnós

possuímos?

— É um segredo. O modo, os recursos! Existem

comunicações sem contato. Pense no telégrafo, no radar, na

televisão. As experiências em percepção extra-sensorial, por

Page 84: Agatha christie - o cavalo amarelo

exemplo, não se desenvolveram como era esperado, porque as

pessoasnãoentenderamoseuprincípiobásico.Pode-sechegara

uma experiência por acidente,mas depois que percebemos seu

mecanismopodemosempregá-losempre...

—Asenhoritasaberia,porexemplo?Elaficoucaladaporuns

instantes.

—Nãomepeça,Sr.Easterbrook,pararevelartodososmeus

segredos.

Segui-aatéaportadojardim.

—Porquemecontoutudoisto?—perguntei.

— Porque o senhor compreendeu meus livros. Às vezes, a

genteprecisadealguém...paraconversar.Alémdomais...

—Sim?

—Euachei...eBellatambém...quetalvezosenhorpudesse

viraprecisardenós.

—Precisar?

— Bella acha que o senhor veio à nossa procura. Ela

dificilmenteseengana.

—Porqueeuhaveriadeprecisardassenhoras?

—Isto—respondeuThyrzaGrey,suavemente,—aindanão

sabemos.

Page 85: Agatha christie - o cavalo amarelo

Capítulo7

NarrativadeMarkEasterbrook

I

— Finalmente! Estávamos a sua procura — disse Rhoda,

entrandocomosoutrosconvidados.—Éaquiquevocêsfazemas

sessões?

— Você está bem informada — respondeu Thyrza Grey,

rindo.—Nestacidadetodossabemmaissobreavidadosoutros

do que sobre as próprias. Sei que temos fama de sinistras.Há

algunsanosatrásseríamosqueimadascomobruxas.Paradizera

verdade, umas duas tias-avós, lá na Escócia, pereceram na

fogueira.Bonstemposaqueles!

—Semprepenseiquevocêfosseirlandesa!

—Sóporpartedepai.Doladodeminhamãesouescocesa.

Nossapitonisa,Sybil,édescendentedegregos;sóBellaéqueé

cemporcentoinglesa.

—Ummacabrocoquetelhumano—comentouDespard.

—Nemdiga!

—Atéqueébemdivertido—interveioGinger.

Thyrzalançou-meumrápidoolhar.

—Eutambémacho.Asenhora—disseThyrza,voltando-se

paraaSra.Oliver—deveriaescreverumlivropolicialbaseadona

magianegra.Possolhedarmuitasinformações.

Page 86: Agatha christie - o cavalo amarelo

ASra.Oliverlimitou-seapiscarosolhoseperderagraça.

—Minhasnovelassótêmcrimesnormais—desculpou-sea

Sra. Oliver, como uma cozinheira que só faz bem um tipo de

prato.—Limito-mea falardepessoasquequeremafastarseus

inimigosetentamfazê-lodeumaformainteligente.

—Inteligentedemaisparaomeugosto—interveioDespard,

olhandoparaorelógio.—Rhoda,euacho...

—Émesmo!Vamosindo.Émuitotarde.

Cumprimentoseendereçosforamtrocadosefinalmentenos

dirigimosparaasaída,porumportãolateral.

— Quantas aves — comentou Despard, examinando os

galinheiros.

—Detestogalinhas—disseGinger.—Ocacarejodelasme

deixalouca.

— São frangos, namaioria— esclareceuBella, aparecendo

pelaportadosfundos.

—Frangosbrancos?—perguntei.

—Nósprecisamosdeles—resmungouBella,comumolhar

malicioso.

—QuemseocupadosfrangoséBella—informouThyrza.

SybilStamfordisreapareceuparaasdespedidas.

—Nãogosteidaquelamulher—disseaSra.Oliver,quando

estávamosnocarro.—Nãogosteimesmo.

Page 87: Agatha christie - o cavalo amarelo

—NãoleveThyrzaasério—disseDespard,comindulgência.

—Elasediverteemparecersinistra.

—Nãoestou falandodela.Éumacriatura semescrúpulos,

umaoportunista.Éaoutraquemérealmenteperigosa.

—Bella?Umavelhaestranhamas...

—Nãoédelaqueestoufalando.NãogosteidataldeSybil.É

umasonsacomaquelesenfeiteseplumas,comaquelaconversa

fiada sobre voodoo e reencarnações. (O que eu me pergunto é

porque uma pessoa feia, velha ou pobre não se reencarna.

Sempre sãoprincesas egípcias ou escravasbabilônias.Dápara

desconfiar!)VoltandoaSybil,apesardeserumaidiota,creioque

é capaz de conseguir algumas coisas excepcionais... não estou

me expressandobem... o que quero dizer é que ela poderia ser

usada por alguém. Aposto que não entenderam... uma palavra

sequer do que eu disse — arrematou a Sra. Oliver num tom

patético.

—Euentendi.—disseGinger.—Eachoatéquetemrazão.

—Precisamoscompareceraumasessão,issosim!

—Dejeitoalgum—disseDespardcomfirmeza.—Nãoquero

vê-lametidanestasconfusões.

A discussão acabou entre risadas, e por esta altura a Sra.

Oliverjáestavapreocupadacomohoráriodostrens.

—Podevoltarcomigo—disseeu.

ASra.Oliverpareceuemdúvida.

—Achomelhorvoltardetrem...

Page 88: Agatha christie - o cavalo amarelo

— Não vai dizer que está com medo de andar comigo de

carro.Sabequesouótimochofer.

— Não é isso, Mark. É que tenho um enterro para ir,

amanhã. Não posso chegar tarde. — A Sra. Oliver deu um

suspiro.—Odeioenterros.

—Eporquevai?

— Não posso deixar de ir, principalmente no caso de uma

amigacomofoiMaryDelafontaine.Seiqueelagostariadequeeu

fosse...

—Imagine!—exclamei.—Delafontaine...

Todosmeolharamcomcuriosidade.

— Não se espantem. É que eu ouvi este nome em algum

lugar não faz muito tempo. Não foi a senhora? — perguntei,

dirigindo-meparaaSra.Oliver.—Nãomedissequeiavisitá-la

numacasadesaúdeoucoisaparecida?

—Épossível.

—Dequeelamorreu?

ASra.Oliverfranziuatesta.

—Polineurisetóxica—respondeu.

Ginger olhou para mim curiosa, tentando ler meus

pensamentos.

Quandochegamospretexteiquererdarumavoltaparafazer

a digestão. Larguei o pessoal, antes que alguém se oferecesse

paravircomigo.Precisavaficarsóparapoderpensar.

Page 89: Agatha christie - o cavalo amarelo

O que estava acontecendo? Tudo tinha começado com o

estranhocomentáriodePoppy,recomendandooCavaloAmarelo,

casoalguémquisesseeliminaruminimigo.

Em seguida, aquele encontro com Jim Corrigan, a lista de

“nomes” relacionada com a morte do padre Gorman. Na lista

estavamescritososnomesdeHeskethDubois,Tuckerton,oque

me fez lembrar do restaurante do Luigi. Lembrei-me também

vagamente do nome Delafontaine. A Sra. Oliver falou numa

amigadoente,essaamiganoentantotinhamorrido.

NãoseiporquefuiprocurarPoppynalojadefloresondeela

negou veementemente saber qualquer coisa sobre o Cavalo

Amarelo. O que era mais estranho ainda foi que ela pareceu

assustada.

Ehoje...aconversacomThyrzaGrey.

CertamenteoCavaloAmareloeasproprietáriasnãotinham

coisaalgumaquevercoma listadenomes.Masporqueentão

minhamente insistiaemagrupá-los?Porqueeuimaginavaque

deveriaexistirumelodeligaçãoentreeles?

A Sra. Delafontaine certamente morava em Londres.

Thomasina Tuckerton vivia em Surrey. Ninguém daquela lista

deveriaterligaçãoalgumacomovilarejodeMuchDeeping.Anão

serque...

Parei em frente do King’s Arms, um elegante bar da

localidade.Resolvientrar.Comoeracedoobaraindanãoestava

funcionando. Inalei um odor de fumaça. Perto da escada uma

plaqueta:Escritório.Olhei emvolta.Tudodeserto.Numbalcão,

um velho livro de hóspedes; distraidamente folheei o mesmo,

Page 90: Agatha christie - o cavalo amarelo

passandoosolhos.Poucosnomes,umamédiadeunscincoou

seis hóspedes por semana, a maioria só pernoitando uma ou

duas noites. Comecei a examinar os nomesmais atentamente,

pouco depois fechei o livro. O lugar continuava deserto. Como

realmentenãoprecisavafalarcomogerenteresolvisair.Anoite

estavafria.

Seria coincidência que Sandford e Parkinson tinham se

hospedado, em épocas diversas, no mesmo hotel no ano

passado? Os dois homens estavam na lista do padre Gorman.

OutronomequeeuhaviaguardadoeraodeMartinDigby,quese

era quem eu pensava que fosse, era o sobrinho de minha tia

Min...oumelhorLadyHesketh-Dubois.

Passei a andar a esmo, procurando com quem pudesse

conversar. Jim Corrigan ou David Ardingly ou Hermia, sempre

tãosensata...Euestavaconfuso,cheiodepensamentoscaóticos

enãoqueriaficarsó.Oqueeuqueria,verdadeiramente,erauma

pessoasensataquediscutissecomigoemeconvencessedeque

euestavaerrado.

Depoisdeandarpelas vielas lamacentas fuipararnaporta

dacasadovigário.Resolvientrar.

II

— Não funciona — disse a Sra. Dane Calthrop, abrindo a

porta.

Eujáhaviadesconfiado.

— Consertaram duas vezes — continuou ela — mas não

durou.Porissoficosemprealertaparanãoperdercoisaalguma

Page 91: Agatha christie - o cavalo amarelo

deimportância.Éimportante?

—Sim,bem...querodizer...paramimé.

—Éissoqueeuqueriasaber—disseela,olhandoparamim

com apreensão. — Pelo jeito parece grave. Quer falar com o

vigário?

—Nãosei.

Na verdade eu queria falar com o vigário, mas naquele

momentoestavaemdúvida.SemquereraSra.DaneCalthropme

deuaresposta.

—Meumaridoéumhomemmuitobomalémdeservigárioe

religioso. Isto às vezes dificulta as coisas. As pessoas boasnão

entendemomal.Émelhorfalarcomigo—concluiueladepoisde

umabrevepausa.

Desenheiumligeirosorriso.

—Éseudepartamento?

— Acho que sim. Numa paróquia é necessário alguém que

conheçatodosospecadosqueexistemnomundo.

—Masnãoéestaaprofissãodoseumarido?Pelomenosa

profissãooficial?

—Eleperdoaospecados—corrigiuaSra.DaneCalthrop.—

Absolve-os, eu não posso fazer isto, mas em compensação —

prosseguiu ela animadamente— posso dividi-los, classificá-los.

Tomando conhecimento dos pecados podemos impedir que eles

prejudiquemaspessoas.Nãopossoajudarmuito,sóDeuspode,

como o senhor já sabe. Ou não sabe? Hoje em dia ninguém

Page 92: Agatha christie - o cavalo amarelo

sabe...

— Não posso competir com seu profundo conhecimento da

matéria, mas gostaria de impedir que prejudicassem outras

pessoas.

Elaolhouparamimespantada.

—Éistoentão?Émelhorentrar.

A saladaparóquia eraumapeça espaçosa edesarrumada,

repleta de folhagens mal tratadas; apesar disso não tinha um

aspectolúgubremassimdepaz.Asvelhaspoltronas,umrelógio

depé,tudoenfim,davaaovisitanteacalmanecessáriaparauma

conversaprofundaemquesepudessedizertudooquesepensa,

esquecendoosproblemasexteriores.

Nestasala,pensei,muitasmoçasdeviamterchoradoquando

vieramconfessarqueestavamgrávidaseconfiandonaSra.Dane

Calthrop receberam a ajuda compreensiva, e nem sempre

ortodoxa, que ela podia oferecer; outros vieram se queixar dos

sogros ou sogras; algumas mães justificaram os filhos; casais

pediramajudaparaaresoluçãodosproblemasconjugais.

E cá estava eu, Mark Easterbrook, professor, estudioso,

autor,confrontandoumasenhorasimpáticadecabelosgrisalhos

e olhos bondosos, pronto para confessar meus problemas. Por

quê?Não sabia!Mas tinha certezade que tinha vindoao lugar

certo

—AcabamosdetomarchácomThyrzaGrey—disseeu.

Não era difícil explicar certas coisas à Sra. Calthrop. Ela

possuíaodomdainferência.

Page 93: Agatha christie - o cavalo amarelo

—Compreendo. O senhor ficou perturbado? Também acho

quesãotrêsmulheresmuitoestranhas!Vivomeperguntandose

tanta bazófia é necessária... como regra geral sei que cão que

ladra não morde mas... Elas podiam ao menos ser mais

discretas.Agemcomoseospecadosquecometemnãofossemtão

terríveiseporissodiscutemcomamaiornaturalidade.Opecado

nofundoéumacoisinhatãoignóbiledesprezível,queaspessoas

sentem obrigação de engrandecê-lo ou torná-lo importante.

Geralmenteasbruxasdacidadenãopassamdevelhastolasque

sedivertememassustaraspessoas.Aliásnãoédifícilassustar

oscrédulos.Quando,porexemplo,asgalinhasdeDonaFulana

morrem,émuitofácilmenearacabeçaemurmurar:Seaomenos

omeninonãotivessemaltratadoagatadelaasemanapassada!

BellaWebb talvez seja este tipo de feiticeira ou talvez seja algo

mais... este outro tipo de maldade é mais perigoso e não está

ligado à necessidade de impressionar as pessoas. Sybil

Stamfordis é uma das criaturasmais tolas que conheci mas é

realmenteumamédiumeThyrza,bem...essaeunãosei...oque

eladisseparaosenhor?Foielaquemoperturboudetalforma?

— A senhora tem um grande tirocínio, Sra. Calthrop.

Gostaria de que me dissesse se acha possível alguém destruir

umapessoaadistância,semconexãoaparente?

OsolhosdaSra.DaneCalthropsearregalaram.

— O senhor quer dizer assassinar? Fala em destruir no

sentidofísicodoverbo?

—Sim.

—Eudiriaqueébesteira—retrucouelacomênfase.

Page 94: Agatha christie - o cavalo amarelo

—Ah!—suspireialiviado.

—Mas posso estar enganada— continuou ela.—Meupai

considerava os aeroplanos uma impossibilidade e meu avô

provavelmentetinhaestamesmaopiniãoarespeitodasestradas

deferro.Osdoistinhamrazãonaépoca,porqueessascoisasnão

existiam.DoqueThyrzaGreypretendesercapaz?Ativarumraio

mortal? Ou desenhar pentagramas no chão e invocar forças

ocultas?

—Asenhoraestámedevolvendoaobjetividade—respondi,

sorrindo.—Aquelamulherdeveter-mehipnotizado.

—Nãocreio.Osenhornãomeparecetãosugestionável.Deve

terhavidooutracoisa...queantecedeuavisita.Oquefoi?

—Temrazão.

Descrevi o melhor possível o crime do padre Gorman e a

históriadePoppysobreoCavaloAmarelo.Emseguida, tireido

bolsoalistadenomesqueoDr.Corriganmehaviadado.

—Hummm,compreendo—disse ela,—estaspessoas têm

algoemcomum?

—Nãosabemos.Podeserchantagemoudrogas...

—Nãocreio—disseaSra.Calthrop.—Enãoé istoqueo

preocupa.Osenhorestápreocupadocomapossibilidadedeeles

estaremmortos...

Suspirei.

— Sim é isso. Só não tenho certeza. Três já morreram:

Minnie Hesketh-Dubois, Thomasina Tuckerton, Mary

Page 95: Agatha christie - o cavalo amarelo

Delafontaine. Todas as três de causas naturais, como Thyrza

Greydizsercapazdeeliminarasvítimas.

—Eladisseisso?

— Não exatamente. Ela não se referiu a uma pessoa

especificamente,expôssomenteumapossibilidadecientífica.

— Que parece ser bastante improvável — concluiu a Sra.

Calthrop,pensativa.

—Seibemdisso.Naturalmentenão levariaestaconversaa

sériosenãofosseahistóriadoCavaloAmarelo.

—Ah!OCavaloAmarelo.

ASra.Calthropficoucaladaporunsinstantes.Emseguida,

levantouacabeça.

—Nãogostodisso—disseela.—Sejaláoquefortemosque

pôrumfimnestahistória.

—Seibem...masquepodemosfazer?

—Osenhorprecisadescobrirtudoesemperdadetempo—

disse a Sra. Calthrop, passando pela sala, cheia de energia e

atividade.—Já!Nãoconhecealguémquepossaajudá-lo?

Pensei em Jim Corrigan que eliminei imediatamente pois

viviaocupado.DavidArdinglyquenãoacreditariaemmimeem

Hermia, uma mulher inteligente, lógica, um pilar de força e

sabedoria.Minhanoiva...

— Pensou? Ótimo! — exclamou a Sra. Dane Calthrop. —

Vigiareiastrêsbruxasapesardeacharquearespostanãoestá

comelas.É comoouvir as sandicesdeSybil sobrepirâmides e

Page 96: Agatha christie - o cavalo amarelo

templos egípcios, e no entanto existem pirâmides e templos

egípcios. Creio, contudo, que ThyrzaGrey sabe algo e usa este

conhecimento para pavonear seu ocultismo, engrandecendo

destaformasuaimportância.Aspessoas,àsvezes,seorgulham

da própriamaldade. Só os bons não sentem esta necessidade.

Estranho,nãoé?Creioqueéistoquechamamhumildadecristã;

isto é, o desconhecimento da própria bondade.— Ela calou-se

poruns instantese finalmenteconcluiu:—Oqueprecisamosé

umelo.UmaligaçãoentreestesnomeseoCavaloAmarelo.Algo

palpável.

Page 97: Agatha christie - o cavalo amarelo

Capítulo8

OInspetorLejeunelevantouacabeçaaoouvirumassobiono

corredor.EraoDr.Corrigan.

—Desculpeinterrompê-lomasnãoencontreiálcoolnochofer

doJaguar.Oguardadeveterconfundidocomhalitose.

Lejeuneporémnãoestavainteressadonestasocorrências.

—Entreevenhadarumaolhadanisto.Corriganapanhoua

cartaqueoinspetorlheestendeu.Aletraeraclaraepequena:

Everest,Bournemouth

CaroInspetorLejeune:

Osenhordeveselembrarquepediuparaserinformadocaso

euvisseohomemqueseguiuopadreGormannanoiteemqueo

assassinaram.

Fiquei alerta, mas não consegui vê-lo outra vez. Ontem

porémfuiaumafestanumacidadezinha,atraídopelonomeda

Sra. Oliver, famosa escritora policial, que segundo contava iria

autografar seus livros; como sou grande fã da referida autora

resolviir.Oqueencontrei,porém,paraminhagrandesurpresa,

foi o homemque eu descrevi para o senhor na noite do crime.

Parecetambémqueeledeveter-seacidentadopoisestavanuma

cadeira de rodas. Discretamente consegui descobrir que se

tratava de um residente deMuchDeeping, chamado Venables,

proprietário de uma mansão chamada Priors Court. Disseram

tambémqueéumhomembastanterico.

Page 98: Agatha christie - o cavalo amarelo

Esperoqueestasnotíciassejamdoseuinteresse.

Sinceramente,

ZachariahOsborne

—Queacha?—perguntouLejeune.

—Nãomepareceprovável—respondeuCorrigan.

—Nãovamosnosdeixarlevarpelasaparências...

—Este taldeOsbornenãopoderia tervistopessoaalguma

numanoitedenevoeirocomoaquela.Vocêsabemuitobemque

cada vez que a polícia pede uma informação sobre um

desaparecidosemprevemumloucoprestardeclarações.

—MasOsbornenãoédessetipo—disseLejeune

—Quetipoé?

— É um farmacêutico respeitável, antiquado, e muito

observador.Osonhodavidadeleépoderumdiaidentificarum

assassinoquetenhacompradoarsêniconasuafarmácia!

Corriganriu.

—Entãoestacartapodeserumtípicocasodepensamento

mágico...

—Talvez.

CorriganolhouparaLejeunecomseriedade.

—Entãovocêachaquetalvezeletenharazão?

—Nãocustanadafazermosalgumasaveriguaçõessobreeste

Page 99: Agatha christie - o cavalo amarelo

Sr.Venables.

Page 100: Agatha christie - o cavalo amarelo

Capítulo9

NarrativadeMarkEasterbrook

I

—Avidanocampoéoutracoisa—exclamouHermia.

Tínhamosacabadodejantar.Anossafrenteumbuledecafé

fumegava.

Olhei para ela surpreso. Durante meia hora eu vinha

relatando minha história, que ela ouviu com interesse e

sagacidade. O que mais me irritou foi o tom indulgente do

comentáriodeHermia.

— Quem disse que o campo é monótono e as cidades

excitantesnãosabeoqueéviver—prosseguiuela.—Asbruxas

serefugiaramnasaldeias,eajudadaspeloscamponesesoficiam

missas negras; a superstição campeia, solteironas sacodem

guizosedesenham,nochão,símboloscabalísticos.Nãoseicomo

aindanãoescreveramsobreisso.Porquevocênãotenta?

— Não cheio que você tenha entendido o que eu estava

tentandodizer.

— Claro que entendi, Mark. Achei maravilhoso,

interessantíssimo. Parece uma página histórica ligada a uma

lendamedieval.

—Nãoestouinteressadoemhistória—respondiirritado—e

sim,emfatos.Numalistadenomesficosabendooqueaconteceu

aalgumasdessaspessoas,masoqueacontecerácomosoutros?

Page 101: Agatha christie - o cavalo amarelo

—Vocênãoestásedeixandolevarpelaimaginação?

— Não — respondi obstinado. — Não creio. A ameaça é

verdadeiraenãosoueuquempensaassimAmulherdovigário

concordacomigo.

— Ah! A mulher do vigário — comentou Hermia com

desprezo.

—Nãodiga“amulherdovigário”nestetom.Trata-sedeuma

senhorainteligenteeculta.Oqueeurelateiéverdade,Hermia.

Hermiadeudeombros.

—Podeser.

—Masvocênãoestáconvencida?

—Achoquevocêémuito fantasioso.Concordoqueaquelas

solteironas medievais acreditem no que dizem ser capazes de

fazer.Achomesmoqueelasdevemserhorripilantes.

—Enãosinistras?

—Ora,Mark!

Calei-meporunsinstante.Sentiminhacabeçaturvaporum

momento,oscilandoentrealuzeaescuridão.Aluzirradiadapor

HermiaeaescuridãorepresentadapeloCavaloAmarelo.Afinal,

ela estava iluminada pela luz elétrica, a mesma luminosidade

artificial e cotidiana que ilumina todas as coisas.Minhamente

voltouparaoescuro.

—Queroinvestigarestahistória,Hermia.Vouatéofim.

—Concordo,achoqueéocerto.Devesermuitointeressante

Page 102: Agatha christie - o cavalo amarelo

eatémesmodivertido.

—Nãotemnadadedivertido—protestei.—Queroqueme

ajude—continueimaiscalmo.

—Ajudá-lo?Como?

—Nasinvestigações.Chegaremosàsúltimasconseqüências.

— Mas meu querido, no momento eu estou ocupadíssima.

Tenho o artigo para o jornal, aquele trabalho sobre Bizancio e

prometiadoisalunos...

Elaprosseguiu,explicandonoseuirritantetomracional.Eu

nemmedeiotrabalhodeouvir.

— Sei, sei — disse eu, finalmente. — Você já está

sobrecarregadademais.

—Estoumesmo—sorriuHermiaaliviada.

Maisumaveznoteiosorrisodeindulgênciamaternal,como

seeufosseummeninoocupadocomumnovobrinquedo.

Maldição! pensei. — Não sou uma criança, não estou

procurando uma mãe, especialmente uma mãe do tipo de

Hermia.Minhamãeforaencantadoraeincompetente,cercadade

amoreamparoportodosnósqueadorávamoscuidardela.Olhei

paraHermia friamente: tãobonita, tãomadura, tão intelectual,

tãoculta!E...tão...tão...infinitamentechata!

II

Namanhã seguinte tentei em vão encontrar Jim Corrigan.

Deixei recado que estaria em casa às seis horas, caso ele

Page 103: Agatha christie - o cavalo amarelo

quisesse aparecer para um drinque. Como ele era um homem

muito ocupado duvidei que pudesse vir mas, para minha

surpresa, ele apareceu às dez para as sete. Enquanto eu

preparava umuísque com soda, Corrigan deu uma olhada nos

quadroselivros.Concluiu,porfim,quepreferiaternascidoum

imperadorMongolemvezdeummédicolegista.

— Embora esses imperadores — continuou Corrigan,

sentando-se — sofressem muito com as mulheres. Deste

problemaeuescapei...

—Nãoécasado?

—Dejeitoalgum.Vocêtambémnão,ajulgarpelaconfortável

bagunça em volta. Uma esposa arrumaria isto tudo em cinco

minutos.

Argumentei que asmulheres não eram tãomás assim.Em

seguida,encaminhei-me,commeudrinque,paraapoltronaem

frente.

— Deve ter-se perguntado por que eu precisava falar com

vocêtãourgentemente.Acontecequedescobrialgoquecreiotem

algumarelaçãocomaconversaquetivemosháalgumtempo...

—Conversa?Ah!...sim...sobreopadreGorman?

— Isto mesmo. Para começar o nome “Cavalo Amarelo”

significaalgumacoisaparavocê?

— Cavalo Amarelo? Cavalo Amarelo? Não, acho que não...

Porquê?

—Porquetalveztenhaalgumarelaçãocomalistadenomes

que você mostrou. Estive no interior com uns amigos... um

Page 104: Agatha christie - o cavalo amarelo

vilarejo chamado Much Deeping. Levaram-me a uma velha

hospedariachamada:OCavaloAmarelo.

—Espereai!MuchDeeping?ÉpertodeBournemouth?

—Unsdezquilômetrosmaisoumenos...

—PoracasovocêconheceuumsujeitochamadoVenables?

—Conheci.

—Émesmo?—Corrigan empinou-sena cadeira, animado.

—Quecoincidência.Comoéele?

—Umhomemmuitoestranho.

—Émesmo?Como,estranho?

—Demuitapersonalidade.Emborasejavitimadeparalisia

infantil...

—Oquê?—interrompeuCorrigan.

— Ele teve poliomielite há alguns anos. Ficou totalmente

paralisadodacinturaparabaixo.

Corriganatirou-separatrás,quasedeitandonapoltrona.

— Acabou... bem que eu achei bom demais para ser

verdade...

—Explique-se...

— Você precisa conhecer o Inspetor Lejeune. Quando

Gorman foi assassinado Lejeune pediu para as pessoas que

tivessem visto o padre naquela noite se apresentarem para

prestarinformações.Comosempreamaioriafoiinútil.Contudo,

Page 105: Agatha christie - o cavalo amarelo

um tal de Osborne, um farmacêutico, contou que viu Gorman

passar pela farmácia dele, naquela noite, seguido por um

homem.Éclaroquenahoraelenãodeumaioratençãoaofato,

embora mais tarde tenha descrito o tipo detalhadamente,

garantindo que seria capaz de reconhecê-lo caso o encontrasse

outra vez: Dias atrás, Lejeune recebeu uma carta de Osborne,

que atualmente está morando em Bournemouth, dizendo que

compareceuaumaquermesseequeviuosuspeitonumacadeira

derodas.SegundoOsborneonomedotipoéVenables.

Corriganolhouparamim.Meneeiacabeça.

—Venablesrealmenteestavanaquermesse.Masnãopodia

ter seguidoopadrenaquelanoite, seria fisicamente impossível.

Osborneseenganou.

—Eledescreveuosuspeitocomumaimpressionanteriqueza

de detalhes. Um metro e oitenta, nariz adunco, pronunciado

pomodeAdãoetc.Confere?

—Sim,éadescriçãodeVenables.

— Acho que Osborne não é tão bom fisionomista quanto

imagina.ÉóbvioqueeleestáconfundindoVenablescomalgum

sósia.OquetemistotudocomaestalagemdoCavaloAmarelo?

— Você não vai acreditar! Para dizer a verdade nem eu

acredito.

—Conte.

RelateiminhaconversacomThyrzaGrey.

—Quantabesteira!—foiareaçãoimediatadeCorrigan.—O

quehácomvocê?

Page 106: Agatha christie - o cavalo amarelo

—Nãosei.

— Não sabe? Búzios, galos brancos, missas negras,

sacrifícios humanos. Três velhas solteironas expelindo raios

mortais.Éloucura,loucuracompleta.

—Eusei—concordeisombriamente.

— Não concorde comigo desta maneira, Mark. Dá a

impressãodequevocêestácerto.Nofundo,vocêachaqueestá

certo?

— Posso fazer uma pergunta? Existe realmente uma teoria

científica sobre o desejo de morte sempre presente no ser

humano?

Corriganpareceuhesitar.

—Nãosoupsiquiatra.Aquientrenósachoessescarasuns

loucos. Vivem formulando teorias absurdas. Nós, da Polícia,

detestamosastestemunhaseruditasquesempreaparecempara

defenderoréueexplicarporqueelematouavelhinhaeroubou

odinheirodocofre.

—Vocêprefereateoriaglandular?

Corrigansorriu.

—Concordotambémquesouumteórico.Masminhateoria

está apoiada numa base física. Agora esta conversa de

subconsciente!

—Vocênãoacreditanela?

—Claroqueacredito.Masnãocomoessesdementes.Seique

existeumdesejodemorteinconscientemasnãocreioqueatinja

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osexagerosdessespsiquiatras.

—Masexiste!—insisti.

—Porquevocênãocompraumbomlivrodepsicologia?

—ThyrzaGreydizquejáatingiuoâmagodestaciência.

— Thyrza Grey! — remendou Corrigan, com desprezo. —

Como uma solteirona do interior pretende entender problemas

psicológicostãoprofundos?

—Eladizqueentende.

—Eeudigoqueébesteira.

—Éareaçãotípicadaspessoasquenãoqueremmudarsuas

teoriaspreconcebidas.

—Querdizerquevocêengoliutodaaquelaxaropada?

— Não é bem isso — retruquei. — Quero saber se existe

algumateoriacientificabaseadanestahistória.

—Teoriacientífica!

—Estábem,estábem.Sóestavaquerendosaber.

—DaquiapoucovocêvaidizerqueelaéadonadaCaixa.

—DonadaCaixa?

—Uma dessas invencionices tipo Nostradamus. Tem gente

queacreditaemqualquercoisa.

—Pelomenosdigacomovaiindoalistadenomes.

—Meupessoal tem trabalhadonisso,masnãoé fácil.Tipo

Page 108: Agatha christie - o cavalo amarelo

do serviço rotineiro que leva tempo. Não é fácil acharmos uma

pessoasópelosobrenome.

— Examinemos a questão por outro ângulo. Num período

relativamentecurto...deumanoemeioparacá,porexemplo...

cada um desses sobrenomes apareceu num atestado de óbito,

nãoémesmo?

Corriganolhouparamimespantado.

—Nãoseiaondequerchegar,mastemrazão.

—Essesnomes,portanto,têmemcomumsomenteamorte.

— O que não quer dizer muita coisa, Mark. Você sabe

quantas pessoas morrem diariamente? Além do mais, alguns

nomesdatallistasãobastantecomuns...

—Delafontaine—disseeu.—MaryDelafontaine.Nãoéum

nomemuitocomum.Morreuquinta-feirapassada.

—Comosabe?Leunojornal?

—Umaamigadelamecontou.

—Nãomorreudenadasuspeito,segundosoube.Paradizera

verdadeacausamortisdepessoaalgumadessalistaésuspeita.

Nãosetratadeacidentesesimdemortesnaturais:pneumonias,

hemorragiascerebrais,tumores,umcasodepoliomielite...como

vê,nadasuspeito.

— Não é acidental, nem envenenamento. Uma doença que

leva àmorte.Exatamente comoThyrzaGreypromete ser capaz

dematar.

— Você acha possível que essa mulher possa causar

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pneunomia numa pessoa que ela não conhece e que inclusive

moraemoutracidade?

— Não disse isso. Ela é quem diz que é possível. Acho

fantásticoegostariadeacreditarquefossementira.Masexistem

fatosestranhos,comoamençãodoCavaloAmarelo,relacionados

em conexão com o afastamento de pessoas indesejáveis. Nas

redondezasviveumhomemquefoireconhecidocomoosuspeito

que seguiu o padre Gorman na noite do crime quando foi

reveladoaopadreumcasode“grandemaldade”.Nãoachamuita

coincidência?

—Mas,segundovocê,essesuspeitonãopodeserVenables,

umavezqueestesenhoréparalítico.

—Quemsabenãoéumaparalisiafalsa?

—Não.Osmembrosnãoestariamatrofiados.

— Por esse lado não poderemos prosseguir — suspirei. —

Pena!Seexisteumaorganizaçãoqueseespecializana“remoção”

depessoas,Venablesseriaocabeça.Éumhomemriquíssimo...

mas eu gostaria de saber como ficou tão rico. — Fiquei uns

instantescalado,formulandomeuraciocínio.

— Essas pessoas que morreram desta ou daquela doença

deixaramoutrasquelucraramcomsuamorte?

—Semprealguémlucracomamortedeumapessoa.Nesses

casos,porém,nãohouvenadaquenosparecessesuspeito.

—Sei.

— Lady Hesketh-Dubois, como você sabe, deixou uma

herançade50.000librasparaumsobrinhoeumasobrinha.Ele

Page 110: Agatha christie - o cavalo amarelo

vive no Canadá, e ela no Norte da Inglaterra. É verdade que

ambos necessitavam do dinheiro. Thomasina Tuckerton era

herdeira de uma grande fortuna; caso morresse, antes de

completarvinteeumanos,odinheiroreverteriaasuamadrasta

que me pareceu ser uma criatura honesta. No caso da Sra.

DelafontaineaherançafoiparaumaprimaquemoraemQuênia.

— Todos conspicuamente ausentes — comentei, com

amargura.

Corriganfuzilou-secomosolhos.

—UmtaldeSanford,queempacotoutambém,deixouuma

esposamuitomaisjovemquejácasououtravez.Ofalecidonão

queriadar-lheodivórcio.SydneyHarmondsworth,quefaleceude

uma hemorragia cerebral, estava sendo procurado pela policia:

suspeita de chantagem. Creio que vários figurões da política

ficaramsatisfeitoscomseudesaparecimento.

—Você está insinuandoque todas essasmortesnão foram

tãocasuais?

Corrigansorriu.

—NãoesqueçaquemeunomeéCorriganetambémestána

lista. Os Corrigan que morreram nestas três semanas não

trouxerambenefíciosparapessoaalguma.

—EntãoquemsabevocênãoéoCorriganqueelesquerem?

Tomecuidado.

—Obrigado.EsperoqueaBruxa-Mornãomematedeúlcera

noduodenooudegripeespanhola.Nãosoutãoingênuoassim!

—Ouça,Jim,queroinvestigarestahistóriadeThyrzaGrey.

Page 111: Agatha christie - o cavalo amarelo

Possocontarcomsuaajuda?

— Não. Não compreendo um cara inteligente como você

embarcarnumaxaropadadessas!

Suspirei.

—Vocênãopodiausaroutrapalavra?Jácanseidesta...

—Besteirada,seprefere.

—Nãogostei.

—Teimoso,hein?

—Alguémtemqueserteimosonestahistória.

Page 112: Agatha christie - o cavalo amarelo

Capítulo10

Eraumapropriedadenovaemfolha.Tãonovaqueaofundo

viam-se pedreiros trabalhando nos muros que envolviam os

jardins da casa. No portão principal lia-se o nome da casa:

Everest.

O Inspetor Lejeune reconheceu sem dificuldade uma figura

rubicundaqueestavadecostasparaele,ocupadonoplantiode

alguns canteiros. Assim que o inspetor abriu o portão o Sr.

ZachariahOsbornelevantou-separaverquemeraointruso.Ao

reconheceravisitaseurostocoroudeprazer.OSr.Osbornenão

haviamudadoquasenadacomsuatransferênciaparaocampo;

eraomesmofarmacêutico,sóqueagoraestavafantasiadonum

macacão.

Enxugandoa careca reluzente, oSr.Osborneaproximou-se

dopolicial.

— Inspetor Lejeune — exclamou, — quanta honra! Recebi

sua carta mas não esperava receber sua visita. Bem-vindo ao

meu castelo, bem-vindo ao Everest. Está surpreendido com o

nome?SempremeinteresseipeloHimalaia.Seguipassoapasso

a expedição do Everest. Que triunfo para nós! E que homem

admirável Sir EdmundHilary. Que perseverança! Pessoalmente

nuncapasseiporsituaçõesdifíceis,masadmiroumhomemque

larga uma boa vida para se arriscar numa escalada desta

natureza.Mas,entreevenhatomarumrefresco.

OSr.OsborneconduziuoInspetoratéumbangalôdecorado

simplesmente,masimaculadamentelimpo.

Page 113: Agatha christie - o cavalo amarelo

—Aindanãoestápronto—explicouOsborne.—Freqüento

muitoliquidaçõesparaarranjarumaspeças,àsvezesvaliosas,e

quenas lojas custamos olhosda cara.Quedeseja tomar?Um

sherry? Cerveja? Chá? Posso ferver água e fazer um chá num

minuto.

Lejeunepreferiucerveja.

—Ótimo!—exclamouOsborneretornando,emseguida,com

duascanecasdeestanho.—Sente-seedescanse.

FindasasamenidadessociaisoSr.Osborneinclinou-separa

oinspetor.

—Minhainformaçãofoidealgumautilidade?

Lejeuneprocurouagircomtato.

—Decertaforma,não.

—Quepena! Se bemque eu sei queumapessoa, vista na

rua, na mesma direção do padre Gorman, não precisaria

necessariamente ser o assassino. Seria querer demais. Além

disso, esse Sr. Venables é rico e muito benquisto na cidade,

freqüentandosempreasmelhoresfamílias.

—O caso é quenãopode ter sido oSr.Venables apessoa

queosenhorviunaquelanoite.

Osbornequasepuloudacadeira.

—Masera!Nãotenhoamenordúvidadequeera.Nuncame

enganocomumafisionomia.

—Destavez,porém,creioqueseenganou—disseLejeune.

—OSr.Venablessofreuumataquedepoliomielite.Hátrêsanos

Page 114: Agatha christie - o cavalo amarelo

éparalíticodaspernas.

— Poliomielite!— exclamouOsborne.—Neste caso...mas,

semquererofenderninguém,osenhor temalgumdadomédico

quecomproveisso?

— Sim, tenho. O Sr. Venables é cliente de Sir William

Dugdale,umadasmaioressumidadesmédicasdaInglaterra.

—Claro,claro.Ummédicomuitoconhecido.É,achoqueme

enganei redondamente, mas tinha tanta certeza. Desculpe

incomodá-locomtãopouco.

—Nãofiqueaborrecido—disseLejeune.—Suainformaçãoé

muitovaliosa.Vejabem,ohomemqueosenhorviulembramuito

oSr.Venables,queéumtipomarcanteeestranho.Portanto,não

devemexistirmuitaspessoasquecorrespondamaestadescrição.

— É mesmo — concordou Osborne, alegremente — Um

criminosoqueseparececomoSr.Venables.Talveznosarquivos

dapolícia...

OsborneolhouansiosamenteparaLejeune.

—Nãocreioquesejatãosimplesassim—disseo Inspetor.

— O suspeito pode não ser fichado e além do mais, como o

senhor disse há pouco, pode não ser necessariamente o

assassinodopadreGorman.

OSr.Osborneficoutristenovamente.

— Desculpe, mas eu tinha tantas esperanças! Queria ser

testemunhadeumcrime...queriaverseadefesaconseguiriame

destruir.Ah!

Page 115: Agatha christie - o cavalo amarelo

LejeuneolhouparaOsbornepensativo.

— Sim?— perguntouOsborne ansioso, diante do olhar do

Inspetor.

—Porqueosenhornãoseriadestruído?

Osbornepareceusurpresocomapergunta.

— Porque tenho tanta certeza... sei, sei que o senhor me

explicouquenãoerapossívelquefosseomesmohomem.Mesmo

assim...

—Talvez o senhor esteja se perguntando por que vimhoje

aqui.Alémdomais,seeutenhoprovasmédicasdequeosenhor

nãopoderiatervistooSr.Venables,quepossoquerer?

—Émesmo.Porqueveio?

— Porque a certeza ferrenha da sua identificação me

impressionou— respondeu Lejeune.—Queria saber em que o

senhorbaseiasuacerteza.Anoiteeradenevoeiro,lembra-se?Já

estivenasuafarmácia,paradonolugaremqueosenhorparou

naquelanoite.Poisbem,numanoitedeneblinamepareceque

seria difícil, quase impossível, distinguir tão precisamente as

feiçõesdeumapessoa.

—Osenhortemrazãoatéumcertoponto.Aneblinaestava

começando a baixar, em camadas. Certas partes da rua,

portanto,aindaestavamclaras.QuandoeuviopadreGorman,

andando depressa, vi nitidamente também o homem que o

seguia.Porcoincidência,quandoeleparou,debaixodeumposte,

parareacenderocigarro,seuperfilsedelineounítidocomoàluz

dodia:onariz,oqueixo,oenormepomodeAdão.Quehomem

Page 116: Agatha christie - o cavalo amarelo

estranho! pensei.Nunca o tinha visto antes, poisme lembraria

delecasofossemeufreguês.Logoeu...

—Entendo—interrompeuoInspetor.

—Umirmão?—sugeriuOsborne.—Umirmãogêmeo,quem

sabe?Seriaoideal.

— Ideal? — sorriu Lejeune, sacudindo a cabeça. — Estes

casossóacontecemnocinema,navidarealporém...

— Acho que tem razão, mas quem sabe um irmão ou um

parentepróximo?

—NãotemosconhecimentodequeoSr.Venablestenhaum

irmão—respondeuLejeune.

— Não tem conhecimento, o senhor disse? — perguntou

Osborne,vagarosamente.

— Embora ele tenha passaporte inglês, nasceu no

estrangeiroesóveioàInglaterracomonzeanos.

—Nofundosabe-sepoucosobreeleesuafamília,nãoé?

—Comefeito—concordouLejeune.—Nãoéfácilconhecer

bemosantecedentesdoSr.Venables,anãoserquealguémvá

diretamente ao próprio... e infelizmente não temos razão para

fazê-lo.

Lejeune falou num tom deliberado, sem dar a entender a

Osbornequeapolíciapossuíameiosdedescobriraorigemdeum

suspeito.

—Demaneiraque—prosseguiuLejeune, levantando-se,—

senão fossepela evidência física o senhor teria certezada sua

Page 117: Agatha christie - o cavalo amarelo

identificação?

—Teria—respondeuOsborne,prontamente

— Tenho mania de guardar fisionomias. Já surpreendi

muitos fregueses desta maneira. Como vai a asma? eu

perguntava a uma freguesa que não via há anos. Ela

naturalmenteseespantava!Ouentão:Asenhoraesteveaquiem

março do ano passado com uma receita do Dr. Hargreaves. A

criaturanaturalmenteficavaadmiradaealémdomaiseulucrava

com isso.Aspessoasgostamdeser lembradas, emboraeunão

fossetãobomparaguardarnomes.Háanosquevenhofazendo

isso... afinal, se os membros da família real podem conseguir

isso,eutambémacheiquepoderia.Depoisdecertotempotorna-

seautomático,eagentenemprecisaseesforçar.

Lejeunesuspirou.

— Gostaria de ter uma testemunha assim — disse, — a

identificação geralmente éumnegócioperigoso.Aspessoas são

muito descuidadas e dizem coisas como: Alto, eu acho, de

aparênciacomum,olhosazuisoucinzas,talvezcastanhos.Capa

dechuvacinza,ouseráqueeraazul?

Osborneriu.

—Nãosãodegrandevalia,nãoé?

— Para dizer a verdade, uma testemunha como você seria

umadádivadoscéus.

Osbornesorriufeliz.

—Éumdom—disse ele, satisfeito.—Umdomcultivado,

notebem!Secolocaremumaporçãodeobjetosnumabandejae

Page 118: Agatha christie - o cavalo amarelo

emseguidamevendaremosolhos,sereicapazderepetirtodosos

objetos que vi. Nas festas quando faço esta proeza sou muito

aplaudido.

Osdoisriram.

—Estousatisfeitocomestacasaecomosvizinhos.Háanos

quevenhoesperandoporisso,mas,aquientrenós,sintofaltado

trabalho.Semprealguémentrandoousaindo;tiposparaestudar.

Aqui tenhomeu jardimealgunshobbies:colecionarborboletas,

observarospássaros,masnuncapenseiquefossesentirfaltade

gente.Nãomeinteressoporviagens.QuandoestivenaFrançasó

passei um fim de semana e francamente não gostei. Paramim

nãohálugarcomoaInglaterra.EmParisnãosabemfritarovos

compresunto.

Osbornedeuumsuspiro.

—Comoosenhorvê,anaturezahumanaémuitocomplexa.

Nãoviahorademeaposentareagora jáestoucomvontadede

abrir uma pequena farmácia em Bournemouth. Nada que me

prendaodia inteiro,masquesejao suficienteparaqueeume

sinta útil. O senhor terá o mesmo problema quando se

aposentar.

Lejeunesorriu.

—Avidadeumpolicialnãoétãoromânticaquantoimagina.

Osenhorvêocrimedopontodevistadeumleigo.Amaiorparte

dos casos é pura rotina; não passamos o dia perseguindo

criminososou investigandopistasmisteriosas.Naverdade,meu

caroSr.Osborne,éumtrabalhobastantemonótono.

— O senhor é quem sabe — disse Osborne, num tom

Page 119: Agatha christie - o cavalo amarelo

incrédulo. Adeus, Inspetor, e desculpe não poder ajudá-lo. Em

todocaso,estousempreàsordens.

— Não se preocupe que se precisar eu o procurarei —

prometeuLejeune.

— O dia da quermesse pareceu-me uma ocasião rara... —

murmurouOsbornetristemente.

— Compreendo, mas infelizmente o laudo médico sobre

Venableséenfático.

—Bem—disseOsborne.

Lejeunenãopareceuouvir,poisretirou-sefechandooportão.

Osborneficounajanela,olhandoparafora.

—Laudomédico!—murmurou.—Queméqueacreditaem

médico? Se ele conhecesse os médicos tão bem quanto eu! A

políciaédeumainocência!

Page 120: Agatha christie - o cavalo amarelo

Capítulo11

NarrativadeMarkEasterbrook

I

Primeiro Hermia, agora Corrigan. E daí? Que importância

tinham eles? Que me chamassem de louco! Para mim aquela

xaropada era verdade. Eu tinha sido hipnotizado por uma

vigaristachamadaThyrzaGreyepasseiaacreditaremtodasas

loucuraspossíveis!

Resolviesquecertudo.Afinal,nãopodiacontinuarperdendo

tempo,masuma frase continuava a ecoar naminhamente:—

Vocêprecisaagir!EraavozdaSra.DaneCalthrop.

Fácilfalar.

—Precisadeajuda!—disse-meela.

PreciseideHermia,deCorrigan,mas elesnãomeouviram.

Nãopodiacontarcomamigoalgum.Anãoserque...

Fiqueidepé,unsinstantes,pensando.

ResolvitelefonarparaaSra.Oliver.

—Alô...aquiquemfalaéMarkEasterbrook.

—Sim,comovai?

— Como é o nome daquela moça que estava conosco na

quermesse?Lembra-se?

—Creioquesim...Ginger,euacho.

Page 121: Agatha christie - o cavalo amarelo

—Até aí eu tambémme lembro. Espero que ela tenhaum

sobrenome.

—Claroquetem!Sóqueeunãoseiqualé!Hojeemdianão

seusamais isso.Aliás, eua conhecinaqueledia.Achomelhor

vocêtelefonarparaRhoda.

Nãogosteidaidéia;nãoseiporque,sentivergonha.

—Ficosemgraça...—disseeu.

— É muito simples — interveio a Sra. Oliver, — Diga que

perdeuoendereçodelaeque lheprometeuenviarumdosseus

livros;ouentãoquequersaberonomedalojaquevendeaquele

caviar divino; ou que precisa devolver um lenço que ela lhe

emprestou no dia em que correu sangue do seu nariz; ou que

precisadoendereçoparaumamilionáriaquequerrestaurarum

quadro. Qual destas desculpas você acha melhor? Se quiser,

possosugerirpelomenosmaisumadúzia...

—Muitoobrigado,nãoénecessário.

Desliguei.TelefoneiparaRhoda.

—Ginger?—perguntouRhoda.—MoraemCalgaryPlace,n.

°45.Espereaíquevoudarotelefone...é35787.Anotou?

—Sim,obrigado.Qualéosobrenomedela?

— É Corrigan. O nome completo dela é Ginger Katherine

Corrigan.Oquevocêdisse?

—Nada...obrigado,Rhoda.

Pareceu-meuma estranha coincidência.Corrigan!Seriaum

aviso?Disqueionúmero.

Page 122: Agatha christie - o cavalo amarelo

II

Gingerencontrou-secomigoparatomarumdrinquenumbar

chamadoCacatuaBranca.Confirmeiminhaimpressãosobreela:

umabelaruiva,sardenta,deolhosverdessemprealertas.

—Leveiumcertotempoparadescobri-la—disseeu.—Não

sabia seusobrenome, seuendereçoouseu telefone.Estoucom

umproblema.

—Minhaempregadadissequepelasuavoztinhacertezade

quevocêestavaemapuros.

—Nãoébemisso.Ouça...

Contei em poucas palavras o mesmo que havia relatado a

Hermia. Como temesse um sorriso de indulgência ou um

incréduloespantorefletidonosverdesolhos,eviteiolharparaela.

Oconteúdodahistóriamepareceumaisabsurdoainda,eachei

querealmentesóaSra.DaneCalthroppoderiamecompreender.

Disfarçadamente fiquei desenhando com um garfo a toalha de

plástico.

—Étudo?—perguntouGinger,vivamente.

—É—concordei.

—Oquepretendefazer?

—Aindanãosei,masnãopossoficarparadoenquantouma

organizaçãodessassatisfazumaclientelacriminosa.

—Oqueachaquepossofazer?

Tive que me conter para não beijá-la. Ginger calmamente

Page 123: Agatha christie - o cavalo amarelo

continuavasorvendoseuPernod.Destemomentoemdiantenão

mesentimaissó.

—Vocêvaiterquedescobrirtudo—disseela,depoisdeuma

pausa.

—Concordo,mascomo?

—Achoqueexistemdoiscaminhosetalvezeupossaajudá-

lo.

—Mas,eoseuemprego?

—Nãomeocupaodiainteiro—respondeuela.—Estatalde

Poppydevesaberalgomais...nãotenhoamenordúvida...

— Eu sei que sabe, mas quando tentei averiguar ela se

assustou.

—Comigoseriadiferente—sorriuGinger.—Paramimela

diria coisas que não contaria a você. Procure arranjar um

encontro, para irmos ao teatro ou um jantar. Se não lhe

atrapalharfinanceiramente,éclaro.

Assegurei-lhequemeusproblemaseramoutros.

— Quanto a você — prosseguiu Ginger, — creio que deve

partirdocasodeThomasinaTuckerton.

—Como,seelamorreu?

—Ealguémqueria que elamorresse... se é que sua teoria

tem algum fundamento. Se foi combinado no Cavalo Amarelo

existem duas suspeitas. Amadrasta ou amoça com quem ela

brigou no restaurante. Qualquer uma das duas pode ter

contratadoosserviçosdoCavaloAmarelo.Comoeraonomeda

Page 124: Agatha christie - o cavalo amarelo

outramoça?

—AchoqueeraLou.

—Umalouradecabelocinza,alta,bemservidadebusto?

Concordeicomadescrição.

—Achoqueseiquemé.LouEllis,queporsinaltambémtem

bastantedinheiro.

—Nãoparecia.

— É moda hoje em dia não parecer rica. De qualquer

maneira,LoupoderiapagaratarifadoCavaloAmarelo.Imagino

queelesnãotrabalhemdegraça.

—Nãocreio.

—Enquantoisso,vocêvaivisitaramadrasta...

—Nãoseiondemoranem...

—Luigidevesaber.Alémdomais,vocêviuocomunicadoda

mortedeThomasinano jornal.Bastaprocurarnosarquivosdo

jornal.

— Tenho que arranjar um pretexto para procurar essa

senhora.

Gingergarantiuquenãoseriadifícil.

— Você é um homem conhecido — continuou ela,

animadamente.—Umhistoriador,umconferencista,umautor.

ASra.Tuckertonficaráimpressionadaefelizdeconhecê-lo.

—Sobquepretexto?

Page 125: Agatha christie - o cavalo amarelo

—Algumapeçade interesseda casadela, por exemplo?—

sugeriuGinger.—Devehaveralgoantigo...

—Maseusouhistoriador.

—Elanãoprecisasaber.Alémdomais,paraamaioriadas

pessoas qualquer objeto com mais de cem anos passa a ter

interesse histórico ou arqueológico. Talvez um quadro? Deve

haver um quadro qualquer. Enfim, você tenta marcar uma

entrevista, encanta a mulher com seu charme e casualmente

refere-se à filha dela, ou melhor, à enteada. De repente, sem

maioresexplicações,fazmençãosobreoCavaloAmarelo.Sejaaté

umpoucosinistro,sequiser.

—Edaí?

—Daíobserveasreações.Se falarnoCavaloAmareloeela

tiverculpanocartório,duvidoquenãodemonstrecoisaalguma...

—Casodemonstre,quefaçoeu?

— O importante é sabermos se estamos na pista certa.

Quandotivermoscertezateremosqueagirdeoutraforma.Além

domais—prosseguiuGinger,—porqueseráqueThyrzaGrey

faloutãoabertamentecomvocê?

—Porqueélouca?

—Não é sópor isso. Por que escolheu você emparticular?

Tinhatantagente.Devehaverumarazão.

—Porexemplo?

— Espere aí, deixe-me pensar. Ficamos uns instantes

calados.

Page 126: Agatha christie - o cavalo amarelo

Suponha que Poppy saiba vagamente o que acontece no

Cavalo Amarelo, não por ser uma participante da organização,

masporqueouviualgumaconversa.Aliás,elaparecesero tipo

depessoadequemnãosetomamuitoconhecimentoportercara

dedébilmental.Poisbem,quemsabealguémouviuaconversa

que vocês tiveram no restaurante? E a ameaçou? No dia

seguinte, quando você foi procurá-la, ela já estava apavorada...

masoquedeveterintrigadoaorganizaçãoéoseuinteressepor

eles. Eles sabem que você não é da Polícia, portanto o mais

prováveléquevocêtalvezsejaumpossívelcliente.

—Mascomcerteza...

—Éomais lógico.Vocêouviuumboatoequerdescobrira

fonte para poder usufruir dos seus benefícios. Aparece numa

quermesse,élevadoaoCavaloAmarelo,equemsabenãoforçou

a ida?Emseguida, o queacontece?ThyrzaGrey lançamãodo

mostruáriodevendas!

— Pode ser— concordei.— Você acha que ela é capaz de

mataralongoalcance?

—Paradizeraverdade,não.Masascoisasmaisestranhas

acontecem. Veja o hipnotismo, por exemplo: você manda uma

pessoadarumamordidanumavela.Nodiaseguinte,semsaber

porque,apessoaàsquatrohorasdatardelevanta-seedáuma

mordida na vela! São coisas estranhas... quanto a Thyrza, não

creioquesejacapaz,masDeusnoslivreseelativerrazão.

—Éexatamenteomeupontodevista.

—VouaveriguaromaisquepudersobreLou—disseGinger.

—Seiondeencontrá-la.Oprimeiropasso,porém,éPoppy.

Page 127: Agatha christie - o cavalo amarelo

Não foi difícil marcar o encontro. Três dias depois nos

encontramos para ir ao teatro, David com Poppy a tiracolo,

Gingereeu.MaistardefomosjantarnoFantasie,ondeGingere

Poppy depois de horas no toalete reapareceram felicíssimas.

Duranteo jantarnãohouvediscussõescontrovertidas, segundo

sugestãodeGinger.Finalmente,nosdespedimosamigavelmente

eeuleveiGingerparacasa.

—Não tenhomuito que contar— disse ela.— Estive com

Lou, ontem. O causador da briga foi Gene Pleydon, um tipo

indesejável,quefazmuitosucessocomasmulheres.Pareceque

estavamderomancequandoTommyapareceue,comoeramais

rica,Gene largouLouno ato, o quenaturalmente a enfureceu.

Quantoàbriga,eladissequenãopassoudeumafortediscussão.

—Fortediscussão!?ElaarrancouoscabelosdeTommypela

raiz!

—EstoucontandoaversãodeLou.Éumamoçafrancaque

faladosseuscasosparaquemquiserouvir.Temumnovocaso,

porquemestá loucamenteapaixonada,portantonãopareceser

cliente do Cavalo Amarelo. Além do mais, quando falei da

estalagem, ela não tomou conhecimento. Creio que podemos

eliminá-ladalistadesuspeitos.Luigi,porseulado,tambémnão

achou a briga muito séria; acha que Tommy estava realmente

interessadaemGene,noqueeracorrespondida.Eamadrasta?

— Está no exterior, deve voltar amanhã. Mandei minha

secretáriaescreverumacarta,marcandoumencontro.

—Ótimo.Esperoquetudodêcerto.

—Será?

Page 128: Agatha christie - o cavalo amarelo

— Uma das pistas vai funcionar — respondeu Ginger

entusiasmada.—Outra coisa, segundo vocême disse, o padre

Gorman foi assassinado porque ouviu a confissão de uma

mulher. Que aconteceu com esta mulher? Morreu? Quem era

ela?

—Morreumasnãoseicoisaalgumasobreela.Achoquese

chamavaDavis.

—Nãopodedescobrirmais?

—Vouver.

—Poderemosdescobriroqueelasabiaquandomorreu.

—Entendo.

NodiaseguintetelefoneiparaJimCorrigan.

— Deixe ver... conseguimos algumas informações sobre a

mulher... seu nome de solteira era Davis... tenho uns

apontamentos sobre a investigação. Cá estão! O nome dela de

casada era Archer, foi casada com um larápio de quem se

divorciou.VoltouausaronomedeDavis.

— Que tipo de larápio era Archer? Onde se encontra

atualmente?

— Nada de importante. Roubava objetos das lojas. Preso

váriasvezes.Atualmenteseencontranocemitério,morto.

—Poresseladonãoiremoslonge.Continue.

—A firma em que a Sra.Davis trabalhava, por ocasião do

seu falecimento, chama-se R.C.C. (Reação Classificada de

Consumidores) e lá não souberam informar muita coisa nem

Page 129: Agatha christie - o cavalo amarelo

sobreelanemsobreoseupassado.

Agradeciedesliguei.

Page 130: Agatha christie - o cavalo amarelo

Capítulo12

NarrativadeMarkEasterbrook

Gingertelefonoutrêsdiasdepois.

—Tomenota—disseela—deumnomeeumendereço.

—Podefalar.

—OnomeéBradleyeoendereçoéPrédioMunicipal,78,em

Birmingham.

—Eoquevemaseristo?

—Comoéqueeuvousaber?DuvidoquePoppysaiba...

—Poppy?Esteé...

— Consegui arrancar este endereço dela, depois de muito

custo.

—Quemétodovocêempregou?

Gingerriu.

— Conversa de mulher, você está por fora. Geralmente as

mulheresconfiamnosmembrosdoprópriosexo.

—Comosefosseumsindicato?

—Mais ou menos. Almoçamos juntas e eu falei de minha

vida amorosa. Inventei um homem casado com uma megera

católica quenão lhe daria o divórcio e transformou a vida dele

numinferno.Alémdomais,elaéinválida,cheiadedoençasmas

Page 131: Agatha christie - o cavalo amarelo

quenão vaimorrer tão cedo; aliás, seria até bompara ela que

morresse.AíeudissequetinhaouvidofalarnoCavaloAmarelo,

mas que não sabia como dar o primeiro passo. Será que eles

cobrammuitocaro?Poppytinhaouvidodizerqueospreçoseram

exorbitantes. Aí eu entrei com uma conversa sobre um tio-avô

que vai deixar uma fortuna paramim... o que aliás é verdade,

apesar de eu não ter o menor interesse em que ele morra já.

PergunteiaPoppyseopessoaldoCavaloAmareloreceberiauma

garantia.Sóseiqueelaapareceucomestenomeeesteendereço.

Achobomvocêtentar...

—Fantástico—murmurei.

—Nãoémesmo?

Ficamos uns instantes calados, ocupados com estas novas

revelações.

— Ela falou sem medo? Abertamente? — perguntei,

incrédulo.

— Você não entende — respondeu Ginger, impaciente. —

Contarumacoisadessasparaumaamiganãotemimportância.

Afinal,comoéqueelesvãonegociarsenão fazempropaganda?

Na certa estão precisando de novos clientes, de maneira que

precisamfazerpublicidade.

—Queloucura!Comoépossívelacreditarmosnisso?

—Tambémachoque somos loucos.Mas sóquero saber se

vocêvaiounãofalarcomoSr.Bradley?

— Claro que vou — respondi. — Se é que ele realmente

existe.

Page 132: Agatha christie - o cavalo amarelo

AcheiahistóriadeGingerincrível,maslogodescobriqueera

verdadeira. Cheguei sem maiores dificuldades ao Prédio

Municipal e descobri que o Sr. Bradley ocupava uma sala no

terceiroandar.Numaportadevidrolia-se,emletraspretas:

C.R.BRADLEY

AGENTE

podeentrar

Obedeci.

Penetrei numa pequena saleta. Ao fundo uma porta

entreaberta.

—Entre,entre,porfavor—comandouumavoz.

Entrei num escritório espaçoso, mobiliado com uma

escrivaninha,duaspoltronas,umarquivoeumtelefone.Atrásda

mesa o Sr. Bradley, um homem baixo e moreno, de olhar

brilhanteeperspicaz,vestidonumcorretoternoescuro.Oretrato

escritodahonestidadeedacorreçãoprofissional.

—Queirafecharaporta,sim?—pediuele,agradavelmente.

— Sente-se nesta cadeira, é mais cômoda. Aceita um cigarro?

Não?Emquepossoser-lheútil?

Olheiparaelesemsabercomoprincipiar.Nãotinhaamenor

idéia do que deveria dizer. Creio que o desesperome fez partir

paraumataquefrontal.

—Quantocusta?—perguntei.

Ele pareceu levar um susto, notei com satisfação,mas sua

calmaefriezaomantiveramimpassível.

Page 133: Agatha christie - o cavalo amarelo

—Bem,bem—disseoSr.Bradley,—osenhorpareceque

nãogostadeperdertempo...

Mantiveminhaposição.

—Qualéaresposta?

—Nãoéassimquevamosconseguirchegaraumacordo—

retrucou ele, sacudindo a cabeça, num tom de reprovação. —

Devemosobservaroprotocolo.

—Qualéoprotocolo?

— Ainda não nos apresentamos, não é verdade? Não sei o

seunome.

—Nomomentonãoestoucomvontadededizermeunome.

—Cuidado?

—Sim.

— A precaução é uma excelente qualidade, mas não é

prática.Quemomandouaqui?Quemfoinossocontato?

— Também não posso dizer. Um amigo de um amigo que

conheceuumamigoseu...

—Geralmentetrabalhocommuitosclientesdestamaneira—

disse Bradley, meneando a cabeça. — Alguns com problemas

bastantedelicados.Osenhorsabequaléminhaprofissão,nãoé?

Bradleynãoesperouminharesposta.

—Souumagente turfista—continuouele.—Osenhorse

interessa por cavalos? Houve uma ligeiríssima pausa antes de

Page 134: Agatha christie - o cavalo amarelo

pronunciaraúltimapalavra.

—Não costumo jogar— respondi inseguro, semquererme

comprometer.

—Éumesportecheiodepossibilidades.Vejaascorridas,a

caça,acriação.Eu,particularmente,me interessoporqualquer

tipodeaposta...

Bradleycalou-seporummomentoedepoisacrescentounum

tomcasual,casualdemais,eudiria:

— O senhor está interessado por algum cavalo

especificamente?

Sacudiosombroseresolviqueimarmeuúltimocartucho.

—Umcavaloamarelo...

— Muito bem, excelente. Apesar de parecer um tipo

interessadoemoutroscavalos...nãose inquiete,por favor,não

hámotivo!

—Éfácilfalar—disseeurudemente.

OSr.Bradleytornou-semaissolícitoainda.

—Posso compreendermuito bemseu estadode ansiedade.

Posso garantir tambémquenãohá razãopara seunervosismo.

Eu, que souadvogado, ex-advogado, é claro, seria o primeiro a

desaconselhá-lo de qualquer atividade ilegal. Só recomendo

coisas seguras, legais. Trata-se de uma aposta e não há lei no

mundoqueproíbaumhomemdeapostarnoquequiser,sejana

chuvadeamanhã,naidadeumrussoparaaLuaounosgêmeos

que talvez suamulher esteja esperando. Pode apostar também

Page 135: Agatha christie - o cavalo amarelo

que aSra.Bmorrerá antes doNatal ou que aSra.C vai viver

muitosanosainda.Aapostaé feita,um julgamentopuramente

subjetivoepessoal.Nadamaissimples.

Senti-me como um paciente duvidoso da habilidade de um

cirurgião.Nãopudedeixardeadmiraracompetênciaprofissional

deBradley.

—Para falar a verdade—disse eu, vagarosamente,—não

conheçobemofuncionamentodoCavaloAmarelo.

— E isso o preocupa? Na verdade preocupa a maioria dos

nossosclientes.Existemmaiscoisasnocéuenaterra,Horácio

etc.etc.[03]Paraserfranco,nemeuconheçobem,masseiquedá

sempreótimosresultados...

—Seosenhorpudessesermaisexplícito...

Mantive minha posição: cuidadoso, angustiado e medroso.

Obviamenteumaatitudebastantecomumporpartedaclientela

doSr.Bradley.

—Osenhorconheceolugar?

Seriaestúpidonegar.

—Conheço...estivelácomunsamigos.

—Umaestalagemmaravilhosa,repletadeinteressehistórico.

Elas se esmeraram na restauração. O senhor conheceuminha

amigaThyrzaGrey?

—Sim,claro.Achei-aumamulherextraordinária.

—Não émesmo?Não émesmo?O senhor disse o adjetivo

exato. Uma mulher extraordinária, dona de poderes

Page 136: Agatha christie - o cavalo amarelo

extraordinários.

—Maséimpossívelacreditar-senela!

— Exatamente. Por issomesmo funcionamos tão bem. Por

eladizerque tornapossívelo impossível. Imagineestaconversa

numtribunal...

OsolhosdeBradleyfaiscaramdecontentamento.

— Num tribunal— repetiu ele, destacando as palavras,—

tudoseriaconsideradoridículo.Seestamulherdeclarassequeé

capazdematarporcontroleremotooupelopoderdavontadea

confissãoseriainvalidada.Mesmosefosseverdade(masnósque

somos homens inteligentes sabemos que não é) o caso não

poderiaserregistradolegalmente,poisoassassinatoporcontrole

remoto não é assassinato, é fantasia! A beleza da nossa

organizaçãoestájustamentenestadiscrepância.

Compreendi que Bradley estava tentando me tranqüilizar.

Umassassinato cometido através de poderes ocultos não é um

assassinato para um tribunal inglês; já se eu contratasse um

sicário para matar alguém seria preso como cúmplice e

assessórioaocrime.Agora,ofatodecontratarThyrzaGreypara

eliminar alguém, empregando o ocultismo, não poderia me

incriminardeformaalguma.

—Mas,comosdemônios—explodi.—Nãoépossível.

—Concordo como senhorplenamente.ThyrzaGrey éuma

mulher extraordinária, dona de poderes extraordinários, mas é

impossível acreditarmos nela. Como o senhor mesmo disse, é

fantástico!Impossível,portanto,noséculoXX,acreditarmosque

umapessoa,numaestalagem,no interiorda Inglaterra,através

Page 137: Agatha christie - o cavalo amarelo

deummédium, emitaondas curtas capazesde causaramorte

oumesmoumadoençanumavítimaqueseencontraemLondres

ouCapri.

—Maseladizqueécapaz!

— Pois não. Ela é irlandesa e eles são conhecidos pelos

poderesocultos.Entrenósoqueeuacredito,eacreditopiamente

—disseBradley,sacudindoodedoparamim,enfaticamente,—é

que Thyrza Grey sabe de antemão quando uma pessoa vai

morrer.Éumdom.

Bradley reclinou-se na poltrona e ficou um instante me

observando.

— Faça de conta que o senhor, por exemplo, deseja saber

quandosuatia-avóElizavaimorrer.Umdadoimportanteeútil

de se ter conhecimento por razões financeiras. Sabe-se lá se a

pobre Eliza ainda vai durar mais dez anos alimentada pelos

médicos? Apesar de o senhor adorar sua tia, seria útil saber

quandoelapassarádestaparamelhor.

Bradley fez uma pausa para melhor apreciar o efeito dás

suaspalavras.

—Éaíqueeuentro.Souumapostador,dispostoaapostar

qualquer coisa, dentro dosmeus limites, é claro. O senhorme

procuraenaturalmentepordelicadezadesentimentoshesitaem

apostar sobre aduraçãoda vidadeumente querido.Portanto,

formulamosaapostadaseguinteforma:osenhorapostaquesua

tiaElizaestarávivaefelizatéofimdoanoeeuapostoquenão.

—Osolhosbrilharamnovamente.

— Nada de ilegal, não é? Simples! Podemos até discutir o

Page 138: Agatha christie - o cavalo amarelo

assunto, numbar. Eu acho que tiaEliza está fadada amorrer

breve,osenhorachaquenão.Eudigoquenãodouquinzedias

paraapublicaçãodanotadefalecimento,osenhordiscorda.Se

tiverrazãoeupagoaaposta,seeutiverrazãoosenhorpaga.

OlheiparaBradley.Tentei imaginarcomoagiriaumhomem

quedesejasseamortedatia.Emseguidaimaginei-mevítimade

um chantagista, um sanguessuga que vinha me arrancando

dinheiroháanos.Euqueriamatá-lo,masnão tinha coragem...

quandofaleinovamenteestranheiotomconvictodaminhavoz.

—Quaissãoostermos?

O Sr. Bradley transformou-se num risonho e saltitante

homemdenegócios.

—Dependedeváriosfatores,baseando-senaquantiaquea

pessoapretendereceber.Àsvezes,tambémlevamosemcontaas

possesdocliente.Ummaridoindesejávelouumchantagista,por

exemplo, estão valorizados na proporção que o cliente pode

pagar.Devodeixarclaro,porém,quenãocostumoapostar com

clientespobres,anãosernoscasoscitados.

OSr.Bradleydeuumsuspirocomoquesedesculpandodo

ladopoucofilantrópicodasuaorganização.

—NocasodasuatiaEliza,porexemplo,opreçodependeda

herançaqueelavaideixar.Ostermos,portanto,sãoacombinar,

uma vez que ambos lucraremos. Devo adiantar que nossa

margemdeapostasénaproporçãodequinhentosaum.

—Quinhentosaum?Ébastantealta.

— Nossos preços também são altos. Caso tia Eliza tivesse

Page 139: Agatha christie - o cavalo amarelo

seusdiascontadoseosenhorsoubessedissonãohaveriarazão

parameprocurar.Umabasede5.000 librasnãoéumaaposta

muitocaraquandosetememvistamuitomais.

—Eseosenhorperder?

OSr.Bradleydeudeombros.

—Seriaumapena.Sómerestariapagar.

— Caso contrário, a despesa é minha. E se eu não quiser

pagar?

O Sr. Bradley recostou-se na poltrona, semicerrando os

olhos.

— Não aconselho esta medida — disse ele suavemente. —

Realmentenãoaconselho.

Apesar do tom de voz ter sido suave, senti um arrepio na

espinha.Umaterrívelameaçaestavaexplícitanassuaspalavras.

—Precisodetempoparapensar—disseeu,levantando-me.

OSr.Bradleyreverteuaopapeldebondosoecompreensivo

corretor.

—Claro,nãohápressa.Sequiserestamosaquiprontospara

lheatender.Nãosepreocupeconosco,pensebem.

Saícomestaspalavrasecoandonosouvidos.

Page 140: Agatha christie - o cavalo amarelo

Capítulo13

NarrativadeMarkEasterbrook

Resolvi procurar a Sra. Tuckerton, enfrentando minha

naturaltimidez.Finalmente,cediàinsistênciadeGinger,apesar

de achar que não estava devidamente preparado para a tarefa.

Ginger, porém, sempre que lhe convinha, demonstrava grande

eficiênciaedeterminação.

—Ouça,nãohácomquesepreocupar.Oconstrutordacasa

foi Nash e é uma das poucas residências que ele projetou em

estilogótico.

—Eporqueentãoeuvoudesejarversemelhanteraridade?

—Porquevocê vai escreverumartigoouum livro sobreas

influênciasarquitetônicasnavidamoderna.Umacoisadessas...

—Nãoachofácildeengolir—protestei.

— Não seja tolo — insistiu ela. — Em arte ou literatura

podem-se criar as teoriasmais absurdas; se duvidar posso lhe

mostrarumtratadosobreaOrigemdaBesteira.

—Por issoachovocêmaisqualificadadoqueeupara fazer

essavisita.

— Aí é que se engana — replicou Ginger. — A Sra.

Tuckerton, se for desconfiada, recorrerá a um catálogo de

historiadoresedescobriráseunomeOmeuelanãoencontraria!

Apesardevencidopelaargumentação,continueirelutante.

Page 141: Agatha christie - o cavalo amarelo

Quando voltei da incrível entrevista com Bradley reuni-me

com ela para confabularmos.Ginger, porém, achou tudomuito

natural.

—Alémdomais, dissipanossasdúvidas—ajuntou ela.—

Agora sabemos que existe uma organização para eliminar

parentesricos...

—Atravésdoocultismo—concluí.

—Não seja sarcástico. Não pense que só porque Sybil usa

aqueles colares ou porque o Sr. Bradley não seja um astrólogo

queestepessoalnãopossuiumafórmulamágicaqualquer...

— Se está tão convencida, por que preciso visitar a Sra.

Tuckerton?

— Não custa nada termos mais um dado — respondeu

Ginger.— Sabemos o que Thyrza Grey diz ser capaz de fazer;

sabemos como funciona a parte financeira. Agora precisamos

saberocomportamentodocliente.

—E se a Sra. Tuckertonnão dermostras de ter sidouma

cliente?

—Teremosquepartirparaoutra.

—Eseeufalhar?

Gingertentoumeencorajar.

FinalmentechegueiaopaláciosemigóticodaSra.Tuckerton.

Realmente o estilo era completamente diverso da obra do

arquiteto.Oúnicoporéméqueolivroprometidosobreaobrade

Nash não chegara a tempo, obrigando-me a fazer a visita

Page 142: Agatha christie - o cavalo amarelo

completamentedespreparadoparaaentrevista.

— Sr. Easterbrook — perguntou o criado. — A Sra.

Tuckertonoestáaguardando.

Fui conduzido a uma sala de visitas ricamente decorada.

Imediatamente senti uma desagradável sensação: tudo muito

caro mas de péssimo gosto. Se não tivessem tido tanta

preocupaçãoemostentarriqueza,seriaumasalasimpática.Uma

sériedequadrosdosquaissomentedoispossuíamalgumvalor.

Um excesso de brocado amarelo completava a opulência do

recinto. Minhas conjeturas estéticas foram interrompidas pela

entradadaSra.Tuckerton.Levantei-mecomalgumadificuldade

das profundezas de um sofá forrado de amarelo-ouro. Não sei

descrever o que esperava encontrar, mas senti um certo

desapontamento.Diantedemim, estavaumasenhorademeia-

idade, parecida com todo omundo, e sem omenor vestígio de

maquiavelismo. Não se tratava de uma senhora interessante,

nembondosa.Oslábios,apesardoexcessodebatom,eramfinos

e severos; o queixo ligeiramente recuado; os olhos, de um azul

claro,davama impressãodeavaliaropreçodequalquerobjeto

colocadoàfrente.Eraumamulherquecertamentedavagorjetas

pequenas e pensava duas vezes antes de abrir a bolsa.

Contrariando o tipo, a Sra. Tuckerton vestia se com esmero e

cuidado.

—Sr.Easterbrook?—perguntouela,obviamenteencantada

comavisita.—Queprazer!Imagineestarinteressadonaminha

casa.Éclaroquesabiaque foiconstruídaporJohnNash;meu

maridonãosecansavaderepetir,masnuncapenseiquepudesse

interessarestudiososfamososcomoosenhor.

Page 143: Agatha christie - o cavalo amarelo

—Naverdade,Sra.Tuckerton—balbuciei,—comoédeum

estilocompletamentediversodaobradele...

Elainterrompeuminhaperoração.

—Épenanadaentendersobreoassunto.Real-mentenãosei

coisa algumade arquitetura ou arqueologia. Espero queminha

ignorâncianãováatrapalhar.

Quase respondiquea faltade conhecimentoporpartedela

eraexatamenteoqueeuqueria.

—Porém—continuouaSra.Tuckerton—sempreacheieste

tipodecoisabastanteinteressante.

Expliquei-lhe que nós estudiosos geralmente éramos

indivíduos monótonos e sem imaginação. A Sra. Tuckerton

protestou, dizendo que eramentira. Em seguida perguntou-me

frontalmenteseeudesejavatomarcháantesoudepoisdevisitar

acasa.

Nãoesperavatomarchá,masnãopuderecusar.Aceitei,para

depoisdavisita.

Comoelafalouotempotodo,nãomesentiobrigadoaemitir

apreciaçõesarquitetônicas.

ASra.Tuckerton,nomeiodaconversa,comentouqueestava

paravenderacasa.

—Ficougrandedemaisparamim,depoisdamortedomeu

marido. Os corretores fizeram a avaliação a semana passada e

parecequejáarranjaramumcomprador.

— Também não gostaria— continuou ela— que o senhor

Page 144: Agatha christie - o cavalo amarelo

visseacasavazia.Apersonalidadedeumacasaestánavivência

dosocupantes,nãoacha?

Sinceramentepreferiaacasavazia,masnãopoderiasertão

franco.Pergunteiseelapretendiacontinuarmorandonomesmo

bairro.

— Para dizer a verdade, não sei. Acho que vou viajar um

pouco,embuscadoSol.Odeionossoclima.Minhaidéiaépassar

o inverno no Egito, onde já estive há dois anos. Que país! O

senhor,éclaro,jáoconhece.

RespondiquenãosabianadasobreoEgito.

—Osenhorcertamenteéumhomemmodesto—sorriuela,

numtomvago.—Aquiéasaladejantaroctogonal.Nãoéassim

quesediz?

Confirmeisuaspalavras,admirandoaproporçãodasala.

Porfim,terminamosavisitaeretornamosàsaladevisitas.A

Sra. Tuckerton pediu o chá.Um criado,mal-humorado, entrou

comumabandeja.Noteiqueobuledepratavitorianoprecisava

serpolido.

—Hojeemdiaosempregadossãoumproblema!—suspirou

adonadacasa.—Depoisquemeumaridomorreu,ocasalque

estava com ele há anos quis ir embora. Disseram que iam se

aposentar mas eu descobri que na verdade tinham arranjado

outro emprego, percebendo um salário altíssimo. Pessoalmente

acho um absurdo gastar-se uma fortuna com empregados! O

senhor já imaginou quanto eles ganham tendo casa, comida e

roupalavada?

Page 145: Agatha christie - o cavalo amarelo

Exatamente como eu pensava. Os olhos claros, a boca

cerrada,enfim,osindícioscertosdaavareza.

Não foidifícil fazê-la falar.ASra.Tuckertonadorava falare

eu, simplesmente deixando-a livre, consegui saber e apreender

maisdoqueelacertamentedesejariaqueeusoubesse.

Casou-se com Thomas Tuckerton, um viúvo, cinco anos

atrás. Ela era “muito, muito mais jovem” do que ele.

Encontraram-se num hotel de veraneio onde ela era

recepcionista. Ele tinha uma filha que estava internada no

colégio.

— O pobre Thomas era tão só... tinha perdido amulher e

sentiamuitafaltadela.

A Sra. Tuckerton continuou descrevendo sua imagem para

mim:umasenhorabondosa,quetevepenadeumvelhosolitário.

Faloudaprecáriasaúdedofalecidoedadevoçãocomqueelao

tratou.

—Éclaroquenofimeuacabeitendoqueabrirmãoatédos

meusamigos...

Será que Thomas Tuckerton desconfiava dos amigos dela?

Talvez fosse esta a razão para deixar um testamento tão

estranho.Ginger tinha idoao cartório e conseguidoumacópia:

Boas quantias aos velhos empregados e alguns afilhados. Uma

renda mensal razoável mas não generosa à esposa enquanto

fosseviva.OcapitaleosdividendosparaafilhaThomasinaAnn,

quando se casasse ou completasse vinte e um anos. Caso

morressesolteira,aherançareverteriaparaamadrasta.

O prêmio era grande e a Sra. Tuckerton parecia gostar de

Page 146: Agatha christie - o cavalo amarelo

dinheiro.AtécasarcomTuckertonviveraemdificuldades.Creio

queapossibilidadedeficarrica,viúva,aindajovem,lhesubiuà

cabeça.

Otestamentocertamentedeviatersidoumgrandegolpe.Ela

sonhara com algo mais substancial, com a possibilidade de

viajar,comprarroupase jóias,enfim,gozarosimplesprazerde

terdinheironobanco.

Noentantoagarotaiaficarcomtudo!Iaseraherdeira.Uma

garotaquenãoescondiaseuressentimentocontraamadrasta.A

garotaiaficarcomtudo...anãoserque...anãoserquê?Seria

possívelqueestacriaturalouraebanalfossecapazdecontratar

osserviçosdoCavaloAmarelo?Não—nãoerapossível.

Mesmoassimeuprecisavatercerteza.

—Não sei se a senhora sabe que eu conheci sua filha, ou

melhor,suaenteada—disseeuabertamente.

Elaolhou-mecomcertoespanto,quasedesinteressada.

—Thomasina?Émesmo?

—Sim,emChelsea.

— Ah! em Chelsea... é claro — ela suspirou. — Esta

mocidade de hoje. Tão complicada. Não se tem mais como

controlá-los.Opaiviviapreocupado,eeu,éclaro,masnãopodia

interferir demais. Além do mais, ela nunca ouviria meus

conselhos!

—Éumaposiçãomuitodifícil—disseeu,comsimpatia.

—Nãotenhodoquemereprovar.Fizoquepude.

Page 147: Agatha christie - o cavalo amarelo

—Dissotenhocerteza.

—Masnãoadiantounada.ÉclaroqueTomnuncapermitiu

queela fossegrosseiracomigo,masosenhorpodecrerqueela

nãoerafácil.Quandodecidiumorarsozinhasenti-mealiviada.O

queaconteceu foi queelapassoua freqüentaruma rodamuito

pesada.

—Éoqueeuimaginei.

— Pobre Thomasina! — exclamou a Sra. Tuckerton,

ajustando um cacho de cabelo louro. — Talvez o senhor não

saibaqueelamorreuomêspassado,deencefalite.

—Dizemserumadoençaquesóatacaosjovens.

—Eusabiaqueelatinhamorrido—disseeu,levantando-me

parairembora.—Obrigado,Sra.Tuckerton,pelasuagentileza.

Apertei-lheamãoedirigi-meparaaporta.

— Por falar nisso — disse eu, voltando-me do hall. — A

senhoraconheceoCavaloAmarelo,nãoconhece?

Não havia dúvida possível diante da reação da Sra.

Tuckerton. Pânico, puro pânico, estampado nos olhos azuis. O

rostodebaixodamaquilagemtornou-sebranco.

— Cavalo Amarelo? Que Cavalo Amarelo? Não sei coisa

algumasobreisso—gritouelaestridentemente.

Fizumardesurpresa.

— Ah! Desculpe. Existe uma estalagem antiga em Much

Deepingondepasseiumdia.Foitransformadanumaconfortável

residência,mantendoporémoestilo.Penseiquefosseseunome

Page 148: Agatha christie - o cavalo amarelo

quefoicitado,mastalveztenhasidoodasuaenteadaouquem

sabealgumahomônima.Éumlugarmuitofamoso.

Retirei-metriunfante.Numdosespelhosdohall,viorostoda

Sra. Tuckerton refletido. A imagem de uma mulher velha,

aterrorizada...umretratoterrível.

Page 149: Agatha christie - o cavalo amarelo

Capítulo14

NarrativadeMarkEasterbrook

I

—Agoratemoscerteza—disseGinger.

—Játínhamos.

—Masestahistóriafechaocirculo.

Calei-meuminstanteeimagineiaSra.Tuckerton,indopara

Birmingham encontrar o Sr. Bradley. A apreensão nervosa por

parte dela em contrapartida com a reconfortante bonomia de

Bradley;gentilmentesublinhandoaausênciadoperigo.Podiavê-

la partindo sem se comprometer, deixando aos poucos a idéia

enraizar-se no pensamento. Quem sabe se a enteada não veio

passar um fim de semana em casa e sugeriu um casamento

iminente? E durante todo o tempo o pensamento constante:

DINHEIRO. A possibilidade de não ter mais que se preocupar

com economias, o início de uma vida de prazeres e diversões!

Mas, no caminho uma garota degenerada, sem educação,

eternamentemetidanuns blue jeans imundos, gastando a vida

embaresmalafamados,convivendocoma laiadeChelsea.Por

queumamoçadessas,umacriaturaquecertamenteiriaacabar

mal,teriaodireitoderoubar-lheafelicidade?

PorissovoltouaBirmingham,tomandotodasasprecauções.

Discutiramos termos,oqueme fezsorrir,poisnãocreioqueo

Sr. Bradley tenha conseguido levar a melhor com uma

mercenária da classe da Sra. Tuckerton. Finalmente devem ter

Page 150: Agatha christie - o cavalo amarelo

chegadoaumacordoqualquer.Masedepois?

Nãoconseguivisualizarodesconhecido.NoteiqueGingerme

observava.

—Jáimaginoucomofuncionaonegócio?—perguntouela.

—Comovocêsabequeeuestavaimaginandoisso?

— Começo a compreender o mecanismo de seu raciocínio.

Você estava tentando visualizar a Sra. Tuckerton sendo

entrevistadaporBradley.

— É mesmo, mas fui interrompido quando ela conseguiu

fecharonegócio.Oqueaconteceudepois?

Entreolhamo-nosatônitos.

—Mais cedo oumais tarde—disseGinger— alguém tem

quedescobriroqueacontecenoCavaloAmarelo.

—Como?

—Nãosei.Seiquenãoseráfácil.Nenhumadelasfalaráesó

elas podem falar porque são as únicas que sabem. É um

problema...seráque...

—Esefôssemosàpolícia?—sugeri.

—Porquenão?Játemosomaterialsuficienteparaabriro

caso.

Sacudiacabeçaemdúvida.

Omaterial prova que há intenção,mas não é o suficiente.

Caímos naquela história do desejo de morte. Sei que não é

Page 151: Agatha christie - o cavalo amarelo

besteira— fizumgesto comamão, antecipandoa respostade

Ginger—mas num tribunal ninguém nos acreditaria. Nem ao

menossabemoscomoelesagem.

—Portantotemosquedescobririssotambém.Mascomo?

—Precisamosestarpresentesparavereouvir.Masnãovejo

possibilidade de alguém esconder-se naquele galpão, onde elas

fazemsabeDeusoquê!

Gingerempertigou-seejogouoscabelosparatrás.

— Só temos uma saída. Você precisa se tomar cliente da

firma.

Olheiparaelaespantado.

—Cliente?

— Sim. Ou eu ou você, não importa. Precisamos querer

eliminarumapessoa.UmdenóstemquecontratarBradley.

—Nãogostodisso.

—Eporquê?

—Porquenosexpõeaoperigo.

—Paranós?

— Talvez. No fundo eu estava pensando na vítima, pois

vamos ter que arranjar uma. Não podemos inventar uma

pessoa...elesdevemverificartodasasinformações.

Gingerpensouunsmomentos.

—Realmenteavítimaprecisaserumapessoaverdadeiraque

Page 152: Agatha christie - o cavalo amarelo

morenumlugardeterminado.

—Porissonãogostodaidéia.Alémdomaisprecisaremosde

umarazãoparaeliminaressapessoa.

Calamo-nosuminstante,considerandoestapossibilidade.

—Avítima teriaquesaberde tudoe concordar conosco—

disseeu.—Nãoachaqueseriapedirdemais?

— Tudo tem que ser preparado nos mínimos detalhes —

disseGinger.—Numacoisavocêtemrazão.Oúnicodefeitodo

negócio é que o segredonãopode ser tão inviolável, senão eles

nãoarranjariamoutrosclientes.

— O que me espanta — retorqui — é a polícia não saber

disso.Geralmenteelaestáapardetudo...

— A única explicação que posso oferecer é o fato de eles

possuíremumaorganizaçãototalmentecompostaporamadores.

Nãodevemempregar,nemenvolvercriminososprofissionais.Não

setratadaMafia,tudoéfeitopordiletantes.

ConcordeicomGinger.

— Vamos imaginar — continuou ela, que eu ou você

(examinaremos as duas possibilidades) estamos desesperados

paraeliminaruminimigo.Quemseria?Eutenhoumtiodequem

vou herdar uma bolada assim que ele morrer. Os herdeiros

somoseueumprimoquemoranaAustrália.Portantotenhoum

motivo.Comomeu tio já está comsetenta e tantosanos, eum

pouco caduco, seria mais razoável esperar que a natureza se

encarregue dele. Porém, vamos imaginar que eu esteja

precisando de dinheiro, mas como vamos criar esta situação?

Page 153: Agatha christie - o cavalo amarelo

Além do mais, caduco ou não, eu adoro meu tio e não quero

privá-lo de um minuto sequer de uma existência que tanto o

diverte.Nãopossocorreresterisco.Evocê?Temalgumparente

dequemvaiherdar?

Sacudiacabeça.

—Ninguém.

— Que pena! Talvez possamos inventar uma situação de

chantagem?Masistocertamentedariamuitotrabalho.Vocênão

tem nada a perder, não é político, nem membro do Corpo

Diplomático. Eu,muitome nos. Há cincoenta anos atrás seria

fácil, forjaríamos umas cartas, tiraríamos umas fotografias

comprometedoras,mashojeemdiaquemdáimportânciaaisto?

Quemaispoderíamostentar?Bigamia!Quepenavocênuncater

casado — suspirou Ginger, com ar de reprovação, poderíamos

partirdeumaconfusãomatrimonial.

Pela expressãodomeu rosto,Gingernotou ter tocadonum

pontonevrálgico.

—Desculpe—disseela.—Eutoqueinumpontosensível?

— Não propriamente. Já faz tanto tempo, que acho que

ninguémmaisselembradisso.

—Vocêjáfoicasado?

— Sim, quando ainda era universitário. Não contamos a

ninguém.Minhafamíliaseriacontra.Alémdomaisnãotínhamos

aindaatingidoamaioridade.

Fizumapausa,rememorandoopassado.

Page 154: Agatha christie - o cavalo amarelo

—Nãodurariamuito—continuei,—hojeseidisso.Elaera

bonita,meiga,mas...

—Oqueaconteceu?

— Fomos passar umas longas férias na Itália. Houve um

acidentedeautomóvel.Elamorreuinstantaneamente.

—Vocêtambémficouferido?

—Não,elaestavacomoutrohomem...umamigo...

Ginger lançou-me um rápido olhar, compreendendo o que

senti quando descobri que amoça com quem tinhame casado

nãomeerafiel.

—VocêsecasounaInglaterra?—perguntouela,voltandoao

assuntoquenosinteressava.

—Sim,numcartórioemPeterborough.

—MaselamorreunaItália?

—Sim.

—Portanto,oatestadodeóbitonãofoitiradoaqui?

—Não.

—Quemaisprecisamos?Éo ideal.Vocêestáapaixonadoe

quersecasar,masnãosabesesuamulheraindaestáviva;você

estáseparadoháanosenãotevemaisnotíciasdela.Nestaaltura

reaparece a esposa, se recusa a dar o divórcio e além disso

ameaçacontartudoasuanamorada.

—Queméminhanamorada?—pergunteiconfuso.—Você?

Page 155: Agatha christie - o cavalo amarelo

Gingerpareceusurpresa.

—Demaneira alguma!Quem iria acreditar que eu largaria

vocêsóporquenãopodemoscasarnaigreja?Não,suanamorada

éaquelamorenaesculturaledistantecomquemvocêfreqüenta

osconcertos...

—HermiaRedcliffe?

—Estamesmo.

—Quemlhefalousobreela?

—Poppy.Suanamoradaébastanterica,nãoé?

—É.Maseunão...

— Não estou insinuando que você vai casar com ela por

causa do dinheiro. Um tipo como Bradley porém acreditaria

nisso... Muito bem, aí está nossa estratégia: quando você está

para pedir Hermia em casamento, surge sua ex-esposa. Você

pedeodivórciomaselanega.Trata-sedeumacriaturavingativa.

AívocêouvefalarnoCavaloAmarelo.Alémdomaisapostooque

vocêquiserqueThyrzaeBellaacharamquesuavisita,naquele

dia, foi intencional, por isso Thyrza foi tão incisiva. Ela estava

simplesmentedemonstrandoasvantagensdasuaorganização.

—Podeser—concordei,rememorandoavisita.

—Sua idaaBradley, emseguida, seencaixaperfeitamente

nesteesquema.Vocêéumpossívelcliente.

Gingerficoumeolhandocomumardetriunfo.

—Mesmoassim—insisti—elesvãofazerumainvestigação

minuciosa.

Page 156: Agatha christie - o cavalo amarelo

—Claroquevão—concordouGinger.

— É fácil inventar uma esposa,mas eles vão querer saber

outrosdetalhes:ondeelamora,comosechamaetc.Quandoeu

tentardesconversar...

— Você não vai desconversar. Para que a coisa seja bem

feita,nahoraHvocêvaimostrarumaesposa.

Gingerfezumaligeirapausa.

—Segure-sebem.Aesposasereieu!

II

Fiquei tão espantado que não consegui dizer coisa alguma.

SómeadmireideGingernãoterridodaminhaexpressão.

Quandocomeceiarecobrarafala,Gingerinterveio:

—Nãoprecisaficartãoespantado.Nãoestoulhepedindoem

casamento.

—Vocênãosabeoquediz!

— Claro que sei! Estou sugerindo uma ação prática que

possuiavantagemdenãoameaçarumapessoainocente.

—Masvaipôrsuavidaemperigo.

—Éproblemameu.

—Nãoé.Alémdomaisquemiriaacreditarnisso?

—Todoomundo,oraessa!Alugoumapartamentoparaonde

memudo,dandoonomedeSra.Easterbrook...queméquepode

negarqueeusejaaSra.Easterbrook?

Page 157: Agatha christie - o cavalo amarelo

—Todasaspessoasqueaconhecem.

—Quemmeconhecenãovaimeencontrarpoisvouinventar

umaviagem.Tinjoocabelo...suamulhereralouraoumorena?

—Morena—respondimecanicamente.

— Ótimo! Visto-me com outras roupas, carrego na

maquilagem e nem meu melhor amigo me reconhecerá. Como

você não está casado há quinze anos, não vejo muita

possibilidade de duvidarem da minha identidade. Por que no

Cavalo Amarelo duvidariam de uma mulher que diz ser sua

esposa? Se você que é o maior interessado está disposto a

apostarqueeusousuamulher,nãosãoelesquevãoquestionar

esta assertiva. Você não tem ligações com a polícia, disso eles

sabem. Se quiserem ter certeza podem verificar no Cartório de

Somerset o registro civil; podem também verificar facilmente se

existe uma noiva chamada Hermia etc.... Não vejo por que

duvidem.

—Vocêparecenãoquererverosriscos,asdificuldades...

—Querisco,quenada!—gritouGinger.—Queroversevocê

ganhaestaaposta.

Olhei para Ginger com carinho. Examinei encantado as

sardas, os cabelos ruivos, o espírito empreendedor. Mas, não

podiadeixá-lacorreresterisco.

—Nãopossoconcordar,Ginger.Imagineseacontecealguma

coisa?

—Amim?

—Sim.

Page 158: Agatha christie - o cavalo amarelo

—Masjádissequeéproblemameu.

—Não.Euaenvolvinahistória.

Elasacudiuacabeçanumgestoafirmativo.

—Talveztenhasidovocê,masnãocreioqueistotenhatanta

importância. Nós dois estamos metidos nisso e temos que

deslindar estaenrascada.Estou falandosério,Mark.Nãoestou

maisbrincando.Seéverdadeoquenóssabemosnãopodemos

ficar parados. Não se trata de crimes passionais e sim da

profissionalizaçãodeumaindústriaodiosaquenemsequersabe

queméavítima.Casotudoistosejaverdade...

—Éverdade—respondi.—Porissoestoucommedo.

Ginger colocou os cotovelos sobre a mesa, e começamos a

discutirospróseoscontrasdonossoempreendimento.

FinalmenteGingerfezoarrazoadodasituação.

— Um homem prevenido vale por dois. Sei o que querem

fazer contramimenãoacredito que ela consiga irmuito longe

comigo. Meu desejo de morte não está bastante desenvolvido!

Tenho ótima saúde e não creio que vá sofrer de meningite ou

pedras na bexiga só porque Thyrza resolveu fazer um desenho

cabalísticonochão.

—Belladevematarumgalobrancoemsuahomenagem—

disseeu.

— Você há de convir que é muita palhaçada junta —

protestouGinger.

—Nósnãosabemoscomoelasagem.

Page 159: Agatha christie - o cavalo amarelo

— Por isso nossa aventura é importante. O que é

inacreditável é elas pretenderem assassinar uma pessoa por

telepatia.

— Realmente é duro de acreditar — concordei. — Mas eu

acredito.

—Porissoestamosfazendoestaexperiência.

—Eque tal—sugerieu—senós trocássemos?Eu ficaria

aquievocêseriaacliente.Poderíamosinventar...

Gingersacudiuacabeçacomvigor.

— Não, Mark— disse ela,— não iria dar certo por vários

motivos. Para começar sou conhecida no Cavalo Amarelo como

Ginger.Vocêestábemsituado:paraelesnãopassadeumcliente

nervosoqueaindanãosedecidiu.Temosqueseguiravantedesta

forma.

—Não gosto de deixar você, só, num lugar, comumnome

falsosemalguémparaprotegê-la.Primeiroachoquedeveríamos

iràpolícia...

—Concordo—disseGinger,—aliásdesdeocomeçopenso

assim.Vocêachaquealguémnosacreditaria?

— Não — disse eu, — mas poderemos tentar o Inspetor

Lejeune.

Page 160: Agatha christie - o cavalo amarelo

Capítulo15

NarrativadeMarkEasterbrook

Eu tinha simpatizado com o Inspetor Lejeune desde que o

conhecera,nãosópeloseuareficientecomotambémporparecer

umhomemdeimaginação;elemedavaaimpressãodesercapaz

deconsideraraspossibilidadesmenosortodoxas.

—Dr.Corriganmecontouqueestevecomosenhor—disse

ele.—Nocomeçoparecequeeleseinteressoumuitopelocaso:o

padreGormaneramuitorespeitadoeconhecidonaquelazona.O

senhorparecequetemalgumainformaçãoparanosfornecer.

— Uma informação relacionada com o Cavalo Amarelo —

expliquei.

—AquelacasasituadaemMuchDeeping?

—Sim.

—Oqueosenhorgostariademeinformar?

Relateia conversacomPoppynoFantasie,descrevia visita

comRhodaefinalmenteaentrevistacomThyrzaGrey.

—Oqueeladisseoimpressionou?

Fiqueiembaraçadocomapergunta.

—Nãopropriamente...éclaroquenãoacreditei.

—Não,mesmo,Sr.Easterbrook?Tenhoaimpressãodeque

acreditou.

Page 161: Agatha christie - o cavalo amarelo

— O senhor tem razão. É desagradável admitir que

acreditamosemcrendices.

Lejeunesorriu.

— Mas o senhor já estava interessado no Cavalo Amarelo

quandofoiláaprimeiravez.Porquê?

—CreioqueintrigadopeloardepavordePoppy.

—Amoçadalojadeflores?

— Sim. Ela falou sobre o Cavalo Amarelo casualmente;

depois, quando se apavorou realmente fundamentou minhas

suspeitas.Depois encontrei oDr. Corrigan e elememostrou a

lista, da qual dois nomes eu conhecia, pois eram pessoas

recentemente falecidas de quem eu ouvira falar. Além de uma

terceiraquemaistardedescobriquehaviamorrido.

—ASra.Delafontaine?

—Sim.

—Continue.

—Decidiinvestigarafundoestahistória.

—Porondecomeçou?

FaleisobreaSra.Tuckertonedepoissobreaentrevistacom

o Sr. Bradley em Birmingham. A esta altura tinha conseguido

captarointeressedeLejeune.

— Bradley? — repetiu ele. — Então Bradley está metido

nisso?

Page 162: Agatha christie - o cavalo amarelo

—Osenhoroconhece?

—Claroqueapolíciaconhecetodosostiposindesejáveis;ele

nãoénadaburroeconseguesemanternolimiardajustiça.Sabe

todos os truques emeandros legais demaneira que ainda não

conseguimos apanhá-lo. Bradley devia escrever um livro

chamado:Cemmaneiraspráticasdeburlara lei.Nãosabíamos

quehaviaenveredadoparaocrime.

—Comoqueeulheconteiosenhorpoderiaprendê-lo?

Lejeunesacudiuacabeça.

—Não,nãopoderia.Paracomeçarnãohouvetestemunhase

elesimplesmentenegariaqualqueracusação.Alémdomais,não

há lei que proíba um sujeito de fazer apostas sobre a vida de

outra pessoa. Não há ilegalidade alguma nisso. Se não

conseguirmos ligar Bradley com algum desses crimes não

poderemosagarrá-lo.Aquientrenós,nãovaiserfácil.

Depoisdeumapequenapausa,Lejeunesorriuparamim.

— Por acaso o senhor, quando esteve em Much Deeping,

conheceuumhomemchamadoVenables?

—Sim—respondi.—Almoceicomele.

—Ah!Equeimpressãotevedele?

—Umhomemdefortepersonalidade.Éuminválido.

—Sim,vítimadaparalisiainfantil.

—Vivenumacadeirade rodas,masparecequea invalidez

aguçousuadeterminaçãodegozaravida.

Page 163: Agatha christie - o cavalo amarelo

—Fale-memaissobreele.

DescreviacasadeVenables,ostesourosdearteascoleções

raríssimas.

—Quepena!—comentouLejeune.

—Oqueéumapena?

— Que Venables seja paralítico — respondeu Lejeune,

secamente.

—Quemsabeelefingeserinválido?—arrisquei.

— Temos certeza de que não. O médico dele Sir William

Dougal,umprofissionalacimadequalquersuspeita.Um talde

Osborne,porém,insistequeoviu,andandoatrásdeGorman,na

noitedocrime.Mas,estáenganado,éclaro.

—Compreendo.

— Digo que é uma pena porque, se realmente existe esta

organizaçãocriminosa,Venablesseriaohomemcapazdedirigi-

la.

—Certamente.

Lejeunedistraidamentetraçouumaslinhascomoindicador.

—Vamosreunirosfatos,istoé,juntaroqueosenhorsabe

com o que nós sabemos. Parece que existe uma organização

particularcriminosadedicadaàremoçãodepessoasricas.Éuma

firma que não emprega assassinos profissionais, uma vez que

suas vítimas morrem de “doença”. Além dos três casos que o

senhor conhece temos algumas informações sobre as outras

vítimas — todas falecidas de causas naturais, embora sempre

Page 164: Agatha christie - o cavalo amarelo

deixemsobreviventesquelucramcomisso.

— Trata-se, portanto, de uma organização diabólica, Sr.

Easterbrook — continuou Lejeune. — Quem elaborou esse

negócioéumgênio.Pensebem,atéagorasótemosumalistade

nomeseaconfissãodeumamulheremagonia.Nemaomenos

sabemosquantasvítimasessaorganizaçãojáfez.

Lejeunesacudiuacabeçafurioso.

—EssaThyrzaGrey temrazãodesegabardosseus feitos.

Possuiimunidades.Seaacusarmosdeserumaassassinaestaria

em liberdade em uma semana. Sabemos que ela não teve o

menor contato com as vitimas e nem enviou sequer chocolate

envenenado para os pobres. Segundo ela, basta sentar numa

cadeiraeempregaratelepatia!Otribunaliriadarrisadadeum

promotorqueseatrevesseaacusá-la.

— A esta altura Lúcifer deve estar às gargalhadas —

murmurei.

—Realmenteéumnegóciodiabólico,Sr.Easterbrook.

—QuemdiriaquenoséculoXXempregaríamosesteadjetivo

paradefinirumaorganização!

— Só vejo uma possibilidade — continuei depois de uma

ligeirapausa:—eueumaamigabolamosumplanoque talvez

lhepareçapueril...

—Vamosver...

—Primeirovamospartirdoprincípiodequeestaorganização

existeefunciona.

Page 165: Agatha christie - o cavalo amarelo

—Muitobem,edaí?

— Mas não sabemos como funciona. Só sabemos que o

cliente ouve falar numa organização, pede mais informações e

acabaindoaBirminghamaoencontrodoSr.Bradley.Sechegaa

umacordoo clientedeve ser levadoatéoCavaloAmarelo,mas

daí em diante não sabemos o que acontece. Este é o ponto

crucial. O que acontece no Cavalo Amarelo? Alguém tem que

descobrir...

—Muitobem...

— Pois se não descobrirmos o que Thyrza Grey faz não

podemos ir adiante. Segundo Jim Corrigan isto não passa de

umaxaropada,maseulhepergunto,serámesmo?

Lejeunesuspirou.

— O senhor sabe minha resposta, isto é, a resposta de

qualquer homem normal. É realmente uma xaropada estúpida.

Porém extra-oficialmente muitas coisas estranhas acontecem.

Quemdiria, cemanosatrás,queseriapossível falardaqui com

umhomememNovaYork,atravésdeumfio?Eassimmilhares

deoutrascoisas...

—Emoutraspalavras,tudoépossível?

—Exatamente,portanto,seosenhormedizqueThyrzaGrey

écapazdematarumapessoa,enrolandoosolhosoucaindoem

transe, eu não devo duvidar, pois talvez ela tenha descoberto

algo...

—Entendo—intervi.—Osobrenaturalparecesobrenatural

masaciênciadofuturoáosobrenaturaldaatualidade.

Page 166: Agatha christie - o cavalo amarelo

—Nossaconversanãoéoficial—enfatizouLejeune.

—Oquepretendofazeréverdepertooqueacontece.Estaé

minhaproposta.

Lejeuneolhouparamimespantado.

—Jádeioprimeiropasso—disseeu.

Contei em detalhes o nosso plano. Lejeune não pareceu

muitosatisfeito.

— Sr. Easterbrook, vejo aonde quer chegar. O acaso o

conduziu a uma descoberta,mas quero que saiba que os ricos

são grandes, pois o senhor e sua “esposa” estarão lidando com

genteperigosa...

— Seimuito bem— protestei.—E ela também sabe,mas

nãohánadaqueademova.

—Osenhordissequeelaéruiva?

—Sim—respondiespantado.

— Não discuta com as ruivas — disse Lejeune. — Vá por

mim!

Fiqueimeperguntandoseamulherdeleseriaruiva.

Page 167: Agatha christie - o cavalo amarelo

Capítulo16

NarrativadeMarkEasterbrook

QuandofuiprocurarBradley,novamentenãosentiomínimo

nervoso.Acheiatédivertido.

— Imagine o que um homem nestas condições sentiria —

disseGinger.

Seguioconselho.

OSr.Bradleyrecebeu-mecomumsorriso.

—Queprazerrevê-lo—disseele,estendendoamão.—Com

queentãoestevepensandonoproblema?Felizmentenão temos

pressa...

— Infelizmente eu tenho pressa. Trata-se de um caso

urgente.

Bradleyolhou-mecomespanto,notandomeunervosismo.

—Vamosverentãooquepodemos fazerpelosenhor.Quer

fazer uma aposta, não émesmo?Nada comouma aposta para

distrairasidéias...

—Ocasoéoseguinte—disseeu,interrompendoafraseno

ar.

DeixeiocampolivreparaBradleyagir.

—Notoqueestánervoso.Osenhoréumhomemcauteloso,e

euaprecioa cautela.Nãoconfianaprópriamãe!Osenhornão

Page 168: Agatha christie - o cavalo amarelo

desconfia de que eu tenha ummicrofone escondido aqui nesta

sala?

Olheiparaelecomosetivesselidomeuspensamentos.

— Posso lhe garantir que não tenho aparelhagem alguma

nestasalaenossaconversanãoserágravada.Casonãoacredite,

aliás tem todoodireitodeduvidar, estoudispostoaprocurá-lo

numoutrolugarparapodermosdiscutir...

Afianceiquenãohaverianecessidade.

—Muito bem. Além domais nenhum de nós lucraria com

umachantagemdessetipo.Procuraremos,noentanto,evitarno

nossocolóquiooempregodetermosquepoderiamlegalmenteser

usadoscontranós.Porexemplo,osenhorestápreocupadocom

algo, resolve desabafar comigo, sabe que sou um homem

experienteecapazdelhedarbonsconselhos...Quelheparece?

Gaguejeiminhahistória.

O Sr. Bradley foi bastante solícito. Sempre queme via em

dificuldades,ajudava-mecompalavrasouexpressõesousorrisos

encorajadores. Não levei muito tempo para descrever meu

casamentodesastrosocomDoreen.

—Acontecefreqüentemente—comentouBradley,sacudindo

a cabeça.—Tão freqüentemente.Um jovem inexperiente, cheio

devida,umagarotabonitaepronto!Casamentoedepois...

Contei o resultado. Fui propositadamente vago em relação

aosdetalhespoisotipodehomemqueeupretendiarepresentar

nãoentrariaemdetalhessórdidos.Apresenteisomenteoretrato

deumjovemtoloedesiludido;insinueiumabrigadecasalenão

Page 169: Agatha christie - o cavalo amarelo

negueinemafirmeiqueelativesseoutrosamantes.

— Embora ela não fosse a mulher que eu imaginei, não

esperavaqueviesseasecomportardessaforma...

—Queforma?

—Que...elafossereaparecer...enfim.

—Oqueosenhorpensouquetivesseacontecidocomela?

—Por incrível quepareçaachei que ela tinhadesaparecido

daminhavida.

— Por um passe de mágica? — perguntou Bradley,

delicadamente.—Eporquê?

—Bem,elanuncaescreveuoumandounotícias.

—Naverdadeosenhorqueriaesquecer-sedela...

Bradleyeraumfinopsicólogo.

—Sim— respondi, agradecido.—Alémdomaisnão tinha

intençãodecasaroutravez...

—Mas,agoratem?

—Bem.

—Falefrancamente.

Admiti que queria casar de novo, recusando-me

obstinadamenteadardetalhessobreminhanoiva.Minhatática

pareceuacertadapoiselenãoinsistiu.

—Compreendo.Osenhorencontrouumapessoaquepoderá

Page 170: Agatha christie - o cavalo amarelo

compreendê-lomelhor.

Uma mulher que tem os mesmos gostos e os mesmos

interesses.

PercebiqueelesabiadaexistênciadeHermia.Aliásqualquer

investigação a meu respeito revelaria o fato de ela ser minha

companhia constante. Certamente quando Bradley recebeu

minha carta, marcando uma entrevista, imediatamente fez

algumasinvestigaçõesameurespeito.

—Porquenãotentaodivórcio?Nãoseriaasoluçãonatural?

— Fora de cogitação. Minha mulher recusa-se

terminantementeamedarodivórcio.

—Quepena!Qualaatitudedelaemrelaçãoaosenhor?

—Quervoltarparamim...quervivercomigo.Não...elasabe

queeuestouapaixonadoporoutrae...

—Eresolveucriarcaso.É,realmentenãovejooutrasaída,a

nãoserque...elaéjovem?

—Muito.Aindaviveráanos!

— Isso não se sabe, Sr. Easterbrook. Ela morou no

estrangeiro?

—Foioquemedisse.Nãoseibemondeesteve...

—QuemsabeelanãoandoupelaÁsiaeapanhouumgerme

qualquer, desses que ficam adormecidos e um dia reaparecem.

Conheço alguns casos; assim, pode ser que também aconteça

comsuaesposa.Creioquepodemosfazerumaaposta!

Page 171: Agatha christie - o cavalo amarelo

Sacudiacabeça.

—Elaviveráeternamente.

—Osenhorestálevandoumagrandevantagem,masquero

apostarmesmoassim.Aposto150.000librascontraumaqueela

embarcaantesdoNatal.

— Não posso esperar tanto... — balbuciei incoerente. Quis

propositadamente dar a Bradley a idéia de que estava sendo

ameaçadoporminhaesposa.

— Então podemos modificar a aposta. 180 contra um que

sua esposa embarca dentro de um mês. É uma espécie de

pressentimento.

Acheiquetinhachegadoomomentodepedirumabatimento.

Protesteiquenãotinhatantodinheiro.Bradley,porém,comoum

bom negociante, sabia qual a quantia de que eu podia dispor;

sabia também que Hermia tinha dinheiro. Deliberadamente

insinuou que quando eu estivesse casado não sentiria falta do

dinheiro. Além do mais, minha pressa o colocava numa boa

situação,portanto,manteveopreço.

Quandosaítinhadeixadoumapromissóriade180.000libras

e um contrato cheio de cláusulas legais absolutamente

ininteligível.

—Estecontratotemvalidadelegal?

— Não creio que tenhamos oportunidade de descobrir —

disse Bradley, num tom desagradável. — Uma aposta é uma

aposta.Seumhomemnãocumpre...

Olheiparaele.

Page 172: Agatha christie - o cavalo amarelo

—Nãoaconselho—disseBradley—de formaalguma.Não

gostamosdecaloteiros.

—Nãosoucaloteiro—protestei.

—Claroquenão,Sr.Easterbrook.Bem,agoravamostomar

asprovidências.ASra.EasterbrookestáemLondres?

—Precisadoendereço?

—Precisodetodososdetalhes.Voumarcarumaentrevista

suacomThyrzaGrey.Lembra-sedela?

Respondiquesim.

— Umamulher extraordinária. Repleta de poderes. Ela vai

pedirumobjetopessoaldesuaesposa:umaluva,umlenço...

—Paraquê?

—Nãomepergunteparaquê!Eunãosei.ASra.Greynão

contaseussegredos.

—Mascomoelaconsegue...

—Acredite-me,Sr.Easterbrook,quandoeudigoquenãosei

e nem quero saber. Eis meu conselho — prosseguiu Bradley,

depois de uma pequena pausa. — Vá procurar sua esposa e

convença-adequeestádispostoavoltarparaela.Sugirotambém

queosenhorpasseunstemposnoexterior...quandoregressar...

—Então?

—OsenhoriráaMuchDeeping,levandoumapeçaqualquer

de sua esposa. Quando esteve lá ficou hospedado com uma

prima?

Page 173: Agatha christie - o cavalo amarelo

—Issomesmo.

—Portantonadamaissimplesdoquepassardoisdiaslá.

—Amaioriadaspessoasoquefaz?

—Unsficamnohotel,ousealojamnacidadevizinha...não

sei.

—Quedevodizeraosmeusprimos?

— Que ficou impressionado com sua visita e que deseja

participar de uma sessão espírita presidida por Thyrza Grey...

nãoprecisadizermaisdoqueisso.

—Edepois?

— Não sei. Depois disso a Srta. Grey dará as instruções

necessárias. Não esqueça de levar uma luva ou um lenço. Em

seguida viaje para o exterior. A Riviera Italiana é encantadora

nestaépocadoano...nãoprecisademorar,bastaumaouduas

semanas.

InsistiquenãopoderiasairdaInglaterra.

— Pois não, pois não. Mas não fique em Londres. Não

aconselhoLondres.

—Porquenão?

OSr.Bradleyolhouparamimcomdesaprovação.

—Garantimosumserviçoperfeitoaosnossosclientesseeles

seguiremàriscanossasinstruções.

—NãopossoficaremBournemouth?

Page 174: Agatha christie - o cavalo amarelo

—Pode.Hospede-senohotele façaalgumasamizades.Não

seexcedaemcoisaalgumaeseenjoardeBournemouthvávisitar

Torquay...

Bradleyfalavacomosefosseumagentedeviagens.Aperteia

mãogorduchaeretirei-me.

Page 175: Agatha christie - o cavalo amarelo

Capítulo17

NarrativadeMarkEasterbrook

I

—VocêvaimesmoaumasessãoespíritanacasadeThyrza?

—perguntou-meRhoda.

—Porquenão?

—Nãosabiaquevocêseinteressavaporessetipodecoisa.

—Paradizeraverdade,nãoéminhaespecialidade,maselas

sãotãoestranhasquedespertaramminhacuriosidade.

Nunca soube mentir bem, de maneira que não me senti à

vontade, tentando despistar Rhoda e Hugh. Despard,

principalmente,pareciapossuirumsextosentidoemrelaçãoàs

pessoas.

—Então irei com você—disseRhoda.—Sempre quis ver

umacoisadessas.

—Não,Rhoda,vocênãovai—rosnouDespard.

— Ora, por quê? Você sabe que eu não acredito nestas

besteiras.Queroversóporcuriosidade.

— Para começar, não há razão alguma para manifestar

curiosidade — disse Despard. — Acho que elas não estão

brincandoenãoquerovê-laenvolvidaemencrencas.

—PorquenãotentaconvencerMark?

Page 176: Agatha christie - o cavalo amarelo

—Markémaiordeidade—respondeuDespard,olhando-me

desoslaio.

Tivecertezadequeeledesconfiavadealgo.

Rhoda ficou irritadamas teve que se conformar. Por acaso

encontramosThyrzaGrey,nacidade,umpoucomaistarde.

— Alô, Sr. Easterbrook. Não esqueça, contamos com sua

presença hoje à noite. Sybil é uma grande médium, portanto

nuncasesabe,deantemão,quaisosresultadosqueobteremos.

Sópeçoumacoisa,relaxeaomáximoeprocurenãodebochar.

—Euqueriair—interveioRhoda—masHughnãodeixou.

Vocêsabecomoeleécheiodepreconceitos.

—Dequalquermaneira,nãoiríamosquererquevocêviesse.

Bastaumestranho—respondeuThyrza,voltando-separamim.

— Que tal se viesse mais cedo e fizesse um lanche conosco.

Nunca comemos nada pesado antes de uma sessão. Podemos

esperá-loàssete?

Concordeieelasedespediu,sorrindo.

PorunsinstantesnãoouvioqueRhodadizia.

—Oquevocêdisse?

—Você tem andadomuito esquisito ultimamente,Mark. O

quehá?

—Nada,porquê?

—Estápreocupadocomolivro?Qualéoproblema?

—Livro?—porunsminutosnãoconseguimelembraraque

Page 177: Agatha christie - o cavalo amarelo

livroelasereferia.—Ah!sim,olivro.Não,atéqueestáindobem.

— Já sei! Está apaixonado — disse Rhoda, num tom

acusador.—Éissomesmo.Semprequeumhomemseapaixona

fica com este ar abobalhado. As mulheres, porém, parece que

florescem,tornam-sevibrantes,maisbelas.Porqueseráqueisto

acontece? As mulheres ficam mais jovens e os homens ficam

parecendounsbodesdoentes.

—Obrigado—respondi.

—Nãosezanguecomigo,Mark.Estouachandoótimoeestou

encantada...elaémaravilhosa.

—Quemémaravilhosa?

—HermiaRedcliffe,élógico.Ouachaquenãoseicomquem

vocêanda?Háanosqueesperoporisso.Vaiserperfeitoporque

elaéamulheridealparavocê:inteligenteebonita.

—Típicocomentáriovenenoso.

Rhodaolhouparamim.

—Decertaforma—disseela.

Retirou-sepretextandoumavisitaaoaçougueiro,comquem

precisavaconversar.Eudissequeiaatéacasadovigário.

—Masnãoparamarcaradatadocasamento—acrescentei.

II

Entrei na casa do pastor como quem entra em casa.

Encontreiaportahospitaleiramenteabertaeaocruzaroumbral

senticomosetirasseumpesodosombros.

Page 178: Agatha christie - o cavalo amarelo

A Sra. Dane Calthrop vinha entrando por outra porta,

carregando,nãoseiporque,umenormebaldeplásticoverde.

—Ah!évocê.Jáoesperava.

Entregou-meobalde.Fiqueiparadosemsaberoquefazer.

—Coloque-onaportadoladodefora—disseelaimpaciente.

Obedeci, em seguida fomos para a sala de visitas. A Sra.

Calthropavivouachamadalareiraejogouumatoradelenhaao

fogo.Comumgestoconvidou-measentarecolocando-seaomeu

ladoesperouansiosamentepelasnotícias.

—Bem?—perguntou.—Oquetemfeito?

Julgando pela intensidade da boa senhora, parecia que

estávamosprestesaperderumtrem.

—Estouseguindoseusconselhos.

—Ótimo.Edaí?

Conteitudo.

—Hojeànoite?—murmurouaSra.DaneCalthrop.

—Sim.

Elaficoucalada,pensando.

—Nãogostodisso!MeuDeus,nãogostodisso!—explodi.

—Masnãoéparagostar.

—TenhomedodoquepossaacontecercomGinger.

Elaolhouparamimcomumarbondoso.

Page 179: Agatha christie - o cavalo amarelo

— A senhora não imagina como ela é corajosa. Se eles

conseguiremdecertaformaprejudicá-la...

—Nãovejocomovãoconseguir—disseelavagarosamente.

—Como?

—Maselesjáfizerammalaoutraspessoas.

—Éoqueparece—disseeladuvidosa.

—Tomamostodasasprecauções.Elanãopoderásofrerdano

algum...

—Exatamenteoqueelasdizemquesãocapazesdefazer—

disse a Sra. Calthrop. — Dizem que podem atingir o corpo

através da mente por doença. No fundo é interessante mas

horríveldemaisparaserverdade.Temosquepôrum fimnessa

história.

—Maséelaqueestácorrendoorisco—resmunguei.

— Bem, alguém teria que correr este risco— disse a Sra.

Calthrop,calmamente.—Vocêestácomoorgulhoferidopornão

ter servido de cobaia. Ginger encaixou-se perfeitamente no

esquema.Éumamulhercontroladae inteligente.Tenhocerteza

dequeelanãoiránosdesapontar.

—Nãoestoupreocupadocomisso!

—Nãosepreocupecomoresto.Nãoadiantacoisaalguma.

Alémdomais,seelamorrerterásidaporumaboacausa.

—Quehorror!

—Sempreespereopior—aconselhouaSra.Calthrop.—Éo

melhorcalmante.Possuiodomdeamenizarqualquergolpe.

Page 180: Agatha christie - o cavalo amarelo

—Talvez—murmurei.

ASra.DaneCalthropgarantiuqueestavacomarazão.

—Asenhoratemtelefone?

—Éclaro.

Expliqueioquequeria.

—Depoisdessahistóriadehojeànoiteeuvouquerermanter

contato constante com Ginger. Telefonarei diariamente. Posso

ligardaqui?

—Claro.NacasadeRhodatemsempretantagente,alémdo

maisexistesempreoperigodeouviremalgumacoisa.

— Ficarei mais uns dias na casa de Rhoda e depois parto

paraBournemouth.NãopossovoltaraLondres.

—Nãoadiantacolocarmosocarroadiantedosbois—dissea

Sra.Calthrop.—Vamosveroquevaiacontecerhojeànoite.

—Hoje ànoite!— levantei-me.—Peço que a senhora reze

pormim.

—Claro— respondeu ela, surpreendida comminha súbita

conversãoreligiosa.

Aosairresolvifazerumapergunta.

—Eobalde?Paraqueserve?

—Obalde?Para osmeninos cataremamorasno campo.É

umbaldehorrívelmasmuitoprático.

Olheiparaabelezaoutonaldocampo.Quantabeleza...

Page 181: Agatha christie - o cavalo amarelo

—Anjoseministrosdocéu,protejam-nos—disseeu.

—Amém—murmurouaSra.DaneCalthrop.

III

NãoseicomoesperavaserrecepcionadonoCavaloAmarelo,

mas posso dizer que a acolhida fria e convencional me

desapontouumpouco.

ThyrzaGrey,usandoumsimples vestidode lã, recebeu-me

naporta.

— Ah! Já chegou. Que bom! — comentou, num tom

profissional.—Assimpodemoslancharlogo.

Otomcotidianomeespantou.AmesajáestavapostaeBella

nos serviu uma sopa, um omelete e uns queijos. Sybil deu a

única nota exótica: um vestido comprido estampado,

representando umas penas de pavão, todo debruado em ouro;

dois enormes braceletes de ouro, em volta dos braços, e

excepcionalmente nenhum colar de contas. Ela comeu

pouquíssimoefaloumenosainda,certamentepreocupadaemme

impressionar.Pormeulado,confessoqueacheiarepresentação

artificialefalsa.

Thyrza Grey animou como pôde a conversa, fazendo

comentáriossobreospersonagensdacidade.Estavaempenhada

emrepresentaratípicasolteironainglesa.

Pensei com meus botões que talvez estivesse louco,

completamentelouco.Querazãotinhaeuparasentirmedo?Até

Bellameparecia,estanoite,umavelhacamponesaimbecil!

Page 182: Agatha christie - o cavalo amarelo

Em retrospecto a conversa com a Sra. Dane Calthrop me

pareceufantástica.Creioquenosdeixamoslevarpelafantasiae

acabamosvitimasdanossaprópriaimaginação.

Finalmenteterminamosolanche.

— Não vou servir café — desculpou-se Thyrza; — não

devemosnosestimulardemais.Sybil?

— Sim — respondeu Sybil, assumindo uma expressão

supostamenteesotérica.—Jásei,devomePREPARAR.

Bella retirouospratos.Fuiatéaohall examinara tabuleta

daestalagem.Thyrzaseguiu-me.

—Comestaluznãodáparaverbem—disseela.

Eraverdade.Aimagemamareladacontraaferrugemescura

maldavaparadistinguirafiguradocavalo.

— Aquela moça ruiva... como é mesmo o nome dela?

Ginger?... é Ginger, queria restaurar esta tabuleta — disse

Thyrza—mascreioqueseesqueceu.Elatrabalhanumagaleria

dearte,emLondres—acrescentoucasualmente.

SentiumcalafrioaoouvironomedeGinger.

— Talvez não fosse má idéia — comentei, olhando para a

tabuleta.

—Não éumaboapintura—disseThyrza—mas combina

comolugar...devetermaisdetrezentosanos.

—Pronto.

Voltamo-nos.Bellaestavaparadanaporta,noschamando.

Page 183: Agatha christie - o cavalo amarelo

—Estánahora—disseThyrza.

Segui-aatéovelhoceleiro,atravessandoojardimescuro.Se

de dia o celeiro parecia uma agradável biblioteca restaurada, à

noite era outra coisa. As luzes não estavam acesas e a

iluminação fria provinha das frestas do teto. No centro da sala

encontrava-se uma cama ou um divã coberto por um pano

vermelhobordadocomdesenhoscabalísticos.Nofundoumvelho

caldeirão fumegando, ao lado uma bacia de cobre. Do lado

oposto, encostada na parede, uma cadeira de carvalho, onde

Thyrzamemandousentar.

Obedeci, notando que Thyrza havia mudado sem que eu

pudesse definir como. Não era uma atitude teatral como a de

Sybil e sim como se o cotidiano tivesse sido retirado da sua

existência.Maispareciaumcirurgiãoprontoparaumaoperação

complicada.Essa impressão foi reforçadaquandoelavestiuum

aventalcomprido,feitodeumtecidometálico.

—Precisotomarcertasprecauções—preveniu-meThyrza.

Acheiafrasebastantesinistra.

—Devoprevenirqueosenhordevemanter-seabsolutamente

quietoedeformaalgumasairdestacadeira,senãoquisercorrer

perigode vida.Lembre-sedequenãoestamosbrincandoe sim

lidandocomforçasperigosaseestranhas.

ThyrzaGreyfezumaligeirapausa.

—Trouxeoquelhepedimos?

Puxei do bolsouma luva de suedinemarrom.Rapidamente

Thyrzacolocoualuvaemfrentedeumestranhoabajur;acendeu

Page 184: Agatha christie - o cavalo amarelo

a luz e segurou a luva, diante da lâmpada, que deu ao tecido

umaestranhacoloraçãocinza.

—Muitobem—disseela,apagandoaluz.—Asemanações

físicasdadonaaindaestãobempresentes.

Emseguida,colocoualuvasobreumaparelhosemelhantea

umavitrola.

—Bella,Sybil—disse,levantandoavoz,—estoupronta.

Sybil entrou, trajando uma capa preta, que ela deixou

deslizarsobreosombros,caindoaochãocomoumamanchade

tinta.

—Esperoquedêcerto—disse.—Nuncasesabe.Porfavor,

não adote uma atitude crítica, Sr. Easterbrook. Atrapalha os

trabalhos.

— O Sr. Easterbrook não veio para brincar — preveniu

Thyrza,severamente.

Sybildeitou-senodivãvermelho.

—Estábemcômoda?—perguntouThyrzasolícita.

—Oh!Sim,obrigada.

Thyrza acendeu umas luzes, deixando Sybil no escuro,

circundadaporumraiodeclaridade.

— Muita luz atrapalha o transe — explicou. — Estamos

prontas,Bella.

Bella surgiudas sombras e encaminhou-se comThyrza em

minhadireção.

Page 185: Agatha christie - o cavalo amarelo

Thyrzacomamãodireitapegouminhamãoesquerda,deua

outramãoparaBella;estaapanhouminhamãodireita.Senti-me

repelido pelo contato com Bella. Thyrza deve ter acendido um

comutador qualquer, pois ouvi os acordes de uma música a

distância.PareciaamarchafúnebredeMendelssohn.

—Miseenscène—pensei.—Umaverdadeirapalhaçada.

Apesar disso, senti como se uma corrente subterrânea de

apreensãoemocionaltivesseinvadidoasala.

Amúsicaparou.Fez-seumlongosilêncio,ondesóseouvia

nossaprópriarespiração.

De repente,Sybil começoua falar, comoutravoz.Erauma

vozmasculina,gutural,comsotaqueestrangeiro.

—Cheguei—disseela.

As duas soltaram minhas mãos. Bella desapareceu nas

sombras.

—Boanoite—disseThyrza.—ÉsMacandal?

—Sim,souMacandal.

ThyrzamoveuumalâmpadaeiluminouorostodeSybil,que

parecia mergulhado num sono profundo. Seu rosto estava

inteiramentemudado;pareciamaisjovemeatémaisbonita.

—Estáspreparado,Macandal,paraobedecerameusdesejos

eminhasvontades?

—Estou—respondeuavoz.

—TomaráscontadocorpodeDossu,queestáaquideitadoe

Page 186: Agatha christie - o cavalo amarelo

no qual você está incorporado para que não sofra dano físico

algum?Dedicarás tua força vital aosmeuspropósitosparaque

euconsigaatravésdelesrealizarmeusdesejos?

—Sim.

—DedicarásestecorpoparaqueaMorte,passandoporele,

atinjaoutrocorpo?

Thyrzadeuumpassopara trás.Bella reapareceucomuma

espécie de crucifixo. Thyrza colocou-o de cabeça para baixo,

sobreopeitodeSybil.Bella,emseguida,trouxeumvidroverde.

Duas gotas foram colocadas na testa de Sybil, onde Thyrza fez

um pequeno desenho que me pareceu o sinal da cruz ao

contrário.

— Água benta da igreja católica de Garsington— explicou

Thyrza, numa voz comum que deveria ter dissipado o encanto

mas,noentanto,deuàcerimôniaumarmaisassustador.

Thyrza apanhou um terrível guizo, sacudindo-o três vezes,

diantedeSybil.

—Tudoestápronto!—disseThyrza,dandoumpassopara

trás.

Bellarepetiuasmesmaspalavras.

—Nãoachoqueestejamuitoimpressionadocomesteritual

— disse Thyrza. — A maioria dos nossos clientes, porém, fica

apavorada. É claro que há um pouco de palhaçada nisto,mas

nãodeveduvidardetudo.Oritualpossuiumcertoefeitosobreo

espírito humano. O que causa a histeria nas massas? Não

sabemosaocerto,masadmitimosqueéum fenômenoatuante.

Page 187: Agatha christie - o cavalo amarelo

Porissoempregamosestacantilena;énecessária,creia-me.

Bellasaiudoceleiro,voltandocomumgalobranco.Comum

pedaço de giz, ela ajoelhou-se e fez alguns riscos no chão, em

voltadobraseiroedabaciadecobre.Colocouogalodentroda

bacia;aave,comoporencanto, ficou imóvel.Fezoutros riscos,

cantando num tom gutural. Não pude compreender suas

palavras mas percebi que ela estava se excitando até poder

atingirumcertoclímaxdeparaxismoobsceno.

—Não gosta?—perguntou Thyrza, observando-me.—É a

velha receita da morte, que vem de geração em geração,

transmitidademãeparafilha.

Nãopodia compreender onde Thyrza pretendia chegar, pois

emvezdetentarmeconvencerelapareciaagircomoumacética

comentarista.

Bella estendeu as mãos para o aquecedor e uma chama

começouacrepitar.Atirouumaservasna fogueira,enchendoo

ardeumestranhoperfume.

—Estamosprontas—disseThyrza.

Comoum cirurgião, ela dirigiu-se para o aparelho parecido

comumavitrola,abriu-oepudeverumamaquinariaeletrônica

complicadíssima.Ela empurroua estranhamáquinaparaperto

dodivã.Ajustouoscontroles.

— Direção... Norte, norte... leste... grau... é isso mesmo.

Pegoualuva,acendendoumaluzvioleta,ecolocouofocodeluz

numa certa posição. — Sybil Diana Helen — disse Thyrza,

dirigindo-seàfigurainertenosofá.—Estáslivredoteuinvólucro

mortal. Macandal tomará conta dele. Voe para o lado da dona

Page 188: Agatha christie - o cavalo amarelo

desta luva que, como todos os seres humanos; só possui um

desejo na vida: MORRER. Só a Morte soluciona todos os

problemas, só a Morte dá paz verdadeira. Os grandes sabem

disso.VejaMacbeth,vejaTristãoeIsolda.AmoreMorte.Amore

Morte.

Suavoz ecoava, repetindoaspalavrasenquantoamáquina

produziaumzumbido e as lâmpadasacendiameapagavam-se.

Senti-me aterrorizado. Não era mais caçoada, pois Thyrza

dominavacompletamenteafigurainertenosofá,usando-apara

umfimcriminoso.PercebientãoporqueaSra.Olivertinhatido

uma má impressão de Sybil e não de Thyrza; pois a primeira

possuíaumdomnaturalnadarelacionadocomamenteoucomo

intelecto. Thyrza, porém, estava controlando o corpo da outra,

usando-a... e amáquina?Que relação tinha estamáquina com

isso tudo? Senti medo da máquina. Que segredo diabólico

possuiria?Queraiosemitiria,tãoletaiscapazesdedestruiruma

pessoa?

Thyrzaprosseguiaadiabólicaliturgia.

—O ponto fraco... há sempre um ponto fraco na carne de

umapessoa.Destafraquezavemaforça,aforçaeapazmental...

ametaéaMorte,amortenatural.Ostecidosdocorpoobedecem

àmente.Comandando-osemdireçãoàMorte.AMortevencedo-

te:MORTE.Ogritoaterrorizantefoiacompanhadodeumgemido

animal de Bella, que se levantou com uma faca na mão,

decepandoacabeçadofrango.Osanguepingoudentrodabacia

decobre.Bellalevantouabaciaegritou:

—Sangue...sangue...SANGUE.

Thyrzaapanhoualuvaeentregou-aaBella.Estamergulhou

Page 189: Agatha christie - o cavalo amarelo

aluvadentrodabacia,devolvendo-aemseguida.

— O sangue... o sangue... o sangue... — gritava Bella,

frenética, correndo em volta do braseiro. A chama reacendeu e

apagou-seemseguida.

Senti-memal.Minhacabeçacomeçouarodar,obrigando-me

asegurarnoespaldardacadeiraparanãocair.

Amáquinapareceudesligar-seautomaticamente.

AvozdeThyrzavoltouasoarpelasala,numtomnormal.

— A velha e a nova magia. As velhas crenças e os novos

conhecimentoscientíficos.Juntosvencerão...

Page 190: Agatha christie - o cavalo amarelo

Capítulo18

NarrativadeMarkEasterbrook

—Comofoi?—quissaberRhoda,namanhãseguinte.

—Omesmode sempre— respondi, incomodadopelo olhar

inquietantedeDespard.

—Desenharamfigurasnochão?

—Sim.

—Usaramfrangosbrancos?

—Claro,senãoqualseriaaparticipaçãodeBella?

—Transesetudoomais?

—Transesetudoomais—repeti.

Rhodapareceudesapontada.

—Vocêfalacomosetivesseachadotudomonótono—disse

elanumtommagoado.

Expliquei que essas coisas são sempre iguais e queminha

curiosidadejáestavasatisfeita.

AssimqueRhodafoiparaacozinha,Despardvoltou-separa

mim.

—Vocêficouumtantoabalado...

—Bem.

Page 191: Agatha christie - o cavalo amarelo

Tenteidesconversar,masDespardnãoeraumhomem fácil

deenganar.

—Foiterrível—murmurei,finalmente.

—Apesardenãoacreditar—disseele—essascoisassurtem

um certo efeito. Assisti a umas cerimônias na África, onde os

pajéspossuemumpodersobrenaturalsobreosnativos.Pormais

céticoqueeuseja,devoconfessarquevicoisasincríveis.

—Mortes?

—Claro.Seumhomemsabequeestácondenadoamorrer,

elemorre.

—Porsugestão?—perguntei.

—Talvez.

—Masvocênãopareceacreditarnessateoria.

— Para dizer a verdade, não sei em que acreditar— disse

Despard.—As teoriascientíficasocidentaisnãoexplicamesses

fenômenos, porque os europeus não pertencem a essas seitas.

Casopertencessem,creioquemorreriamtambém...

—Concordocomvocêquenãopodemossermuitodidáticos.

Coisas estranhas acontecem em todo lugar. Anos atrás, num

hospital,emLondres,apareceuumamoçaqueixando-sededores

terríveis nos ossos do braço. Nenhuma razão clínica para a

sintomatologia.Omédicosugeriuquetentassempassarumferro

em brasa pelo local dolorido, caso ela concordasse. Como ela

estava desesperada de dor, concordou. O médico pediu que

vendassem os olhos da paciente. Pegou um ferro em brasa,

mergulhou-onumtanquedeágua friaepassoupelobraço.Ela

Page 192: Agatha christie - o cavalo amarelo

gritoudedor.—Vocêvai ficarboa,disseele.—Achoquesim,

disse ela, mas doeu tanto! Queimou meus braços inteiros. O

estranho é que ela acreditou que tivesse sido queimada e

realmente no lugar por onde o médico havia passado o ferro

haviaumamarcacomodeumaqueimadura.

—Eelaficouboa?—perguntouDespard.

— Sim, nuncamais sentiu coisa alguma. Mas teve que se

tratardasqueimadurasnobraço.

—Estranho,nãoé?

—Omédicotambémficouadmirado.

—Imaginocomo!—disseDespard.—Porquevocêquisirà

sessãoontemànoite?

Deideombros.

—Essasmulheresmeintrigaram.Queriavê-lasemação.

Despardcalou-se.Nãocreioquetivesseacreditadonaminha

resposta.

Maistardefuiàcasadovigário.Apesardeencontraraporta

aberta,acasapareciadeserta.ResolvitelefonarparaGinger.

Pareceu-medurarumaeternidadeatéqueelaatendesse.

—Alô?

—Ginger.

—Ah!Évocê.Quehouve?

—Vocêestábem?

Page 193: Agatha christie - o cavalo amarelo

—Claroqueestou.Porquenãoestaria?

Umaondadealíviomeinvadiu.

Ela estava bem e eu fiquei feliz. Como pude acreditar que

aquela cantilena doida iria afetar uma moça forte e saudável

comoGinger?

—Tevealgumpesadelo?

—Não.Penseiquefosseter,massóconseguificaracordada

a noite inteira me perguntando por que não estava tendo um

pesadelo.Fiqueiatécomumpoucoderaiva.

Deiumaboarisada.

—Conte-meoqueaconteceu.—pediuGinger.

—Nada de extraordinário. Sybil deitou-se num sofá e caiu

emtranse.

Gingerriu.

—Émesmo?Quemaravilha!Elaestavavestidadenegroou

estavanua?

—SybilnãoéMme.deMontespan.Nãofoiumamissanegra.

Elaestavavestidadospésàcabeça.

—EBella?

—Bellamatouumfrangoemergulhousualuvanosangue.

—Queporcaria.Quemais?

— Uma porção de histórias... Thyrza invocou Macandal,

acendeu luzes,cantou.Creioqueoespetáculodeve fazermuito

Page 194: Agatha christie - o cavalo amarelo

sucessoentreosacólitos.

—Evocê?

—ConfessoquefiqueicomumpoucodemedodeBella.Ela

tinhaumafacaeeufiqueipreocupadoqueelaperdessearazãoe

resolvessemeconfundircomumgalo.

—Nadamaisoassustou?—persistiuGinger.

—Nãosoutãocrenteassim.

—Porquesuspiroualiviadoquandoeuatendi?

—Porque...

— Está bem, não precisa responder. Também não precisa

dizer que tudo foi tão pueril. É óbvio que você ficou

impressionadocomalgumacoisa.

— Talvez porque Thyrza parecia tão confiante nos

resultados...

—Confianteque sóa invocaçãopudessemataralguém?—

perguntouGinger.

—Issomesmo.

—Bellatambém?

—Bella pareciamais satisfeita com amorte do galo e das

imprecações obscenas que era obrigada a emitir. Gritava: o

sangue...osangue...

—Queriaestarláparaouvir.

— Queria que você estivesse lá. No fundo foi um grande

Page 195: Agatha christie - o cavalo amarelo

espetáculo.

—Agoravocêestábem?—perguntouGinger.

—Comoassim?

—Porquequandometelefonounãoestava,oraessa!

Elatinharazão.

—Quefazemosagora?Tenhoqueficaraqui?

—SequisermosreceberodinheirodoSr.Bradley.

—Entãopodecontarcomigo.Evocê,vaificarcomRhoda?

— Uns dias. Depois vou para Bournemouth. Vou telefonar

diariamentedaquidacasadovigárioparavocê.

—ComovaiaSra.Calthrop?

—Bem.Elaéaúnicaquesabedetudo.

—Euimaginei.Bem,achoqueésó.Atélogo.Vaisermuito

monótonoficaraquisozinhaestasduassemanas.Aindabemque

trouxe um trabalho para fazer e uns livros que há anos

tencionavaler.

—Eagaleria?

—Eudissequeiaviajar.

—Algumacoisaestranhaaconteceu?

— Não — respondeu Ginger. — O mesmo de sempre: o

leiteiro, o medidor do gás, uma mulher perguntando sobre

produtosdebelezaeumapessoapedindoparaeuassinarcontra

Page 196: Agatha christie - o cavalo amarelo

as explosõesnucleares.Osporteiros, é claro... umdeles trocou

umfusívelparamim.

—Atéaí,nadadeestranho...

—Oquevocêesperava?

—Seilá—respondi.

Creioqueesperavaalgodesuspeitoquedessealgumindício,

porém as vítimas do Cavalo Amarelo morriam por vontade

própria...

Insisti com Ginger que talvez o medidor de gás fosse um

membrodaorganização.

—Elemeapresentouascredenciais—disseela.—Quando

saiuverifiqueisenãotinhadeixadonenhumescapamento.

Alémdomais,oCavaloAmarelonãolidavacomescapamento

degás;costumavaagirdeformamenosconcreta.

—Tiveoutravisita—prosseguiuGinger,animadamente.—

ODr.Corrigan,queémuitosimpático.

—DevetersidomandadoporLejeune—disseeu.

Desligueialiviado.

Aovoltarparacasa,encontreiRhoda,nojardim,cuidandodo

cachorro.

— O veterinário acabou de sair — disse ela, ocupada em

esfregarumaespéciedeungüentonopelodoanimal.—Parece

queeleestácomsarna.Tenhoquetomarcuidadoporcausadas

crianças.

Page 197: Agatha christie - o cavalo amarelo

—Edosadultostambém—acrescentei.

—Geralmente são as crianças que pegam. Ainda bem que

estão internas.Quieta,Sheila,nãosemexa.Estepreparado faz

cair o pelo,mas o veterinário garantiu que depois, aos poucos,

crescedenovo.

Ofereciminhaajuda,quefelizmentefoirecusada.

O que eu acho monótono quando estou no interior é que

sempre existem somente três opções, quando se quer dar uma

volta. Em Much Deeping ou se tomava o caminho para

Garsington, ou a estrada para Long Collenham, ou então para

ShadhangerLane,nocaminhodeBournemouth—Londres.

No dia seguinte, depois do almoço, resolvi experimentar a

terceira opção. Como estava no caminho, resolvi visitar o Sr.

Venables.

Por que não? Nada que pudesse levantar suspeitas; era

portanto bastante natural que eu fosse visitá-lo, pretextando

reveralgumapeçadasuamaravilhosacoleção.

OfatodeVenablestersidoidentificadopelofarmacêutico...

Odgen?ouOsborne?eramuitointeressante.EemboraVenables,

porcausadainvalidez,nãopudesseserapessoasuspeita,ainda

assimoenganoeraintrigante.

Venableseraumafiguramisteriosa,dissonãohaviaamenor

dúvida.Erainteligenteetinhaumarpredatório,destrutivo.Não

seriaumassassinoesimumchefedeumaquadrilhacriminal.

Omestredocrimeeraumpapeiquelhecaíacomoumaluva.

Porém o farmacêutico disse tê-lo visto “andando numa rua de

Page 198: Agatha christie - o cavalo amarelo

Londres”!Umavezqueistoeraimpossível,resolvidarumaoutra

investigada.Abrioportãoecaminheipelalongaalameda.

Fui recebido pelo mesmo criado que informou estar o Sr.

Venablesemcasa.Pediu,porém,queeuaguardassenohall,pois

nemsempreopatrãoencontrava-seemestadoderecebervisitas.

Pouco depois voltou, dizendo que o Sr. Venables estava

encantadocomaminhapresença.

Venablesrecebeu-mecordialmente,comosefôssemosvelhos

amigos.

— Que prazer recebê-lo, meu caro. Soube que estava por

aqui e ia telefonar a Rhoda, hoje à noite, convidando-o para

jantar.

Desculpei-me pela intrusão, alegando um impulso

momentâneo.

— Além do mais — prossegui — gostaria de rever suas

miniaturasmongólicas.Nãotivetempodevê-lasdireitonaquele

dia.

—Compreendo.Acho-asmaravilhosastambém.

Nossaconversadiscorreusobretermostécnicos,oquepara

mim foi um prazer, pois Venables possuía raridades

interessantíssimasemcasa.

Na hora do chá, Venables insistiu para que eu o

acompanhasse.

Saboreeiodeliciosocháchinêsservidoemdelicadasxícaras

deporcelana.Proveiumamaravilhosafatiadepãocomanchovas

eumpedaçodepudimdeameixaquemefezrecordaroschásem

Page 199: Agatha christie - o cavalo amarelo

casadaminhaavó.

—Feitoemcasa!—comenteiencantado.

—Naturalmente.Bolofeitoempadarianãoentraemminha

casa.

—O senhor tem umamaravilhosa cozinheira. Não é difícil

manter-seumaboacriadagem,morandonointerior?

Venablesdeudeombros.

—Sempremecercodoquehádemelhor.Naturalmentepago

caroporisto.

Quearrogância!—pensei.

—Claro que nem todos podem dizer omesmo— comentei

secamente.

—Dependedo que o indivíduopretende conseguir da vida.

Basta desejar algo ardentemente. Tantos fazem fortunas sem

sequer saber para quê! Terminam devorados pela própria

engrenagem, tornam-seescravos!Acordamcedoedeitamtarde,

nãotêmumminutodefolga.Paraquê?Paraobteremcarrosmais

caros,esposasouamantesmaisdispendiosasedoresdecabeça

gigantescas.

Venablesinclinou-seligeiramente.

—Ganhardinheiroéametadetodososmilionáriospara,em

seguida,jogá-lodevoltaemoutrosinvestimentos.Paraquê?Será

queelesseperguntamaomenosisso?Creioquenãosabem.

—Eosenhor?

Page 200: Agatha christie - o cavalo amarelo

— Eu? — Venables sorriu. — Eu sabia o que desejava.

Eternodescansoparapoderapreciartodasasbelezasnaturaise

artificiais domundo.Como atualmente estou privado de viajar,

façoascoisasviremamim.

—Masparaissoéprecisomuitodinheiro.

—Planejamento— respondeu ele.—Énecessário planejar

bemumgolpe...nãonecessariamenteumgolpeilegal.

—Nãocompreendo.

— Estamos num mundo em revolução, Sr. Easterbrook.

Sempre estivemos, porém atualmente as mudanças são mais

rápidas.Oritmoacelerou...éprecisoaproveitar.

—Ummundo emmudança—disse eu,pensativo.—Abre

novos caminhos! É claro que o senhor está falando com um

homemcujavidaévoltadaparaopassadoenãoparaofuturo—

acrescenteicomoquepedindodesculpas.

—Oqueéofuturo?Quempoderáprevê-lo?Falodopresente

—doagora—domomentoimediato.Nãotomoconhecimentode

outracoisa.Asnovastécnicasestãoaqui!Játemosasmáquinas

querespondemasnossasperguntasemsegundos.

—Oscomputadores?

—Istomesmo.

—Seráqueelastomarãoolugardohomem?

—Dohomemqueviveemtermosdeenergia,sim.Dohomem

mente,não.Opensadorsemprefaráperguntas...

Sacudiacabeça.

Page 201: Agatha christie - o cavalo amarelo

— O Super-homem? — tentei dar à pergunta um tom de

deboche.

— Por que não, Easterbrook? Lembre-se de que estamos

começandoadescobriroHomem,oanimalhumano.Apráticado

que comumente se chama lavagem cerebral abriu uma enorme

possibilidade nesta direção. Não só o corpo, mas também a

mentedohomemrespondeacertosestímulos.

—Umadoutrinaperigosa.

—Perigosa?

—Perigosaparaossábios—disseeu.

Venablessacudiuosombros.

— Tudo na vida é perigoso. Nós, que fomos criados em

pequenos círculos de civilização, esquecemos isso. Pois nada

maissomosdoquepequenosnúcleosdecivilização,unidospara

nos proteger e controlar a natureza. Vencemos a selva

temporariamente, pois ela a qualquer momento voltará a nos

atacar. Cidades outrora altaneiras atualmente são meros

escombros.... a vida é sempre perigosa, não esqueça. No final

poderemos ser destruídos não só pelas grandes forças, como

pelas máquinas montadas por nós mesmos. Aliás, estamos

próximosdisso...

—Nãopossonegarqueosenhortemrazão.Masestoumais

interessadonasuateoriasobreamente.

— Ah! — exclamou Venables acanhado. — Creio ter-me

excedido.Devoter-meexcedido.

Acheiestranhoestedesconversar.Umhomemcomoele,que

Page 202: Agatha christie - o cavalo amarelo

vivesó,temnecessidadedefalarsejacomquemfor.Seráqueele

falarademais?

—OSuper-homem—disseeu.—Quasemeconverteuasua

teoria...

—Nãoénova,certamente.Existehácentenasdeanos.Éa

basefilosóficadeváriosautores.

—MasseuSuper-homemmepareceumpoucodiverso;como

umhomempoderoso que distribui o poder anonimamente, que

trabalhaporcontroleremoto.

Olheiparaele.Venablessorria.

—O senhor estáme dando um papel como numa peça de

teatro?Realmenteprecisodealgoparacompensar...isto!

Suasmãosdescerampelosjoelhoseeusentiaamargurada

suainflexão.

—Nãopossolheoferecerminhaperna—disseeu,—poisé

poucacoisaparaumhomemcomoosenhor.Masseeu tivesse

quefantasiarumpersonagemparaosenhor,seriadeumhomem

quetornaacatástrofeemtriunfo.

Eleriu.

—Osenhorestámebajulando.

Sentiporémqueelegostaradoelogio.

— Não — continuei, — conheci várias pessoas e sei

reconhecerumhomemextraordinariamentedotado.

Tive medo de ter exagerado. Mas a bajulação tem limite?

Page 203: Agatha christie - o cavalo amarelo

Anotei mentalmente este pensamento deprimente, como uma

utilidadefutura.

—Nãoseioqueolevaadizeristo.Éporcausadacasa?

—Achoqueelaprova—respondi—queéummilionárioque

sabecomprar,quetemgostoetirocínio.Achotambémqueexiste

maisdoqueodesejodepossuir.Suameta, creio, é alcançara

belezaeoequilíbrioepeloqueosenhordissenãocreioquese

chegueláatravésdotrabalhohonesto.

—O senhor tem razão. Só os tolos trabalham.Os espertos

planejamsuascampanhasnosmínimosdetalhes.Osegredodo

sucessoésimplesmasprecisaserestudadocomcuidado.Pensa-

seedepoisexecuta-se.Étudo!

Olhei para Venables. Seria uma coisa simples como a

eliminação de pessoas ricas? Um planejamento cuidadoso

executado por ThyrzaGrey, enquanto ele, na cadeira de rodas,

dirigiaoespetáculo?

—Suaconversasobrecontroleremotolembrou-mealgoque

ThyrzaGreydissera.

— Nossa cara Thyrza — disse Venables, num tom quase

indulgente. (Ouseráquenoteium leve trêmulonasuavoz?)—

Comodizloucuras!Eelasacreditamnoquedizem.Osenhorjá

foiaumasessãonacasadelas?Jáviucoisamaisridícula?

Resolvimudardetática.

—Sim,fuiaumasessão.

— Não achou uma palhaçada? Não vai dizer que ficou

impressionado?

Page 204: Agatha christie - o cavalo amarelo

Procureiparecerembaraçado.

—Creio—balbuciei,contemporizando—queosenhornão...

— olhei para o relógio. — Céus! Como é tarde. Devo voltar...

minhaprimaestámeesperando.

—Osenhordivertiumuitoumpobreinválido.Dêlembranças

a Rhoda. Precisamos breve almoçar juntos. Amanhã devo ir a

Londres,visitarumleilão.Temumaspeçasmedievaisdemarfim

quemeinteressam.Seconseguircomprá-lascreioqueosenhor

asapreciará.

Despedimo-nos afavelmente. Será que notei um ar de riso,

quando fingi ficar acanhado com sua pergunta sobre a sessão

espírita? Não podia ter certeza. Provavelmente eu estava

imaginandocoisas.

Page 205: Agatha christie - o cavalo amarelo

Capítulo19

NarrativadeMarkEasterbrook

Quando saí da casa de Venables já era noite. Encaminhei-

me, tateante, pela longa alameda, voltando-me para trás para

examinar a bela casa iluminada. De repente, tropecei numa

pessoa que vinha na direção oposta. Era um homem baixo,

encorpado,quefalavacomumsotaquepedante.

—Desculpe.

—Nãohádeque,aculpafoiminha—protestouele.

—Eununcaestiveaquiantes—expliquei—porissoestou

meioperdido.Deveriatertrazidoumisqueiro.

—Com licença—disseo estranho, tirandoum isqueirodo

bolso.

Quando o acendi, notei que o estranho era um homem de

meia-idade,derostoredondo,bigodesnegroseóculosdearode

tartaruga.Usavaumacapadeboaqualidadeetodoseuaspecto

transmitiaumaimagemderespeitoeintegridade.Mesmoassim,

eumepergunteiporqueelenãohaviausadoo isqueiro, jáque

estavatãoescuro.

—Ah!—disseeu,numtomidiota.—Saídaestrada.Agora

já posso achar o caminho — acrescentei, devolvendo-lhe o

isqueiro.

—Podeficarcomeleatéchegaraoportão.

Page 206: Agatha christie - o cavalo amarelo

—Mas...osenhornãovaientrar?

— Não, não. Eu vou tomar a estrada também. Vou até o

pontodoônibusdeBournemouth.

—Sei,sei.

Caminhamos juntos.Meucompanheiroparecia incomodado

comalgo;perguntouseeutambémiatomaroônibus;respondi

que estava hospedado por perto. Outra pausa. O embaraço do

homem crescia. Devia ser do tipo que não gosta de situações

escusas.

—O senhor esteve visitando oSr.Venables?—perguntou,

pigarreando.

Respondiquesim,acrescentando:

—Penseiqueosenhorestivesseindoparalá.

—Não—respondeuele,—não.EumoroemBournemouth,

istoé,pertodacidade.Tenhoumacasinhalá.

Poruminstantefiqueimeperguntandoondeouvirafalarde

umapessoaquetinhaumacasinhapertodeBournemouth...

— O senhor deve achar muito estranho encontrar uma

pessoa rondando uma casa. É realmente difícil de explicar,

emboraeupossua razõespara isso.Apesardemorarhápouco

em Bournemouth, existem pessoas que estariam prontas a

afiançar que sou um homem honesto e cumpridor dos meus

deveres. Sou um farmacêutico aposentado que resolvi mudar

paraestaregião.

Fez-se a luz. Imediatamente associei quem era aquele

Page 207: Agatha christie - o cavalo amarelo

homem.

—SouZachariahOsborne.TinhaumafarmáciaemLondres,

pertodaestação.Notempodomeupaieraumótimobairro,mas

atualmentedecaiumuito.

Suspirou.

—EstaéacasadoSr.Venables,nãoé?Éseuamigo?

—Nãodiria que sim— respondi, deliberadamente.—Só o

encontreiumavez,quandoalmoceicomele.

—Ah!Sei,sei...

Chegamos ao portão. O Sr. Osborne parou. Devolvi-lhe o

isqueiro.

—Obrigado.

—Nãotemdequê.Eunão...—aspalavraspareciamjorrar

— não gostaria de que o senhor interpretasse mal minha

presença aqui. Asseguro quenão se trata demera curiosidade.

Gostariadepoderesclarecermelhorminhaatitude.

Fiquei parado, esperando. O Sr. Osborne calou-se um

instante.

—Gostariadeexplicar,Sr....

—Easterbrook.

—Sr.Easterbrook,meuestranhocomportamento.Podeme

dispensaralgunsminutos?Podemostomarumcafénopostode

gasolina,queficaaquiperto.Meuônibussópassadaquiauns

vinteminutos.Aceita?

Page 208: Agatha christie - o cavalo amarelo

Aceitei o convite. Em pouco tempo estávamos no bar do

posto. Pedimos um café com biscoitos. Em seguida, Osborne

desabafou.

—Tudocomeçoucomumcasoqueosenhordeveterlidonos

jornais; não foi propriamente manchete mas foi bastante

comentado.Trata-sedoassassinatodeumpadrecatólico,perto

dolugarondeeutinhaminhafarmácia.Infelizmenteessescasos

acontecem com freqüência hoje em dia. Embora eu não seja

católico, ouvi grandes elogios sobre a bondade do padre. Mas

vamos ao que interessa. A polícia notificou que estava

interessada em entrevistar todas as pessoas que viramo padre

nanoitedocrime.Poracaso,naquelanoiteeuestavaparadona

portadafarmáciaeviopadreGormanpassar.Apoucosmetros

dedistância,noteiumhomemestranho,queobviamenteparecia

seguir o padre. É claro que na hora não deimaior atenção ao

fato,mascomosouumexcelente fisionomista,graveias feições

dodesconhecidoeasdescreviparaapolícia.Aí,então,começaa

espantosa segunda parte da história. Há uns dez dias fui à

quermesse de uma igreja e fiquei admirado de encontrar o

mesmo estranho. Como ele estava numa cadeira de rodas,

imagineiquetivessetidoumacidente.Andeiperguntandoquem

era e disseram que se tratava de um milionário chamado

Venables.Depoisdecertahesitação,escreviàpolícia.OInspetor

Lejeune, com quem eu tivera uma primeira entrevista, me

informou que o Sr. Venables era paralítico, há anos, vítima de

pólio,equeportantoeudeviatermeenganado.

OSr.Osbornecalou-se.Tomeiumgoledecafé,enquantoele

punhaaçúcaremsuaxícara.

—É,parecequenãohámaissaída—comentei.

Page 209: Agatha christie - o cavalo amarelo

—Éoqueparece—concordouOsborne.—Creioquedevo

suplementaresterelato.Quandocriança—continuouOsborne,

apoiando os cotovelos sobre amesa,—um amigo demeu pai,

umfarmacêutico,foichamadocomotestemunhadocasodeJean

PaulMarigot,otalqueenvenenouamulhercomumpreparado

dearsênico.Oamigodemeupaiidentificou-ocomoocomprador

quehaviadadoumnome falso.Fiquei impressionado,devia ter

unsnoveoudezanos,ecreioque,daquelediaemdiante,decidi

quetomariapartenumacausecélèbreequeajudariaaJustiça

na batalha contra o crime. Foi por essa época que comecei a

guardar fisionomias, talvez na esperança de que um homem

entrassenafarmáciaecomprassearsênicoparamataraesposa.

—Ah!UmahistóriacomoMadeleineSmith[04]?

—Exatamente—Osborne deuum suspiro.— Infelizmente

isso nunca aconteceu mas agora surgiu a possibilidade de eu

testemunharnumprocesso!

OrostodeOsborneiluminou-secomoodeumacriança.

— Mas parece que estão tirando suas esperanças —

comentei.

—É...maseusouumhomemteimoso,Sr.Easterbrook.Com

opassardotempo,cadadiameconvençomaisdequeestoucom

arazão.OhomemqueeuvieraVenables.

—Sei,sei—disseele,levantandoamão,quandotenteifalar

—queeraumanoitedenevoeiroequeeunãoestavaaoladodo

suspeito, mas sei também que tenho prática em guardar

fisionomias.Emboradigamqueeuestouenganado,nãoconsigo

me convencer. A polícia insiste que é impossível, mas eu

Page 210: Agatha christie - o cavalo amarelo

pergunto:Serámesmo?

—Mas,certamente,sendoparalítico...

Elemeinterrompeucomamão.

—Ouça,soufarmacêuticoeconheçoaclassemédica.Seido

queécapazquandoodinheiroestáemjogo.Existemdrogasque

induzemàparalisia,àsfebres,àsirritaçõesdepele...

—Masumaatrofiadosmembros?

— Mas quem disse que o Sr. Venables tem os membros

atrofiados?

—Ora,omédico.

— Exatamente. Procurei informações sobre o médico de

Venables,umfigurãoquemoraemLondres.Omédicodaqui,que

atendia Venables, aposentou-se emudou para o estrangeiro.O

novomédiconuncaestevecomVenables.

OlheiparaOsbornecomcuriosidade.

—Masatéaí,nãovejomá-féalguma—protestei.

—Osenhornãosabeoqueeusei—disseOsborne.—Como

exemplopossocitarocasodaSra.H.,quevivedossegurosda

própria morte, recebendo polpudos dividendos de três

companhiascomosefosseumairmãmaisnova.

—Nãoentendo...

—Poisentãoimagine—continuouOsborne,excitado,—que

oSr.Venablesconheçaumhomempobrevitimadopelaparalisia.

O homem é abordado por Venables e, por acaso, até parece

Page 211: Agatha christie - o cavalo amarelo

fisicamente com ele. Por uma certa quantia, vai procurar um

especialista,dandoonomedeVenables.OverdadeiroVenables

aluga uma casa no campo, traz toda a falsa documentação

médica e apresenta-se ao médico local. Como este deseja

aposentar-se, nada como uma polpuda soma para fechar os

olhossobrea“suposta”paralisiaepartirparaoestrangeiro.

—Masoscriadosnãosaberiam?

—Esefossempartedaquadrilha,issoteriaimportância?

—Eparaquetodoessetrabalho?

— Não vou revelar minha teoria, pois não quero ser

ridicularizado pelo senhor. O que não se pode negar é que

Venables possui um álibi perfeito. Pode ser visto andando em

qualquer lugar, mas obviamente não é ele, uma vez que é

paralítico!

Osbornedeuumaolhadanorelógio.

—Meu ônibus está para chegar, por isso serei breve. Pois

bem,comotenhomuitotempodisponível(sintofaltadafarmácia)

resolvi vir até aqui fazer algumas investigações. Sei que não é

direito,masafinalestouagindoassimparaajudaralei.Imagine

se eu visse o Sr. Venables dando uma voltinha pelo terraço

depoisdojantar?

—Masporque tem tantacertezadequeohomemqueviu

naquelanoiteéVenables?

—Porqueseiqueé.

Osbornelevantou-se.

Page 212: Agatha christie - o cavalo amarelo

Meuônibuschegou.Prazeremconhecê-lo,Sr.Easterbrook,e

obrigadoporter-meouvido.Nofundoeuachoqueéloucura,mas

quepossofazer?

—Talveznãoseja—disseeu.—Osenhorsónãodisseoque

achaqueVenablespretende.

OSr.Osbornecorou.

— O senhor vai achar graça: todos dizem que ele é rico,

porém não sabem como ganhou tanto dinheiro. Pois bem, vou

darmeupalpite: acho que ele é umdesses gênios do crime do

tipo que planeja os golpes para a quadrilha. Pode parecer uma

besteiramas...

OônibusparoueOsbornecorreu.

Voltei para casa, pensando na teoria de Osborne, que era

fantástica,mas tivequeconcordarque talveznão fossede todo

improvável.

Page 213: Agatha christie - o cavalo amarelo

Capítulo20

NarrativadeMarkEasterbrook

I

Namanhãseguinte,quandotelefoneiparaGinger,conteique

estavademudançaparaBournemouth.

— Encontrei um hotel bem simpático, cheio de entradas e

saídas.Quemsabenãodouumaescapadaatéaí?

— Não creio que seja prudente, mas bem que seria bom.

Estoumorrendo de tédio. Se você não puder vir quem sabe eu

vouatéaí.

—Ginger,suavozestádiferente!

—Nãoénadademais.Nãosepreocupe.

—Massuavoz?

—Estouumpoucorouca.

—Ginger!

—Ouça,Mark, qualquer pessoa pode ficar rouca.Devo ter

meresfriadoouquemsabeapanhadoumagripe.

— Gripe? Não tente minimizar os sintomas. Você está

realmentepassandobem?

—Nãosepreocupe,jádisse.Estouótima.

— Descreva os sintomas. Está sentindo um princípio de

Page 214: Agatha christie - o cavalo amarelo

gripe?

—Bem...sintoumasdoresnocorpo.

—Febre?

—Talvezumpouco...

Fiquei imobilizado de pavor. Percebi que Ginger, apesar de

negar,estavacommedotambém.

—Mark,nãoentreempânico.Controle-se,senãotudoestará

perdido.

—Aprimeiraprovidênciaételefonarimediatamenteparaseu

médico.

—Estábem,sóqueelevaiacharumabsurdo.

—Nãoimporta.Quandoeleforemboratelefoneparamim.

Fiquei uns instantes contemplando o telefone. Pânico, não

podiame entregar ao pânico... afinal gripe todo omundo tem,

principalmentenestaépocadoano...omédiconemiadarbola.

Umasériede imagensapareceramemminhamente...Sybil

estendida no sofá... a voz de Thyrza, comandando aMorte... e

Bellainvocandoosmausespíritosenquantosacrificavaogalo.

Bobagens...tudobobagens...esuperstições.

Eacaixa?Quedizerdacaixa?Nãosetratavamaisdeuma

superstição e sim do desenvolvimento de uma possibilidade

científica.Mas,nãoerapossível...

ASra.DaneCalthropencontrou-meaindaabsorto,emfrente

Page 215: Agatha christie - o cavalo amarelo

dotelefone.

—Oqueaconteceu?—perguntouela.

—Gingernãoestásesentindobem.

Desejei que ela me convencesse de que eu estava

fantasiando.

—Quepena!Nãogostonadadisso.

—Não épossível—protestei—que eles sejamcapazesde

fazerisso!

—Vocêacha?

—Asenhoranãoacreditaque...

—MeucaroMark— interrompeuaSra.DaneCalthrop,—

nós três, eu, vocêeGingeradmitimosestapossibilidade, senão

porquecontinuaríamoscomestainvestigação?

—Ofatodeacreditarmostornaacoisamaisreal.

— Não sei realmente se acreditamos... eu creio que

estávamosquerendoumaprovaparapodermosacreditar.

—Prova?Queprova?

— O fato de Ginger ter ficado doente é uma prova —

respondeuaSra.DaneCalthrop.

—Precisaser tãoagourenta?Elaestáresfriadaougripada.

Nãohárazãoparafazermosumdrama.

—Mas se for umdrama émelhor enfrentarmos a situação

emvezdeagirmoscomoavestruzes.

Page 216: Agatha christie - o cavalo amarelo

— Como posso acreditar que aquela cantilena, aqueles

transesderamresultado?

—Algumacoisadáresultado—respondeuela.—Istonãose

podenegar.Éclaroqueelascriamumespetáculoparadarmais

atmosfera,masatrásdissotudoestáumacoisaquefunciona.

—Comoumaondacurta?

—Algoparecido.Aciênciaavançadiaadiaetorna-secada

vezmais assustadora.Qualquer variação dessesnovos avanços

tecnológicospoderiaseradaptadoporpessoasinescrupulosas.O

paideThyrzafoiumfísico...

— E daí? Aquela maldita caixa! Se ao menos pudéssemos

examiná-la;seapolícia...

—Nãosepodecontarcomapolíciaparadissiparsuspeitas...

—Eseeuinvadisseacasadelaearrebentasseacaixa?

— Pelo que você me contou, o mal, se houve algum, foi

cometidonaquelanoite.

Deiumgemido.

—Porquefuimemeternisso?

— Motivado pela justiça. Não adianta chorar agora.

CertamenteGinger,depoisdaconsultamédica,vaitelefonarpara

acasadeRhoda...

—Entãoémelhoreuirparacasa...

— Estou sendo uma idiota — murmurou a Sra. Dane

Calthrop,—sei que estou sendouma idiota.Nãopodemosnos

Page 217: Agatha christie - o cavalo amarelo

preocupar com os objetos de cena da representação. Tenho

certezadequeéissoqueelasdesejam...

Talvezelativesserazão.

DuashorasmaistardeGingertelefonou.

— Ele veio — disse ela, — ficou intrigado, mas acha que

talvez seja uma gripe. Está havendo um surto por aqui. Vai

mandarum remédio e dissepara eu ficarna cama.Estou com

febrealta.Devesergripe,vocênãoacha?

Haviaumapelonapergunta.

—Vocêvai ficarboa—disseeu,semconvicção.—Estáse

sentindotãomalassim?

—Bem,estoucomfebre,comdoresnocorpo,naspernas...

umcalordosdiabos...

—Éafebre,meuamor.Ouça,vouparaaí,nãodigaquenão.

—Que bom! Estou contente que você venha... afinal estou

achandoquenãosoutãovalentequantopensei...

II

Emseguida,telefoneiparaLejeune.

—Ouça,aSrta.Corriganestádoente.

—Oquê?

— Você entendeu, está doente. Já chamou o médico que

disse que talvez fosse uma gripe forte. Acho que você devia

mandarumespecialistadarumaolhadanela.

Page 218: Agatha christie - o cavalo amarelo

—Quetipodeespecialista?

—Umpsiquiatra,umpsicanalistaouumpsicólogo...sei lá!

Enfimumsujeito que entendade sugestão ouhipnotismo... ou

lavagemcerebral.Nãotemgentequelidacomestascoisas?

—Claro que tem. Acho que você tem razão, pode ser uma

gripemastambémpodeserumaespéciedeinduçãopsicológica

qualquer.Eraoquenósestávamosesperando,Easterbrook!

Desliguei o aparelho. Que me importavam as armas

psicológicas?Aúnicacoisaqueme interessava realmenteeraa

saúde de Ginger. Nós dois não acreditamos na história,

brincamosdebandido emocinho e agorapodíamos ser vítimas

daprópriabrincadeira.

OCavaloAmareloestavanosdesmentindo.

Segureiacabeçaentreasmãosechoreidedesespero.

Page 219: Agatha christie - o cavalo amarelo

Capítulo21

NarrativadeMarkEasterbrook

I

Os dias subseqüentes transformaram-se em pesadelos

dispostos,semformaouseqüência,numcaleidoscópiodiabólico.

Ginger foi internada numa clínica particular, onde só era

permitidaminhaentrada.

O médico dela não parecia dar muita atenção ao caso;

diagnosticou uma broncopneumonia, em conseqüência de uma

gripe.Apesardadoençaapresentaralgunssintomasestranhos,

nem por isso ele mudou de opinião. Segundo ele, nenhuma

doençaeratípicaealgunspacientesnãorespondiambemacerto

tipodeantibióticos.

Naverdadeelaestavacompneumoniaeemestadograve.

Tiveumaentrevistacomumpsicólogo,enviadoporLejeune,

quemecrivoudeperguntas,masnãoofereceurespostaalguma.

Tentou, é verdade, hipnotizar Ginger mas não creio que tenha

obtidograndesresultados.

Passeiaevitarmeusamigosearecusarconvites.Minhavida

tornou-sesolitáriaetriste.

Finalmente, um dia resolvi convidar Poppy para jantar

comigonoFantasie.

Elaaceitouprontamente.

Page 220: Agatha christie - o cavalo amarelo

Consegui me distrair com a conversa inconseqüente da

floristaedepoisdefazê-labebermaisdoquedevia,comeceium

interrogatório cuidadoso. No fundo, eu achava impossível que

Poppysoubessedealgumacoisasemsedarcontadisso.

—VocêselembradaminhaamigaGinger?

—Claro—respondeuela,arregalandoosolhos.—Oqueela

andafazendo?

—Estámuitodoente.

—Coitada—dissePoppy,preocupadaatéondesuacabeça

ocapermitiaquesepreocupasse.

—Elasemeteucomumpessoalesquisito,aconselhadapor

você, creio. Um negócio de Cavalo Amarelo que lhe custou os

olhosdacara.

—Ah!—exclamouPoppy.—Entãoeravocê?

Por uns instantes não entendi coisa alguma. De repente,

percebiquePoppyestavameidentificandocomohomemcasado

cuja mulher “inválida” estava atrapalhando nossa vida.

Preocupadacomo ladoromânticodahistóriaapobreesqueceu

seumedodoCavaloAmarelo.

—Edeucerto?—perguntouelaexcitada,

— Deu errado — respondi. — O feitiço virou contra o

feiticeiro.

—Quefeitiço?—perguntouela,atônita.

PercebiquenãopodiaconversarcomPoppypormetáforas.

Page 221: Agatha christie - o cavalo amarelo

—OnegócioparecequeacaboufazendomalaGinger.Você

jáouviufalardealgumerrodeles?

Poppyrespondeuquenão.

—Éclaro—continuei—queessassessõesqueelasdãolá

no Cavalo Amarelo, em Much Deeping... você não sabia disso,

nãoé?

—Nãosabiaonomedolugar,sabiaqueeranointerior.

—Poisé,Gingernãosoubeexplicaroqueelasfaziam...

— Parece que tem alguma coisa com raios, não tem? —

perguntouPoppy.—Qualquercoisadeastral...

Percebi que Poppy estava baseando as informações na

própriaimaginação.

—Umacoisaassim—concordei.—Seiquedeveserperigoso

senãoGingernãoficariatãodoente.

—Masnãoerasuamulherquedeviaficardoenteemorrer?

—perguntouela.

—Era,masachoqueotirosaiupelaculatra.

—Querdizer...—dissePoppy, fazendoumenormeesforço

mental — que foi como se ligasse o ferro na tomada errada e

levasseumchoque?

— Istomesmo—disse eu.—Você ouviu falar deumcaso

semelhanteemrelaçãoaeles?

—Nãodestamaneira.

Page 222: Agatha christie - o cavalo amarelo

—Comoassim?

— Ora, se por exemplo uma pessoa não paga depois do

serviço... como um sujeito que eu conheci. Foi assassinado no

metrô,caiudaplataformaemfrenteaotrem.

—Talvezfosseumacidente.

—Quenada!Forameles.

Servi Poppy de mais champanha. Ali estava minha

oportunidade de descobrir algo, se pudesse selecionar o bric à

brac que era o cérebro da moça; ela ouvira coisas, assimilara

algumas, misturara tudo e ninguém se preocupou muito em

esconder coisa alguma, pois sabiam que ela era quase débil

mental. O mais irritante é que eu não sabia como dirigir as

perguntas.Tinhamedodedizeralgoerradoeassustá-la.

— Minha mulher é paralítica, mas por enquanto não está

pior.

—Quepena!—dissePoppy,bebericandoochampanha.

—Quefaçoagora?

Poppyarregalouosolhos.

—FoiGingerquemarrumoutudo—continuei—portanto,

nãoseiaquemrecorrer.

—TemumescritórioláemBirmingham.

—Já está fechado.Sabedemaisalguémaquemeupossa

procurar?

—TalvezEillenBrandonsaiba.

Page 223: Agatha christie - o cavalo amarelo

O aparecimento deste novo personagem me surpreendeu.

Pergunteiquemeraela.

—Umamulhermuitocareta—respondeuPoppy.—Destas

queusamocabeloemcoqueesaltobaixo.Ofim!Estudamosna

mesmaescola,elaeraótimaemGeografia...

—OqueelatemquevercomoCavaloAmarelo?

—Nãoseiaocerto.Achoqueeladescobriuqualquercoisae

pediudemissão.

—Pediudemissãodeonde?

—DoR.C.C.

—OqueéR.C.C?

— Para dizer a verdade, não sei. Eles dizem R.C.C. É

qualquercoisacompesquisademercado...

—EEillenBrandontrabalhavaparaelesfazendooquê?

—Perguntandosobrepastasdedentes,fogõesagásetc.Tipo

doempregomonótono.Alémdomaisoqueagentetemavercom

oqueosoutrosusam?

—TalvezoR.C.C.tenha—respondi,intrigado.

Uma mulher desta organização fora visitada pelo padre

Gormannanoitedoseuassassinato.EGinger falousobreuma

entrevistadora.Deviahaverumelonestacoincidência.

— Por que ela largou o emprego? Se aborreceu com o

trabalho?

Page 224: Agatha christie - o cavalo amarelo

—Achoquenão.Parecequeelespagambem.Creioqueela

descobriuqueelesnãosãobempesquisadores...

— Ela achou que eles estavam relacionados de alguma

maneiracomoCavaloAmarelo?Foiporisso?

—Não sei. Pode ser... agora ela está trabalhando numbar

emTottenham,CourtRoad.

—Precisodoendereço.

—Elanãofazseutipo.

— Não quero dormir com ela — respondi bruscamente. —

Quero saber sobre essa organização. Estou pensando em

comprarumasaçõesdessacompanhia.

—Ah!Entendo—dissePoppy,satisfeitacomaexplicação.

Como não poderia arrancarmais nada dela, terminamos o

champanhaeeualeveiparacasa,agradecendopelaencantadora

companhia.

II

NamanhãseguintetenteitelefonarparaLejeune,masnãofoi

possível.DepoisdecertadificuldadeconseguifalarcomCorrigan.

—Oqueaquelepsicólogovigarista,quevocêmandou,disse?

QueachadeGinger?

—Falou,falouenãodissenada—respondeuCorrigan.—Se

quiserminhaopiniãosincera,achoqueele,comotodoomundo,

pensa que Ginger está com pneumonia; afinal é uma doença

muitocomum.

Page 225: Agatha christie - o cavalo amarelo

—Tãocomumqueváriaspessoasnaquela listamorreram...

Todas de doenças como pneumonia, gastrenterite, tumor no

cérebro...

—Seicomosesentemasoquepodemosfazer?

—Elapioroumais,nãoé?

—Bem...piorou.

—Temosquefazeralgumacoisa.

—Oque,porexemplo?

— Tenho uma idéia. Que tal irmos a Much Deeping,

prendermosThyrzaGrey e assustá-lade tal formaque ela faça

umcontra-feitiço?

—Podeserquefuncione.

ConteiaCorriganateoriadeOsbornesobreVenables.

—AquelesujeitoencasquetoucomopobreVenables...

—Mas...eseeleporacasotivesserazão?

Corrigancalou-seporuminstante.

— Tudo pode ser possível... neste caso seria necessário o

silênciodeváriaspessoas...eporumpreçomuitoalto.

— Que importância tem o preço se Venables é tão rico?

Lejeunedescobriucomoelefezfortuna?

— Ainda não. É claro que existe algo de escuso com esse

milionário.Osnegóciosdelesãotãoemaranhadosquelevaríamos

anosparacolocar tudoempratos limpos.Seiqueo Impostode

Page 226: Agatha christie - o cavalo amarelo

Renda anda atrás dele,masVenables ématreiro. Por que você

achaqueeleéochefedatroupe?

—Nãolhepareceóbvio?

—Talvez. Pelomenos inteligênciapara isso ele teria.Agora

não creio que cometeria um ato tão grosseiro como assassinar

pessoalmenteopadreGorman.

— Creio que foi uma emergência. O padre precisava ser

silenciado antes de bater com a língua nos dentes. Além do

mais...

Calei-mederepente.

—Estámeouvindo?

—Sim...continue...équeeutiveumaidéia

—Oquefoi?

—Aindanãoestábemformulada.Seiquesóháumaforma

de se obter segurança perfeita... vou pensar melhor no caso.

Agora preciso desligar porque tenho um encontro. Mais tarde

falamos.

Desligueiotelefoneeolheiparaorelógio.Quandojáestava

na porta, o telefone tocou. Eu podia apostar que era Jim

Corrigan, querendomais informações. Nomomento, porém, eu

não queria falar com ele, resolvi sair ao som insistente do

telefone.Esefossedohospital?

—Alô?—respondicomcertaimpaciência.

—Èvocê,Mark?

Page 227: Agatha christie - o cavalo amarelo

—Sim.Quemé?

—Soueu,éclaro—respondeuumavozfeminina.

— Ah! A senhora! — suspirei, reconhecendo a voz da Sra.

Oliver. — Ouça, estou atrasadíssima para um encontro. Mais

tardeeutelefono.

—Deformaalguma—disseela,firmemente.—Ouçaoque

eutenhoparadizer,émuitoimportante.

—Sim?Depressa,por favor,porquenãogostodedeixaras

pessoasesperando.

—Aspessoassempreesperamporalguém.

Tenteirefrearminhaimpaciência.

—OuçaMark.Émuitoimportante.

—Diga.

—MinhaempregadaMilly foiparao interior,poisestácom

amigdalite.Airmãdelatemumacasinha...

Rangiosdentes.

—Sintomuitomas...

—Ouça,meuamigo,euaindanãocomeceiahistória.Onde

estava mesmo? Ah! Sim. Milly foi para o interior, o que me

obrigouachamarumaagência...

—Porfavor!

— Para perguntar que tipo de empregada eles tinham

disponível.Disseramque estádifícil, o quealiás sempredizem,

Page 228: Agatha christie - o cavalo amarelo

masqueiamfazeropossível...

JamaisacheiaSra.Olivermaisenervante.

— Só sei que hoje de manhã surgiu aqui uma criatura.

Adivinhequemera?

—Nãotenhoamenoridéia.

— Uma mulher chamada Edith Binns, que conhece você

muitobem.

—Eunão!NuncaouvifalaremEdithBinns.

— Claro que conhece. Inclusive esteve com ela há pouco

tempo.Ela trabalhounacasadasuamadrinha:LadyHesketh-

Dubois.

—Ah!

—Elaestevecomvocênodiaemquevocêpassouporlápara

apanharunsquadros.

— Muito bem, ótimo, parabéns por ter arranjado uma

empregadatãomaravilhosa.Agora...

—Querfazerofavordeesperar?Aindanãochegueiaofimda

história.Bem,elasentou-seefalouhorassobreadoençadeLady

Hesketh. Você sabe como os empregados adoram doenças e

mortes.Aí,eladisse...

—Disseoquê?

—Algoquemechamouaatenção.Eladisse:Pobremulher,

sofrendo daquele jeito. Uma mulher saudável que, de repente,

ficacomumtumornacabeça.Ocabelodelacaíaaoscachospelo

Page 229: Agatha christie - o cavalo amarelo

hospital. Um cabelo tão lindo! Aí, Mark, eu pensei em Mary

Delafontaine, aquela amigaminha. O cabelo dela também caia

aos chumaços. Lembrei-me do que vocême disse sobre aquela

brigademulheres,emChelsea,emqueumaarrancouunstufos

decabelodaoutra.Cabelonãosaiassimfacilmente,Mark.Tente

arrancarumpedacinho!Tenteparaverseconsegue.Estávendo?

Não é natural essas pessoas todas perderem o cabelo dessa

maneira.Deveserumanovadoença...

Agarrei o telefone para não cair. Milhões de imagens

juntaram-se diante dos meus olhos. Rhoda e os cachorros no

pátio,umartigoquelinumarevistamédica...éclaro!

PercebiqueaSra.Olivercontinuavamatraqueandodooutro

lado.

—Deusaabençoe.Asenhoraémaravilhosa.

Baticomtelefone.Emseguida,ligueiparaLejeune.Porsorte

eleestava.

—Ouça—perguntei—ocabelodeGingerestácaindo?

—Está.Deveserporcausadafebrealta!

—Febre alta,umaova!Ginger, como todos os outros, está

sofrendo de envenenamento por tálio. Deus queira que ainda

possamossalvá-la.

Page 230: Agatha christie - o cavalo amarelo

Capítulo22

NarrativadeMarkEasterbrook

I

—Dátempo?Elavaiviver?

Eu não podia ficar quieto, umminuto sequer. Lejeune me

observavacomimpaciência.

—Estamosfazendoopossível!

Nãoeraumarespostamuitosatisfatória.

— Mas será que eles sabem tratar deste tipo de

envenenamento?

—Seiquenãoécomum.Estãotentandooimpossível.Acho

queelatemgrandeschances.

Olhei para ele sem saber se realmente dizia a verdade ou

queriameconsolar.

—Dequalquermaneiraverificaramseeratáliomesmo?

—Sim.

—Eis a verdade sobre oCavaloAmarelo! Veneno.Nada de

magianegra, hipnotismo ou raios científicos.Veneno!E elame

atirou na cara seus grandes poderes, morrendo de rir com

certeza.

—Dequevocêestáfalando?

Page 231: Agatha christie - o cavalo amarelo

—DeThyrzaGrey. Lembra-se quando eu fui tomar chána

casadela?TodaaquelaconversasobreosBorgias,dosvenenos

que não deixam vestígios, das luvas envenenadas etc. Puro

arsênico, disse ela. Continuam fazendo omesmo, só que caem

em transe, matam galos, desenham pentagramas no chão,

colocam crucifixos de cabeça para baixo. E para quê? Para

enganar os supersticiosos. A caixa eletrônica é para os

materialistas racionais como nós, por exemplo, que não

acreditamosembruxasoupragas,masnãonegamosaexistência

eaeficáciadosraios,dasondasedosfenômenospsicológicos.O

CavaloAmarelonãopassadeumcavalodepau.Tudofeitopara

desviaraatençãosobreoenvenenamentodasvítimas.Omelhor

équeelasnãocorriamriscoalgum,podiamaté,comonocasode

Thyrza, gabar-sedos seuspoderesocultos.Caso fosse levadaa

umtribunalbastariamostraracaixacheiadeválvulasinúteise

seriaabsolvida.

—Elastrêsestãometidasnisso?

— Acho que não — respondi. — Bella deve acreditar

piamente em bruxaria, o mesmo acontecendo com Sybil, que

realmente possui o dom da mediunidade. É uma coitada que

acreditacegamenteemThyrza.

—EntãoThyrzaéachefe?

—PelomenosdoCavaloAmarelo.Mas,nãocreioquesejaa

cabeça de tudo; o verdadeiro líder deve trabalhar escondido,

organizando,planejando.Tudoé feitocomumverdadeirosenso

deequipe,cadaumocupandoumafunção:Bradley,apartelegal

efinanceira;Thyrza,encarregadadamagianegra.Certamenteos

doissãomuitobempagos...

Page 232: Agatha christie - o cavalo amarelo

— Pelo visto você já descobriu tudo — comentou Lejeune,

secamente.

—Aindanão.Sabemossomenteosfatosbásicos.Trata-sede

envenenamento.

—Quemlhedeuaidéiadotálio?

—Umasériedecoisas.Tudocomeçoucomaquelabrigaem

Chelsea; estranhei o comentário da moça de quem haviam

arrancadoocabelo:—Nãodoeunada!Elanãoestavasefazendo

de forte. Realmente não sentiu dor alguma. Há alguns anos,

quando estive nos Estados Unidos, li um artigo sobre

envenenamento por tálio. Uma porção de operários de uma

mesmafábricamorreuemconseqüênciadeváriascausascomo:

apoplexia,nevritealcoólica,paralisia,epilepsia,gastrenteriteetc.

Ossintomasvariavam.Namesmaépocaumamulherenvenenou

sete pessoas; os diagnósticos atestaram tumor cerebral,

encefalite e pneumonia. O estranho é a variedade de sintomas

quepodemserdiarréia,vômitoouintoxicação,dornosmembros

etc.

—Vocêpareceumdicionáriomédico.

—É claro que andei fazendoumaspesquisas.Umsintoma

porém sempre aparece: a queda dos cabelos. O tálio já foi

inclusive usado como depilatório mas acabou sendo

desaconselhado.Quando usado como remédio a dosagem varia

de acordo com o peso do doente. Hoje em dia é usado como

venenocontraratosporserumasubstânciasolúvelesemgosto.

Você percebe como é difícil num caso desses suspeitar-se de

envenenamento.

Page 233: Agatha christie - o cavalo amarelo

Lejeuneconcordou.

—Exatamente—disseLejeune.—Porissoainsistênciado

pessoal do Cavalo Amarelo de afastar o cliente da vítima. Para

evitar suspeitas. O trabalho é feito por alguém que não tem a

menor ligação com a vítima. Uma pequena visita é o bastante.

Nãoacha?

—Creio que tem razão.Oúnico fator comumé a visita de

uma agradável senhora com um questionário sobre utilidades

domésticas.

—Seráqueestasenhoraéquemdáoveneno?Comosefosse

umaamostraporexemplo?

—Nãocreioquesejatãosimplesassim—respondi.—Para

mim essas entrevistadoras são verdadeiras e participam da

história sem saberem coisa alguma. Acho que descobrirei

qualquer coisa depois de conversar com umamulher chamada

EillenBrandon.

II

EillenBrandontinhasidobemdescritaporPoppy:umcabelo

alourado em coque, no alto da cabeça, como um ninho de

passarinho. Pouca pintura, sapatos de salto baixo, roupas

severas. O marido tinha falecido em conseqüência de um

desastredeautomóvel,deixando-aviúvacomdoisfilhos.

Seu emprego anterior tinha sido numa firma chamada

ReaçãoClassificadadeConsumidoresondetrabalharaumanoe

pouco.Largouoempregopoisnãogostavadoserviço.

—PorqueSra.Brandon?—perguntouLejeune

Page 234: Agatha christie - o cavalo amarelo

—Osenhorédapolícia,nãoé?

—Sou.

—Achaqueháalgodeerradocomaquelafirma?

—Estousimplesmenteinvestigando.Asenhorasuspeitoude

algo?Foiporissoquesaiu?

—Nãotenhocoisaalgumaadeclarar.

— Compreendemos. Gostaria de que soubesse que esta

investigaçãoétotalmenteconfidencial.

—Poisnão,mesmoassimachoquenãotenhomuitoadizer.

—Podenoscontarporquesedespediu.

— Achei que estavam acontecendo coisas que eu não

compreendiabem.

—Coisasquenãolhediziamrespeito?

—Maisoumenos.Comoseafirmanãofossecemporcento

profissional. Suspeitei de que coisas escusas estivessem

acontecendo,masnãopodiaprecisaroquê.

Lejeune quis saber mais detalhes sobre o emprego. Eillen

explicouqueumalistadenomeseradadaacadaentrevistadora,

cujotrabalhoeravisitaralgumaspessoas,fazerumasperguntas

eanotarasrespostas.

—Eoquetinhaissodeerrado?

—Asperguntasnãopareciamconclusivascomqualquertipo

depesquisa.Comosequisessemdescobriralgumaoutracoisa...

Page 235: Agatha christie - o cavalo amarelo

—Oque,porexemplo?

—Nãosei.Issoéquemeintrigava.

EillenBrandoncalou-seporunsinstantes.

—Penseiaprincípio—continuouela,—quefosseumagang

de assaltantes ou coisa parecida. Conclui que não pois o

questionárionãopediadescriçãodosquartosetc....nemmesmo

oshoráriosemqueaspessoasestavamemcasa...

—Quetipodeprodutosfaziampartedoquestionário?

—Variavam.Asvezeseramsobrecomida,cereais,misturas

de bolos, ou tipos de sabão, detergentes. As vezes sobre

remédios, aspirinas, pastilhas contra a tosse, calmantes,

gargarejos.

— Não lhe pediam para levar amostras? — perguntou

Lejeune.

—Não.

—Seutrabalho,portanto,consistiaemanotarasrespostas?

—Sim.

—Comquefinalidade?

— Isto é que eu não compreendia. Também não éramos

informadas. Eles pretendiam que certas firmas gostariam de

obterinformaçõesmaisdetalhadassobreomercadodeconsumo.

O que eu estranhava era exatamente a forma amadorística e

desorganizadacomqueotrabalhoeraconduzido.

—Seriapossívelqueentreasperguntasqueasenhoradevia

Page 236: Agatha christie - o cavalo amarelo

fazer houvesse uma específica que contivesse a meta do

questionário e que as outras fossem unicamente empregadas

comodisfarce?

Elapareceuintrigadacomapergunta.

— Sim — respondeu, depois de uma certa hesitação. —

Talvez por isso as perguntas fossem tão disparatadas. Só não

imaginoqualseriaouquaisseriamasperguntaschaves.

LejeuneolhouparaaSra.Brandon.

—Asenhoradevesabermais—disseelecomsuavidade.

—Oestranhoéqueeunãosei.Eusimplesmenteacheique

haviaalgodeerrado.ChegueiafalarcomaSra.Davis.

—FaloucomaSra.Davis?

—Elatambémnãoestavamuitosatisfeita.

—Eporquê?

—Parecequeouviuqualquercoisa.

—Oquefoi?

—Jálhedissequenãopossosertãoprecisa.Elanãofalou

claramente.Sódisse:—Istoaquinãoéoquepareceser!Disse

também:—Afinalnãotemosnadacomisso.Ganhamosumbom

dinheiroenãoestamosinfringindoalei,portantonãovejomotivo

paranospreocuparmos.

—Étudo?

—Eladissemais,masconfessoquenãoentendi.Àsvezes,

Page 237: Agatha christie - o cavalo amarelo

mesintocomoumvírusmaligno!disse-meela.Nãocompreendio

queelaquisdizer.

LejeunetirouumpapeldobolsoeentregouàSra.Brandon.

—Conhecealgunsdestesnomes?Visitou-osalgumavez?

—Nãolembro.Visiteitantagente...

Os olhos da Sra. Brandon pousaram sobre um nome:

Ormerod.

—Lembra-sedealgumOrmerod?

— Não, mas a Sra. Davis falou nele. Morreu de repente

vitimadoporumahemorragiacerebral.Elaficouabaladíssima.—

Ela estavanaminha relaçãode clientesháquinzedias.Estava

tão bem de saúde, comentou ela. Foi então que fez aquele

comentáriosobreovírusmaligno.Dissemais:—Bastaeuvisitar

uma pessoa para que ela abotoe o paletó em seguida! Ela riu,

dizendo que devia tratar-se de uma coincidência.Mas eu notei

queelatinhaficadoimpressionada.

—Étudo?

—Bem...

—Fale.

— Tempos depois encontrei-a num restaurante. Contei que

tinhamedemitidoda firmae elaquis saberporquê.Expliquei

quemesentiamalpornãoentenderdireitooqueacontecialá.—

Podeserquevocêtenhafeitobem,disse-meela,maselespagam

beme ohorário é ótimo.Eununca tive sortena vida, por isso

vouaproveitarminhaoportunidade.Afinal,quemeimportaoque

Page 238: Agatha christie - o cavalo amarelo

aconteceaosoutros?

Respondi quenão estava entendendo bem, perguntei o que

haviadeerradonaquilotudo.—Nãoseiaocerto,respondeu-me

ela,—sóseiquevi, outrodia, saindodeumapartamento,um

sujeitoquenãotinharazãoalgumaparaestarlá.Carregavauma

maletadeferramentas.Oqueestariaelefazendolá?Emseguida

elaperguntouseeuhaviaconhecidoumamulherquetrabalhava

noCavaloAmarelo.PergunteioqueeraoCavaloAmareloeoque

tinhaavercomafirma.

—Eoqueelarespondeu?

—LeiaaBíblia, foia resposta.Nãoseioqueelaquisdizer

comisso!Foiessaaúltimavezqueeuavi.Nãoseiondeandaou

seaindatrabalhanafirma.

—Elamorreu—informouLejeune.

EileenBrandonteveumchoque.

—Morta?Como?

—Depneumonia.Hádoismeses.

—Quepena!

—Gostariadenoscontaralgomais?

—Nãosei.Jáouvi falaremdoCavaloAmarelo,massempre

que quero mais informações as pessoas se calam. Parece que

ficamcommedo.

ASra.Brandonparecianervosa.

— Não querome envolver em negócios perigosos, Inspetor.

Page 239: Agatha christie - o cavalo amarelo

Tenhodoisfilhospequenos.Sinceramente,nãoseimaisnada.

O Inspetor a olhou fixamente e fez sinal para que ela se

retirasse.

—Demosumbompasso—disseele,assimqueelasaiu.—

A Sra. Davis certamente sabia demais. Tentou fechar os olhos

para o que estava acontecendo, mas o fato de ela saber algo

acaboucondenando-a.Quandoela ficoudoente epercebeuque

ia morrer chamou o padre e contou tudo o que sabia ou

suspeitava.O que ela falou não sabemos.Devia ser a tal lista,

comosnomesdas pessoas que ela visitou e quemorreram em

seguida.Daíocomentáriodelasobreovírusmaligno.Gostariade

sabertambémquemelareconheceu,saindodeumapartamento

disfarçado de operário. Foi por isso que elamorreu, pois o tal

homemtambémdevetê-lareconhecido.Seelafaloucomopadre

é claro que precisavam matá-lo também, senão tudo estaria

perdido.Queacha?

—Achoquevocêtemrazão—concordei.

—Talvezvocêsaibaqueméessehomem...

—Tenhoumaidéia,mas...

—Jásei,jásei.Nãotemosprova...

Lejeunefezumapequenapausa;emseguida,levantou-se.

—Vamosapanhá-lo.Sóprecisamostercertezadequemseja.

Quandosoubermosaocertovamosprepararumaboaarmadilha.

Vocêvaiver.

Page 240: Agatha christie - o cavalo amarelo

Capítulo23

NarrativadeMarkEasterbrook

Trêssemanasdepoisumcarroparouemfrenteàresidência

deVenables.Quatrohomensdesceram:eu,oInspetorLejeune,o

sargentoLeeeoSr.Osborne,quemalpodiaseconterdetanta

excitação.

—Nãodigacoisaalguma—preveniuLejeune.

—Podecontarcomigo.Nãoabrireiaboca.

—Tomemuitocuidado.

—Sinto-meumprivilegiado.Sónãoentendoporque...

Como ninguém estava para explicações, Osborne achou

melhor não insistir. Lejeune tocou a campainha e pediu para

chamarem o Sr. Venables. Como se fôssemos um conselho

parlamentaremvisitaaoprefeitomunicipal,fomoslevadospara

abiblioteca.

SeVenablesficousurpresocomavisita,nãoodemonstrou.

Tratou-noscomtodaacortesiapossíveleeunãopudedeixarde

notar, enquanto ele movimentava a cadeira de rodas, quão

estranhaemarcanteerasuaaparênciapessoal.OpomodeAdão

quesubiaedesciaentreasabasdocolarinho,operfildeáguia,o

narizdeavederapina.

—Prazeremrevê-lo,Easterbrook.Parecequevocêagoravive

poresteslados.

Page 241: Agatha christie - o cavalo amarelo

Sentiumlevetomdesarcasmoemsuaspalavras.

— O senhor é o Inspetor Lejeune, não é? — perguntou

Venables. — Confesso que estou curioso. Nosso vilarejo é

geralmente tão calmo, tão pacato! Mas, mesmo assim, sou

visitadopelapolícia!Quepossofazerpelossenhores?

—Gostariadequeosenhornosajudasse—disseLejeune,

suavemente.

—Nãoseiondeouviestafrase.Comopossoajudá-los?

— No dia sete de outubro um padre católico, chamado

Gorman, foi assassinado na Rua West, bairro de Paddington.

Ouvi dizer que o senhor esteve pela vizinhança entre sete e

quarentaecincoeoitoequinze,equetalvezosenhorpudesse

nosdaralgunsesclarecimentos.

—Seráqueeuestivelánessanoite?Duvido.Duvidomuito.

Achomesmoquenunca estiveneste bairro de Londres. Senão

mefalhaamemória,creiomesmoquenememLondreseuestava

nessaocasião.VouaLondres,éverdade,somenteparaassistira

unsleilõesouvisitarmeumédico.

—SirWilliamDougdale?

— O senhor parece bem informado, Inspetor — respondeu

friamenteVenables.

— Não tanto quanto o necessário. Confesso que estou

desapontado com sua ajuda; no entanto, gostaria de relatar

algunsfatosligadosàmortedopadreGorman.

—Poisnão,emboraeununcatenhaouvidofalarnele.

Page 242: Agatha christie - o cavalo amarelo

—OpadreGormanfoichamadonaquelanoiteparaatender

umamulheragonizante.Parecequeelaestavaligada,semsaber,

a uma organização criminosa e que começou a suspeitar da

seriedade da firma. A organização especializava-se namorte de

pessoasporumpreço,éclaro.

—Nãomeparecegrandenovidade—disseVenables.—Nos

EstadosUnidos...

— Esta organização, porém, agia de outra maneira. Em

primeiro lugar,a remoçãodasvítimasera feitaostensivamente,

sob um pretenso método psicológico. O que os psicólogos

conhecemcomo “o desejo demorte”, quedizem ser inerente ao

serhumano.Poisbem,estedesejoeraestimulado...

— Forçando a pessoa a suicidar-se? Parece, Inspetor, uma

idéiaboademaisparaserverdade...

—Nãosetratadesuicídio,Sr.Venables.Avítimamorriade

mortenatural.

—Ora,ora,osenhornãovaidizerqueacreditanisso?

— O centro desta organização é a estalagem do Cavalo

Amarelo.

—Ah!Compreendo.Porissovieramparacá.AtrásdeThyrza

Grey... bem, não sei se ela acredita no que diz, mas posso

afiançar que se trata de uma bobagem. Ela tem uma amiga

médiumeumacozinheirabruxa (aliás,sãocorajosasemcomer

aquela comida). Só sei que as três ganharam fama de videntes

etc.Nãovaidizerqueapolícialevaestaconversaasério?

—Paradizeraverdade,levamos.

Page 243: Agatha christie - o cavalo amarelo

— Acredita realmente que Thyrza Grey é capaz desses

milagres?Queporcausadeumasinvocações,unstranseseuns

passesdemagianegra,umapessoavenhaamorrer?

— Oh! não, Sr. Venables. A causa da morte é muito mais

simples...

Lejeunefezumapausa.

—Amorteécausadaporenvenenamento.

Porunsinstantesreinouumsilêncioopressor.

—Oquê?

— Envenenamento através de sais de tálio. Nada mais

simplesmas,assimmesmo,eranecessárioencobrirocrimesob

a capa de uma organização pseudo-científica ou psicóloga. A

metaeradesviaraatençãosobreoveneno.

—Tálio—murmurouVenables.—Nãoconheciaestesal!

— Não? Usado contra ratos ou como depilatório. Fácil de

comprar.Porfalarnisso,encontramosumenvelopecomtáliona

suaestufa.

—Naminhaestufa?Impossível!

—Poiséverdade.Jáfizemosinclusivealgunstestes...

Venablescomeçouaficaragitado.

—Alguémdeveterpostolá.Desconheçoesseproduto...

— É mesmo? O senhor parece um homem de posses, Sr.

Venables.

Page 244: Agatha christie - o cavalo amarelo

—Eoquetemissoquevercomnossaconversa?

— O Imposto de Renda tem-lhe feito algumas perguntas

embaraçosas,nãoéverdade?Explicaçõessobrefontederendase

coisassemelhantes...

—Amaldição da Inglaterra está no seu sistema tributário.

Ultimamente tenho pensado seriamente em mudar-me para a

Jamaica.

—Nãocreioquepossairtãocedo...

— O senhor está me ameaçando, Inspetor? Por que, caso

esteja...

—Não,absolutamente.Estouemitindoumaopiniãopessoal.

Possocontinuarcomahistória?

—Jáqueestádecididoacontar,nãovejooutroremédio.

—Éumaorganizaçãoeficientíssima;osdetalhesfinanceiros

são tratados por um ex-advogado chamado Bradley, cujo

escritório fica em Birmingham, e onde os clientes o procuram

parafecharoscontratos.Trata-sesimplesmentedeapostarsea

pessoavisada,queestáatrapalhandoocliente,vaiounãomorrer

dentrodeumcertotempo.CasooSr.Bradleyganheaaposta,o

dinheiro tem que ser pago imediatamente; o não cumprimento

destacláusulaacarretaconseqüênciasfunestasparaocliente.O

Sr.Bradley,noentanto,limita-seaapostar.Simples,não?

—Em seguida— continuou Lejeune, sorrindo,— o cliente

vai ao Cavalo Amarelo, onde Thyrza Grey e as amigas

representam um espetáculo de muito efeito para os não

iniciados.

Page 245: Agatha christie - o cavalo amarelo

“Ouça, porém, alguns detalhes curiosos: algumas inocentes

senhorassãocontratadasparapesquisaromercadoconsumidor.

Paratanto,recebemumquestionárioeumasériedenomescom

endereços.—Qual o pão que preferem?Que artigos de toalete

usam? Qual o laxativo, tônico ou sedativo? etc. Hoje em dia o

senhorsabecomoestamoscondicionadosaresponderperguntas,

portanto, ninguém costuma reclamar. Passa-se, então, para a

etapa final. A mais simples, diga-se de passagem, e a única

executadapelochefedaorganização,quegeralmenteusavários

disfarces: porteiro, zelador, medidor de gás, bombeiro, ou

eletricista e até operário. Dependendo das circunstâncias, ele

apresentaascredenciaisnecessárias,entranacasadavítimae

substituiumproduto(queoquestionáriojárevelouqueavítima

usa) por outro igual porém envenenado. Não importa que

verifiqueogásoubatanoscanos,oqueeleveiofazerétrocaros

produtos.Cumpridaamissão,eledesaparece.

“Por algunsdiasnada acontece. Porém,mais cedo oumais

tarde a vítima começa a ficar doente.Chamamummédico que

nãotemrazãoparasuspeitardecoisaalguma,quenaturalmente

perguntasobreoshábitosalimentaresdopacienteelogicamente

não vai desconfiar do remédio que o mesmo vem tomando há

anos!

—Veja,portanto,Sr.Venables,queengenhosidade!Aúnica

pessoaquerealmentesabeoqueochefedaorganizaçãofazéo

própriochefe.Ninguémpoderáacusá-lo.

—Ecomoosenhorsabetudoisso?—perguntouVenables,

sorrindo.

—Quando suspeitamos de alguém temosmaneiras de nos

Page 246: Agatha christie - o cavalo amarelo

informar.

—Como?

—Nãoprecisareientraremdetalhes,mastemosorecursoda

fotografia. Hoje em dia um homem pode ser fotografado sem

saber.Temos,porexemplo,maravilhososretratosdoporteiro,do

medidorde gás etc.É claroqueapessoa emquestão recorrea

vários elementos como bigode, barba, dentes postiços, mas

conseguimosreconhecê-lo.PrimeiropelaSra.MarkEasterbrook,

aliás Katherine Ginger Corrigan, e depois por Edith Binns. A

identificação é um estranho fenômeno, Sr. Venables. Por

exemplo, este cavalheiro aqui, o Sr. Osborne, está disposto a

jurarqueviuosenhorseguindoopadreGormannanoitedesete

deoutubro,àsoitohorasdanoite.

—Evimesmo—disseOsborne,secontorcendodeexcitação.

—Descreviosenhornosmínimosdetalhes...

—Talvezestefosseoerro—interrompeuLejeune.—Poiso

senhor não viu o Sr. Venables naquela noite, enquanto estava

paradodefrontedafarmácia.Porqueosenhornãoestavaparado

esimandandoatrásdopadreGorman.Quandoeleentroupela

RuaWestosenhoroassassinou.

—Oquê?—disseZachariahOsborne.

—Sr.Venables, permita que lhe apresente oSr. Zachariah

Osborne, farmacêutico. O senhor gostará de saber que ele

colocouna sua estufauns tabletesde salde tálio eque estava

disposto a lhe dar o papel de vilão do filme. Ignorando sua

invalidez, divertiu-se em acusá-lo e, como é muito primário e

teimoso,insistiuquetinharazãoquandooidentificou.

Page 247: Agatha christie - o cavalo amarelo

—Primário?Osenhorseatreveamechamardeprimário?Se

soubesseoqueeufiz...

Osbornetremiadeódio.

Lejeuneencarou-ofriamente.

—Osenhornãodeviase fazerdetão inteligente.Se ficasse

calado na sua lojinha não estaria nesta situação. Nem eu

precisaria lembrá-lodeque tudoquedisserdeagoraemdiante

seráanotadoepoderáserusadocontraosenhornojulgamento.

FoientãoqueOsbornecomeçouagritar.

Page 248: Agatha christie - o cavalo amarelo

Capítulo24

NarrativadeMarkEasterbrook

—Queroumaexplicação!

Depoisdasformalidadespoliciais,conseguiagarrarLejeunee

levá-loaumbar.

— Pois não, Sr. Easterbrook. Creio que ficou bastante

surpreso.

—Fiqueinervoso...estavaconvencidodequeoculpadoera

Venables.Vocênãomedeupistaalguma...

—Não podia fazer isto. Tinha que agarrar todos os fios da

meadaparanãoperderumpontosequer.Comacolaboraçãode

VenablesconseguimosenganarOsborneepegá-lodesprevenido.

—Éumlouco?

—Aestaaltura jáestácompletamente incoerente.Oatode

matarpessoasdáumasensaçãodepoder.O indivíduosente-se

Deus, porém, quando confrontado com a realidade, recorre à

loucura,aosgritos.Vocêviucomoeleficou.

— Então Venables tomou parte do espetáculo? Ele achou

divertido?

—Achoquesim—respondeuLejeune.—Alémdomais,foi

bastanteimpertinenteapontodepedirumfavoremtroca.

—Qualseriaestefavor?

Page 249: Agatha christie - o cavalo amarelo

— Não sei se devo dizer — respondeu Lejeune. — Peço

portantosuadiscrição.Háoitoanos,houveumasériedeassaltos

embancos,semprecomamesmatécnica.Osladrõesescaparam.

Os roubos foram planejados por uma pessoa que não tomava

parte neles; e embora nós suspeitássemos quem fosse, nunca

pudemos agarrá-lo. O homem era um gênio, especialmente do

ponto de vista econômico, e além domais era tão esperto que

nunca mais cometeu outro assalto. Tratava-se de um grande

ladrãoenãodeumassassino.

—VocêsempresuspeitoudeOsborne?Desdeocomeço?

—Ofatodeelechamaratençãosobresimesmomepareceu

suspeito. Se ele se contentasse em ficar quieto, nunca

desconfiaríamos de um respeitável farmacêutico. Mas,

geralmente,oscriminososnãoficamcalados,nãoseiporquê.

—Odesejodemorte—sugeri.—Umavariantedateoriade

ThyrzaGrey.

— É melhor esquecer esta senhora e os conceitos que ela

emitia — aconselhou Lejeune. — Acho que no fundo os

assassinossesentemsós.Nãoadiantaserumgêniodocrimese

nãosetemcomquemcomentarasprópriasproezas.

—Vocêaindanãodissequandocomeçouasuspeitardele—

insisti.

— Desde o princípio ele mentiu. Pedimos informação às

pessoasquetivessemvistoopadreGormannanoitedocrime.O

testemunho dele era obviamente falso. Ele disse que vira um

homem seguindo o padre; descreveu o suspeito nos mínimos

detalhes, quando seria impossível identificarumapessoanuma

Page 250: Agatha christie - o cavalo amarelo

noitedenevoeiro como foi aquela.O fatode elementirnãome

pareceumuito importante;afinal, elepoderiaestarquerendose

vangloriar.Temtantagenteassim!Quandovolteiaatençãosobre

eleéquefoifatal.ImediatamenteOsbornecomeçouafalardesie

aiestáoseuerro.Eledescreveuumhomemquesemprequisser

maisimportantedoqueeranarealidade,umhomeminsatisfeito

emsercomoopai.Parecequeestevenoteatroporalgumtempo,

mas obviamente não fez grande sucesso. A razão talvez tenha

sidoarebeldianaturaldosparanóicos...poiscreioqueninguém

poderia ensiná-lo como representar um papel! É claro que ele

gostaria de ser testemunha de um crime, identificando o

assassino que comprou veneno na sua farmácia. Sei que a

descriçãoqueOsbornefezmepareceuinteressante,poisémuito

difícil descrevermos uma pessoa que nunca vimos. Tente

descreverumdesconhecidoeverácomoédifícil. Imediatamente

começamosadescrevertraçosecaracterísticasdealguémquejá

vimosemalgumlugar.Osbornedescreveuumapessoabastante

invulgar. Acontece que ele deve ter visto Venables sentado no

carroemBournemouthe ficou impressionadocoma fisionomia

do milionário. O que ele não podia saber é que o homem era

paralítico.

“Outro detalhe que me chamou a atenção foi o fato de

Osborneserfarmacêutico.Acheiqueaquelalistadopadretinha

algumarelaçãocomumaquadrilhadenarcóticosesenãofosse

Osborne eu teria enveredado por esse caminho. Aí ele manda

uma carta, dizendo que viu Venables na quermesse, ignorando

aindaqueofalsoacusadofosseparalítico.Quandosoube,nãose

calouporvaidade;aliás,vaidadetípicadeumlouco,poisparaele

seria impossível admitir que tivesse errado. Tive uma reunião

muito interessante na casa dele, em Bournemouth. O bangalô

Page 251: Agatha christie - o cavalo amarelo

chama-se Everest, pois ele é um grande admirador dos

escaladoresdoHimalaia.

“Por outro lado, a firma funcionava com a precisão de um

relógio;BradleyemBirmingham,ThyrzaGreyemMuchDeeping.

Pois bem, quem suspeitaria de que Osborne tivesse alguma

conexão com Thyrza Grey ou com Bradley ou com alguma

vítima?Umaverdadeirapeçadeteatroquedurariamuitosanos

emcartaz,seeletivesseficadoquieto.

—Oqueseráqueele faziacomodinheiro?Afinal,erapelo

dinheiroqueelematava?

— Claro que sim. Certamente se imaginava viajando,

recebendo, sendo convidado para grandes recepções.

Naturalmenteelenãoeraapessoaquegostariadeser,masofato

de podermatar impunemente lhe davauma sensação de força.

Quando for julgado,éclaroquevaisedivertirmuito. Imaginem

só,todoomundoolhandoparaele.

—Mas,oquefaziaeledodinheiro?

— Fácil — respondeu Lejeune, — apesar de ele ser um

grande sovina! É o típico avaro que gosta de guardar dinheiro

paravê-loamontoado.

—Guardavatodonumbanco?

— Não, provavelmente encontraremos debaixo de um

colchão...

Calamo-nos por um instante, recordando a estranha figura

deZachariahOsborne.

—SegundoCorrigan—disseLejeune,pensativo—tudoisso

Page 252: Agatha christie - o cavalo amarelo

seriaatribuídoàatrofiaouhipertrofiadeumaglândulaqualquer.

Eu,comosouumsujeitosimples,achoqueOsbornenãopassa

deumlouco.Oquemeimpressionaéaestranhacombinaçãode

burricecominteligência.

—Quando se fala num gênio do crime, sempre se imagina

umafigurasinistraeonipotente...

— Quando na realidade não é nada disso — interveio

Lejeune. — A maldade não é sobre-humana, é até subumana.

Um assassino quer sempre ser importante, mas nunca o será

porquenãoéumhomemcompleto.

Page 253: Agatha christie - o cavalo amarelo

Capítulo25

NarrativadeMarkEasterbrook

AvidaemMuchDeepingretornouaonormal.

Rhoda, ocupada com os cachorros; desta vez, creio que o

problemaeravermes...

Assim queme viu entrar, perguntou se eu queria dar uma

ajuda. Recusei prontamente, pois queria saber onde estava

Ginger.

—FoiaoCavaloAmarelo.

—Oquê?

—Dissequetinhaqueresolverumassuntolá...

—Masacasaestávazia!

—Eusei.

—Elaaindaestácansada,nãoestáemcondiçõesde...

—Vocêpareceumagalinha,falandodospintinhos!Elaestá

ótima. Você já leu o último livro da Sra. Oliver: A Cacatua

Branca?Estáemcimadamesa.

—DeusabençoeaSra.OlivereEdithBinns.

—QueméEdithBinns?

—Umasenhoraque identificouuma fotografia,alémde ter

sidogovernantadaminhamadrinha.

Page 254: Agatha christie - o cavalo amarelo

—Vocêenlouqueceu?Nãofalamaiscoisacomcoisa...

Saí sem dar resposta. Resolvi ir ao Cavalo Amarelo. No

caminho encontrei a Sra. Dane Calthrop, que me acolheu

efusivamente.

—Eusabiaqueestavamedeixandoenganarpelaencenação

daquelasmulheres.

Elafezumgestocomobraço,indicandoaestalagemvazia.

— A maldade não estava lá, como supúnhamos. Nada de

conluios com oDemônio ou invocaçõesmágicas. Simplesmente

umaorganizaçãocriminosasórdidaemesquinha.

—OInspetorLejeunetambémacha.

—Gosto dele— disse a Sra. Dane Calthrop.— Vamos ao

CavaloAmarelobuscarGinger.

—Oqueelafoifazerlá?

—Limparumacoisa.

Entramos e fomos invadidos por um forte cheiro de

terebintina.Ginger,cercadade traposevidros,olhouparanós;

ainda estava pálida e magra, usava um lenço na cabeça para

cobriroslugaresondetinhaperdidocabelo.

—Elaestábem—disseaSra.DaneCalthrop, lendomeus

pensamentos.

—Olhe!—exclamouGinger,triunfante.

Elamostrouavelhatabuletadaestalagem.Aferrugemtinha

sidoremovidaepodiaver-seafiguradeumesqueleto,comuma

Page 255: Agatha christie - o cavalo amarelo

foicenamão,montadonumcavaloamarelo.

—Apocalipse,SextoCapítulo,oitavoverso. “Eapareceuum

cavaloamarelo;eoqueestavamontadosobreeletinhapornome

MORTE,eseguia-ooInferno”—disseaSra.Calthrop,atrásde

mim,citandoaBíblia.

Por alguns instantes ficamos em silêncio, até sermos

novamenteinterrompidospelamulherdopastor.

—Entãoeraisso!—disseela,numtomdequemdespejaum

restodecomidapodrena latado lixo.—Tenhoque irandando

paraareuniãodasmães.

NaportaaSra.DaneCalthropparouevirou-separaGinger.

—Vocêseriaumaexcelentemãe.Ginger.

Gingerenrubesceu.

—Vocêquer,Ginger?—perguntei.

—Querooquê?Serumaboamãe?

—Vocêsabeoqueeuquerodizer.

—Talvez,masprefiroumapropostamaisdefinitiva.

Fizaproposta.

HorasdepoisGingerperguntou:

—VocêtemcertezadequenãoquercasarcomHermia?

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—MeuDeus!Tinhaatéesquecidodela.

Tireiumacartadobolso.

—Recebiestacartadelahátrêsdias.Elameconvidoupara

iraoteatroassistiraTrabalhosdeAmorPerdidos.

Ginger arrancou a carta da minha mão e rasgou-a em

pedaços.

—Daquipordiantevocêsóiráaoteatrocomigo.

FIM

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[01]BairrodeLondresconhecidoporsuaboêmia.

[02]LinguajartípicodaclassepobredeLondres.

[03]CitaçãodoHamletdeShakespeare.

[04]FamosaenvenenadorainglesadoSéculoXIX.