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Forças estranhas e perigosas, que aliam as velhas crenças aos novos conhecimentos científicos, são responsáveis por assassinatos a distância, por telepatia. Uma organização particular criminosa dedicada à eliminação de pessoas ricas, que não emprega assassinos profissionais, uma vez que suas vítimas morrem de ”doenças”. Deixando sempre, é claro sobreviventes que lucram com as mortes. E o inspetor Lejeune, um homem de imaginação capaz de considerar as possibilidades menos ortodoxas, consegue chegar so terrível deslindamento de uma trama macabra, que arrebata a fantasia e a imaginação.
Prefácio
porMarkEasterbrook
Existem duas maneiras, me parece, de encarar o estranho
caso do Cavalo Amarelo. Apesar dos conselhos dos estetas, é
difícilatingir-seasimplicidadeNãosepodesempre“começarpelo
começo,chegaraofimeparar”,pois,àsvezes,nãosesabebem
ondeestáocomeço.
Esta é a dificuldade do historiador. De que ponto deve-se
partir para relatar um fato histórico? Neste caso, podemos
começarnomomentoemqueoPadreGormansaiudaparóquiae
foiatenderumamoribunda.Outalvez,antesdisso,numacerta
noiteemChelsea.
Talvez,comosouoescritordamaiorpartedestanarrativa,é
nestemomentoquedevocomeçarmeurelato.
Capítulo1
NarrativadeMarkEasterbrook
I
Amáquinadecaféexpressosibilouatrásdemimcomouma
serpente enraivecida; um som sugestivamente sinistro e
demoníaco.Porunsinstantes,fiqueiacismarseosbarulhosda
vida moderna não possuíam esta implicação: o grito
intimidadoramenteraivosodosaviõesajato,cruzandooscéus;o
som vagaroso e ameaçador de um trem subterrâneo,
aproximando-sedeumtúnel;o rumordoscaminhões,sobreas
calçadas, sacudindo as fundações das casas... até os pequenos
ruídosdomésticos,emboraúteis,carregamconsigoumaespécie
de sinal de alarme: lavadores de pratos, geladeiras, panelas de
pressão,aspiradoresdepó.—Cuidado!—parecemmurmurar—
Souumgênioobrigadoaservi-lo,massevocêfalhar...
Ummundoperigoso,semdúvida!
Levanteiaxícaraescaldanteeaspireioagradávelodor.
—Quemais deseja? Que tal um bom sanduíche de bacon
combanana?
Pareceu-me uma combinação esdrúxula. Banana paramim
estava associada aminha infância ou como sobremesa servida
flambéecomrum;baconsemprecomovos.Porémeuestavaem
Chelsea[01],portantodeviaseguiroscostumes locais.Concordei
comasugestãoepedibananacombacon.
EmboraeuestivessemorandoemChelsea,nosúltimos três
meses,aindaeraumestranhonobairro.
Estava escrevendo um livro sobre arquiteturamongólica, o
quesignificavaqueeupoderiaestarvivendoemqualqueroutro
bairro de Londres. Não precisava participar da vida do bairro,
paraexercerminhaprofissão.Poroutrolado,nãotinhaomenor
interessenavidadavizinhança.Viviaencasuladonomeumundo
particular.
Nestanoite,porém, eu estava emcasa, quando fui atacado
pelarevoltatãocomumaosescritores.
Arquitetura mongólica, imperadores mongóis. O cotidiano
mongol e todos os seus fascinantes problemas tinham se
transformado, para mim, numa montoeira de cinzas. O que
importava tudo isso? Por que escrever sobre este assunto?
Folheei distraidamente o manuscrito, relendo algumas
passagens. Pareceu-meuniformemente fraco,mal escrito e sem
interesse.Quemdisse (HenryFord, talvez),queaHistóriaéum
montãodebesteiras!estavacomarazão.Empurreiomanuscrito
parao lado, levantei-me e olhei o relógio.Quaseonzehorasda
noite. Tentei lembrar-me se tinha jantado... pelomovimento do
meu estômago achei que não. Que tinha almoçado eu me
lembravaperfeitamente, sabia até onomedo restaurante.Mas,
jantado?
Deiumaolhadanageladeira:umrestode línguadefumada
quenãome inspirou.Resolvi sair e eventualmente fuipararno
Bar Café Expresso Luigi, atraído pelas luzes de gás néon
vermelho da porta envidraçada. Agora estava diante de um
sanduíchedebananacombaconenquantoconjeturavasobreas
sinistras implicações dos barulhos da vida moderna e seus
eventuaisefeitosatmosféricos.
Esses barulhos para mim se relacionavam com minhas
recordaçõesinfantissobrepantomima.Omocinhoaparecendodo
espaçoenvolvidoemfumaça!Alçapõesejanelasquepuxavamas
vítimas para o inferno desafiando a vontade da Fada Boa que
sacudiasuainevitávelvarinhadecondão,recitavaumacansativa
preleçãosobreasvantagensdobemecantavaoúltimosucesso
das paradas de música, que geralmente não tinha a menor
relação com a história. Veio-me a idéia de que o mal era
geralmentemais imponente do que o bem. Omal precisava se
exibir, assustar e desafiar. Era a instabilidade atacando a
estabilidade.No finalaestabilidadesempreacabavatriunfando;
suplantandomesmo a doçura e a chatice da FadaBoa.Débeis
armasquenofinalsempretriunfavam,encerrandoapantomima
com otimismo. Na hora dos agradecimentos, seguindo a
procissãoaFadaBoaprocuravanãoficarnafrente(mastambém
não no fundo) e colocava-se ao lado do vilão diabólico, agora
totalmentemansoedominadopelasforçasdoBem.
Amáquina de café sibilou novamente aomeu ouvido. Pedi
outraxícaraeexamineiobar.Minhairmãviviameacusandode
faltadesensodeobservaçãoedesinteressepelosoutros.—Você
vivenoseumundo—acusava-meela.Tentandocorrigirminhas
faltas, comecei a olhar para os freqüentadores do bar.
Diariamente os jornais publicavam algo sobre osmoradores de
Chelsea e suas excentricidades. Cá estava minha chance de
examinardepertoaveracidadedasnotícias.
Comoobarestavameionoescuro,eunãopodiaverbem.Os
freqüentadores eram todos jovens e membros da chamada
geraçãoLSD.Asmoças,comseuscabeloseriçadosesuasroupas
estranhas, só me davam a impressão de serem sujas e
superagasalhadas. Umas noites antes, quando eu jantava com
uns amigos, num restaurante, notei uma moça de uns vinte
anos,numamesapróxima.Orestauranteestavaquentemasela
estavausandouma suéter de lã amarela, saia de veludopreta,
meias de lã e durante toda a refeição o suor escorria pelo seu
rosto;cheiravaalãensopadadesuorecabelossujos.
Meusamigosacharamqueelaeramuitoatraente,masnão
para mim. Minha única vontade era oferecer-lhe um bom
sabonete,antesdeatirá-lanumabanheiradeáguaquente.Acho
que este pequeno parêntese serve para demonstrar quanto sou
quadrado! Talvez o fato de eu ter vivido no estrangeiro tantos
anos, vendo as belas indianas com seus saris coloridos e seus
cabeloscheirosos,tenhainfluenciadomeurelacionamentocoma
juventudeatual.
Fuiacordadodessespensamentospelobarulho.Duasjovens,
namesa ao lado, começarama brigar.Os dois acompanhantes
tentavamacalmá-las,massemsucesso.Derepente,elasestavam
aosgritos.Umadelas,aloura,esbofeteouaruiva;estaarrancou
a outra do lugar e a briga degenerou num quebra-quebra
histéricoeviolento.Asduaspareciampeixeirasbrigando.
Oporquêdabriganãoentendi.
Asoutrasmesasparticipavamvaiandoouaplaudindo.
—Viva!Muitobem!Dá-lhe!Agora!
O dono do bar, que presumi fosse o italiano Luigi, saiu de
trásdobalcãoparaapartaraluta.
— Vamos com isso! — gritou com seu puro sotaque
Cockney[02].—Daquiapoucoapolíciabaixaaqui.Parem!
Alouraaestaalturaestavaagarradanacabeleiradaruiva.
—Vocênãopassadeumacadelanocio!
—Cadelaévocê!
Luigi e os dois acompanhantes conseguiram separar as
litigantes.
Via-se nas mãos da loura um enorme tufo de cabelos
vermelhosquefoiatiradoaochãocomdesprezo.
A porta da rua foi aberta e a Autoridade, toda de azul,
entrou.
—O que está acontecendo aqui? Imediatamente formou-se
umafrenteunidacontraaLei.
—Estávamosbrincando—disseumdosacompanhantes.
— Era só brincadeira — interveio o proprietário, enquanto
empurrava com o pé o tufo de cabelos ruivos para baixo do
balcão.Aslutadorastrocavamsorrisosdeamabilidade.
Opolicialnãopareceuconvencido.
—Estávamosdesaída—dissealoura.—Venha,Doug.
Por coincidência estavam todos de saída. O guarda, sem
sorrir,viu-ospartir,insinuandocomoolharque,napróximavez,
nãoseriatãoleniente.Emseguidaretirou-setambém.
Ocompanheirodaruivapagouaconta.
—Vocêestábem?—perguntouLuigi,paraaruiva,enquanto
esta amarrava um lenço na cabeça. — Lou levou a melhor,
arrancandoosseuscachos!
—Nãodoeu—respondeuamoça.—Desculpeaconfusão,
Luigi—acrescentouela,sorrindo.
Comasaídadocasalobarficoupraticamentevazio.Procurei
unstrocadosnobolso.
—Ela émuitoboazinha—explicouLuigi, apanhandouma
vassouraparavarrerotufodecabeloeoscacosdevidro.
—Devetersentidoumadorhorrível—comentei,pensando
nochumaçocaídoaochão.
— Se fosse comigo eu teria gritado atéme acabar— disse
Luigi.—MasTommyémuitobacana...
—Conhece-abem?
— Ela vem aqui todas as noites. Chama-se Thomasina
Tuckerton,masaquiéconhecidaporTommy.Ricaaténãopoder
mais. O pai deixou uma fortuna para ela. Resultado: elamora
aquipertonumquartinhocobertodepercevejoseandacomeste
pessoal mulambento. Todos ricos, podiam morar onde
quisessem, mas não, o “quente” é viver num cortiço. Vá se
entenderumacoisadessas!
—Osenhornãofariaisso?
—Eu!?Nãosou tão louco—respondeuLuigi.—Só faturo
nascostasdeles.
Levantei-meparasair.
—Porquefoiabriga?—perguntei.
— Tommy conquistou o namorado da outra. Ele não vale
umabriga.
— A outra moça não parece ser da mesma opinião —
observei.
— Ah! Lou é muito romântica — disse Luigi, num tom
benevolente.
—Queromance!—quasecomenteiantesdemeretirar.
II
Umasemanadepois,maisoumenos,nacolunadeóbitosdo
jornal,eu liaseguintenota:“TUCKERTON—Dia2deoutubro
noHospitaldeFallowfield.ThomasinaAnn,20anos,filhaúnica
do falecido Thomas Tuckerton. O féretro sairá da capela do
Hospital.Pede-senãoenviarfloresnemcoroas.”
NadadefloresparaapobreTommyeadeusvidaboêmiaem
Chelsea.Sentiumagrandepenaportodasessasmoçasperdidas.
Mas me perguntei se tinha motivo para sentir pena. Como
poderiasaberseavidadelatinhasidodesperdiçada?Quemsabe
nãoseriaminhavidadepesquisador,mergulhadonoslivros,fora
domundo,queeradesperdiçada?Averdadeéqueeunãoandava
àcatadesensaçõesnovas.Masseráquenãodeveriaandar?Um
novoenfoquesobreminhavidaqueeudeveriaexaminarmelhor.
EsquecideTommyTuckertonevolteiminhaatençãoparaas
cartasquehaviarecebido.
Uma delas, daminha prima Rhoda Despard, pedia-me um
favor.Agarrei-meàincumbência,poisnãoestavacomvontadede
trabalhar,adiandominhapesquisaparamaistarde.
Pegueiumtáxiedirigi-mepáraacasadeumaamiga,aSra.
AriadneOliver,famosaescritoradenovelaspoliciais.
Milly,aempregadaeeficienteguardiãdaSra.Oliver,abriua
porta.Ao vê-la levantei as sobrancelhas comoqueperguntando
emquehumorseencontravaadonadacasa.
—Émelhor o senhor subir, Sr.Mark—disse ela.—Está
comumhumordaqueles!Talvezosenhorconsigamelhorarsua
disposição.
Subi os dois lances de escada, bati na porta e entrei sem
esperar pela resposta.O escritório da Sra.Oliver era uma sala
espaçosa, toda forrada de papel de parede, representando
pássarosexóticos.ASra.Oliver,numestadopré-esquizofrênico,
passeava de um lado para outro, resmungando. Deu-me um
rápido olhar, desinteressada, e continuou a andar, abrindo e
fechando os olhos.De vez em quando olhava pela janela ou se
apoiava na parede, sofrendo o que parecia ser um grande
espasmodeagonia.
—Mas, por que— perguntou ela ao universo— o imbecil
nãodizlogoqueviuacacatua?Porquê?Nãopodiadeixardetê-
la visto! Se ele não falar nela, a história perde o sentido. Deve
haverumasaída... devehaverumasaída...Emseguida, aSra.
Oliver gemeu, passou os dedos sobre os cabelos grisalhos e
agarrou um punhado deles com energia. De repente, como se
estivesseme vendo naquele instante, disse:—Alô,Mark! Sabe
queestouenlouquecendo?
Aslamúrias,porém,nãotinhamacabado.
—EMonica?Quantomaisfaçoelaficarboamaisirritantese
torna...umaperfeitaidiota...burra...Monica?Estenomenãolhe
vai bem. Que tal Mary? Será que faria alguma diferença? Ou
Joan?Éumnomemuitocomum.Annetambém.Susan?Játive
umaSusan.Lucia?Lucia!PossovisualizarumaLucia...cabelos
ruivos,colroulé,meiaspretas...Porquenão?
Estemomento de satisfação foi rapidamente eclipsado pelo
problema da cacatua. A Sra. Oliver voltou a andar pela sala,
pegandocoisasaesmodamesaecolocando-asnoslugaresmais
incríveis.Depoisguardoucuidadosamenteosóculos,numestojo
demadrepérola, junto comum leque chinês, e deu um grande
suspiro.
—Quebomquevocêveio!
—Muitoobrigado.
— Podia ser uma outra pessoa, uma tola qualquer que
precisadaminhapresençanumbailea fantasia,ouumsenhor
quetratedosegurodeMilly(aliás,nãoconsigofazê-laguardaras
apólicesnumlugarsó)ouobombeiro...masistojáseriademais,
nãoacha?Ouquemsabeumjornalistaquerendoumaentrevista,
só para poder perguntar: — O que fez a senhora dedicar-se à
literatura? Quantos livros escreveu? Quanto ganha por mês?
Geralmentenãoseiresponderestasperguntaseficocomcarade
idiota. Hoje naturalmente não tem importância, porque estou
enlouquecendocomestamalditacacatua.
—Querqueeuváembora?—perguntei.
—Não,fique.Precisomedistrair.
—Aceiteiesteelogiodúbio.
—Querumcigarro?—perguntou,tentandoserhospitaleira.
—Devoterummaçoporaí.Olheembaixodatampadamáquina
deescrever...
—Eutrouxecigarros,obrigado.Aceitaum?Ah!Éverdade,a
senhoranãofuma.
—Nembebo—disseaSra.Oliver.—Noquefaçomuitomal.
Eu queria ser como os detetives dos policiais americanos, que
vivemcomgarrafasdeuísqueembaixodacama;parecequeéo
suficiente para solucionar todos os problemas. Eu não acho
possível uma pessoa cometer um crime e não ser preso. Na
minha opinião, assim que se comete um crime todas as pistas
apontamparaoculpado.
—Nãoéissoqueasenhoracontaaosseusleitores.
— Nem sempre — disse a Sra. Oliver. — A parte do
assassinatoéfácil,odifíciléencobriraspistas.Oculpadopassa
abrilharquenemgásnéon.
— Quando eu leio um livro seu quase nunca acerto o
assassino.
— E o que isto me custa! — sorriu a Sra. Oliver,
amargamente.—Paracomeçar,nãoénaturalquecincoouseis
pessoasestejamnolocaldocrimequandoBéassassinado;além
domais,paraocúmulodascoincidências, todasessaspessoas
têmummotivoparaquerereliminarB...anãoserqueBsejaum
homemtãodesagradávelquequalquerumgostariadeseverlivre
dele... mas neste caso ninguém vai se preocupar em achar o
assassinoesimsoltarumprofundosuspirodealívio.
— Compreendo o seu problema — disse eu. — Mas se já
resolveutantoscasoscomplicados,vaisercapazderesolvereste
também.
— É o que eu vivo me dizendo, mas não acredito e o
resultado é que vivo em eterna agonia— gemeu a Sra. Oliver,
dandomaisumapuxadelanoscabelos.
—Parecomisso!—disseeu.—Vaiacabararrancandoum
tufopelaraiz!
—Nãodigabobagem—respondeuaSra.Oliver.—Cabelo
nãosaiassim,anãoserquandoeutivesarampo,aosquatorze
anos,eardiadefebre.Caiuumaporçãodecabelo,bemaquida
frente.Fiqueimortadevergonha.Demorouunsseismesespara
crescer de novo. É uma experiência horrível para umamulher.
Ainda ontem pensei nisto quando fui visitarMary Delafontaine
nohospital.O cabelodela está caindoaos chumaços; eladisse
quequandoficarboavaiterquecomprarumaperuca.Achoque
depoisdossessentaocabelonãocrescemais.
—Outrodiaviumagarotaarrancarocabelodaoutrapela
raiz— disse eu, orgulhoso de poder relatar um acontecimento
inédito, além de demonstrar como eu estava participando
ativamentedomundo.
—Porondevocêtemandado?
—UmcaféemChelsea.
— Ah! Parece que tudo de insólito acontece em Chelsea.
Beatniks,Sputniks,caretasquadrados...nãoescrevosobreeles
porquetenhomedodeusarasexpressõeserradas.Émaisseguro
escreversobreoqueeusei.
—Porexemplo?
— Turistas veraneando, cruzeiros pelo Caribe, hospitais,
paróquias,vendedoras,festivaisdemúsica,comitêsdesenhoras,
jovensquepedemcaronaparaconheceromundo...
Elaparouuminstanteparatomarfôlego.
—Jámepareceosuficiente—eudisse.
—Mesmoassimvocêbemquepodiamelevaraumbarem
Chelsea...paraalargarmeushorizontes—disseaSra.Oliver.
—Quandoasenhoraquiser.Hoje?
—Hojenãoposso.Estouocupadaescrevendooupreocupada
porquenãoconsigoescrever;éapiorcoisaemliteratura,embora
tudonelasejaterrível,anãoserquandovemumaidéiaquevocê
acha que vai funcionar e fica louca enquanto não sentar na
máquina.Diga-meMark, vocêachapossívelmatarpor controle
remoto?
— Como assim? Apertando um botão, emitindo um raio
mortalradioativo?
—Não,não,nadadeficçãocientífica—disseaSra.Oliver.—
Eumerefiroàmagianegra.
—Bonecosdeceracheiosdealfinetes?
—Bonecosdeceranãoseusammais—disseaSra.Oliver
com desprezo. — Não se pode negar que coisas estranhas
acontecemnaÁfricaenasCaraíbas.Éoquedizem.Contamque
certosnativosseenroscamemorrem...VoodooouJoojoo...Você
sabeoqueeuquerodizer...
ExpliqueiàSra.Oliverqueamaiorpartedascoisas,hojeem
dia,éatribuídaaopoderdesugestão. Informa-seaonativoque
ele foi condenado pelo pajé e o subconsciente completa o
trabalho.
ASra.Oliverdeuumagargalhada.
— Se alguém viesse me dar esta informação eu ficaria
encantadaesósobreviveriaparadesapontá-lo.
— A senhora tem séculos de ceticismo no seu sangue
ocidental.Nãopossuiapredisposiçãonecessária.
—Masvocêachaqueistoépossível?
—Nãoconheçooassuntoprofundamenteapontodediscuti-
lo. Por que está pensando nisso? Sua última obra-prima vai
chamar-seMorteporSugestão?
— De jeito algum. Sou fã do arsênico e do veneno contra
ratos.Ouumaboa faca.Nãosimpatizocomrevólver,porqueas
armasdefogosãogeralmenteimprevisíveis.Afinalvocênãoveio
aquiparadiscutirsobremeuslivros.
—Paradizeraverdadevimtrazerumrecadodaminhaprima
Rhoda Despard. Ela está organizando uma quermesse para a
igreja...
—Nemmefalenisso—interrompeuaSra.Oliver.—Sabeo
queaconteceunaúltimaquermesseaqueeu fui?Organizaram
um jogo chamado Caça ao Assassino e acabaram descobrindo
umcadáver.Atéhojeaindanãomerecupereidosusto!
—Nãovaiternadadisto,asenhoravaisentarnumabarraca
evenderseuslivrosautografados.
—Ah!Bom,issojáéoutrahistória.Nãovouterqueabrira
quermesse,cortandoafitasimbólica?Oufazerdiscursos?
Garantiquenão.
— Além disso será apenas por uma ou duas horas no
máximo — acrescentei, encorajando-a. — Depois deve ter um
jogodebolaouumbailecampestreou...
ASra.Oliverinterrompeu-mecomumgritoagudo.
—Achei!—exclamou.—Achei!Eleassisteatudodajanela,
ojogo,agritaria,enaconfusãoesquecedemencionaracacatua!
Meuquerido,quebomquevocêveio.Foiumavisitamaravilhosa!
—Eunão...
—Claroquenão,maseuentendoeéobastante—dissea
Sra.Oliver.—Éumahistóriamuitocomplicadaeeunãoposso
perder tempo explicando. Apesar de adorar sua companhia
prefiroqueagoraváparacasa...
—Eaquermesse?
—Voupensarnocaso.Agoranãomeamolecombobagens.
Ondetereipostomeusóculos?Afacilidadequeascoisastêmde
desaparecer...
Capítulo2
I
A Sra. Gerahty abriu a porta da sacristia com a habitual
eficiência;ofatodeouviracampainhaeconseqüentementelutar
contraaportaemperradaeraumdesafiodoqualelasempresaía
vencedora.
—Oque quer?—perguntoumal-humorada aummenino,
igualamuitosoutros,queestavaparadonaporta.Pareciaestar
resfriadopoisfungavaquandofalava.
—Éaquiacasadopadre?
—EstáprocurandooPadreGorman?
—Estão.
—Quem,onde,eporquê?
— Na Rua Benthal, 23. Uma mulher que está morrendo
pediu um padre. Quem me mandou foi a Sra. Coppins, a
senhoria.
ASra.Gerahtydisseaomeninoparaesperarefoichamaro
padre.
— Sou o Padre Gorman — disse o velho religioso. — Rua
Benthal,é?Pertodostrilhosdaestação?
—Élámesmo.
Opadreapanhouumapastaesaiucomomenino.
—VocêfalounaSra.Coppins?
— É a senhoria. Parece que aluga quartos. Uma das
pensionistas é que chamou pelo senhor. Acho que se chama
Davis...
—Davis?Nãoconheço.Porqueserá?
—Elaécatólica,sim.Dissequeumoutropadrenãoservia...
O padre fez um sinal de assentimento com a cabeça.
Rapidamente atingiram a Rua Benthal; o menino indicou uma
dascasas.
—Éali.
—Vocênãovem?
—Eunãomoroaqui.SóganheiumagorjetadaSra.Coppins
parairchamarosenhor.
—Ah!Comoéseunome?
—MikePotter.
—Obrigado,Mike.
— Não tem de quê— respondeu omenino, que se retirou
assobiando.
Apresençadamortenãopareciaimpressioná-lo.
Umamulherdecabelosvermelhos,aSra.Coppins,abriua
portaerecebeuopadre.
—Entre,entre—dissesementusiasmo.—Achoqueelaestá
péssima. Devia estar no hospital e não aqui. Já chamei a
ambulância mas sabe Deus quando pretendem chegar. Meu
cunhadoquandoquebrouapernatevequeesperarseishoras.É
umabsurdo!Medicinasocializada!Levamodinheiromasquando
seprecisadeles...
Enquanto falava, conduzia o padre, pelas escadas, até o
segundoandar.
—Oqueelatem?
— Uma gripe muito forte. Quando parecia bem melhor
resolveu sair. Ontem, quando voltou, parecia um cadáver. Foi
diretoparacamasemcomer.Tambémnãoqueriamédico.Hoje
de manhã encontrei-a ardendo de febre. Acho que pegou os
pulmões.
—Pneumonia—disseopadre.
ASra.Coppins, quase sem fôlego pelo esforço de galgar as
escadas, fez um ruído semelhante a um apito para expressar
concordância. Abriu a porta e postou-se de lado, para dar
entradaaopadre,gritandoparaadoente:
—Nãoeraopadrequevocêqueria?Cáestáele!Agoratudo
vaidarcerto.
Comestealegreprognósticoretirou-se.
Opadreentrounumquartomuitobemarrumado,mobiliado
àvitoriana.Sobreacama,pertoda janela,umamulhervirouo
rostocomdificuldade.Opadrepercebeulogoqueestavaprestes
amorrer.
— O senhor veio... não tenho tempo — disse ela, lutando
contraafaltadear.
— A maldade, a maldade... preciso... não posso morrer
assim...confessar...confessar...meuspecados.
Os olhos da doente reviraram e por uns instantes ficaram
semicerrados. Um cantochão monocórdico escapou de seus
lábios.
OpadreGormanaproximou-sedacama.Falou,comosempre
fazia,asmesmas frasesdeautoridade,apoio, fé e esperança.A
pazinvadiuoquarto;dissipou-seaagoniadorostotorturado.
Assimqueterminouaextrema-unçãoamoribundafalou.
—Deveimpedi-los...impedi-los...osenhorconseguirá.
—Fareitudooquefornecessário.Confieemmim—disseo
padrenumtomconfiante.
AambulânciachegouefoirecebidapelaSra.Coppins.
— Como sempre tarde demais! — disse ela num tom
triunfante.—Elajámorreu!
II
OpadreGormanvoltouparacasa,enfrentandoaescuridão.
O nevoeiro crescia de densidade a cadaminuto. Ele parou um
momento: “Que história impressionante”, pensou. “Seria delírio
da pobre mulher? Ou uma confissão motivada pela febre?” É
claro que existia um fundo de verdade. De qualquer maneira
seriaconvenienteanotarosnomesenquantoestavamfrescosna
memória.Olhouorelógio,epercebeuquejáestavaatrasadopara
areuniãocomosassociadosdeSãoFrancisco.
Entrounumbar,pediuumcaféesentou-se.Apalpouobolso
interno da batina. — Ah! A Sra. Gerathy havia esquecido de
costurarobolso.Comosemprealiás!Acadernetadenotas,um
lápisealgumasmoedastinhamescorregadoparadentrodoforro.
Conseguiuapanharolápisealgumasmoedas,masacaderneta,
apesar dos esforços, foi impossível. Quando o café chegou ele
pediuumpedaçodepapel.
—Esteserve?
Eraumpedaçodepapeldeembrulho.Opadreagradeceue
começouaescreverunsnomes—oimportanteeranãoesquecer
osnomes,aindamaiselequenãoconseguiaguardaronomede
ninguém.
A porta abriu-se e três rapazes entraram, fazendo uma
grandealgazarra.
O padre terminou a lista; dobrou o papel e ia colocá-lo no
bolso quando lembrou-se do furo. Resolveu colocar dentro do
sapato,comoeraseuhábito.
Um homem entrou e sentou-se num canto. O padre
bebericoumaisunsgolpesdoralocafé,pediuacontaesaiu.
O homem que acabara de entrar pareceu mudar de idéia.
Olhou o relógio como se tivesse perdido a hora e saiu
rapidamente.
O nevoeiro aumentou de densidade. O padre apressou o
passo;comoconheciabemazona,resolveutomarumatalhoque
encurtaria o caminho, ou talvez ele tivesse ouvido passos que
pareciamsegui-lo.Mas,porquê?
Apauladaoapanhoudesprevenido.Elecambaleouecaiu...
III
O Dr. Corrigan entrou na sala do Inspetor Lejeune
assobiando.
—Jáfizopadre—disse.
—Eoresultado?
—Voudeixarostermostécnicosdelado.Umaboapaulada.
Morreunahora.Oassassinoporémquistercerteza,porissofez
aqueleestrago.
—Nemfale—comentouLejeune.
O Inspetor era um homem forte, de olhos verdes e cabelos
castanhos. Apesar de parecer calmo, seus gestos, as vezes
bruscos,revelavamsuaascendênciahunguenote.
— Não havia necessidade de ter tanta certeza se fosse um
roubo.
—Efoiumroubo?—perguntouomédico.
— É o que se suspeita. Os bolsos revirados e o forro da
batinarasgado.
— Não deviam estar contando commuita coisa — disse o
médico.— Geralmente esses padres são pobres como ratos de
igreja.
— Esmagaram a cabeça do homem — disse Lejeune. —
Gostariadesaberporquê!
— Por dois motivos — disse Corrigan. — Primeiro: um
delinqüente tarado que gosta de ver sangue, espécie que
infelizmenteproliferaatualmente.
—Esegundo?
Omédicodeudeombros.
—Alguémtinharaivadopadre.Nãoépossível?
Lejeunesacudiuacabeça.
—Dejeitoalgum.Opadreeramuitoqueridonobairro,não
tinhainimigos.
Umassaltotambémnãopareceprovável,anãoserque...
— Não me diga que a Polícia já tem uma pista — disse
Corrigan.
—Nãolevaramumacoisaqueeleguardounosapato.
Corriganassoviou.
—Parecehistóriadeespionagem.
Lejeunesorriu.
—Émaissimplestalvez.Eleestavacomumbolsodabatina
furado.OsargentoPineconversoucomagovernantaqueparece
sermeiorelaxada;nãoremendavaasroupasdelecomodevia,ela
mesmaconcordou.Paranãoperderascoisasopadretinhapor
hábitoenfiardinheirooucertosbilhetesnossapatos.
—Masoassassinonãosabiadisso?
—Nempensounisso.Seéqueoqueeleestavaprocurando
eraaquelepedaçodepapelenãoalgunstrocadosparaoônibus.
—Oqueestáescritonotalpapel?
Lejeunetirouumpedaçodepapeldagaveta.
—Umalistadenomes!
Corriganexaminoualistacomcuriosidade.
ORMEROD
SANDFORD
PARKINSON
HESKETH-DUBOIS
SHAW
HARMONDSWORTH
TUCKERTON
CORRIGAN?
DELAFONTAINE?
—Vejoquemeusobrenomeestánalista—disseomédico,
levantandoassobrancelhas.
— Estes nomes significam alguma coisa para você? —
perguntouLejeune.
—Não.
—VocênãoconheceuopadreGorman?
—Não.
—Entãonãovaipodernosajudar.
—Temalgumaidéiasobreosignificadodestalista?
—UmmeninochamouopadreGorman,às7horasdanoite,
pedindoqueelefosseatenderumamulherqueestavamorrendo
equequeriaseconfessar.Opadrefoi.
—Masondeestavaessamulher?
— Nós soubemos logo. Rua Benthal 23, na casa da Sra.
Coppins. A moribunda chamava-se Davis. O padre chegou lá
maisoumenosas7h15meficoucomamulherumameiahora.
Ela morreu, assim que a ambulância chegou para levá-la ao
hospital.
—Sei.
—Emseguidaopadrefoiaumcafé.Umbardecente,pobre
epoucofreqüentado.Opadrepediuumcafé,mexeunosbolsose
certamentenãoencontrouoqueprecisavapoispediuumpedaço
de papel ao dono. Este pedaço de papel — disse Lejeune,
apontandocomodedo.
—Edepois?
—QuandoTonytrouxeocaféopadrejáestavaescrevendo.
Logo depois saiu, deixando a xícara quase cheia (Com certa
razão, diga-se de passagem). Antes porém deve ter colocado a
listanosapato.
—Quemmaisestavanobar?
— Três rapazes e um senhor que saiu sem pedir coisa
alguma.
—Seráqueeleseguiuopadre?
— Talvez. Tony, o proprietário, não o viu sair, nem notou
comoeleera.Fezumadescriçãovaga:umsujeitorespeitávelcom
umacaracomum,parecidocomtodoomundo;estaturamediana
evestidodeazul-marinhooumarrom.Nadanoslevaacrerque
tenha sido ele. Porémnão temos certeza.Estamospedindoque
as pessoas que viram o padre, àquela hora, se comuniquem
conosco.Porenquantonãoapareceuninguém,masaindaécedo.
Duas pessoas já vieram: umamulher e um farmacêutico, aliás
voufalarcomelesagora.Doisgarotinhosencontraramocaderno
do padre às 8h 15m, caído num beco perto dos trilhos da
estação.Orestovocêjásabe.
Corriganassentiucomacabeça.
—Queachadisso?—perguntou,apontandoparaalista.
—Achoqueéfundamental.
—Amulher,antesdemorrer,deuestalistadenomesparao
padre.Eleosanotouassimquesaiucommedodeesquecer.Mas
seráqueelepoderiarevelaralgocontadosobconfissão?
— Mas se a morta quisesse que seus segredos fossem
revelados? — perguntou Lejeune. — E se estes nomes têm
algumaligaçãocomumachantagem?
—Éoquevocêimagina?
—Não imaginonada, por enquanto.Éumahipótese: estas
pessoas estavam sendo achacadas. A falecida poderia ser uma
chantagista ou uma conivente. Quis confessar a fim de obter
perdão. O padre ficou encarregado de impedir que isto
continuasse.
—Edaí?
—Orestosãoconjeturas—respondeuLejeune.—Podiaser
um caso de extorsão e alguém não quisesse que o pagamento
fosse suspenso. Esta pessoa sabia que a Sra. Davis estava à
morteeiriaquererseconfessar.Oresultadofoieste.
— Por que será — perguntou Corrigan — que existe um
pontodeinterrogaçãonosdoisúltimosnomes?
—Talvezopadretivessealgumadúvidasobreeles...
—Porexemplo:MulliganemvezdeCorrigan?—perguntouo
médico,sorrindo.
—Podeser.Agora,comumnomecomoDelafontainenãohá
jeito. É o tipo do nome que a gente guarda ou esquece. O
estranho é que não existe nenhum telefone — continuou
Corrigan,examinandoa lista.—Parkinsonéumnomecomum,
Sandfordtambém,Hesketh-Dubois.Nãodeveexistirumafamília
muitonumerosacomestesobrenome.
Omédicoapanhouocatálogodeassinantes.
— J... H... Hesketh... Sra. John... Sir Isidore... Hasketh-
Dubois, Lady. Praça Ellesmere, 49. Que tal darmos um
telefonema?
—Dizendooquê?
—Nahoraagentevê—respondeuCorrigan.
—Ligue—disseLejeune.
—Como?
—Ligue—repetiuLejeune,—nãofaçaestacaradeespanto.
Lejeuneapanhouotelefoneepediuumalinhaexterna.
—Qualéonúmero?—perguntou.
—Grovesnor64578.
Lejeunerepetiuonúmeroàtelefonistaepassouoaparelhoa
Corrigan.
—Divirta-se—recomendouLejeune.
Espantado,Corrigancolocouotelefoneaoouvido.Depoisde
tocarporunsinstantesumavozofegantedemulheratendeu.
—Alô,Grovesnor64578.
—ÉaresidênciadeLadyHesketh-Dubois?
—Bem...é...
ODr.Corrigannãotinhatempoparahesitações.
—Possofalarcomela?
—Demaneiraalguma.Elamorreuemabril.
—Oh!—exclamouCorrigan, ignorandoa interlocutoraque
perguntavaquemestavanoaparelho.
DesligoucuidadosamenteeencarouLejeunecomfrieza.
—Jáseiporquevocêqueriaqueeufalassecomela.
Lejeunesorriumaliciosamente.
—Nãopodemosnosdaraoluxodenegligenciaroóbvio.
—Emabril—disseCorrigan, pensativamente.—Há cinco
meses que ela não se preocupa com chantagem ou coisas
parecidas.Elaporacasocometeusuicídio?
—Não,morreuvitimadaporumtumorcerebral.
— Vamos dar outra olhada na lista — disse Corrigan
desanimado.
Lejeunesuspirou.
— Não sabemos se esta lista tem alguma relação com o
assassinatodopadre.Elepodetersidorealmentevítimadeum
delinqüentequesóapanharemossetivermossorte.
—Vocêseimportaseeutirarumacópiadestalista?
—Não.Desejo-lhesorte!
— Você diz isto porque acha que eu não vou conseguir
descobrir mais nada do que vocês já descobriram. Vou me
concentrarnonomeCorrigan.Senhor,senhoraousenhoritacom
umgrandepontodeinterrogação.
Capítulo3
I
—Ora,Sr.Lejeune,nãoseimaisoquedizer!Jáfaleihoras
comosargento.NãoconheciabemaSra.Davis,nãoseideonde
veio.Morouaquiuns6meses,pagavaoaluguelemdiaeparecia
umapessoadistinta.Nãoentendooqueosenhorquermaisde
mim.
A Sra. Coppins parou um instante para tomar fôlego,
encarandooInspetorcomimpaciência.Este,porsuavez,sorriu
commelancoliacomoseestivessepedindodesculpas.
—Não é que eunãoqueira ajudar— falouaSra.Coppins
maiscalma.
— Obrigado. É da sua ajuda que nós precisamos. As
mulheres geralmente, por instinto, percebemmais as coisas do
queoshomens.
Elamordeuaisca.
— Ah! — exclamou a Sra. Coppins — se meu marido
estivesse aqui para ouvi-lo. Achava que eu tinha muita
imaginação,queviviainventandocoisas.Enamaioriadasvezes
eutinharazão.
—Por isso gostaria da sua opinião sobre a Sra.Davis. Ela
erainfeliz,porexemplo?
— Não, não creio. Muito trabalhadora, na minha opinião.
Metódica, como se tivesse construído a vida e agisse de acordo
comumesquema.Achoque trabalhavanumadessas firmasde
opiniãopública.Essasquevãodecasaemcasa,perguntandoo
saboneteouafarinhaqueagenteusa,quantoseganhapormês
etc.Tipodonegócioparamexeriqueiros!Atéhojenãoentendipor
que o governo ou as fábricas se interessam tanto pela vida
particular das pessoas. A conclusão desses inquéritos é
simplesmente uma resposta que todo o mundo já sabe. Mas
enfim, é a moda hoje em dia! Acho que a Sra. Davis
desempenhava bem esta função; era uma pessoa agradável e
profissional.
—Poracasoasenhoranãosabeonomedafirmaemqueela
trabalhava?
—Não.Nãosei.
—Elaalgumavezfalounosparentes?
—Não.Eusempreacheique fosseviúvaháanos.Umavez
elafalounomaridoinválidomaseunãoentreiemdetalhes.
—Dequelugarelaera?
—AchoquedoNorte.
TenhocertezadequenãoeradeLondres.
—Nãohaviaalgodemisteriosonavidadela?
LejeunehesitouantesdeperguntarcommedodequeaSra.
Coppinsfossesugestionável...ela,porém,nãoaproveitouadeixa.
—Não.Eraumamulheratébastantecomum.Aúnicacoisa
quemeintrigavaeraamala,deboaqualidade,meiousada,com
as iniciais pintadas por cima de outras. J.D... Jessie Davis. O
jota estavapintadopor cimadeumagáoudeuma.Na época
nãodeimuitabolaparaisso;afinalelapodiatercompradouma
mala de segundamão e naturalmente alterado as iniciais. Era
tudooquetinhanomundo,aquelamala!
Lejeune sabia disso e achou estranho que uma mulher
pudesse ter tão poucos objetos pessoais. Não encontraram
cartas, fotografias, cartões de identidade, talões de cheques.As
roupaseraboasenovas,parausodiário.
—Elapareciasatisfeita?
—Achoquesim.
Lejeunenotouumtomdedúvidanaresposta.
—Achamesmo?
—Nãoerabemdaminhaconta,nãoé?Euachavaqueela
ganhava bem, tinha um bom emprego, portanto devia estar
satisfeita. Não era umamulher esfuziante. É claro que quando
elaficoudoente...
—Oquehouve?
—Assimqueapareceuoresfriadoelapareceuassustada.Ia
transtornar-lheavida,disse-meela,teriaquedesmarcartantos
compromissos...Bem,masumagripeéumagripe,agentenão
podefazerdecontaquenãoestáacontecendonada.Elafoipara
a camacomumchá eumcomprimido.Eu recomendei que ela
chamasse ummédicomas não houve jeito. Ela respondeu que
para curar uma gripe bastava ficar de repouso, se cobrir e
pronto.Alémdisso, recomendouquenãochegassepertosenão
quisesseficardoentetambém.Assimqueelamelhorouumpouco
cozinhei umas coisinhas para ela. Caldo quente com torradas,
arroz doce, coisas leves. Ela ficoumuito abatida por causa da
febre,comotodoomundofica...osenhorsabe,aqueladepressão
quedáquandoacabaagripe.Elaficavasentadajuntodalareira
emedizia:—Seaomenosagentenãopensassetanto!Nãogosto
deficarparada,pensando.Étãodeprimente!
LejeunecontinuouolhandofixamenteparaaSra.Coppins.
— Emprestei umas revistas para ela, mas coisa alguma
pareciadistraí-la.Umdiaeladisse:—Setodasascoisasnãosão
o que parecem ser é melhor a gente nem saber, não é? Eu
concordei.Ai,eladisse:Nãosei,nunca tivecerteza.Sempreagi
corretamentenavida.Nãotenhodoquemerecriminar.Eudisse:
Claroquenão tem,minhaquerida.Mas,cácomigo, trapaçano
lugaremqueelatrabalhava,algoqueelativessedescobertomas
quenãotinhaligaçãoalgumacomela.
—Talvez—disseoinspetor.
—Enfim elamelhorou ou achou quemelhorou e voltou ao
trabalho.Eurecomendeiqueelaficasseemcasamaisunsdias,
maselanãomedeuatenção.Foitiroequeda.Denoitequando
ela chegou mal podia subir a escada. Eu disse que ela devia
chamarummédicomaseladissequenão.Sóseiquepioroua
olhosvistos,ficouvermelhaemalpodiarespirar.Nodiaseguinte
pediu um padre: “Um padre, depressa, antes que seja tarde
demais.” Também não servia qualquer padre, tinha que ser
católico.Paradizeraverdadeeunemsabiaqueelaeracatólica...
O inspetor Lejeune havia encontrado um crucifixo namala
daSra.Davis,mas achoumelhornão fazer comentários coma
Sra.Coppins.
—AíeuviMikenaruaepediqueelefossechamaropadre
Gorman na igreja. Telefonei para o hospital e pedi uma
ambulânciasemfalarcomela.
—Foiasenhoraquemlevouopadreatéláemcima?
—Foi.Deixeiosdoissozinhos.
—Ouviuelesdizeremqualquercoisa?
— Não sei bem. Eu estava apresentando o padre a ela,
dizendoquetudoiadarcerto, tentandoalegrá-la,sabecomoé?
Mas, enquanto fechava a porta ouvi ela dizer qualquer coisa
sobremaldade. Falou tambémde um cavalo, talvez de corrida.
Eu, às vezes, jogo no turfe, mas já ouvi falar que há muita
malandragemnestenegócio...
— Maldade! — repetiu Lejeune, impressionado com a
palavra.
— Os católicos precisam confessar os pecados antes de
morrer,nãoé?Poisfoioqueelafez.
Lejeunenãotinhadúvidassobreasintençõesdafalecida.O
queintrigavasuaimaginaçãoeraapalavra:maldade.
Equemaldadeseriaestaquejustificariaatéoassassinatode
umpadre?
II
Dos outros três inquilinos pouco se conseguiu apurar. O
primeiroeosegundo,umbancárioeumvelhocaixeirodeuma
sapataria, só conheciam a Sra.Davis de vista. A terceira, uma
moçadevinteedoisanos,trabalhavanumalojaemalconheciaa
falecida.
AmulherquetinhavistoopadreGorman,narua,nanoite
docrime,nãopôdeauxiliaraPolícia.Conheciaopadredevista,
pois não freqüentava aquela igreja, mas tinha visto o mesmo
entrarnumcafé.
Um farmacêutico chamadoOsborne,donodeuma farmácia
naRuaBaron,foioúnicoquepôdedaràpolíciaumapistamais
concreta. Osborne era um homem pequeno, de meia-idade,
careca,deóculos,derostoredondoeingênuo.
—Boa noite, inspetor. Pode entrar— disse o Sr. Osborne,
abrindoatampadobalcãoparaLejeune.
Passaramporumquarto,ondeumrapazdeaventalbranco
preparavauns líquidos, engarrafando-os emvidrosde remédios
com a rapidez de um feiticeiro profissional. O Sr. Osborne
conduziu Lejeune a uma saletamobiliada com duas poltronas,
uma mesa e uma escrivaninha. Em seguida, o farmacêutico
puxouumacortinaesentou-seaoladodeLejeunecomumarde
espião profissional. Seus olhos brilhavam de antecipação e
excitamento.
—Acontecequeestouemcondiçõesde lheajudar.Foiuma
noite fraca,aquinafarmácia,devidoaomautempo.Amocinha
estavaatrásdobalcão, pois quinta-feira ficamosabertos até as
oitohoras.Onevoeirovinhabaixandoearuaestavaquasesem
movimento. Fui até a porta, para ver melhor o tempo, que
segundoasprevisões iabaixar. Fiqueiuns instantes olhandoa
rua pela vitrine, despreocupado com a farmácia... tinha uma
freguesa só, querendouns sais de banho e cremes de limpeza,
coisas que a balconista sabe atender direito. Aí vi o padre
Gorman,vindodooutroladodarua.Euoconheciadevista,aliás
quecoisabrutalfoiestecrime!Atacarumhomemtãodistinto.Lá
vai o padre, pensei, cá comigo. Ele ia indo em direção à Rua
Oeste, quase na esquina dos trilhos da estrada de ferro. Um
pouco atrás dele, vinha vindo um homem. Não me ocorreria
prestaratençãoseelenãotivesseparadobruscamente,quasena
portadafarmácia.Nãoentendiporqueeleparou,maseunotei
que o padre, um pouco adiante, também tinha diminuído o
passo;nãochegouaparar,mascaminhavacomoseestivessetão
absortoemseuspensamentosqueaté tivesseesquecidodeque
estava andando. O padre voltou a apertar o passo e o homem
também,sóquedestavezcommaisdecisão.Pensei—seéque
pensei em alguma coisa — devia ser alguém que conhecia o
padredevistaequeresolverafalarcomele.
— Quando na verdade é possível que estivesse seguindo o
padre?
— Agora tenho certeza, mas naquela noite não dei mais
atenção ao fato. Com o nevoeiro perdi os dois de vista, logo
depois.
—Osenhorseriacapazdedescreveressehomem?
Lejeunepareciahesitante.Suaexperiêncialhediziaqueesse
tipodedescriçãogeralmente era falhoou impreciso.Mas, oSr.
Osborneeramaisobservadordoqueodonodocafé.
—Achoquesim—disseofarmacêutico,calmamente.—Era
umhomemalto...
—Alto?Dequealtura,maisoumenos?
—Ummetroeoitentaaummetroeoitentaequatro...poraí.
Talvezfosseatémaisalto,poiseramuitomagro.Osombrosmeio
caídoseumpomodeAdãomuitopronunciado.Sobochapéuum
cabelo bastante comprido, cinzento, e um nariz bem adunco.
Naturalmentenãopudeveracordosolhos.Sóovideperfil.Pelo
jeitodeandardeveterpertodeunscinqüentaanos.Umapessoa
maisjovemsemovimentadeoutramaneira,commaisagilidade.
Lejeunementalmente relembrou a distância da rua para a
farmácia e duvidou da eficácia da informação. Duvidou
seriamente,poisestetipodedescriçãomuitoprecisasópoderia
significar duas coisas: uma imaginação muito fértil, que ele já
conhecia de sobra, principalmente das testemunhas femininas,
mestras em criarem assassinos de acordo com seus desejos e
fantasias, mas facilmente elimináveis pelo número espúrio de
detalhes: olhos arregalados, sobrancelhas cerradas, queixos
prognáticos,ouardeferocidadeanimal.Asegunda,quepoderia
ser o caso do Sr. Osborne, era fantasticamente real e precisa
para ser verdadeira. Mas quem sabe o Sr. Osborne fosse um
homem que observa as coisas desinteressadamente e se
preocupacomosmínimosdetalhes?
Lejeune pensou novamente na distância entre a vitrine e a
rua.OlhoucalmamenteparaOsborne.
—Osenhorseriacapazdereconheceressehomemseovisse
novamente?
—Claro—respondeuOsborne,confiante.—Nuncaesqueço
umafisionomia.Éomeupassatempo.Sempredissequeseum
desses envenenadores de esposa viesse a minha farmácia
comprarumpacotinhodearsênico,euseriaatestemunha-chave
dapromotoria.Aliás,sempredesejeiqueissoacontecesse.
—Masaindanãoaconteceu?
— Ainda não — admitiu Osborne, contrariado. — E não
acreditoqueváacontecer.Conseguiumbompreçopelafarmácia
e quando fechar o negócio vou me aposentar. Vou me mudar
paraBournemouth.
—Afarmáciaestánumbomponto—comentouLejeune.
—Éumlugardeclasse—disseOsbornecomorgulho.—Já
estamos aqui a uns cemanos. Antes demim, erameupai e o
meu avô.Umnegócio de família, bastante rendoso.Quando eu
era jovem, porém, me rebelei. Não queria ser farmacêutico.
Queriaserator,tinhacertezadequeseriaumgrandeator.Meu
painãotentourefrearminhavocação.—Vêsedácerto,filho!—
disse-meele.—VádescobrirquenãoéSirLaurenceOlivier!Ele
tinha razão... era um homemmuito inteligente. Fiz teatro uns
meses e voltei para casa. Com o tempo passei a gostar do
negócio,ameorgulhardele.Nóssempretivemosmercadoriade
primeira,podemosestarforademodamasvendemosqualidade.
Osbornesacudiuacabeça.
—Hojeemdia—prosseguiuele,—umfarmacêuticoquese
preza não se interessa mais por isto. Todas estas loções de
toalete.Sea gentenãocomprar,não fatura;metadedos lucros
vem desta porcaria: pó, batom, creme, shampoo, estojos de
maquilagem.Eunãolidocomisso.Boteiamocinha,lánafrente,
para tratar do assunto. Não é como antigamente, que o
farmacêutico aviava pessoalmente todas as receitas. Contudo,
como guardei um bom dinheiro, vou vender bem a farmácia.
Paguei aprimeiraprestaçãodeumacasinha emBournemouth.
Meu lema é: “Aposentar-se enquanto é tempo” — continuou
Osborne. — Tenho vários passatempos: coleciono borboletas,
adoropássaros,jardinagem(estoucheiodelivrossobreplantas)e
gostodeviajar.Talvezeufaçaumcruzeiroporumdesseslugares
exóticos.
Lejeunelevantou-se.
—Bem,desejo-lhesorte—disseoinspetor.—Seporacaso,
numadestasviagens,osenhorencontrar...
— Comunico-lhe imediatamente, é claro — interrompeu
Osborne. — Pode contar comigo, como já disse, sou ótimo
fisionomista. Estarei sempre alerta e paramim será umprazer
entregarumassassinoaosbraçosdalei.
Capítulo4
NarrativadeMarkEasterbrook
I
Hermia Redcliffe e eu fomos ao teatro assistir a Macbeth.
Quandosaímos,choviaacântaros.Hermiacomentou,semrazão,
quesemprequeíamosaoteatrochovia.
—Vocênuncareparou?—perguntouela.
Discordei, comentandoque ela invariavelmente só lembrava
àsvezesquechoviaquandoiaaoteatro.
—NosfestivaisdemúsicadeGlyndebourne—disseHermia,
quandoentramosnocarro,—doumuitasorte.Tudoperfeito!A
música,osjardinsemflor,principalmenteoscanteirosdecravos
brancos...
FalamossobreoFestivalporunsmomentos.
—VamostomarcafénoCanal?
—Porquê?Queidéia!PenseiqueíamosaoFantasie.Depois
devertantosangue,precisamoscomerbem.Shakespearemedá
sempremultafome.
—Wagnertambém.Ossanduíchesdesalmãodefumadoque
servemnos intervalosnãodãoparaogasto.Pergunteise íamos
aoCanalporquevocêestátomandoaestradadeDover.
—Masprecisamosdaravolta—protestei.
—Mas você já deu duas voltas. Já estamos na estrada de
Kent.
Examineibemasindicaçõesdaestradaepercebique,como
sempre,Hermiaestavacomarazão.
—Sempremepercoporaqui—disseeu.
— É confusomesmo— disse Hermia.— Temos que dar a
voltapelaPontedeWaterloo.
Assim que tomamos o rumo certo, continuamos a discutir
sobre a peça. Minha amiga Hermia Redcliffe era uma bonita
moçade vinte e oito anos,deumabeleza clássica,perfil grego,
cabelos castanhos. Minha irmã a chamava de “A Garota de
Marte”, enfatizando as aspas num tom que me irritava
sobremaneira.
No restaurante, fomos recebidos com a costumeira
hospitalidade; o Fantasie é um restaurante bastante popular,
ondeasmesassãocolocadasbempertoumasdasoutras.Assim
que sentamos fomos cumprimentados efusivamente por David
Ardingly, um professor de História da Universidade de Oxford,
que,emseguida,nosapresentousuaacompanhante,umamoça
muito bonita que exibia um complicadíssimo penteado e um
simplíssimo decote. Tinha uns enormes olhos azuis, uma boca
sensual, eternamente entreaberta e, como todas as namoradas
de David, a mentalidade e a inteligência de uma garota de 8
anos. David, um jovem brilhante, só conseguia relaxar em
companhiademulheresquasedébeismentais.
—Minha namorada favorita, Poppy— disse ele.— Poppy,
esteéMarkEasterbrookeHermiaRedcliffe,umcasalmuitosério
eintelectual.Prestemuitaatençãonoqueelesdizem.Acabamos
de ver uma revista chamada: Agora a Coisa Vai! Uma beleza!
ApostoquevocêsforamverShakespeareouIbsen.
—Macbeth.
—OqueachoudadireçãodeBatterson?
— Gostei — respondeu Hermia. — A iluminação é muito
interessanteeacenadobanqueteéespecialmentebemmontada.
—Eoquedizemdasbruxas?
—Comosemprehorríveis—respondeuHermia.
Davidconcordou.
—Éinevitáveloelementopantomímiconestascenas—disse
David.—Astrêsbruxas,pulandoesecomportandocomooRei
Maudeumapeçainfantil.AgenteficaesperandoqueaFadaBoa
apareçaequebreoencantocomsuavarinhadecondão.
Rimos,masDavid,sempremuitoobservador,perguntou:
—Emquevocêestápensando?
— Nada — respondi. — É que outro dia estava refletindo
sobreapantomima,pensandonoReiMauenaFadaBoa...
—Aproposdequoi?
—NumbaremChelsea...
— Como estamos para frente! Você em Chelsea... é lá que
Poppydeviair.Dizemqueasmilionáriascasamcomosgigolôs...
—Mas eudetestoChelsea—protestouPoppy.—Gostodo
Fantasie,adoroacomida.
—VivaPoppy!Alémdomaisvocênãoésuficientementerica
para morar em Chelsea. Fale mais sobre Macbeth e sobre as
bruxas,Mark.Seeufossedirigirestapeça,seicomoapresentaria
asbruxas.
David,nostemposdeestudante,tinhafeitosucessonoteatro
universitário.
—Comoseria?
—Euasapresentariacomotrêsvelhinhascomuns.Comoas
feiticeirasdascidadesdointerior.
— Como, se hoje em dia não existem mais feiticeiras? —
perguntouPoppy.
— Você diz isto porque mora em Londres. Em qualquer
cidadedointeriordaInglaterraexisteumafeiticeira.Hásempre
umaSra.Blackaquemosmeninosnãodevemincomodareque
recebeovosebolosdavizinhança.Sabemporquê?—perguntou
David, sacudindoo indicador,numgestodeameaça.—Porque
se ela se zanga comalguém, a vacadeixadedar leite, a praga
invadeopomarouofilhodaSra.Smithtorceopé.Étacitamente
aceitoquenãosedevecontrariaraSra.Black.
—Vocêestábrincando!—dissePoppy.
—Nãoestounão.Diga,Mark,seeunãotenhorazão?
— Hoje em dia estas superstições já acabaram— declarou
Hermia,incrédula.
—Nãonazonarural.Oquevocêacha,Mark?
— Creio que tem razão — respondi embora nunca tenha
moradonointerior.
—Nãovejocomo,emMacbeth,seriapossívelapresentaras
bruxascomosefossemvelhasdeumasilo.Afeitiçariaécercada
deumaatmosferasobrenatural—disseHermia.
—Pensebem—insistiuDavid.—Oproblemaéigualaoda
loucura.Seapareceemcenaumator fazendo-sede louco,com
oscabelosdesgrenhados,gritando,ninguémficacommedo.Uma
vez, fui entregarumacartaaummédico,numasilode loucos.
Pediram que eu esperasse pela resposta numa sala de visitas
ondeencontreiumavelhinhamuitosimpática,tomandoumcopo
de leite. Ela puxou prosa comigo, fazendo alguns comentários
bastante banais. De repente ela debruçou-se para frente e
perguntou:Ésuaacriançaqueestáenterradanestalareira?Em
seguida sacudiu a cabeça e concluiu: Doze e dez em ponto!
Sempre a mesma coisa a esta hora. Faça de conta que não
percebeosangue.Oquemaismeapavoroufoiotomnaturaldo
comentário!
— E tinha mesmo uma criança enterrada na lareira? —
perguntouPoppy.
Davidfingiunãoouvir.
— Veja as médiuns, por exemplo. Passam do transe, em
salas escuras,batidasnamesa, transformando-se emsenhoras
distintas, arrumadas que ouvem novela, cozinham para os
maridos.
— Então, para você as bruxas — disse eu — seriam três
velhas escocesas que praticam suas seitas em segredo,
murmurandomaldições em torno de um caldeirão, conjurando
espíritos, mas aparentando ser boas donas de casa. Acho que
poderiacausarumbomefeito!
—Se é que você conseguiria que algum ator representasse
destaforma—disseHermia.
—Você tem razão—disseDavid.—Qualquer sugestãode
loucuraemumapeçaeimediatamenteoatorresolvedartudoo
que tem. Já viram algum ator morrer de repente em cena?
Nunca! Eles caem, se esgoelam, viram os olhos, apertam o
coração, se descabelam! Que você achou da interpretação de
Fielding comoMacbeth? A opinião dos críticos parece bastante
dividida.
— Eu achei sensacional! — disse Hermia.— Acho que ele
representou divinamente a luta entre o medo e o amor. Suas
inflexõesmepareceramperfeitas.
— Shakespeare ia levar um susto se visse suas peças
representadashojeemdia—comentei.
—Osautoressempresesurpreendemcomasinterpretações
dassuaspeças—disseHermia.
—NãofoiumtaldeBaconquerealmenteescreveuaspeças
deShakespeare?—perguntouPoppy.
— Esta teoria já saiu de moda — disse David,
carinhosamente.—OndevocêouviufalaremBacon?
— Foi o inventor da pólvora, ora essa! — exclamou Poppy
numtomdetriunfo.
Davidolhouparanós.
— Compreendem agora por que amo esta mulher? —
perguntou. — Sempre sai com uma novidade. Não confunda
FranciscomRogerBacon,meubem!
—Achei interessante—prosseguiuHermia—que Fielding
representasse tambémopapeldo terceiroassassino.Já tinham
feitoissoantes?
— Creio que sim — respondeu David. — No tempo de
Macbethéquedeviaserbom.Seagentequeria se ver livrede
alguém bastava chamar um sicário. Pena que não possamos
maisfazerisso.
—Quemdisse?— perguntou Poppy.—E os gangsters, os
capangas,opessoaldeChicago?
—Nãoestoumereferindoaquadrilhasorganizadas—disse
David.—Estoumereferindoagentecomumquegostariadese
ver livre de algum... um sócio incômodo, uma tia rica e
centenária,ummaridoonipresente.Imaginemseagentepudesse
telefonar para uma loja e pedir: Quer mandar dois bons
assassinos,porfavor?
Rimoscomapiada.
—Masachoqueistoéfeitohojeemdia—dissePoppy.
Amesainteiravoltouosolhosparaela.
—Comoassim?—perguntouDavid.
—Achoquehojetambémsefazisso,sóquesaimuitocaro
—murmurouPoppy,arregalandoosolhos
—Explique-se—exigiuDavid.
Poppypareceuconfusa.
— Acho que fiz confusão. É aquela história do Cavalo
Amarelo.
—CavaloAmarelo?
Poppycorouatéaraizdoscabelos.
—Besteiraminha— disse, abaixando os olhos.— Alguém
deve ter falado numa coisa parecida e eu acabei fazendo uma
grandeconfusão.
—Comaumasobremesa,meuamor—disseDavid.—Você
deveestarprecisandodeaçúcar.
II
Uma das coincidências mais estranhas da vida é quando
ouvimos pela primeira vez falar num assunto e vinte e quatro
horas depois omesmo tema volta à baila. Foi o que aconteceu
comigonodiaseguintedemanhã.
Otelefonetocou.
—Flaxman73841—respondi.
Ouviumaespéciedegemidopeloaparelho.
— Pensei sobre o assunto e resolvi ir — disse uma voz
estertorantenumtomdedesafio.
— Ótimo— disse eu perplexo, tentando ganhar tempo até
identificaramisteriosavoz.
—Alémdomais—continuouamulhermistério,asortenão
bateduasvezesnamesmapessoa.
—Asenhoratemcertezadequeligouonúmerocerto?
—Claro.VocênãoéMarkEasterbrook?
—Ora,éaSra.Oliver—exclameitriunfante.
—Como,vocênãoreconheceuminhavoz?Nempenseinisso!
Estoutelefonandoparafalardaquermesse.Ireiautografarmeus
livrosseRhodaquiser.
—Que ótimo. A senhora certamente ficará hospedada com
eles!
— Só se garantirem que não haverá festas e coquetéis —
disse a Sra. Oliver, apreensiva. — Tenho horror a reuniões
sociaisondeaspessoassesentemnaobrigaçãodeelogiarmeus
livros e perguntar se ainda estou escrevendo. Se agradeço os
elogiosparecequeestoudandobomdiaouatélogo.Esperoque
nãoprecisetambémtomardrinquesnoCavaloCor-de-Rosa.
—CavaloCor-de-Rosa?
—Essesbaresmodernostipo inferninho.Senãoforcor-de-
rosaéamarelo!
—OqueasenhoraquerdizercomCavaloAmarelo?
—Nãoéonomedaboate local?Ouserácor-de-rosa?Oué
outraloucuraqueeuimaginei...
—Comovaiacacatua?—perguntei.
—Acacatua?—perguntouaSra.Oliver,atônita.
—Eojogodefutebol?
—Francamente—disseaSra.Oliver,indignada.—Ouvocê
estáloucoouandoubebendo.Queconversa!Cavalocor-de-rosa,
cacatua,jogodefutebol!
Desligou o telefone. Fiquei uns instantes pensando sobre o
Cavalo Amarelo quando o telefone tocou. Era Soames White,
famosoadvogado,meinformandodeque,segundootestamento
da minha madrinha Lady Hesketh-Dubois, eu deveria escolher
trêsquadrosdacoleçãodafalecida.
—Nadade grande valor, é claro—disseoDr.Soames,no
seu tradicional tom de derrotismo. — Mas sei que o senhor
desejariaguardaralgumarecordaçãodasuamadrinha.
— Ela tinha umas aquarelas com cenas indianas muito
bonitas — disse eu. — Creio que o senhor me escreveu sobre
isso,masachoquemeesqueci.
— É verdade — disse o advogado. — Porém o inventário
chegou ao fim e temos que distribuir as peças aos herdeiros
antes do leilão. Por favor, passe pela casa de LadyHesketh na
PraçaEllsmere.
— Pode deixar — disse eu— vou agora mesmo. Afinal de
contasnãoestavacomamenorvontadedetrabalhar.
III
Comas trêsaquarelasdebaixodobraço, retirei-medacasa
daminhatia.Naentradaesbarreicomumcavalheiroeenquanto
pediadesculpaspercebiquesetratavadeumvelhoconhecido.
—Corrigan?—exclamei.
—Ora...MarkEasterbrook?
Tínhamos sido colegas emOxford,mas não nos víamos há
unsquinzeanos.
—Quandoesbarreiemvocê,acheiqueoconhecia,masnão
sabiadeonde—disseCorrigan.—Voltaemeialeioseusartigos
nojornal.Sãoexcelentes!
—Evocê,continuafazendopesquisas?—perguntei.
Corrigansuspirou.
—Muitopouco.Saimuitocaroporcontaprópria...anãoser
queapareçaummilionárioquequeirafinanciarmeusestudos.
—Aindasobreosparasitasdofígado?
— Que memória! Não, esse trabalho eu abandonei.
Atualmente me dedico às propriedades das secreções das
glândulas mandarianas. Você naturalmente não sabe o que é
isso! Mas tem uma grande relação com o humor, apesar de
aparentementenãoserviremparanada.
Corriganfalavacomoentusiasmodeumcientista.
—Porqueesteinteressepelasglândulas?
—Bem—respondeuCorrigan,quasesedesculpando.—Eu
acho que elas influenciam o comportamento. Para ser mais
específico, paramim essas glândulas funcionam como o fluido
dos freiosdeumautomóvel. Senãopomos fluido os freiosnão
funcionam.Nossereshumanos,umadeficiênciadestassecreções
poderáounãotransformá-lonumassassino.
Deiumassobiodeadmiração.
—Masaondevaipararopecadooriginal?
—Seilá—respondeuCorrigan.—Seiqueospadresnãovão
gostar desta história. Até o presente não consegui interessar
pessoaalgumanestateoria.
— Estou trabalhando comomédico legista da Polícia. Para
mimé interessanteporque encontro vários tiposdeassassinos.
Se quiser se aborrecer mais um pouco eu o convido para
almoçar.
—Comprazer—respondi.—Masvocênãoiaentrar?
—Nãopropriamente,euiasódarumaespiada.
—Temumaserventetomandoconta.
—Foioquepensei.Estouquerendosaberumacoisasobrea
falecidaLadyHesketh-Dubois.
—Achoquepossoinformá-lomelhordoqueaservente.Ela
eraminhamadrinha.
— É mesmo? Que sorte a minha! Onde vamos almoçar!
ConheçoumrestaurantenaPraçaLowndesqueserveumasopa
demariscosmaravilhosa.
Fomos ao restaurante indicado por Corrigan. Os garçons,
vestidos de marinheiros franceses, nos serviram um enorme
bouillabesse.
— Está ótimo — comentei. — Diga, Corrigan, o que quer
sabersobreminhamadrinha?Eporquê?
—Éumahistóriabastante longa—respondeuCorrigan.—
Primeirodescrevasuamadrinha.
Fiqueiunsinstantespensativo.
— Era uma senhora convencional, tipo viúva vitoriana. O
marido tinha sido ex-governador numa das ilhas. Era rica,
gostavadeviverbem;costumavapassaro invernonoEstoril.A
casa era horrenda, repleta de mobília vitoriana e da mais
hedionda coleção de prata da Inglaterra. Lady Hesketh-Dubois
não tinha filhos mas cuidava de um casal de poodles. Era
dogmáticaereacionária,boamascontraditória.Sabiasempreo
quequeria.Quemaisquersaber?
—Nãosei—disseCorrigan.—Vocêachaqueelaseriacapaz
deservítimadeumachantagem?
— Chantagem? — perguntei espantado. — Não posso
imaginarcomo!Afinal,oquehouve?
Soube então, pela primeira vez, das circunstâncias que
envolveramocrimedopadreGorman.
— A lista de nomes, deixe-me ver— disse eu, apoiando a
colhernoprato.
—Estaaquiéumacópia.
Pegueiopapel.
—Parkinson?Conheço dois Parkinsons. Arthur que entrou
na Marinha e Henry que trabalha no Ministério. Ormerod...
conheço um major Ormerod Tuckerton? Será Thomasina
Tuckerton,poracaso?
Corriganolhouparamimcurioso.
—Podeser.Oquevocêsabesobreela?
—Nada.Lianotíciadamortedelanojornal.
Corrigansuspirou.
—Shaw...conheçoumdentistachamadoShaw—disseeu,
prosseguindo a leitura da lista. — Além de Jerome Shaw...
Delafontaine... ouvi este nome recentemente, não me lembro
onde.Corrigan...serávocê?
—Desejo ardentemente quenão. Tenho a sensação de que
quemestánestalistatemosdiascontados.
—Podeser.Porquevocêpensouemchantagem?
— Foi uma sugestão do Inspetor Lejeune. Parecia a razão
maisprovável... sebemquepossa seruma listade traficantes,
espiões, contrabandistas, enfimqualquer coisa.Aúnicapista é
que a lista é tão valiosa que para consegui-la cometeram um
assassinato.
— Você sempre se interessa pelo lado policial do seu
trabalho?—perguntei.
Corrigansacudiuacabeça.
—Não.Meu interesseénocaráter,nodesenvolvimento,na
criaçãoenasglândulasdoscriminosos.
—Porqueesteinteressenestalistadenomes?
—Nemeumesmosei—respondeuCorrigan,vagarosamente.
— Talvez por constar nela o meu sobrenome. Sempre estarei
dispostoadefenderonomedosCorrigan.
— Se está disposto a defender quer dizer que acha que os
componentes desta lista são vítimas e não agressores.
Convenhamosquetantopodemserumacoisacomooutra...
—Vocêtemrazão.Oestranhoéestepressentimentodeque
algoiráacontecercomessaspessoas.Outalvezalgorelacionado
comopadreGormanaquemeuconhecialigeiramentemassabia
ser um sujeito respeitado e querido pela congregação. Não
consigotirardacabeçaaidéiadequeparaeleestalistaerauma
questãodevidaoudemorte...
—EaPolíciaoqueacha?
—Essas coisas levam tempo.Verificam todososdetalhes...
as discrepâncias. Estão verificando as informações da mulher
quechamouopadre.
—Edescobriram?
—Até agora, nada. Era viúva. No começo pensamos que o
falecidomarido tivesse alguma relação com corridas de cavalo,
mas não era verdade. Ela trabalhava em consultas de opinião
pública,umafirmapequenamasconhecida.Opessoal lánãoa
conhecia bem, só sabiam que ela era proveniente do Norte da
Inglaterra. A única coisa estranha sobre ela era a pequena
quantidadedeobjetospessoaisquepossuía.
Encolhiosombros.
—Éummundodesolitários,meucaroCorrigan,muitomais
doquenósimaginamos.
—Achoquetemrazão.
—Masenfim,vocêresolveufazeralgumasaveriguações?
— É. Hesketh-Dubois por exemplo é um sobrenome raro.
Penseiperguntarcoisassobrea...—Corrigan fezumapequena
pausa — mas pelo que você já disse não tem coisa alguma a
descobrir.
— Minha madrinha não era viciada, nem traficante de
entorpecentes— frisei.—Certamentenão era espiã e sua vida
particular era tão imaculada que não oferecia campo para
chantagens.Nãoseiporqueelaestarianesta lista... lembro-me
também de que elamantinha as jóias num cofre do banco, de
maneiraquenãopoderiaserassaltada...
—ExistemoutrosHesketh-Dubois?
—Elanãotinhafilhos.Sóumsobrinhoeumasobrinhamas
usamoutrosobrenome.Meupadrinhoerafilhoúnico.
Corriganagradeceuazedamenteminhacolaboração.Olhouo
relógio,dissequeestavaatrasadoparaumaautópsiaepartiu.
Fui para casa, mas não consegui trabalhar. Finalmente
telefoneiparaDavidArdingly.
— David? Aqui é Mark. Lembra-se daquela pequena que
estava com você outra noite? A Poppy? Como é o sobrenome
dela?
— Vai querer cantar minha garota? — perguntou David,
dandoumagargalhada.
—Vocêtemtantas—respondi—quepodiamecederuma...
—Masvocêjátemumagarota,penseiquefossecasarcom
ela...
—Casar!?
Por uns instantes pensei no assunto. Meu relacionamento
comHermiasópoderiaserdescritoassim:casamentoàvista.E
noentanto,aidéiamedeprimiaemboraeusempreachasseque
iria, um dia, casar-me com ela. Afinal... gostava de Hermia,
tínhamostantaafinidade...masotédioquemeinvadiunaquele
momentomefezbocejar.Vidiantedosolhosmeufuturocomela;
indoao teatro assistir a peças clássicas, discussões sobre arte,
música.É, semdúvidaHermia seriaminha companheira ideal.
Umaluzinhaacendeu-senaminhamente:Masquetédio!Fiquei
chocadocomminhafrieza.
—Adormeceu?—perguntouDavid.
—Claro quenão; para ser sincero, achei sua amiga Poppy
umrefrigério.
—Boapalavra...precisaporémtomá-laempequenasdoses.
OnomedaditaéPamelaStirling,trabalhanumacasadeflores
muitochiqueemMayfair, vocêconheceessas lojas!Trêsgalhos
secos, uma tulipa desfolhada e uma folha de louro pintada de
purpurina,pelomódicopreçodecentenasdelibras.
Daviddeuoendereço.
—Leve-aparajantar,édivertida—recomendouele.—Vão
passarumanoitemaravilhosa.Elanãosabenada,nãoentende
de nada e não pensa em nada. Acreditará em tudo que você
disser,masnãoavanceosinalporqueelaémoçadefamília.
Edesligou.
IV
Cruzei osumbrais da LojaEstudosFlorais Ltda. com certo
receio. Um forte aroma de flor de gardênia invadiu minhas
narinas quase me asfixiando; várias moças, vestidas de batas
verde alface, absolutamente iguais a Poppy, atendiam à ilustre
clientela.Nomeiodaconfusãoconsegui,finalmente,identificá-la.
Poppy estava ocupada, escrevendo com certa dificuldade o
endereço de uma cliente. Em seguida, debateu-se um certo
tempocomotroco.
—Nósnosencontramosasemanapassada—disseeu,me
aproximando.—SouamigodeDavidArdingly.
— Queria lhe fazer uma pergunta — disse eu, sentindo o
coração bater, — mas para não tomar muito seu tempo seria
aconselhávelqueeucomprasseumasflores.
—Recebemoshojeestasmaravilhosasrosas—dissePoppy,
mecanicamente.
— Que tal estas amarelas?— perguntei.— Quanto está a
dúzia?
—Baratíssimo—respondeuPoppy,numtomprofissional.—
Cincoshillings,cada.
Engoliemsecoepedimeiadúzia.
—Comfolhasdelouro?
Olhei as folhas com certa dúvida e preferi uma folhagem
menosviçosa,oquenãopareceuagradarmuitoaPoppy.
— O que eu queria saber — disse eu, observando Poppy
arrumarcanhestramenteoramoderosas—serelacionacomo
CavaloAmarelo.
Como se tivesse levadoum jato de água fria, Poppy deixou
cairasrosasnochão.
—Gostariadesabermaioresdetalhes—insisti.
Poppycontrolou-seeapanhouomaçodochão.
—Oquê?
—GostariadesaberalgosobreoCavaloAmarelo.
—Quecavaloamarelo?Nãoseioqueéisto!
—Masfalamosneleoutranoite.
—Eu!?Nunca!Jamaisouvifalarnisso.
—Quemfoiquecontouavocêestahistória?
Poppyprendeuarespiração.
— Não sei do que está falando. Além do mais estamos
proibidasdeconversarcomosfregueses;quermedarodinheiro
porfavor?
EntregueiodinheiroaPoppy,elamedevolveuo troco,mas
noteiquesuasmãostremiam.Quandoolheinovamenteparaela
viqueestavaocupadacomoutrofreguês.Saídalojadevagar.No
caminho me dei conta de que ela tinha feito o troco errado,
devolvendomuitomaisdoquedevia.Penseinabelezaopacado
seurostoesorri...seusolhosrevelaramalgo...
—Medo—pensei.—Pavor!Masporquê?Porquê?
Capítulo5
NarrativadeMarkEasterbrook
I
—Quealívio!—suspirouaSra.Oliver.—Tudo sepassou
semproblemas...
A quermesse organizada por Rhoda tinha ocorrido como
todasasquermessesdomundo.Aansiedadeinicialemrelaçãoà
temperatura; as eternas discussões sobre a colocação das
marquises;apreocupaçãosobreofornecimentodedocesetc....
TudoresolvidoacontentoporRhoda.
Outra preocupação dos organizadores concentrou-se nos
cachorros de Rhoda que periodicamente ameaçavam irromper
por entreasbarracaseos convidados.Por fimaquermesse foi
inaugurada com a indefectível presença de uma estrelinha de
cinema coberta de peles que encantou os presentes com sua
belezaeamabilidade.Claroquefaltoutroco,queasbebidasnão
estavam bastante geladas, nem foram suficientes para os
consumidores. À noite, as mesmas quadrilhas e os fogos de
artifício.
—Esteanorendeumaisdoqueoanopassado—comentou
Rhoda.
—Oqueeuachofantástico—comentouaSrta.Macallister,
a governanta escocesa de Rhoda — é a facilidade com que
Michael Brent descobre o mapa do tesouro. É o terceiro ano
consecutivo que isto acontece! Será que alguém não lhe dá a
pista?
—LadyBrookbankganhouumporquinho—disseRhoda.—
Pelacaradelaachoquenãoerabemoquedesejava.
Estávamos reunidos no jardim: minha prima Rhoda e o
marido,oCoronelDespard,aSrta.Macallister,umajovemruiva
chamadaGinger,aSra.Oliver,oreverendoCalebDaneCalthrop
esuaesposa.O reverendoeraumsenhorsimpático, estudioso,
cuja principal distração era citar um provérbio clássico,
relacionando-ocomumacontecimentomomentâneo.Estehábito
murchava qualquer conversa, possuía o dom de embaraçar os
presentes, e sósatisfaziaopróprio reverendopoisgeralmentea
maioriadaspessoasdesconhecialatimougrego.
— Como dizia Horácio... etc. etc.— observou ele, sorrindo
paraospresentes.
DepoisdeumapequenapausaGingerinterveio.
—AchoqueaSra.Horsefalltrapaceoucomaquelagarrafade
champanha.Quemacabouganhandofoiasobrinha!
A Sra. Dane Calthrop, uma mulher imprevisível, de olhar
aguçado,observavaaSra.Oliver.
—Oqueasenhoraesperavafosseacontecernestafesta?—
perguntouabruptamente.
—Ora,umcrimeouqualquercoisaexcitante.
—Porquê?—perguntouaSra.DaneCalthrop,interessada.
— Por nada. Por ser improvável talvez. Lembro-me de um
crimequeocorreunumaquermesse...
—Ah!Asenhoraficouimpressionada?
—Muito.
Oreverendofezumacitaçãoemgrego.
Seguiu-seoutrobrevesilêncio.
—Acheimuita vantagem o dono doBar Armas doRei nos
mandaraquelascervejasparaotiroaoalvo.
—ArmasdoRei?—perguntei.
—Éonomedobarlocal,meucaro—explicouRhoda.
— Não existe outro pelas redondezas... O Cavalo Amarelo,
nãofoi?—pergunteiolhandoparaaSra.Oliver.
Nenhuma reação por parte dos presentes. Todos olharam
paramimimperturbáveis.
—O Cavalo Amarelo não é um bar— disse Rhoda.—Ou
melhor,nãoémaisumbar.
—Masjáfoi—disseDespard,—lápeloséculoXVI.Hojeem
dia,éumacasa,emboraaproprietáriatenhamantidoomesmo
nome.
— Por que havia de mudar? — quis saber Ginger. — Um
lugardaquelesnãopoderiaterumnomebobocomoNossoLarou
RecantoFeliz.AchoonomedeCavaloAmarelodivino.Elastêm
uma plaqueta antiga colocada em cima da lareira que é uma
beleza.
—Quemsãoelas?—perguntei.
—AcasaédeThyrzaGrey—informouRhoda.—Nãoseise
vocêviuumamulheralta,decabeloscinzentos?
— É dada ao ocultismo— disse Despard. — Dedica-se ao
espiritismo,aotranse,àmagia.NãotemnadacomMissaNegra
oucoisasassim...
Gingerdeuumagargalhada.
— Desculpe — disse a ruiva. — Mas por um instante eu
imagineiaSrta.GreyvestidadeMme.deMontespan,numaltar
develudonegro.
—Ginger,respeiteoreverendo!—disseRhoda.
—Desculpe,reverendo.
—Nãotemamenor importância—disseoSr.Calthrop.—
Comodizemosantigos...
Seguiu-seumalongacitaçãoemgrego,acompanhadadeum
respeitososilênciodeaprovação.
—Mesmoassimquemsãoelas?
— Uma amiga, que mora com ela e chama-se Sybil
Stamfordis que acho que funciona comomédium. Você já deve
tê-lavisto,cheiadecolareseescaravelhos;àsvezes,veste-secom
umsari,nãomepergunteporque...achoqueelanemconhecea
Índia...
—NãoesqueçadeBella—interveioaSra.DaneCalthrop,a
cozinheira que dizem ser uma feiticeira nascida num vilarejo,
onde era famosa por suas bruxarias. Dizem que a mãe dela
tambémerabruxa.
— A senhora fala em bruxaria como se fosse a coisamais
naturaldomundo!—exclamei.
—Eémesmo!Nãoexistemistérioalgum.Asvezeséumdom
defamília...quandoosenhorerapequeno,nãoselembradeuma
vizinhaaquemsedeviadarbolosedoces?
Olhei para ela como ceticismo mas parecia falar com
sinceridade.
— Sybil nos ajudou hoje na quermesse— disse Rhoda.—
Lendoasorte.Elaficounabarracaverdeefezmuitosucesso.
—Predisseparamimumfuturomaravilhoso—disseGinger.
—Dinheiro,umamante estrangeiro, doismaridos e seis filhos.
Quemaispoderiadesejar?
— A filha dos Curtis saiu da barraca às gargalhadas —
comentouRhoda.—Maistarde,quandoavidenovo,elarepetiu
paraonamoradoqueelenãoeraoúnicogalodogalinheiro.
—Coitado de Tom!— suspirou omarido deRhoda.—Ele
respondeualgumacoisa?
— Respondeu que não podia dizer o que Dona Sybil tinha
lidonamãodele.
—Bemfeito!
—AvelhaParkeréquenãogostoudasorte—disseGinger.
— É tudo bobagem! me disse ela, só espero que vocês não
acreditem nessas histórias. A Sra. Cripps, porém, interrompeu
paradizerqueaSrta.Greyprevêamortedequalquerpessoae
quenunca se engana!ASra. Parker concordou,masdisse que
morte já é outra conversa.FinalmenteaSra.Crippsarrematou
quenãovaliaapenaofendernenhumadastrês.
—Que interessante!—exclamouaSra.Oliver.—Gostaria
deconhecê-las.
— Podemos dar um pulo lá amanhã — prometeu o Cel.
Despard.—Valeapenaveracasa.Elasadecoraramcommuito
gostoeinteligência...ficouumlugarconfortáveledeestilo.
—AmanhãdouumtelefonemaparaThyrza—disseRhoda.
Confessoquefuidormirligeiramentedesapontado.OCavalo
Amareloqueparamimtinhase tornadoosímbolodosinistroe
do desconhecido, de repente tinha se transformado numa
históriadaCarochinha.
AnãoserqueexistisseumoutroCavaloAmarelo!
Nestasconjeturasacabeiadormecendo.
II
O domingo amanheceu preguiçoso e azul; o ar parecia
invadido pela ressaca. As tendas e barracas armadas sobre a
relva balançavam as bandeirolas, esperando a hora de serem
desmontadas. Segunda-feira, todos recomeçariam a trabalhar e
avaliar os lucros e perdas da quermesse... por isso Rhoda
resolveupassarodomingoforacomosamigos.
Fomosà igrejaeouvimosrespeitosamenteoeruditosermão
doSr.DaneCalthrop,baseadonumtextode Isaíasqueparecia
termaisafinidadecomahistóriadaPérsiadoquecomreligião.
— Vamos almoçar com o Sr. Venables — disse Rhoda, à
saída da igreja.— Você vai gostar dele, Mark. Trata-se de um
homemfascinante,quejáfezdetudoejáviudetudo.Comprou
umacasaporaquiháunstrêsanosque,julgandopelareforma,
deve ter custado uma fortuna. Teve paralisia infantil, por isso
andadecadeiraderodas,oquedeveserhorrívelparaele,pois
viviaviajando.Como jádisse,deveserriquíssimo,a julgarpela
maravilha que fez da casa... quando ele a comprou estava
praticamenteemruínas.Hojeemdiaseumaiorinteressesãoos
leilões.
ChegamosàmansãodoSr.Venablese fomosrecebidospor
elenohall.
—Quebomquevieram—disseele,cordialmente.—Devem
estarexaustosdeontem.Aliásvocêestádeparabéns,Rhoda.
O Sr. Venables era um homem de uns cincoenta anos, de
rosto magro, um ar de falcão com um nariz adunco, bastante
agressivo. Suas roupas eram caras e convencionais, o que lhe
davaumaspectoligeiramentedemodé.
Rhodafezasapresentações.
OSr.VenablessorriuparaaSra.Oliver.
— Conheci-a profissionalmente — disse o Sr. Venables. —
Comprei seis livros seus autografados que servirão de ótimos
presentes de Natal. Gostomuito do que escreve; por favor não
pare,souseufãincondicional.VenablessorriuparaGinger.Por
sua causa quase ganhei ontem na tômbola! — Em seguida,
voltou-separamim:—Gosteimuitodoseuartigopublicadono
Suplementodomêspassado.
— Foi muita bondade sua ter vindo à quermesse, Sr.
Venables — disse Rhoda. — Depois daquela sua magnífica
doaçãofinanceiranãoesperavacontarcomsuapresença.
—Maseuadoroquermesses.Fazpartedavidaruralinglesa,
nãoacha?Volteiparacasacomumahorrendabonecadepano.
Achei muito divertido ouvir as relações proféticas da nossa
querida Sybil, envolta naquele turbante fantástico com todos
aquelescolarespseudo-egípcios!
— Sybil é muito divertida — comentou o Cel. Despard. —
Hoje à tarde vamos tomar chá comThyrza.Creio que o senhor
concordacomigoqueacasaébastanteinteressante.
— O Cavalo Amarelo? Mas no fundo eu preferiria que
tivessem deixado como estava, intocada no seu manto de
maldadeemistério.Nãocreioque fosseusadaporpiratas,pois
estamoslongedemaisdacosta...talvezfosseumaestalagempara
bandoleiros?Ou ricos viajantes que resolviam passar a noite e
nuncamaisapareciam?Hojeemdiaeuconsideroumainjustiça
uma casa daquelas ter se transformado numa simpática
residênciadetrêssolteironas.
— Mas eu não as considero assim— exclamou Rhoda. —
Talvez Sybil seja ligeiramente ridícula com suas fantasias
indianasevisõesesotéricas.MaspenseemThyrza.Nãoachaque
existealgodeaterradornela?Comoseelasoubessesempreoque
agenteestápensando...Oestranhoéqueelanãosevangloriade
possuirumaintuiçãoforadocomum,mastodomundosabeque
elapossuipoderesextraordinários.
— E Bella não pode ser considerada uma solteirona —
interrompeuDespard.—Jáenterroudoismaridos.
—Peçodesculpas,então—disseVenables.
—Alémdepossuirodomdematarosvizinhos—continuou
Despard — quando estes a aborrecem. Dizem que quando ela
olhaarrevezadoparaalguémapessoacomeçaadefinhareacaba
morrendo!
—Elaéafeiticeiradacidade?
—SegundoaSra.DaneCalthrop.
— A bruxaria não deixa de ser um assunto fascinante —
disse Venables pensativo. — É encontrada em todas as
modalidade possíveis pelomundo afora. Lembro-me de quando
estavanaÁfrica...
Aconversadoanfitrião fluíacomoumcórregomanso; falou
sobre pajés africanos; cultos desconhecidos de Bornéu, e
prometeu nos mostrar algumas máscaras africanas depois do
almoço.
—Temdetudonestacasa—comentouRhoda,rindo.
— Já que não posso ver tudo que existe — disse o Sr.
Venables—procuroarrebanharpertodemimomaiornúmerode
curiosidades.
Naquele instante sua voz revelou certo amargor. O Sr.
Venables lançou um rápido olhar de desprezo para as pernas
paralisadas.
—“Omundoestácheiodecoisas”—citouele.Creioqueesta
curiosidade em conhecer tudo é que me prejudica. Existem
tantascoisasqueeuquerover!Masnãopossomequeixar,jáfiz
mais do que devia, e mesmo hoje ainda encontro muitas
distrações.
—Porque,aqui?—perguntouaSra.Oliver,derepente.
O ambiente estava ligeiramente carregado como sempre
acontece quando se menciona algum assunto delicado ou
desagradável. A Sra. Oliver porém não pareceu tomar
conhecimento disso. Fez a pergunta porque queria saber a
resposta. Sua curiosidade devolveu ao ambiente a antiga
atmosferadecaloresimpatia.
OSr.Venablesolhouparaelasurpreendido.
— Por que veio para cá? — perguntou novamente a Sra.
Oliver. — Não é longe demais da civilização e do convívio
cultural?Ouosenhortemamigosporaqui?
—Não.Aliás,jáqueasenhoraperguntou,escolhiestaregião
porquenãoconheciaumapessoasequer.
UmsorrisoirônicoassomouaoslábiosdeVenables.
Até que ponto, pensei, a paralisia tinha afetado aquele
homem?Seriapossível quea incapacidadedeandar, a faltade
liberdadeparaexploraromundo,tivessedeixadoumamarcatão
profunda na sua alma? Ou será que ele havia se adaptado às
circunstânciascomequanimidadeegrandezadeespírito?
ComoseVenablestivesselidomeuspensamentos,disse:
—Noseuartigo,osenhorquestionaosignificadodo termo
“grandeza”, comparando-o com seus diversos significados tanto
no Oriente quanto no Ocidente. Gostaria de saber como se
considera,porexemplo,umgrandehomemnaInglaterra?
— Grandeza de intelecto — respondi — e certamente pela
forçamoral!
Venablesolhouparamimcomumestranhobrilhonosolhos.
— Não poderia então existir um homem mau dotado de
grandeza?—perguntou.
—Claro—gritouRhoda.—VejaNapoleão,Hitler,emilhares
deoutros.Todosgrandeshomens!
— Por causa dos distúrbios que causaram? — perguntou
Despard. — Se você os conhecesse pessoalmente talvez não
tivesseestaimpressão.
Ginger debruçou-se para a frente e correu os dedos pelos
cabelosruivos.
— Que interessante! — comentou. — Será que eles foram
pessoaspatéticasemesquinhas?Comportando-secomogalosde
briga, sentindo-se inferiores aos outros,mesmo que tivessem o
mundonasmãos?
—Ah!não!—replicouRhoda.—Seelesfossemcomovocêos
descrevenãopoderiamtercausadotantacomoção.
— Não sei — interveio a Sra. Oliver. — Afinal, até uma
criançapodeincendiarumacasa.
—Ora,ora—disseoSr.Venables.—Nãovamosentrarna
modaesubestimaromalcomoseelenãoexistisse.Omalexiste,
é poderoso. Geralmente mais poderoso do que o bem. É uma
entidade que precisa ser reconhecida e combatida, senão... —
Venablesfezumgestolargocomasmãos—mergulharemosna
escuridão.
—Eufuicriadaacreditandonodiabo—disseaSra.Oliver,
comosedesculpando.—Apesardeachá-loumtantotolo.Para
queorabo,oscascosdecabra,eocomportamentodecanastrão
de opereta? Mas minhas novelas sempre tem um personagem
que é um criminoso genial, o público adora este tipo de coisa.
Mas, cada vez se torna mais difícil dar veracidade aos
estereótipos.Émuitomaisnaturalumgerentedebancocometer
um estelionato, ummarido querer se ver livre damulher para
casarcomagovernanta.
Todosriram.
— Não sei se me expliquei bem — disse a Sra. Oliver,
timidamente.—Masvocêsperceberamaondeeuquerochegar...
Concordamoscomela.
Capítulo6
NarrativadeMarkEasterbrook
Eram mais de quatro horas quando saímos da casa de
Venables.Depoisdoalmoçooanfitriãonosconduziuportodaa
casa,divertindo-seemmostrarsuaspreciosidades.
— Ele deve estar nadando em dinheiro— comentei, assim
que saímos. — As peças de jade, as esculturas africanas, a
coleçãodeprata.Vocêstêmsorteemtê-locomovizinho.
— Nós sabemos disso muito bem — replicou Rhoda. — A
maioria do pessoal das redondezas é simpático mas meio sem
graça.Comparadoaeles,oSr.Venablesédefinitivamenteforade
série.
—Odinheiroqueeletemédefamília?—perguntouaSra.
Oliver.
Despard comentou que atualmente ninguém podia
enriquecer com uma herança por causa dos impostos de
transmissão.
— Contaram-me que ele começou como estivador —
continuou ele — mas acho pouco provável. Venables não fala
sobre a família ou sobre a infância. Um verdadeiro homem
mistério—concluiu,voltando-separaaSra.Oliver.
Esta replicou, prontamente, que estava cansada de
personagens misteriosos. O Cavalo Amarelo era um prédio de
pedra emadeira, ligeiramente afastado da estrada, cercado por
um jardim murado que dava à casa um agradável aspecto de
outraera.
Confesseimeudesapontamento.
— Não é bastante sinistro — queixei-me. — Não tem
atmosfera.
—Espereatéveracasapordentro—prometeuGinger.
Saltamosdocarroenosdirigimosparaaentrada.Aportafoi
aberta e deparamos com uma mulher alta, ligeiramente
masculina, vestida num tailleur severo de tweed; cabelos
cinzentos e ásperos saltando da cabeça, nariz adunco e olhos
azuis.EraaSrta.ThyrzaGrey.
— Finalmente — disse ela com sua voz de contralto. —
Penseiquetivessemseperdido.
Noteiumaestranhaedisformefiguraatrásdadonadacasa
nosespiandopelassombras,comcuriosidade.Orosto,disforme,
pareciafeitodebarroporumacriança.Umrostosemelhanteaos
que se encontram numa multidão de um quadro primitivo
italianoouflamengo.
Rhoda nos apresentou e explicou que nos demoramos por
causadoalmoçocomoSr.Venables.
— Ah! — exclamou a Srta. Grey. — Eis a razão! Aquela
maravilhosa cozinheira italiana e aqueles tesouros encerrados
naquelamaravilhosa casa.Aindabemque o pobrehomem tem
com que se divertir. Entrem... entrem. Nós também nos
orgulhamos da nossa casinha, século quinze e algumas partes
séculodezesseis.
Aentradaeraescuraepequena,comumasinuosaescadaria
aofundo.Umagrandelareiraeumquadrocompletavamohall.
—Éaplacado albergue—explicouaSrta.Grey,notando
meuolhar.—Nestaluznãodáparaverbem.OCavaloAmarelo.
—Voulimpá-loparavocê—disseGinger—assimquetiver
tempo.Vaiverquemaravilhavaificar.
—Nãoseibem—disseThyrzaGrey.—Esevocêestragara
placa?—acrescentoubruscamente.
— Claro que não vou estragar! — exclamou Ginger
indignada.—Éminhaprofissão!TrabalhonoMuseudeLondres
—disse,voltando-separamim.—Divirto-meimensamentecom
essascoisas.
— A gente precisa se acostumar com as novas técnicas de
restauração—interveioThyrza.—Quasedesmaioquandovoua
ummuseu,hojeemdia.Todososquadrosparecemquelevaram
umbanhodedetergente.
—Você não vaime dizer que os prefere em tonsmostarda
escuroecinza!—protestouGinger.Elaolhounovamenteparaa
placa. — Iam aparecer tantas coisas. Talvez tivesse até um
cavaleirosobreocavalo!
Passeiaolharaplacacomatenção,ao ladodeGinger.Era
umquadromalfeito,cujoúnicoméritoresidianaantiguidadee
sujeira.Umafiguraamareladeumcavalobrilhandofoscamente
sobreumfundopreto.
—Ei, Sybil, nossos convidados estão falandomal donosso
cavalo!—gritouThyrza.—Jáseviutalimpertinência?
SybilStamfordisapareceu.Eraumamulheralta,decabelos
escuroseoleosos,umaexpressãodechoroeternaeumabocade
peixeforadoaquário.Usavaumsariverdeescuroquenãolheia
bem.Falavanumavozfracaedesafinada.
— Nosso querido cavalo — disse. — Nos apaixonamos por
estaplacaeachoquefoiacausadeacabarmoscomprandoesta
casa.Nãofoi,Thyrza?Masvamosentrar.
Elanosconduziuparaumpequenoaposentoquedeveriater
sido,antigamente,umbar.Atualmente,tinhasidotransformado
numasaladevisitascampestrecommóveisChippendaleevasos
decrisântemos.
Fomos levados para ver o jardim que deveria ser uma
maravilha no verão e depois voltamos para a casa onde
encontramos a mesa preparada para o chá com sanduíches e
bolos.Carregandoobuledeprataavelhaqueeutinhavistode
relancenaentrada.Estacriadausavaumsimplesaventalverde
e, se bem que seu rosto tivesse um aspecto primitivo, nãome
pareciamaistãosinistro.
Derepente,senti-meirritadocomminhasfantasias.Quanta
bobagememtornodetrêssenhoraseumvelhoalbergue.
—ObrigadaBella—disseThyrza.
—Temtudodequeprecisa?
AvozdeBellapareciaumresmungo.
—Sim,obrigada.
Bella retirou-se sem olhar para os convidados. Antes de
fechar a porta, porém, dirigiu-me um breve olhar. Fiquei
espantado, sem saber por quê. Naquele olhar haviamaldade e
umaestranhaeíntimacognição.Sentiqueela,semseesforçare
semquerer,sabiaexatamenteoqueeuestavapensando.
ThyrzaGreynotouminhaperplexidade.
— Bella é estranha, não é, Sr. Easterbrook? — perguntou
delicadamente.—Repareicomoosenhoraobservou.
— Ela é das redondezas? — perguntei, tentando parecer
apenasinteressadoporeducação.
— Sim, apesar dos boatos implicarem que ela seja uma
bruxa.
SybilStamfordisbateucomocolares.
—ConfesseSr...Sr...
—Easterbrook.
—Easterbrook.Tenhocertezadequeosenhorjáouviudizer
quepraticamosbruxarias.Confesse!Somosatébemconhecidas
poraqui!
—Enão é paramenos— interveio Thyrza.—Sybil possui
grandespoderes.
Sybilsuspiroufeliz.
—Semprefuifascinadapelooculto—murmurou.—Desde
criançapercebiquepossuíapoderesraros.Aescritaautomática
veio naturalmente, quando eu ainda nem sabia escrever. Eu
costumavaficarsentadacomumlápisnamãoeimediatamente
perdia a noção de tempo e espaço. Claro que eu sempre fui
supersensível...umavezdesmaieiquandofuitomarchánacasa
deuns amigos. Algo de horrível havia acontecido naquela sala.
Eutinhacerteza!Maistardesoubemosoqueera.Naquelasala,
haviaocorridoumcrimevinteecincoanosantes!
Elaolhouemtomo,triunfante.
— Extraordinário! — comentou o Cel. Despard, tentando
disfarçarairritação.
— Nesta casa, mesmo, ocorreram coisas sinistras — disse
Sybilsombriamente.—Masnós já tomamosasprecauções... já
conseguimoslibertarosespíritosacorrentados.
—Umaespéciedefaxinaespiritual?—sugeri.
Sybilencarou-meduvidosa.
— Que maravilhosa a cor do seu sari — interveio Rhoda,
desconversando.
Sybilsorriu.
— Não é mesmo? Comprei na Índia, onde vivi aventuras
extraordinárias.Estudei iogaeoutras religiõesmasachei todas
muito sofisticadas, distantes demais do primitivo, do natural.
Devemos voltar às origens, aos poderes primitivos. Sou das
poucasmulheresqueconhecemoHaitiprofundamente.Lásim,a
gente toca as fontes naturais do ocultismo,misturadas é claro
comumpequenograudedistorçãoecorrupção.Masaraizestá
presente.
—Quando souberam que eu tinha uma irmã gêmea,mais
velha do que eu apenas algunsminutos—prosseguiuSybil—
resolveramabrirojogo.Osegundogêmeo,dizem,possuisempre
poderes sobrenaturais. Estranho, não é? O senhor precisa
assistirasdançasdamorte!Elesusamcaveiras,ossosetodosos
apetrechosdoscoveiros.Pás...enxadas...aliásatésevestemde
coveiros... O sacerdote supremo é o Barão Samedi e o deus
invocado é o Legba, único capaz de “remover as barreiras”. O
cultoconsisteemevocarosmortosparaqueelestragamamorte.
Estranho,nãoé?
— Veja — continuou Sybil animadamente, dirigindo-se ao
peitorildajanela.—EsteéomeuAsson,ummorceguinhoseco
todo enfeitado de contas; está vendo estes rabinhos? São de
cascavel!
Olhamos para o objeto com interesse, mas pouco
entusiasmados, enquanto Sybil chacoalhava carinhosamente o
amuleto.
—Muitointeressante—comentouDespardporcortesia.
—Masnãoésóisso...
Porestaaltura,perdio interessepelaconversaecomeceia
olhar em volta. Ao longe, ouvia Sybil discursar sobre feitiçaria,
voodoo,MaitreCarrefour,aCoa,FamíliaGuidé.
Voltei-me e deparei com Thyrza Grey me examinando com
curiosidade.
—Osenhornãoacreditanestashistórias?—murmurouela.
—Poisdevia!Nãopodemosexplicarosobrenatural,apelidando-o
de superstição, ou medo ou preconceito religioso. Existem
verdades e poderes elementares... sempre existiram e sempre
existirão.
—Dissonãotenhoamenordúvida—respondi.
—Muitobem,venhacomigoàbiblioteca.
Encaminhamo-nospeloterraçoatéojardim.
— Fica ali ao lado da antiga estrebaria— explicou Thyrza
Grey.
A estrebaria tinha sido reconstruída e transformada numa
enorme sala. Dirigi-me, imediatamente, para uma das paredes,
cobertasdeestantesdelivros.
—Asenhorapossuialgumasraridades—comentei.—Este
MalleusMaleficoruméumoriginal?Vejoquepossuiverdadeiros
tesouros!
—Eusei.
—EsteGrimoire,porexemplo,éraríssimo!—retireialguns
volumesdasestantes.Thyrzameobservavacomumestranhoar
desatisfação.RecoloqueinolugaroSadducismusTriumphatus.
— É bom encontrar uma pessoa que sabe admirar meus
tesouros.Amaiorialimita-seabocejaroumanterabocaaberta.
—Podehaveroperigodeexageronapráticadafeitiçariaedo
ocultismo—disseeu.—Comocomeçouaseinteressarporisso?
—Nãoseibem...faztantotempo.Umdiafolheeiumlivroe
devo ter-me impressionado com alguma coisa. É fascinante
estudar o comportamento das pessoas que acreditam no
sobrenatural.
Deiumapequenarisada.
—Aindabemquenãoacreditaemtudooquelê—comentei.
— Não me julgue pela pobre Sybil. Percebi seu olhar de
superioridade enquanto ela falava! Devo dizer que o senhor se
engana, ela pode ser uma simplória que mistura voodoo com
demoniologia,maspossuiopoder.
—Opoder?
—Nãosaberiadefini-lodeoutromodo.Existempessoasque
se tornam ligações vivas entre este mundo e o mundo dos
poderes invisíveis.Sybil éumadessaspessoas.Éumamédium
deprimeira.Nuncafazcomérciodestedomexcepcional.Quando
eu,elaeBella...
—Bella?
—Sim,Bellatambémpossuipoderes,comotodoomundo.É
apenasumaquestãodegrau.Emconjunto...
Elacalou-se.
—BruxariaLtda.?—sugeri,sorrindo.
—Sequiser.
Olheiparaumvolumequetinhaentreasmãos.
—Nostradamuseetc.?
—Nostradamuseetc.!—concordouela.
—Asenhorarealmenteacreditanisso—disseeu.
—Nãoéquestãodecrença,eusei—disseelatriunfante.
— Como? De que maneira? Por que razão? — perguntei,
olhando-acomcuriosidade.
Elafezumgestolargocomasmãos,abrangendoasestantes.
— Tudo isso! Tanta bobagem, tantas frases bombásticas!
Mas tente afastar as superstições e os preconceitos da época e
verá que a base é verdadeira. É como religião... vem enfeitada,
semprefoienfeitadaparaimpressionaropovo!
—Nãoentendo.
— Meu caro, o que motiva os homens a procurarem os
feiticeiros,ospajés?
Porduasrazõestãofortesquejustificamoriscodadanação
eterna:apoçãodoamoreovenenodamorte.
—Ah!
—Simples,nãoé?Amoremorte.Apoçãodoamorparase
conseguir a pessoa desejada; a missa negra para conservar o
amante. Esta poção deve ser ingerida em noite de lua cheia,
recitandoosnomesdosdemôniosoudosespíritos,enquantose
desenhanochãoounaparedealgunsrabiscosestranhos.Tudo
isto não adianta nada porque a verdade está no conteúdo
afrodisíacodapoção.
—Eamorte?
—Amorte?—repetiuThyrzacomumrisinhoperturbador.
—Osenhorseinteressapelamorte?
—Comotodoomundo—respondi.
— Será mesmo? — perguntou, sorrindo com um olhar
perscrutador que me surpreendeu. — Sempre houve mais
intercâmbio com a morte do que com o amor. Antigamente,
porém, faziam tanta encenação. Veja os Borgias e os venenos
secretos. Sabe o que eles usavam? Arsênico comum, como
qualquermulherquedesejaseverlivredomarido.Hojeemdia,
porém, já estamosmais adiantados.A ciência expandiunossas
fronteiras.
—Venenosquenãodeixamvestígios?—pergunteinumtom
cético.
—Venenos!Bah!Istoéparaamadores.Vieuxjeu,monami.
Existemnovoscaminhos.
—Quais,porexemplo?
—Amente.O conhecimento do que é amente, do que ela
podefazeredoquepodemosfazercomela.
—Queinteressante.Continue.
—Oprincípioébastantedivulgado.Éomesmoqueospajés
empregavamnascomunidadesprimitivas.Nãosemataavítima,
simplesmenteordena-sequeelamorra.
—Sugestão?Masnãofuncionaseavítimaédescrente!
— Talvez com os europeus não funcione— ela corrigiu.—
Não tenho tanta certeza. Mas não é aí que eu quero chegar.
Através da psicologia já nos desenvolvemos mais do que os
feiticeiros.Odesejodemorrerexisteeestápresenteemtodosos
homens.Nissoéquesetrabalha.
—Interessante!—murmureinumtomcientífico.—Deve-se
influenciaravítimaacometersuicídio.Éisto?
— Não exatamente. O senhor já ouviu falar nas doenças
traumáticas?
—Claro.
—Daspessoasqueinconscientementenãodesejamvoltarao
trabalho e que por isso ficam realmente doentes, e passam a
sentir todos os sintomas de uma enfermidade, às vezes até
dores? Os médicos até hoje são incapazes de explicar este
fenômenosatisfatoriamente.
— Estou começando a compreender — disse eu
vagarosamente.
—Paradestruiravítimaprecisa-seexercerumpertopoder
sobreo “eu” inconsciente.Deve-se estimular odesejodemorte.
Percebeagora?—perguntou ela entusiasmada.—Umadoença
verdadeira poderá ser induzida, causada pelo próprio desejo de
autodestruição.Uma pessoa deseja ficar doente, desejamorrer,
portantoficadoenteemorre.
Elaatirouacabeçaparatrásnummeneiodetriunfo.Senti-
mecompletamentegelado.Quantabesteira,pensei,Estamulher
élouca...mas,mesmoassim...
ThyrzaGreysoltouumarisada.
—Osenhornãomeacredita?
—Achosuasteoriasfascinantes,Srta.Grey,porém,comoa
senhoritapretendeestimularestedesejodemortequetodosnós
possuímos?
— É um segredo. O modo, os recursos! Existem
comunicações sem contato. Pense no telégrafo, no radar, na
televisão. As experiências em percepção extra-sensorial, por
exemplo, não se desenvolveram como era esperado, porque as
pessoasnãoentenderamoseuprincípiobásico.Pode-sechegara
uma experiência por acidente,mas depois que percebemos seu
mecanismopodemosempregá-losempre...
—Asenhoritasaberia,porexemplo?Elaficoucaladaporuns
instantes.
—Nãomepeça,Sr.Easterbrook,pararevelartodososmeus
segredos.
Segui-aatéaportadojardim.
—Porquemecontoutudoisto?—perguntei.
— Porque o senhor compreendeu meus livros. Às vezes, a
genteprecisadealguém...paraconversar.Alémdomais...
—Sim?
—Euachei...eBellatambém...quetalvezosenhorpudesse
viraprecisardenós.
—Precisar?
— Bella acha que o senhor veio à nossa procura. Ela
dificilmenteseengana.
—Porqueeuhaveriadeprecisardassenhoras?
—Isto—respondeuThyrzaGrey,suavemente,—aindanão
sabemos.
Capítulo7
NarrativadeMarkEasterbrook
I
— Finalmente! Estávamos a sua procura — disse Rhoda,
entrandocomosoutrosconvidados.—Éaquiquevocêsfazemas
sessões?
— Você está bem informada — respondeu Thyrza Grey,
rindo.—Nestacidadetodossabemmaissobreavidadosoutros
do que sobre as próprias. Sei que temos fama de sinistras.Há
algunsanosatrásseríamosqueimadascomobruxas.Paradizera
verdade, umas duas tias-avós, lá na Escócia, pereceram na
fogueira.Bonstemposaqueles!
—Semprepenseiquevocêfosseirlandesa!
—Sóporpartedepai.Doladodeminhamãesouescocesa.
Nossapitonisa,Sybil,édescendentedegregos;sóBellaéqueé
cemporcentoinglesa.
—Ummacabrocoquetelhumano—comentouDespard.
—Nemdiga!
—Atéqueébemdivertido—interveioGinger.
Thyrzalançou-meumrápidoolhar.
—Eutambémacho.Asenhora—disseThyrza,voltando-se
paraaSra.Oliver—deveriaescreverumlivropolicialbaseadona
magianegra.Possolhedarmuitasinformações.
ASra.Oliverlimitou-seapiscarosolhoseperderagraça.
—Minhasnovelassótêmcrimesnormais—desculpou-sea
Sra. Oliver, como uma cozinheira que só faz bem um tipo de
prato.—Limito-mea falardepessoasquequeremafastarseus
inimigosetentamfazê-lodeumaformainteligente.
—Inteligentedemaisparaomeugosto—interveioDespard,
olhandoparaorelógio.—Rhoda,euacho...
—Émesmo!Vamosindo.Émuitotarde.
Cumprimentoseendereçosforamtrocadosefinalmentenos
dirigimosparaasaída,porumportãolateral.
— Quantas aves — comentou Despard, examinando os
galinheiros.
—Detestogalinhas—disseGinger.—Ocacarejodelasme
deixalouca.
— São frangos, namaioria— esclareceuBella, aparecendo
pelaportadosfundos.
—Frangosbrancos?—perguntei.
—Nósprecisamosdeles—resmungouBella,comumolhar
malicioso.
—QuemseocupadosfrangoséBella—informouThyrza.
SybilStamfordisreapareceuparaasdespedidas.
—Nãogosteidaquelamulher—disseaSra.Oliver,quando
estávamosnocarro.—Nãogosteimesmo.
—NãoleveThyrzaasério—disseDespard,comindulgência.
—Elasediverteemparecersinistra.
—Nãoestou falandodela.Éumacriatura semescrúpulos,
umaoportunista.Éaoutraquemérealmenteperigosa.
—Bella?Umavelhaestranhamas...
—Nãoédelaqueestoufalando.NãogosteidataldeSybil.É
umasonsacomaquelesenfeiteseplumas,comaquelaconversa
fiada sobre voodoo e reencarnações. (O que eu me pergunto é
porque uma pessoa feia, velha ou pobre não se reencarna.
Sempre sãoprincesas egípcias ou escravasbabilônias.Dápara
desconfiar!)VoltandoaSybil,apesardeserumaidiota,creioque
é capaz de conseguir algumas coisas excepcionais... não estou
me expressandobem... o que quero dizer é que ela poderia ser
usada por alguém. Aposto que não entenderam... uma palavra
sequer do que eu disse — arrematou a Sra. Oliver num tom
patético.
—Euentendi.—disseGinger.—Eachoatéquetemrazão.
—Precisamoscompareceraumasessão,issosim!
—Dejeitoalgum—disseDespardcomfirmeza.—Nãoquero
vê-lametidanestasconfusões.
A discussão acabou entre risadas, e por esta altura a Sra.
Oliverjáestavapreocupadacomohoráriodostrens.
—Podevoltarcomigo—disseeu.
ASra.Oliverpareceuemdúvida.
—Achomelhorvoltardetrem...
— Não vai dizer que está com medo de andar comigo de
carro.Sabequesouótimochofer.
— Não é isso, Mark. É que tenho um enterro para ir,
amanhã. Não posso chegar tarde. — A Sra. Oliver deu um
suspiro.—Odeioenterros.
—Eporquevai?
— Não posso deixar de ir, principalmente no caso de uma
amigacomofoiMaryDelafontaine.Seiqueelagostariadequeeu
fosse...
—Imagine!—exclamei.—Delafontaine...
Todosmeolharamcomcuriosidade.
— Não se espantem. É que eu ouvi este nome em algum
lugar não faz muito tempo. Não foi a senhora? — perguntei,
dirigindo-meparaaSra.Oliver.—Nãomedissequeiavisitá-la
numacasadesaúdeoucoisaparecida?
—Épossível.
—Dequeelamorreu?
ASra.Oliverfranziuatesta.
—Polineurisetóxica—respondeu.
Ginger olhou para mim curiosa, tentando ler meus
pensamentos.
Quandochegamospretexteiquererdarumavoltaparafazer
a digestão. Larguei o pessoal, antes que alguém se oferecesse
paravircomigo.Precisavaficarsóparapoderpensar.
O que estava acontecendo? Tudo tinha começado com o
estranhocomentáriodePoppy,recomendandooCavaloAmarelo,
casoalguémquisesseeliminaruminimigo.
Em seguida, aquele encontro com Jim Corrigan, a lista de
“nomes” relacionada com a morte do padre Gorman. Na lista
estavamescritososnomesdeHeskethDubois,Tuckerton,oque
me fez lembrar do restaurante do Luigi. Lembrei-me também
vagamente do nome Delafontaine. A Sra. Oliver falou numa
amigadoente,essaamiganoentantotinhamorrido.
NãoseiporquefuiprocurarPoppynalojadefloresondeela
negou veementemente saber qualquer coisa sobre o Cavalo
Amarelo. O que era mais estranho ainda foi que ela pareceu
assustada.
Ehoje...aconversacomThyrzaGrey.
CertamenteoCavaloAmareloeasproprietáriasnãotinham
coisaalgumaquevercoma listadenomes.Masporqueentão
minhamente insistiaemagrupá-los?Porqueeuimaginavaque
deveriaexistirumelodeligaçãoentreeles?
A Sra. Delafontaine certamente morava em Londres.
Thomasina Tuckerton vivia em Surrey. Ninguém daquela lista
deveriaterligaçãoalgumacomovilarejodeMuchDeeping.Anão
serque...
Parei em frente do King’s Arms, um elegante bar da
localidade.Resolvientrar.Comoeracedoobaraindanãoestava
funcionando. Inalei um odor de fumaça. Perto da escada uma
plaqueta:Escritório.Olhei emvolta.Tudodeserto.Numbalcão,
um velho livro de hóspedes; distraidamente folheei o mesmo,
passandoosolhos.Poucosnomes,umamédiadeunscincoou
seis hóspedes por semana, a maioria só pernoitando uma ou
duas noites. Comecei a examinar os nomesmais atentamente,
pouco depois fechei o livro. O lugar continuava deserto. Como
realmentenãoprecisavafalarcomogerenteresolvisair.Anoite
estavafria.
Seria coincidência que Sandford e Parkinson tinham se
hospedado, em épocas diversas, no mesmo hotel no ano
passado? Os dois homens estavam na lista do padre Gorman.
OutronomequeeuhaviaguardadoeraodeMartinDigby,quese
era quem eu pensava que fosse, era o sobrinho de minha tia
Min...oumelhorLadyHesketh-Dubois.
Passei a andar a esmo, procurando com quem pudesse
conversar. Jim Corrigan ou David Ardingly ou Hermia, sempre
tãosensata...Euestavaconfuso,cheiodepensamentoscaóticos
enãoqueriaficarsó.Oqueeuqueria,verdadeiramente,erauma
pessoasensataquediscutissecomigoemeconvencessedeque
euestavaerrado.
Depoisdeandarpelas vielas lamacentas fuipararnaporta
dacasadovigário.Resolvientrar.
II
— Não funciona — disse a Sra. Dane Calthrop, abrindo a
porta.
Eujáhaviadesconfiado.
— Consertaram duas vezes — continuou ela — mas não
durou.Porissoficosemprealertaparanãoperdercoisaalguma
deimportância.Éimportante?
—Sim,bem...querodizer...paramimé.
—Éissoqueeuqueriasaber—disseela,olhandoparamim
com apreensão. — Pelo jeito parece grave. Quer falar com o
vigário?
—Nãosei.
Na verdade eu queria falar com o vigário, mas naquele
momentoestavaemdúvida.SemquereraSra.DaneCalthropme
deuaresposta.
—Meumaridoéumhomemmuitobomalémdeservigárioe
religioso. Isto às vezes dificulta as coisas. As pessoas boasnão
entendemomal.Émelhorfalarcomigo—concluiueladepoisde
umabrevepausa.
Desenheiumligeirosorriso.
—Éseudepartamento?
— Acho que sim. Numa paróquia é necessário alguém que
conheçatodosospecadosqueexistemnomundo.
—Masnãoéestaaprofissãodoseumarido?Pelomenosa
profissãooficial?
—Eleperdoaospecados—corrigiuaSra.DaneCalthrop.—
Absolve-os, eu não posso fazer isto, mas em compensação —
prosseguiu ela animadamente— posso dividi-los, classificá-los.
Tomando conhecimento dos pecados podemos impedir que eles
prejudiquemaspessoas.Nãopossoajudarmuito,sóDeuspode,
como o senhor já sabe. Ou não sabe? Hoje em dia ninguém
sabe...
— Não posso competir com seu profundo conhecimento da
matéria, mas gostaria de impedir que prejudicassem outras
pessoas.
Elaolhouparamimespantada.
—Éistoentão?Émelhorentrar.
A saladaparóquia eraumapeça espaçosa edesarrumada,
repleta de folhagens mal tratadas; apesar disso não tinha um
aspectolúgubremassimdepaz.Asvelhaspoltronas,umrelógio
depé,tudoenfim,davaaovisitanteacalmanecessáriaparauma
conversaprofundaemquesepudessedizertudooquesepensa,
esquecendoosproblemasexteriores.
Nestasala,pensei,muitasmoçasdeviamterchoradoquando
vieramconfessarqueestavamgrávidaseconfiandonaSra.Dane
Calthrop receberam a ajuda compreensiva, e nem sempre
ortodoxa, que ela podia oferecer; outros vieram se queixar dos
sogros ou sogras; algumas mães justificaram os filhos; casais
pediramajudaparaaresoluçãodosproblemasconjugais.
E cá estava eu, Mark Easterbrook, professor, estudioso,
autor,confrontandoumasenhorasimpáticadecabelosgrisalhos
e olhos bondosos, pronto para confessar meus problemas. Por
quê?Não sabia!Mas tinha certezade que tinha vindoao lugar
certo
—AcabamosdetomarchácomThyrzaGrey—disseeu.
Não era difícil explicar certas coisas à Sra. Calthrop. Ela
possuíaodomdainferência.
—Compreendo. O senhor ficou perturbado? Também acho
quesãotrêsmulheresmuitoestranhas!Vivomeperguntandose
tanta bazófia é necessária... como regra geral sei que cão que
ladra não morde mas... Elas podiam ao menos ser mais
discretas.Agemcomoseospecadosquecometemnãofossemtão
terríveiseporissodiscutemcomamaiornaturalidade.Opecado
nofundoéumacoisinhatãoignóbiledesprezível,queaspessoas
sentem obrigação de engrandecê-lo ou torná-lo importante.
Geralmenteasbruxasdacidadenãopassamdevelhastolasque
sedivertememassustaraspessoas.Aliásnãoédifícilassustar
oscrédulos.Quando,porexemplo,asgalinhasdeDonaFulana
morrem,émuitofácilmenearacabeçaemurmurar:Seaomenos
omeninonãotivessemaltratadoagatadelaasemanapassada!
BellaWebb talvez seja este tipo de feiticeira ou talvez seja algo
mais... este outro tipo de maldade é mais perigoso e não está
ligado à necessidade de impressionar as pessoas. Sybil
Stamfordis é uma das criaturasmais tolas que conheci mas é
realmenteumamédiumeThyrza,bem...essaeunãosei...oque
eladisseparaosenhor?Foielaquemoperturboudetalforma?
— A senhora tem um grande tirocínio, Sra. Calthrop.
Gostaria de que me dissesse se acha possível alguém destruir
umapessoaadistância,semconexãoaparente?
OsolhosdaSra.DaneCalthropsearregalaram.
— O senhor quer dizer assassinar? Fala em destruir no
sentidofísicodoverbo?
—Sim.
—Eudiriaqueébesteira—retrucouelacomênfase.
—Ah!—suspireialiviado.
—Mas posso estar enganada— continuou ela.—Meupai
considerava os aeroplanos uma impossibilidade e meu avô
provavelmentetinhaestamesmaopiniãoarespeitodasestradas
deferro.Osdoistinhamrazãonaépoca,porqueessascoisasnão
existiam.DoqueThyrzaGreypretendesercapaz?Ativarumraio
mortal? Ou desenhar pentagramas no chão e invocar forças
ocultas?
—Asenhoraestámedevolvendoaobjetividade—respondi,
sorrindo.—Aquelamulherdeveter-mehipnotizado.
—Nãocreio.Osenhornãomeparecetãosugestionável.Deve
terhavidooutracoisa...queantecedeuavisita.Oquefoi?
—Temrazão.
Descrevi o melhor possível o crime do padre Gorman e a
históriadePoppysobreoCavaloAmarelo.Emseguida, tireido
bolsoalistadenomesqueoDr.Corriganmehaviadado.
—Hummm,compreendo—disse ela,—estaspessoas têm
algoemcomum?
—Nãosabemos.Podeserchantagemoudrogas...
—Nãocreio—disseaSra.Calthrop.—Enãoé istoqueo
preocupa.Osenhorestápreocupadocomapossibilidadedeeles
estaremmortos...
Suspirei.
— Sim é isso. Só não tenho certeza. Três já morreram:
Minnie Hesketh-Dubois, Thomasina Tuckerton, Mary
Delafontaine. Todas as três de causas naturais, como Thyrza
Greydizsercapazdeeliminarasvítimas.
—Eladisseisso?
— Não exatamente. Ela não se referiu a uma pessoa
especificamente,expôssomenteumapossibilidadecientífica.
— Que parece ser bastante improvável — concluiu a Sra.
Calthrop,pensativa.
—Seibemdisso.Naturalmentenão levariaestaconversaa
sériosenãofosseahistóriadoCavaloAmarelo.
—Ah!OCavaloAmarelo.
ASra.Calthropficoucaladaporunsinstantes.Emseguida,
levantouacabeça.
—Nãogostodisso—disseela.—Sejaláoquefortemosque
pôrumfimnestahistória.
—Seibem...masquepodemosfazer?
—Osenhorprecisadescobrirtudoesemperdadetempo—
disse a Sra. Calthrop, passando pela sala, cheia de energia e
atividade.—Já!Nãoconhecealguémquepossaajudá-lo?
Pensei em Jim Corrigan que eliminei imediatamente pois
viviaocupado.DavidArdinglyquenãoacreditariaemmimeem
Hermia, uma mulher inteligente, lógica, um pilar de força e
sabedoria.Minhanoiva...
— Pensou? Ótimo! — exclamou a Sra. Dane Calthrop. —
Vigiareiastrêsbruxasapesardeacharquearespostanãoestá
comelas.É comoouvir as sandicesdeSybil sobrepirâmides e
templos egípcios, e no entanto existem pirâmides e templos
egípcios. Creio, contudo, que ThyrzaGrey sabe algo e usa este
conhecimento para pavonear seu ocultismo, engrandecendo
destaformasuaimportância.Aspessoas,àsvezes,seorgulham
da própriamaldade. Só os bons não sentem esta necessidade.
Estranho,nãoé?Creioqueéistoquechamamhumildadecristã;
isto é, o desconhecimento da própria bondade.— Ela calou-se
poruns instantese finalmenteconcluiu:—Oqueprecisamosé
umelo.UmaligaçãoentreestesnomeseoCavaloAmarelo.Algo
palpável.
Capítulo8
OInspetorLejeunelevantouacabeçaaoouvirumassobiono
corredor.EraoDr.Corrigan.
—Desculpeinterrompê-lomasnãoencontreiálcoolnochofer
doJaguar.Oguardadeveterconfundidocomhalitose.
Lejeuneporémnãoestavainteressadonestasocorrências.
—Entreevenhadarumaolhadanisto.Corriganapanhoua
cartaqueoinspetorlheestendeu.Aletraeraclaraepequena:
Everest,Bournemouth
CaroInspetorLejeune:
Osenhordeveselembrarquepediuparaserinformadocaso
euvisseohomemqueseguiuopadreGormannanoiteemqueo
assassinaram.
Fiquei alerta, mas não consegui vê-lo outra vez. Ontem
porémfuiaumafestanumacidadezinha,atraídopelonomeda
Sra. Oliver, famosa escritora policial, que segundo contava iria
autografar seus livros; como sou grande fã da referida autora
resolviir.Oqueencontrei,porém,paraminhagrandesurpresa,
foi o homemque eu descrevi para o senhor na noite do crime.
Parecetambémqueeledeveter-seacidentadopoisestavanuma
cadeira de rodas. Discretamente consegui descobrir que se
tratava de um residente deMuchDeeping, chamado Venables,
proprietário de uma mansão chamada Priors Court. Disseram
tambémqueéumhomembastanterico.
Esperoqueestasnotíciassejamdoseuinteresse.
Sinceramente,
ZachariahOsborne
—Queacha?—perguntouLejeune.
—Nãomepareceprovável—respondeuCorrigan.
—Nãovamosnosdeixarlevarpelasaparências...
—Este taldeOsbornenãopoderia tervistopessoaalguma
numanoitedenevoeirocomoaquela.Vocêsabemuitobemque
cada vez que a polícia pede uma informação sobre um
desaparecidosemprevemumloucoprestardeclarações.
—MasOsbornenãoédessetipo—disseLejeune
—Quetipoé?
— É um farmacêutico respeitável, antiquado, e muito
observador.Osonhodavidadeleépoderumdiaidentificarum
assassinoquetenhacompradoarsêniconasuafarmácia!
Corriganriu.
—Entãoestacartapodeserumtípicocasodepensamento
mágico...
—Talvez.
CorriganolhouparaLejeunecomseriedade.
—Entãovocêachaquetalvezeletenharazão?
—Nãocustanadafazermosalgumasaveriguaçõessobreeste
Sr.Venables.
Capítulo9
NarrativadeMarkEasterbrook
I
—Avidanocampoéoutracoisa—exclamouHermia.
Tínhamosacabadodejantar.Anossafrenteumbuledecafé
fumegava.
Olhei para ela surpreso. Durante meia hora eu vinha
relatando minha história, que ela ouviu com interesse e
sagacidade. O que mais me irritou foi o tom indulgente do
comentáriodeHermia.
— Quem disse que o campo é monótono e as cidades
excitantesnãosabeoqueéviver—prosseguiuela.—Asbruxas
serefugiaramnasaldeias,eajudadaspeloscamponesesoficiam
missas negras; a superstição campeia, solteironas sacodem
guizosedesenham,nochão,símboloscabalísticos.Nãoseicomo
aindanãoescreveramsobreisso.Porquevocênãotenta?
— Não cheio que você tenha entendido o que eu estava
tentandodizer.
— Claro que entendi, Mark. Achei maravilhoso,
interessantíssimo. Parece uma página histórica ligada a uma
lendamedieval.
—Nãoestouinteressadoemhistória—respondiirritado—e
sim,emfatos.Numalistadenomesficosabendooqueaconteceu
aalgumasdessaspessoas,masoqueacontecerácomosoutros?
—Vocênãoestásedeixandolevarpelaimaginação?
— Não — respondi obstinado. — Não creio. A ameaça é
verdadeiraenãosoueuquempensaassimAmulherdovigário
concordacomigo.
— Ah! A mulher do vigário — comentou Hermia com
desprezo.
—Nãodiga“amulherdovigário”nestetom.Trata-sedeuma
senhorainteligenteeculta.Oqueeurelateiéverdade,Hermia.
Hermiadeudeombros.
—Podeser.
—Masvocênãoestáconvencida?
—Achoquevocêémuito fantasioso.Concordoqueaquelas
solteironas medievais acreditem no que dizem ser capazes de
fazer.Achomesmoqueelasdevemserhorripilantes.
—Enãosinistras?
—Ora,Mark!
Calei-meporunsinstante.Sentiminhacabeçaturvaporum
momento,oscilandoentrealuzeaescuridão.Aluzirradiadapor
HermiaeaescuridãorepresentadapeloCavaloAmarelo.Afinal,
ela estava iluminada pela luz elétrica, a mesma luminosidade
artificial e cotidiana que ilumina todas as coisas.Minhamente
voltouparaoescuro.
—Queroinvestigarestahistória,Hermia.Vouatéofim.
—Concordo,achoqueéocerto.Devesermuitointeressante
eatémesmodivertido.
—Nãotemnadadedivertido—protestei.—Queroqueme
ajude—continueimaiscalmo.
—Ajudá-lo?Como?
—Nasinvestigações.Chegaremosàsúltimasconseqüências.
— Mas meu querido, no momento eu estou ocupadíssima.
Tenho o artigo para o jornal, aquele trabalho sobre Bizancio e
prometiadoisalunos...
Elaprosseguiu,explicandonoseuirritantetomracional.Eu
nemmedeiotrabalhodeouvir.
— Sei, sei — disse eu, finalmente. — Você já está
sobrecarregadademais.
—Estoumesmo—sorriuHermiaaliviada.
Maisumaveznoteiosorrisodeindulgênciamaternal,como
seeufosseummeninoocupadocomumnovobrinquedo.
Maldição! pensei. — Não sou uma criança, não estou
procurando uma mãe, especialmente uma mãe do tipo de
Hermia.Minhamãeforaencantadoraeincompetente,cercadade
amoreamparoportodosnósqueadorávamoscuidardela.Olhei
paraHermia friamente: tãobonita, tãomadura, tão intelectual,
tãoculta!E...tão...tão...infinitamentechata!
II
Namanhã seguinte tentei em vão encontrar Jim Corrigan.
Deixei recado que estaria em casa às seis horas, caso ele
quisesse aparecer para um drinque. Como ele era um homem
muito ocupado duvidei que pudesse vir mas, para minha
surpresa, ele apareceu às dez para as sete. Enquanto eu
preparava umuísque com soda, Corrigan deu uma olhada nos
quadroselivros.Concluiu,porfim,quepreferiaternascidoum
imperadorMongolemvezdeummédicolegista.
— Embora esses imperadores — continuou Corrigan,
sentando-se — sofressem muito com as mulheres. Deste
problemaeuescapei...
—Nãoécasado?
—Dejeitoalgum.Vocêtambémnão,ajulgarpelaconfortável
bagunça em volta. Uma esposa arrumaria isto tudo em cinco
minutos.
Argumentei que asmulheres não eram tãomás assim.Em
seguida,encaminhei-me,commeudrinque,paraapoltronaem
frente.
— Deve ter-se perguntado por que eu precisava falar com
vocêtãourgentemente.Acontecequedescobrialgoquecreiotem
algumarelaçãocomaconversaquetivemosháalgumtempo...
—Conversa?Ah!...sim...sobreopadreGorman?
— Isto mesmo. Para começar o nome “Cavalo Amarelo”
significaalgumacoisaparavocê?
— Cavalo Amarelo? Cavalo Amarelo? Não, acho que não...
Porquê?
—Porquetalveztenhaalgumarelaçãocomalistadenomes
que você mostrou. Estive no interior com uns amigos... um
vilarejo chamado Much Deeping. Levaram-me a uma velha
hospedariachamada:OCavaloAmarelo.
—Espereai!MuchDeeping?ÉpertodeBournemouth?
—Unsdezquilômetrosmaisoumenos...
—PoracasovocêconheceuumsujeitochamadoVenables?
—Conheci.
—Émesmo?—Corrigan empinou-sena cadeira, animado.
—Quecoincidência.Comoéele?
—Umhomemmuitoestranho.
—Émesmo?Como,estranho?
—Demuitapersonalidade.Emborasejavitimadeparalisia
infantil...
—Oquê?—interrompeuCorrigan.
— Ele teve poliomielite há alguns anos. Ficou totalmente
paralisadodacinturaparabaixo.
Corriganatirou-separatrás,quasedeitandonapoltrona.
— Acabou... bem que eu achei bom demais para ser
verdade...
—Explique-se...
— Você precisa conhecer o Inspetor Lejeune. Quando
Gorman foi assassinado Lejeune pediu para as pessoas que
tivessem visto o padre naquela noite se apresentarem para
prestarinformações.Comosempreamaioriafoiinútil.Contudo,
um tal de Osborne, um farmacêutico, contou que viu Gorman
passar pela farmácia dele, naquela noite, seguido por um
homem.Éclaroquenahoraelenãodeumaioratençãoaofato,
embora mais tarde tenha descrito o tipo detalhadamente,
garantindo que seria capaz de reconhecê-lo caso o encontrasse
outra vez: Dias atrás, Lejeune recebeu uma carta de Osborne,
que atualmente está morando em Bournemouth, dizendo que
compareceuaumaquermesseequeviuosuspeitonumacadeira
derodas.SegundoOsborneonomedotipoéVenables.
Corriganolhouparamim.Meneeiacabeça.
—Venablesrealmenteestavanaquermesse.Masnãopodia
ter seguidoopadrenaquelanoite, seria fisicamente impossível.
Osborneseenganou.
—Eledescreveuosuspeitocomumaimpressionanteriqueza
de detalhes. Um metro e oitenta, nariz adunco, pronunciado
pomodeAdãoetc.Confere?
—Sim,éadescriçãodeVenables.
— Acho que Osborne não é tão bom fisionomista quanto
imagina.ÉóbvioqueeleestáconfundindoVenablescomalgum
sósia.OquetemistotudocomaestalagemdoCavaloAmarelo?
— Você não vai acreditar! Para dizer a verdade nem eu
acredito.
—Conte.
RelateiminhaconversacomThyrzaGrey.
—Quantabesteira!—foiareaçãoimediatadeCorrigan.—O
quehácomvocê?
—Nãosei.
— Não sabe? Búzios, galos brancos, missas negras,
sacrifícios humanos. Três velhas solteironas expelindo raios
mortais.Éloucura,loucuracompleta.
—Eusei—concordeisombriamente.
— Não concorde comigo desta maneira, Mark. Dá a
impressãodequevocêestácerto.Nofundo,vocêachaqueestá
certo?
— Posso fazer uma pergunta? Existe realmente uma teoria
científica sobre o desejo de morte sempre presente no ser
humano?
Corriganpareceuhesitar.
—Nãosoupsiquiatra.Aquientrenósachoessescarasuns
loucos. Vivem formulando teorias absurdas. Nós, da Polícia,
detestamosastestemunhaseruditasquesempreaparecempara
defenderoréueexplicarporqueelematouavelhinhaeroubou
odinheirodocofre.
—Vocêprefereateoriaglandular?
Corrigansorriu.
—Concordotambémquesouumteórico.Masminhateoria
está apoiada numa base física. Agora esta conversa de
subconsciente!
—Vocênãoacreditanela?
—Claroqueacredito.Masnãocomoessesdementes.Seique
existeumdesejodemorteinconscientemasnãocreioqueatinja
osexagerosdessespsiquiatras.
—Masexiste!—insisti.
—Porquevocênãocompraumbomlivrodepsicologia?
—ThyrzaGreydizquejáatingiuoâmagodestaciência.
— Thyrza Grey! — remendou Corrigan, com desprezo. —
Como uma solteirona do interior pretende entender problemas
psicológicostãoprofundos?
—Eladizqueentende.
—Eeudigoqueébesteira.
—Éareaçãotípicadaspessoasquenãoqueremmudarsuas
teoriaspreconcebidas.
—Querdizerquevocêengoliutodaaquelaxaropada?
— Não é bem isso — retruquei. — Quero saber se existe
algumateoriacientificabaseadanestahistória.
—Teoriacientífica!
—Estábem,estábem.Sóestavaquerendosaber.
—DaquiapoucovocêvaidizerqueelaéadonadaCaixa.
—DonadaCaixa?
—Uma dessas invencionices tipo Nostradamus. Tem gente
queacreditaemqualquercoisa.
—Pelomenosdigacomovaiindoalistadenomes.
—Meupessoal tem trabalhadonisso,masnãoé fácil.Tipo
do serviço rotineiro que leva tempo. Não é fácil acharmos uma
pessoasópelosobrenome.
— Examinemos a questão por outro ângulo. Num período
relativamentecurto...deumanoemeioparacá,porexemplo...
cada um desses sobrenomes apareceu num atestado de óbito,
nãoémesmo?
Corriganolhouparamimespantado.
—Nãoseiaondequerchegar,mastemrazão.
—Essesnomes,portanto,têmemcomumsomenteamorte.
— O que não quer dizer muita coisa, Mark. Você sabe
quantas pessoas morrem diariamente? Além do mais, alguns
nomesdatallistasãobastantecomuns...
—Delafontaine—disseeu.—MaryDelafontaine.Nãoéum
nomemuitocomum.Morreuquinta-feirapassada.
—Comosabe?Leunojornal?
—Umaamigadelamecontou.
—Nãomorreudenadasuspeito,segundosoube.Paradizera
verdadeacausamortisdepessoaalgumadessalistaésuspeita.
Nãosetratadeacidentesesimdemortesnaturais:pneumonias,
hemorragiascerebrais,tumores,umcasodepoliomielite...como
vê,nadasuspeito.
— Não é acidental, nem envenenamento. Uma doença que
leva àmorte.Exatamente comoThyrzaGreypromete ser capaz
dematar.
— Você acha possível que essa mulher possa causar
pneunomia numa pessoa que ela não conhece e que inclusive
moraemoutracidade?
— Não disse isso. Ela é quem diz que é possível. Acho
fantásticoegostariadeacreditarquefossementira.Masexistem
fatosestranhos,comoamençãodoCavaloAmarelo,relacionados
em conexão com o afastamento de pessoas indesejáveis. Nas
redondezasviveumhomemquefoireconhecidocomoosuspeito
que seguiu o padre Gorman na noite do crime quando foi
reveladoaopadreumcasode“grandemaldade”.Nãoachamuita
coincidência?
—Mas,segundovocê,essesuspeitonãopodeserVenables,
umavezqueestesenhoréparalítico.
—Quemsabenãoéumaparalisiafalsa?
—Não.Osmembrosnãoestariamatrofiados.
— Por esse lado não poderemos prosseguir — suspirei. —
Pena!Seexisteumaorganizaçãoqueseespecializana“remoção”
depessoas,Venablesseriaocabeça.Éumhomemriquíssimo...
mas eu gostaria de saber como ficou tão rico. — Fiquei uns
instantescalado,formulandomeuraciocínio.
— Essas pessoas que morreram desta ou daquela doença
deixaramoutrasquelucraramcomsuamorte?
—Semprealguémlucracomamortedeumapessoa.Nesses
casos,porém,nãohouvenadaquenosparecessesuspeito.
—Sei.
— Lady Hesketh-Dubois, como você sabe, deixou uma
herançade50.000librasparaumsobrinhoeumasobrinha.Ele
vive no Canadá, e ela no Norte da Inglaterra. É verdade que
ambos necessitavam do dinheiro. Thomasina Tuckerton era
herdeira de uma grande fortuna; caso morresse, antes de
completarvinteeumanos,odinheiroreverteriaasuamadrasta
que me pareceu ser uma criatura honesta. No caso da Sra.
DelafontaineaherançafoiparaumaprimaquemoraemQuênia.
— Todos conspicuamente ausentes — comentei, com
amargura.
Corriganfuzilou-secomosolhos.
—UmtaldeSanford,queempacotoutambém,deixouuma
esposamuitomaisjovemquejácasououtravez.Ofalecidonão
queriadar-lheodivórcio.SydneyHarmondsworth,quefaleceude
uma hemorragia cerebral, estava sendo procurado pela policia:
suspeita de chantagem. Creio que vários figurões da política
ficaramsatisfeitoscomseudesaparecimento.
—Você está insinuandoque todas essasmortesnão foram
tãocasuais?
Corrigansorriu.
—NãoesqueçaquemeunomeéCorriganetambémestána
lista. Os Corrigan que morreram nestas três semanas não
trouxerambenefíciosparapessoaalguma.
—EntãoquemsabevocênãoéoCorriganqueelesquerem?
Tomecuidado.
—Obrigado.EsperoqueaBruxa-Mornãomematedeúlcera
noduodenooudegripeespanhola.Nãosoutãoingênuoassim!
—Ouça,Jim,queroinvestigarestahistóriadeThyrzaGrey.
Possocontarcomsuaajuda?
— Não. Não compreendo um cara inteligente como você
embarcarnumaxaropadadessas!
Suspirei.
—Vocênãopodiausaroutrapalavra?Jácanseidesta...
—Besteirada,seprefere.
—Nãogostei.
—Teimoso,hein?
—Alguémtemqueserteimosonestahistória.
Capítulo10
Eraumapropriedadenovaemfolha.Tãonovaqueaofundo
viam-se pedreiros trabalhando nos muros que envolviam os
jardins da casa. No portão principal lia-se o nome da casa:
Everest.
O Inspetor Lejeune reconheceu sem dificuldade uma figura
rubicundaqueestavadecostasparaele,ocupadonoplantiode
alguns canteiros. Assim que o inspetor abriu o portão o Sr.
ZachariahOsbornelevantou-separaverquemeraointruso.Ao
reconheceravisitaseurostocoroudeprazer.OSr.Osbornenão
haviamudadoquasenadacomsuatransferênciaparaocampo;
eraomesmofarmacêutico,sóqueagoraestavafantasiadonum
macacão.
Enxugandoa careca reluzente, oSr.Osborneaproximou-se
dopolicial.
— Inspetor Lejeune — exclamou, — quanta honra! Recebi
sua carta mas não esperava receber sua visita. Bem-vindo ao
meu castelo, bem-vindo ao Everest. Está surpreendido com o
nome?SempremeinteresseipeloHimalaia.Seguipassoapasso
a expedição do Everest. Que triunfo para nós! E que homem
admirável Sir EdmundHilary. Que perseverança! Pessoalmente
nuncapasseiporsituaçõesdifíceis,masadmiroumhomemque
larga uma boa vida para se arriscar numa escalada desta
natureza.Mas,entreevenhatomarumrefresco.
OSr.OsborneconduziuoInspetoratéumbangalôdecorado
simplesmente,masimaculadamentelimpo.
—Aindanãoestápronto—explicouOsborne.—Freqüento
muitoliquidaçõesparaarranjarumaspeças,àsvezesvaliosas,e
quenas lojas custamos olhosda cara.Quedeseja tomar?Um
sherry? Cerveja? Chá? Posso ferver água e fazer um chá num
minuto.
Lejeunepreferiucerveja.
—Ótimo!—exclamouOsborneretornando,emseguida,com
duascanecasdeestanho.—Sente-seedescanse.
FindasasamenidadessociaisoSr.Osborneinclinou-separa
oinspetor.
—Minhainformaçãofoidealgumautilidade?
Lejeuneprocurouagircomtato.
—Decertaforma,não.
—Quepena! Se bemque eu sei queumapessoa, vista na
rua, na mesma direção do padre Gorman, não precisaria
necessariamente ser o assassino. Seria querer demais. Além
disso, esse Sr. Venables é rico e muito benquisto na cidade,
freqüentandosempreasmelhoresfamílias.
—O caso é quenãopode ter sido oSr.Venables apessoa
queosenhorviunaquelanoite.
Osbornequasepuloudacadeira.
—Masera!Nãotenhoamenordúvidadequeera.Nuncame
enganocomumafisionomia.
—Destavez,porém,creioqueseenganou—disseLejeune.
—OSr.Venablessofreuumataquedepoliomielite.Hátrêsanos
éparalíticodaspernas.
— Poliomielite!— exclamouOsborne.—Neste caso...mas,
semquererofenderninguém,osenhor temalgumdadomédico
quecomproveisso?
— Sim, tenho. O Sr. Venables é cliente de Sir William
Dugdale,umadasmaioressumidadesmédicasdaInglaterra.
—Claro,claro.Ummédicomuitoconhecido.É,achoqueme
enganei redondamente, mas tinha tanta certeza. Desculpe
incomodá-locomtãopouco.
—Nãofiqueaborrecido—disseLejeune.—Suainformaçãoé
muitovaliosa.Vejabem,ohomemqueosenhorviulembramuito
oSr.Venables,queéumtipomarcanteeestranho.Portanto,não
devemexistirmuitaspessoasquecorrespondamaestadescrição.
— É mesmo — concordou Osborne, alegremente — Um
criminosoqueseparececomoSr.Venables.Talveznosarquivos
dapolícia...
OsborneolhouansiosamenteparaLejeune.
—Nãocreioquesejatãosimplesassim—disseo Inspetor.
— O suspeito pode não ser fichado e além do mais, como o
senhor disse há pouco, pode não ser necessariamente o
assassinodopadreGorman.
OSr.Osborneficoutristenovamente.
— Desculpe, mas eu tinha tantas esperanças! Queria ser
testemunhadeumcrime...queriaverseadefesaconseguiriame
destruir.Ah!
LejeuneolhouparaOsbornepensativo.
— Sim?— perguntouOsborne ansioso, diante do olhar do
Inspetor.
—Porqueosenhornãoseriadestruído?
Osbornepareceusurpresocomapergunta.
— Porque tenho tanta certeza... sei, sei que o senhor me
explicouquenãoerapossívelquefosseomesmohomem.Mesmo
assim...
—Talvez o senhor esteja se perguntando por que vimhoje
aqui.Alémdomais,seeutenhoprovasmédicasdequeosenhor
nãopoderiatervistooSr.Venables,quepossoquerer?
—Émesmo.Porqueveio?
— Porque a certeza ferrenha da sua identificação me
impressionou— respondeu Lejeune.—Queria saber em que o
senhorbaseiasuacerteza.Anoiteeradenevoeiro,lembra-se?Já
estivenasuafarmácia,paradonolugaremqueosenhorparou
naquelanoite.Poisbem,numanoitedeneblinamepareceque
seria difícil, quase impossível, distinguir tão precisamente as
feiçõesdeumapessoa.
—Osenhortemrazãoatéumcertoponto.Aneblinaestava
começando a baixar, em camadas. Certas partes da rua,
portanto,aindaestavamclaras.QuandoeuviopadreGorman,
andando depressa, vi nitidamente também o homem que o
seguia.Porcoincidência,quandoeleparou,debaixodeumposte,
parareacenderocigarro,seuperfilsedelineounítidocomoàluz
dodia:onariz,oqueixo,oenormepomodeAdão.Quehomem
estranho! pensei.Nunca o tinha visto antes, poisme lembraria
delecasofossemeufreguês.Logoeu...
—Entendo—interrompeuoInspetor.
—Umirmão?—sugeriuOsborne.—Umirmãogêmeo,quem
sabe?Seriaoideal.
— Ideal? — sorriu Lejeune, sacudindo a cabeça. — Estes
casossóacontecemnocinema,navidarealporém...
— Acho que tem razão, mas quem sabe um irmão ou um
parentepróximo?
—NãotemosconhecimentodequeoSr.Venablestenhaum
irmão—respondeuLejeune.
— Não tem conhecimento, o senhor disse? — perguntou
Osborne,vagarosamente.
— Embora ele tenha passaporte inglês, nasceu no
estrangeiroesóveioàInglaterracomonzeanos.
—Nofundosabe-sepoucosobreeleesuafamília,nãoé?
—Comefeito—concordouLejeune.—Nãoéfácilconhecer
bemosantecedentesdoSr.Venables,anãoserquealguémvá
diretamente ao próprio... e infelizmente não temos razão para
fazê-lo.
Lejeune falou num tom deliberado, sem dar a entender a
Osbornequeapolíciapossuíameiosdedescobriraorigemdeum
suspeito.
—Demaneiraque—prosseguiuLejeune, levantando-se,—
senão fossepela evidência física o senhor teria certezada sua
identificação?
—Teria—respondeuOsborne,prontamente
— Tenho mania de guardar fisionomias. Já surpreendi
muitos fregueses desta maneira. Como vai a asma? eu
perguntava a uma freguesa que não via há anos. Ela
naturalmenteseespantava!Ouentão:Asenhoraesteveaquiem
março do ano passado com uma receita do Dr. Hargreaves. A
criaturanaturalmenteficavaadmiradaealémdomaiseulucrava
com isso.Aspessoasgostamdeser lembradas, emboraeunão
fossetãobomparaguardarnomes.Háanosquevenhofazendo
isso... afinal, se os membros da família real podem conseguir
isso,eutambémacheiquepoderia.Depoisdecertotempotorna-
seautomático,eagentenemprecisaseesforçar.
Lejeunesuspirou.
— Gostaria de ter uma testemunha assim — disse, — a
identificação geralmente éumnegócioperigoso.Aspessoas são
muito descuidadas e dizem coisas como: Alto, eu acho, de
aparênciacomum,olhosazuisoucinzas,talvezcastanhos.Capa
dechuvacinza,ouseráqueeraazul?
Osborneriu.
—Nãosãodegrandevalia,nãoé?
— Para dizer a verdade, uma testemunha como você seria
umadádivadoscéus.
Osbornesorriufeliz.
—Éumdom—disse ele, satisfeito.—Umdomcultivado,
notebem!Secolocaremumaporçãodeobjetosnumabandejae
emseguidamevendaremosolhos,sereicapazderepetirtodosos
objetos que vi. Nas festas quando faço esta proeza sou muito
aplaudido.
Osdoisriram.
—Estousatisfeitocomestacasaecomosvizinhos.Háanos
quevenhoesperandoporisso,mas,aquientrenós,sintofaltado
trabalho.Semprealguémentrandoousaindo;tiposparaestudar.
Aqui tenhomeu jardimealgunshobbies:colecionarborboletas,
observarospássaros,masnuncapenseiquefossesentirfaltade
gente.Nãomeinteressoporviagens.QuandoestivenaFrançasó
passei um fim de semana e francamente não gostei. Paramim
nãohálugarcomoaInglaterra.EmParisnãosabemfritarovos
compresunto.
Osbornedeuumsuspiro.
—Comoosenhorvê,anaturezahumanaémuitocomplexa.
Nãoviahorademeaposentareagora jáestoucomvontadede
abrir uma pequena farmácia em Bournemouth. Nada que me
prendaodia inteiro,masquesejao suficienteparaqueeume
sinta útil. O senhor terá o mesmo problema quando se
aposentar.
Lejeunesorriu.
—Avidadeumpolicialnãoétãoromânticaquantoimagina.
Osenhorvêocrimedopontodevistadeumleigo.Amaiorparte
dos casos é pura rotina; não passamos o dia perseguindo
criminososou investigandopistasmisteriosas.Naverdade,meu
caroSr.Osborne,éumtrabalhobastantemonótono.
— O senhor é quem sabe — disse Osborne, num tom
incrédulo. Adeus, Inspetor, e desculpe não poder ajudá-lo. Em
todocaso,estousempreàsordens.
— Não se preocupe que se precisar eu o procurarei —
prometeuLejeune.
— O dia da quermesse pareceu-me uma ocasião rara... —
murmurouOsbornetristemente.
— Compreendo, mas infelizmente o laudo médico sobre
Venableséenfático.
—Bem—disseOsborne.
Lejeunenãopareceuouvir,poisretirou-sefechandooportão.
Osborneficounajanela,olhandoparafora.
—Laudomédico!—murmurou.—Queméqueacreditaem
médico? Se ele conhecesse os médicos tão bem quanto eu! A
políciaédeumainocência!
Capítulo11
NarrativadeMarkEasterbrook
I
Primeiro Hermia, agora Corrigan. E daí? Que importância
tinham eles? Que me chamassem de louco! Para mim aquela
xaropada era verdade. Eu tinha sido hipnotizado por uma
vigaristachamadaThyrzaGreyepasseiaacreditaremtodasas
loucuraspossíveis!
Resolviesquecertudo.Afinal,nãopodiacontinuarperdendo
tempo,masuma frase continuava a ecoar naminhamente:—
Vocêprecisaagir!EraavozdaSra.DaneCalthrop.
Fácilfalar.
—Precisadeajuda!—disse-meela.
PreciseideHermia,deCorrigan,mas elesnãomeouviram.
Nãopodiacontarcomamigoalgum.Anãoserque...
Fiqueidepé,unsinstantes,pensando.
ResolvitelefonarparaaSra.Oliver.
—Alô...aquiquemfalaéMarkEasterbrook.
—Sim,comovai?
— Como é o nome daquela moça que estava conosco na
quermesse?Lembra-se?
—Creioquesim...Ginger,euacho.
—Até aí eu tambémme lembro. Espero que ela tenhaum
sobrenome.
—Claroquetem!Sóqueeunãoseiqualé!Hojeemdianão
seusamais isso.Aliás, eua conhecinaqueledia.Achomelhor
vocêtelefonarparaRhoda.
Nãogosteidaidéia;nãoseiporque,sentivergonha.
—Ficosemgraça...—disseeu.
— É muito simples — interveio a Sra. Oliver, — Diga que
perdeuoendereçodelaeque lheprometeuenviarumdosseus
livros;ouentãoquequersaberonomedalojaquevendeaquele
caviar divino; ou que precisa devolver um lenço que ela lhe
emprestou no dia em que correu sangue do seu nariz; ou que
precisadoendereçoparaumamilionáriaquequerrestaurarum
quadro. Qual destas desculpas você acha melhor? Se quiser,
possosugerirpelomenosmaisumadúzia...
—Muitoobrigado,nãoénecessário.
Desliguei.TelefoneiparaRhoda.
—Ginger?—perguntouRhoda.—MoraemCalgaryPlace,n.
°45.Espereaíquevoudarotelefone...é35787.Anotou?
—Sim,obrigado.Qualéosobrenomedela?
— É Corrigan. O nome completo dela é Ginger Katherine
Corrigan.Oquevocêdisse?
—Nada...obrigado,Rhoda.
Pareceu-meuma estranha coincidência.Corrigan!Seriaum
aviso?Disqueionúmero.
II
Gingerencontrou-secomigoparatomarumdrinquenumbar
chamadoCacatuaBranca.Confirmeiminhaimpressãosobreela:
umabelaruiva,sardenta,deolhosverdessemprealertas.
—Leveiumcertotempoparadescobri-la—disseeu.—Não
sabia seusobrenome, seuendereçoouseu telefone.Estoucom
umproblema.
—Minhaempregadadissequepelasuavoztinhacertezade
quevocêestavaemapuros.
—Nãoébemisso.Ouça...
Contei em poucas palavras o mesmo que havia relatado a
Hermia. Como temesse um sorriso de indulgência ou um
incréduloespantorefletidonosverdesolhos,eviteiolharparaela.
Oconteúdodahistóriamepareceumaisabsurdoainda,eachei
querealmentesóaSra.DaneCalthroppoderiamecompreender.
Disfarçadamente fiquei desenhando com um garfo a toalha de
plástico.
—Étudo?—perguntouGinger,vivamente.
—É—concordei.
—Oquepretendefazer?
—Aindanãosei,masnãopossoficarparadoenquantouma
organizaçãodessassatisfazumaclientelacriminosa.
—Oqueachaquepossofazer?
Tive que me conter para não beijá-la. Ginger calmamente
continuavasorvendoseuPernod.Destemomentoemdiantenão
mesentimaissó.
—Vocêvaiterquedescobrirtudo—disseela,depoisdeuma
pausa.
—Concordo,mascomo?
—Achoqueexistemdoiscaminhosetalvezeupossaajudá-
lo.
—Mas,eoseuemprego?
—Nãomeocupaodiainteiro—respondeuela.—Estatalde
Poppydevesaberalgomais...nãotenhoamenordúvida...
— Eu sei que sabe, mas quando tentei averiguar ela se
assustou.
—Comigoseriadiferente—sorriuGinger.—Paramimela
diria coisas que não contaria a você. Procure arranjar um
encontro, para irmos ao teatro ou um jantar. Se não lhe
atrapalharfinanceiramente,éclaro.
Assegurei-lhequemeusproblemaseramoutros.
— Quanto a você — prosseguiu Ginger, — creio que deve
partirdocasodeThomasinaTuckerton.
—Como,seelamorreu?
—Ealguémqueria que elamorresse... se é que sua teoria
tem algum fundamento. Se foi combinado no Cavalo Amarelo
existem duas suspeitas. Amadrasta ou amoça com quem ela
brigou no restaurante. Qualquer uma das duas pode ter
contratadoosserviçosdoCavaloAmarelo.Comoeraonomeda
outramoça?
—AchoqueeraLou.
—Umalouradecabelocinza,alta,bemservidadebusto?
Concordeicomadescrição.
—Achoqueseiquemé.LouEllis,queporsinaltambémtem
bastantedinheiro.
—Nãoparecia.
— É moda hoje em dia não parecer rica. De qualquer
maneira,LoupoderiapagaratarifadoCavaloAmarelo.Imagino
queelesnãotrabalhemdegraça.
—Nãocreio.
—Enquantoisso,vocêvaivisitaramadrasta...
—Nãoseiondemoranem...
—Luigidevesaber.Alémdomais,vocêviuocomunicadoda
mortedeThomasinano jornal.Bastaprocurarnosarquivosdo
jornal.
— Tenho que arranjar um pretexto para procurar essa
senhora.
Gingergarantiuquenãoseriadifícil.
— Você é um homem conhecido — continuou ela,
animadamente.—Umhistoriador,umconferencista,umautor.
ASra.Tuckertonficaráimpressionadaefelizdeconhecê-lo.
—Sobquepretexto?
—Algumapeçade interesseda casadela, por exemplo?—
sugeriuGinger.—Devehaveralgoantigo...
—Maseusouhistoriador.
—Elanãoprecisasaber.Alémdomais,paraamaioriadas
pessoas qualquer objeto com mais de cem anos passa a ter
interesse histórico ou arqueológico. Talvez um quadro? Deve
haver um quadro qualquer. Enfim, você tenta marcar uma
entrevista, encanta a mulher com seu charme e casualmente
refere-se à filha dela, ou melhor, à enteada. De repente, sem
maioresexplicações,fazmençãosobreoCavaloAmarelo.Sejaaté
umpoucosinistro,sequiser.
—Edaí?
—Daíobserveasreações.Se falarnoCavaloAmareloeela
tiverculpanocartório,duvidoquenãodemonstrecoisaalguma...
—Casodemonstre,quefaçoeu?
— O importante é sabermos se estamos na pista certa.
Quandotivermoscertezateremosqueagirdeoutraforma.Além
domais—prosseguiuGinger,—porqueseráqueThyrzaGrey
faloutãoabertamentecomvocê?
—Porqueélouca?
—Não é sópor isso. Por que escolheu você emparticular?
Tinhatantagente.Devehaverumarazão.
—Porexemplo?
— Espere aí, deixe-me pensar. Ficamos uns instantes
calados.
Suponha que Poppy saiba vagamente o que acontece no
Cavalo Amarelo, não por ser uma participante da organização,
masporqueouviualgumaconversa.Aliás,elaparecesero tipo
depessoadequemnãosetomamuitoconhecimentoportercara
dedébilmental.Poisbem,quemsabealguémouviuaconversa
que vocês tiveram no restaurante? E a ameaçou? No dia
seguinte, quando você foi procurá-la, ela já estava apavorada...
masoquedeveterintrigadoaorganizaçãoéoseuinteressepor
eles. Eles sabem que você não é da Polícia, portanto o mais
prováveléquevocêtalvezsejaumpossívelcliente.
—Mascomcerteza...
—Éomais lógico.Vocêouviuumboatoequerdescobrira
fonte para poder usufruir dos seus benefícios. Aparece numa
quermesse,élevadoaoCavaloAmarelo,equemsabenãoforçou
a ida?Emseguida, o queacontece?ThyrzaGrey lançamãodo
mostruáriodevendas!
— Pode ser— concordei.— Você acha que ela é capaz de
mataralongoalcance?
—Paradizeraverdade,não.Masascoisasmaisestranhas
acontecem. Veja o hipnotismo, por exemplo: você manda uma
pessoadarumamordidanumavela.Nodiaseguinte,semsaber
porque,apessoaàsquatrohorasdatardelevanta-seedáuma
mordida na vela! São coisas estranhas... quanto a Thyrza, não
creioquesejacapaz,masDeusnoslivreseelativerrazão.
—Éexatamenteomeupontodevista.
—VouaveriguaromaisquepudersobreLou—disseGinger.
—Seiondeencontrá-la.Oprimeiropasso,porém,éPoppy.
Não foi difícil marcar o encontro. Três dias depois nos
encontramos para ir ao teatro, David com Poppy a tiracolo,
Gingereeu.MaistardefomosjantarnoFantasie,ondeGingere
Poppy depois de horas no toalete reapareceram felicíssimas.
Duranteo jantarnãohouvediscussõescontrovertidas, segundo
sugestãodeGinger.Finalmente,nosdespedimosamigavelmente
eeuleveiGingerparacasa.
—Não tenhomuito que contar— disse ela.— Estive com
Lou, ontem. O causador da briga foi Gene Pleydon, um tipo
indesejável,quefazmuitosucessocomasmulheres.Pareceque
estavamderomancequandoTommyapareceue,comoeramais
rica,Gene largouLouno ato, o quenaturalmente a enfureceu.
Quantoàbriga,eladissequenãopassoudeumafortediscussão.
—Fortediscussão!?ElaarrancouoscabelosdeTommypela
raiz!
—EstoucontandoaversãodeLou.Éumamoçafrancaque
faladosseuscasosparaquemquiserouvir.Temumnovocaso,
porquemestá loucamenteapaixonada,portantonãopareceser
cliente do Cavalo Amarelo. Além do mais, quando falei da
estalagem, ela não tomou conhecimento. Creio que podemos
eliminá-ladalistadesuspeitos.Luigi,porseulado,tambémnão
achou a briga muito séria; acha que Tommy estava realmente
interessadaemGene,noqueeracorrespondida.Eamadrasta?
— Está no exterior, deve voltar amanhã. Mandei minha
secretáriaescreverumacarta,marcandoumencontro.
—Ótimo.Esperoquetudodêcerto.
—Será?
— Uma das pistas vai funcionar — respondeu Ginger
entusiasmada.—Outra coisa, segundo vocême disse, o padre
Gorman foi assassinado porque ouviu a confissão de uma
mulher. Que aconteceu com esta mulher? Morreu? Quem era
ela?
—Morreumasnãoseicoisaalgumasobreela.Achoquese
chamavaDavis.
—Nãopodedescobrirmais?
—Vouver.
—Poderemosdescobriroqueelasabiaquandomorreu.
—Entendo.
NodiaseguintetelefoneiparaJimCorrigan.
— Deixe ver... conseguimos algumas informações sobre a
mulher... seu nome de solteira era Davis... tenho uns
apontamentos sobre a investigação. Cá estão! O nome dela de
casada era Archer, foi casada com um larápio de quem se
divorciou.VoltouausaronomedeDavis.
— Que tipo de larápio era Archer? Onde se encontra
atualmente?
— Nada de importante. Roubava objetos das lojas. Preso
váriasvezes.Atualmenteseencontranocemitério,morto.
—Poresseladonãoiremoslonge.Continue.
—A firma em que a Sra.Davis trabalhava, por ocasião do
seu falecimento, chama-se R.C.C. (Reação Classificada de
Consumidores) e lá não souberam informar muita coisa nem
sobreelanemsobreoseupassado.
Agradeciedesliguei.
Capítulo12
NarrativadeMarkEasterbrook
Gingertelefonoutrêsdiasdepois.
—Tomenota—disseela—deumnomeeumendereço.
—Podefalar.
—OnomeéBradleyeoendereçoéPrédioMunicipal,78,em
Birmingham.
—Eoquevemaseristo?
—Comoéqueeuvousaber?DuvidoquePoppysaiba...
—Poppy?Esteé...
— Consegui arrancar este endereço dela, depois de muito
custo.
—Quemétodovocêempregou?
Gingerriu.
— Conversa de mulher, você está por fora. Geralmente as
mulheresconfiamnosmembrosdoprópriosexo.
—Comosefosseumsindicato?
—Mais ou menos. Almoçamos juntas e eu falei de minha
vida amorosa. Inventei um homem casado com uma megera
católica quenão lhe daria o divórcio e transformou a vida dele
numinferno.Alémdomais,elaéinválida,cheiadedoençasmas
quenão vaimorrer tão cedo; aliás, seria até bompara ela que
morresse.AíeudissequetinhaouvidofalarnoCavaloAmarelo,
mas que não sabia como dar o primeiro passo. Será que eles
cobrammuitocaro?Poppytinhaouvidodizerqueospreçoseram
exorbitantes. Aí eu entrei com uma conversa sobre um tio-avô
que vai deixar uma fortuna paramim... o que aliás é verdade,
apesar de eu não ter o menor interesse em que ele morra já.
PergunteiaPoppyseopessoaldoCavaloAmareloreceberiauma
garantia.Sóseiqueelaapareceucomestenomeeesteendereço.
Achobomvocêtentar...
—Fantástico—murmurei.
—Nãoémesmo?
Ficamos uns instantes calados, ocupados com estas novas
revelações.
— Ela falou sem medo? Abertamente? — perguntei,
incrédulo.
— Você não entende — respondeu Ginger, impaciente. —
Contarumacoisadessasparaumaamiganãotemimportância.
Afinal,comoéqueelesvãonegociarsenão fazempropaganda?
Na certa estão precisando de novos clientes, de maneira que
precisamfazerpublicidade.
—Queloucura!Comoépossívelacreditarmosnisso?
—Tambémachoque somos loucos.Mas sóquero saber se
vocêvaiounãofalarcomoSr.Bradley?
— Claro que vou — respondi. — Se é que ele realmente
existe.
AcheiahistóriadeGingerincrível,maslogodescobriqueera
verdadeira. Cheguei sem maiores dificuldades ao Prédio
Municipal e descobri que o Sr. Bradley ocupava uma sala no
terceiroandar.Numaportadevidrolia-se,emletraspretas:
C.R.BRADLEY
AGENTE
podeentrar
Obedeci.
Penetrei numa pequena saleta. Ao fundo uma porta
entreaberta.
—Entre,entre,porfavor—comandouumavoz.
Entrei num escritório espaçoso, mobiliado com uma
escrivaninha,duaspoltronas,umarquivoeumtelefone.Atrásda
mesa o Sr. Bradley, um homem baixo e moreno, de olhar
brilhanteeperspicaz,vestidonumcorretoternoescuro.Oretrato
escritodahonestidadeedacorreçãoprofissional.
—Queirafecharaporta,sim?—pediuele,agradavelmente.
— Sente-se nesta cadeira, é mais cômoda. Aceita um cigarro?
Não?Emquepossoser-lheútil?
Olheiparaelesemsabercomoprincipiar.Nãotinhaamenor
idéia do que deveria dizer. Creio que o desesperome fez partir
paraumataquefrontal.
—Quantocusta?—perguntei.
Ele pareceu levar um susto, notei com satisfação,mas sua
calmaefriezaomantiveramimpassível.
—Bem,bem—disseoSr.Bradley,—osenhorpareceque
nãogostadeperdertempo...
Mantiveminhaposição.
—Qualéaresposta?
—Nãoéassimquevamosconseguirchegaraumacordo—
retrucou ele, sacudindo a cabeça, num tom de reprovação. —
Devemosobservaroprotocolo.
—Qualéoprotocolo?
— Ainda não nos apresentamos, não é verdade? Não sei o
seunome.
—Nomomentonãoestoucomvontadededizermeunome.
—Cuidado?
—Sim.
— A precaução é uma excelente qualidade, mas não é
prática.Quemomandouaqui?Quemfoinossocontato?
— Também não posso dizer. Um amigo de um amigo que
conheceuumamigoseu...
—Geralmentetrabalhocommuitosclientesdestamaneira—
disse Bradley, meneando a cabeça. — Alguns com problemas
bastantedelicados.Osenhorsabequaléminhaprofissão,nãoé?
Bradleynãoesperouminharesposta.
—Souumagente turfista—continuouele.—Osenhorse
interessa por cavalos? Houve uma ligeiríssima pausa antes de
pronunciaraúltimapalavra.
—Não costumo jogar— respondi inseguro, semquererme
comprometer.
—Éumesportecheiodepossibilidades.Vejaascorridas,a
caça,acriação.Eu,particularmente,me interessoporqualquer
tipodeaposta...
Bradleycalou-seporummomentoedepoisacrescentounum
tomcasual,casualdemais,eudiria:
— O senhor está interessado por algum cavalo
especificamente?
Sacudiosombroseresolviqueimarmeuúltimocartucho.
—Umcavaloamarelo...
— Muito bem, excelente. Apesar de parecer um tipo
interessadoemoutroscavalos...nãose inquiete,por favor,não
hámotivo!
—Éfácilfalar—disseeurudemente.
OSr.Bradleytornou-semaissolícitoainda.
—Posso compreendermuito bemseu estadode ansiedade.
Posso garantir tambémquenãohá razãopara seunervosismo.
Eu, que souadvogado, ex-advogado, é claro, seria o primeiro a
desaconselhá-lo de qualquer atividade ilegal. Só recomendo
coisas seguras, legais. Trata-se de uma aposta e não há lei no
mundoqueproíbaumhomemdeapostarnoquequiser,sejana
chuvadeamanhã,naidadeumrussoparaaLuaounosgêmeos
que talvez suamulher esteja esperando. Pode apostar também
que aSra.Bmorrerá antes doNatal ou que aSra.C vai viver
muitosanosainda.Aapostaé feita,um julgamentopuramente
subjetivoepessoal.Nadamaissimples.
Senti-me como um paciente duvidoso da habilidade de um
cirurgião.Nãopudedeixardeadmiraracompetênciaprofissional
deBradley.
—Para falar a verdade—disse eu, vagarosamente,—não
conheçobemofuncionamentodoCavaloAmarelo.
— E isso o preocupa? Na verdade preocupa a maioria dos
nossosclientes.Existemmaiscoisasnocéuenaterra,Horácio
etc.etc.[03]Paraserfranco,nemeuconheçobem,masseiquedá
sempreótimosresultados...
—Seosenhorpudessesermaisexplícito...
Mantive minha posição: cuidadoso, angustiado e medroso.
Obviamenteumaatitudebastantecomumporpartedaclientela
doSr.Bradley.
—Osenhorconheceolugar?
Seriaestúpidonegar.
—Conheço...estivelácomunsamigos.
—Umaestalagemmaravilhosa,repletadeinteressehistórico.
Elas se esmeraram na restauração. O senhor conheceuminha
amigaThyrzaGrey?
—Sim,claro.Achei-aumamulherextraordinária.
—Não émesmo?Não émesmo?O senhor disse o adjetivo
exato. Uma mulher extraordinária, dona de poderes
extraordinários.
—Maséimpossívelacreditar-senela!
— Exatamente. Por issomesmo funcionamos tão bem. Por
eladizerque tornapossívelo impossível. Imagineestaconversa
numtribunal...
OsolhosdeBradleyfaiscaramdecontentamento.
— Num tribunal— repetiu ele, destacando as palavras,—
tudoseriaconsideradoridículo.Seestamulherdeclarassequeé
capazdematarporcontroleremotooupelopoderdavontadea
confissãoseriainvalidada.Mesmosefosseverdade(masnósque
somos homens inteligentes sabemos que não é) o caso não
poderiaserregistradolegalmente,poisoassassinatoporcontrole
remoto não é assassinato, é fantasia! A beleza da nossa
organizaçãoestájustamentenestadiscrepância.
Compreendi que Bradley estava tentando me tranqüilizar.
Umassassinato cometido através de poderes ocultos não é um
assassinato para um tribunal inglês; já se eu contratasse um
sicário para matar alguém seria preso como cúmplice e
assessórioaocrime.Agora,ofatodecontratarThyrzaGreypara
eliminar alguém, empregando o ocultismo, não poderia me
incriminardeformaalguma.
—Mas,comosdemônios—explodi.—Nãoépossível.
—Concordo como senhorplenamente.ThyrzaGrey éuma
mulher extraordinária, dona de poderes extraordinários, mas é
impossível acreditarmos nela. Como o senhor mesmo disse, é
fantástico!Impossível,portanto,noséculoXX,acreditarmosque
umapessoa,numaestalagem,no interiorda Inglaterra,através
deummédium, emitaondas curtas capazesde causaramorte
oumesmoumadoençanumavítimaqueseencontraemLondres
ouCapri.
—Maseladizqueécapaz!
— Pois não. Ela é irlandesa e eles são conhecidos pelos
poderesocultos.Entrenósoqueeuacredito,eacreditopiamente
—disseBradley,sacudindoodedoparamim,enfaticamente,—é
que Thyrza Grey sabe de antemão quando uma pessoa vai
morrer.Éumdom.
Bradley reclinou-se na poltrona e ficou um instante me
observando.
— Faça de conta que o senhor, por exemplo, deseja saber
quandosuatia-avóElizavaimorrer.Umdadoimportanteeútil
de se ter conhecimento por razões financeiras. Sabe-se lá se a
pobre Eliza ainda vai durar mais dez anos alimentada pelos
médicos? Apesar de o senhor adorar sua tia, seria útil saber
quandoelapassarádestaparamelhor.
Bradley fez uma pausa para melhor apreciar o efeito dás
suaspalavras.
—Éaíqueeuentro.Souumapostador,dispostoaapostar
qualquer coisa, dentro dosmeus limites, é claro. O senhorme
procuraenaturalmentepordelicadezadesentimentoshesitaem
apostar sobre aduraçãoda vidadeumente querido.Portanto,
formulamosaapostadaseguinteforma:osenhorapostaquesua
tiaElizaestarávivaefelizatéofimdoanoeeuapostoquenão.
—Osolhosbrilharamnovamente.
— Nada de ilegal, não é? Simples! Podemos até discutir o
assunto, numbar. Eu acho que tiaEliza está fadada amorrer
breve,osenhorachaquenão.Eudigoquenãodouquinzedias
paraapublicaçãodanotadefalecimento,osenhordiscorda.Se
tiverrazãoeupagoaaposta,seeutiverrazãoosenhorpaga.
OlheiparaBradley.Tentei imaginarcomoagiriaumhomem
quedesejasseamortedatia.Emseguidaimaginei-mevítimade
um chantagista, um sanguessuga que vinha me arrancando
dinheiroháanos.Euqueriamatá-lo,masnão tinha coragem...
quandofaleinovamenteestranheiotomconvictodaminhavoz.
—Quaissãoostermos?
O Sr. Bradley transformou-se num risonho e saltitante
homemdenegócios.
—Dependedeváriosfatores,baseando-senaquantiaquea
pessoapretendereceber.Àsvezes,tambémlevamosemcontaas
possesdocliente.Ummaridoindesejávelouumchantagista,por
exemplo, estão valorizados na proporção que o cliente pode
pagar.Devodeixarclaro,porém,quenãocostumoapostar com
clientespobres,anãosernoscasoscitados.
OSr.Bradleydeuumsuspirocomoquesedesculpandodo
ladopoucofilantrópicodasuaorganização.
—NocasodasuatiaEliza,porexemplo,opreçodependeda
herançaqueelavaideixar.Ostermos,portanto,sãoacombinar,
uma vez que ambos lucraremos. Devo adiantar que nossa
margemdeapostasénaproporçãodequinhentosaum.
—Quinhentosaum?Ébastantealta.
— Nossos preços também são altos. Caso tia Eliza tivesse
seusdiascontadoseosenhorsoubessedissonãohaveriarazão
parameprocurar.Umabasede5.000 librasnãoéumaaposta
muitocaraquandosetememvistamuitomais.
—Eseosenhorperder?
OSr.Bradleydeudeombros.
—Seriaumapena.Sómerestariapagar.
— Caso contrário, a despesa é minha. E se eu não quiser
pagar?
O Sr. Bradley recostou-se na poltrona, semicerrando os
olhos.
— Não aconselho esta medida — disse ele suavemente. —
Realmentenãoaconselho.
Apesar do tom de voz ter sido suave, senti um arrepio na
espinha.Umaterrívelameaçaestavaexplícitanassuaspalavras.
—Precisodetempoparapensar—disseeu,levantando-me.
OSr.Bradleyreverteuaopapeldebondosoecompreensivo
corretor.
—Claro,nãohápressa.Sequiserestamosaquiprontospara
lheatender.Nãosepreocupeconosco,pensebem.
Saícomestaspalavrasecoandonosouvidos.
Capítulo13
NarrativadeMarkEasterbrook
Resolvi procurar a Sra. Tuckerton, enfrentando minha
naturaltimidez.Finalmente,cediàinsistênciadeGinger,apesar
de achar que não estava devidamente preparado para a tarefa.
Ginger, porém, sempre que lhe convinha, demonstrava grande
eficiênciaedeterminação.
—Ouça,nãohácomquesepreocupar.Oconstrutordacasa
foi Nash e é uma das poucas residências que ele projetou em
estilogótico.
—Eporqueentãoeuvoudesejarversemelhanteraridade?
—Porquevocê vai escreverumartigoouum livro sobreas
influênciasarquitetônicasnavidamoderna.Umacoisadessas...
—Nãoachofácildeengolir—protestei.
— Não seja tolo — insistiu ela. — Em arte ou literatura
podem-se criar as teoriasmais absurdas; se duvidar posso lhe
mostrarumtratadosobreaOrigemdaBesteira.
—Por issoachovocêmaisqualificadadoqueeupara fazer
essavisita.
— Aí é que se engana — replicou Ginger. — A Sra.
Tuckerton, se for desconfiada, recorrerá a um catálogo de
historiadoresedescobriráseunomeOmeuelanãoencontraria!
Apesardevencidopelaargumentação,continueirelutante.
Quando voltei da incrível entrevista com Bradley reuni-me
com ela para confabularmos.Ginger, porém, achou tudomuito
natural.
—Alémdomais, dissipanossasdúvidas—ajuntou ela.—
Agora sabemos que existe uma organização para eliminar
parentesricos...
—Atravésdoocultismo—concluí.
—Não seja sarcástico. Não pense que só porque Sybil usa
aqueles colares ou porque o Sr. Bradley não seja um astrólogo
queestepessoalnãopossuiumafórmulamágicaqualquer...
— Se está tão convencida, por que preciso visitar a Sra.
Tuckerton?
— Não custa nada termos mais um dado — respondeu
Ginger.— Sabemos o que Thyrza Grey diz ser capaz de fazer;
sabemos como funciona a parte financeira. Agora precisamos
saberocomportamentodocliente.
—E se a Sra. Tuckertonnão dermostras de ter sidouma
cliente?
—Teremosquepartirparaoutra.
—Eseeufalhar?
Gingertentoumeencorajar.
FinalmentechegueiaopaláciosemigóticodaSra.Tuckerton.
Realmente o estilo era completamente diverso da obra do
arquiteto.Oúnicoporéméqueolivroprometidosobreaobrade
Nash não chegara a tempo, obrigando-me a fazer a visita
completamentedespreparadoparaaentrevista.
— Sr. Easterbrook — perguntou o criado. — A Sra.
Tuckertonoestáaguardando.
Fui conduzido a uma sala de visitas ricamente decorada.
Imediatamente senti uma desagradável sensação: tudo muito
caro mas de péssimo gosto. Se não tivessem tido tanta
preocupaçãoemostentarriqueza,seriaumasalasimpática.Uma
sériedequadrosdosquaissomentedoispossuíamalgumvalor.
Um excesso de brocado amarelo completava a opulência do
recinto. Minhas conjeturas estéticas foram interrompidas pela
entradadaSra.Tuckerton.Levantei-mecomalgumadificuldade
das profundezas de um sofá forrado de amarelo-ouro. Não sei
descrever o que esperava encontrar, mas senti um certo
desapontamento.Diantedemim, estavaumasenhorademeia-
idade, parecida com todo omundo, e sem omenor vestígio de
maquiavelismo. Não se tratava de uma senhora interessante,
nembondosa.Oslábios,apesardoexcessodebatom,eramfinos
e severos; o queixo ligeiramente recuado; os olhos, de um azul
claro,davama impressãodeavaliaropreçodequalquerobjeto
colocadoàfrente.Eraumamulherquecertamentedavagorjetas
pequenas e pensava duas vezes antes de abrir a bolsa.
Contrariando o tipo, a Sra. Tuckerton vestia se com esmero e
cuidado.
—Sr.Easterbrook?—perguntouela,obviamenteencantada
comavisita.—Queprazer!Imagineestarinteressadonaminha
casa.Éclaroquesabiaque foiconstruídaporJohnNash;meu
maridonãosecansavaderepetir,masnuncapenseiquepudesse
interessarestudiososfamososcomoosenhor.
—Naverdade,Sra.Tuckerton—balbuciei,—comoédeum
estilocompletamentediversodaobradele...
Elainterrompeuminhaperoração.
—Épenanadaentendersobreoassunto.Real-mentenãosei
coisa algumade arquitetura ou arqueologia. Espero queminha
ignorâncianãováatrapalhar.
Quase respondiquea faltade conhecimentoporpartedela
eraexatamenteoqueeuqueria.
—Porém—continuouaSra.Tuckerton—sempreacheieste
tipodecoisabastanteinteressante.
Expliquei-lhe que nós estudiosos geralmente éramos
indivíduos monótonos e sem imaginação. A Sra. Tuckerton
protestou, dizendo que eramentira. Em seguida perguntou-me
frontalmenteseeudesejavatomarcháantesoudepoisdevisitar
acasa.
Nãoesperavatomarchá,masnãopuderecusar.Aceitei,para
depoisdavisita.
Comoelafalouotempotodo,nãomesentiobrigadoaemitir
apreciaçõesarquitetônicas.
ASra.Tuckerton,nomeiodaconversa,comentouqueestava
paravenderacasa.
—Ficougrandedemaisparamim,depoisdamortedomeu
marido. Os corretores fizeram a avaliação a semana passada e
parecequejáarranjaramumcomprador.
— Também não gostaria— continuou ela— que o senhor
visseacasavazia.Apersonalidadedeumacasaestánavivência
dosocupantes,nãoacha?
Sinceramentepreferiaacasavazia,masnãopoderiasertão
franco.Pergunteiseelapretendiacontinuarmorandonomesmo
bairro.
— Para dizer a verdade, não sei. Acho que vou viajar um
pouco,embuscadoSol.Odeionossoclima.Minhaidéiaépassar
o inverno no Egito, onde já estive há dois anos. Que país! O
senhor,éclaro,jáoconhece.
RespondiquenãosabianadasobreoEgito.
—Osenhorcertamenteéumhomemmodesto—sorriuela,
numtomvago.—Aquiéasaladejantaroctogonal.Nãoéassim
quesediz?
Confirmeisuaspalavras,admirandoaproporçãodasala.
Porfim,terminamosavisitaeretornamosàsaladevisitas.A
Sra. Tuckerton pediu o chá.Um criado,mal-humorado, entrou
comumabandeja.Noteiqueobuledepratavitorianoprecisava
serpolido.
—Hojeemdiaosempregadossãoumproblema!—suspirou
adonadacasa.—Depoisquemeumaridomorreu,ocasalque
estava com ele há anos quis ir embora. Disseram que iam se
aposentar mas eu descobri que na verdade tinham arranjado
outro emprego, percebendo um salário altíssimo. Pessoalmente
acho um absurdo gastar-se uma fortuna com empregados! O
senhor já imaginou quanto eles ganham tendo casa, comida e
roupalavada?
Exatamente como eu pensava. Os olhos claros, a boca
cerrada,enfim,osindícioscertosdaavareza.
Não foidifícil fazê-la falar.ASra.Tuckertonadorava falare
eu, simplesmente deixando-a livre, consegui saber e apreender
maisdoqueelacertamentedesejariaqueeusoubesse.
Casou-se com Thomas Tuckerton, um viúvo, cinco anos
atrás. Ela era “muito, muito mais jovem” do que ele.
Encontraram-se num hotel de veraneio onde ela era
recepcionista. Ele tinha uma filha que estava internada no
colégio.
— O pobre Thomas era tão só... tinha perdido amulher e
sentiamuitafaltadela.
A Sra. Tuckerton continuou descrevendo sua imagem para
mim:umasenhorabondosa,quetevepenadeumvelhosolitário.
Faloudaprecáriasaúdedofalecidoedadevoçãocomqueelao
tratou.
—Éclaroquenofimeuacabeitendoqueabrirmãoatédos
meusamigos...
Será que Thomas Tuckerton desconfiava dos amigos dela?
Talvez fosse esta a razão para deixar um testamento tão
estranho.Ginger tinha idoao cartório e conseguidoumacópia:
Boas quantias aos velhos empregados e alguns afilhados. Uma
renda mensal razoável mas não generosa à esposa enquanto
fosseviva.OcapitaleosdividendosparaafilhaThomasinaAnn,
quando se casasse ou completasse vinte e um anos. Caso
morressesolteira,aherançareverteriaparaamadrasta.
O prêmio era grande e a Sra. Tuckerton parecia gostar de
dinheiro.AtécasarcomTuckertonviveraemdificuldades.Creio
queapossibilidadedeficarrica,viúva,aindajovem,lhesubiuà
cabeça.
Otestamentocertamentedeviatersidoumgrandegolpe.Ela
sonhara com algo mais substancial, com a possibilidade de
viajar,comprarroupase jóias,enfim,gozarosimplesprazerde
terdinheironobanco.
Noentantoagarotaiaficarcomtudo!Iaseraherdeira.Uma
garotaquenãoescondiaseuressentimentocontraamadrasta.A
garotaiaficarcomtudo...anãoserque...anãoserquê?Seria
possívelqueestacriaturalouraebanalfossecapazdecontratar
osserviçosdoCavaloAmarelo?Não—nãoerapossível.
Mesmoassimeuprecisavatercerteza.
—Não sei se a senhora sabe que eu conheci sua filha, ou
melhor,suaenteada—disseeuabertamente.
Elaolhou-mecomcertoespanto,quasedesinteressada.
—Thomasina?Émesmo?
—Sim,emChelsea.
— Ah! em Chelsea... é claro — ela suspirou. — Esta
mocidade de hoje. Tão complicada. Não se tem mais como
controlá-los.Opaiviviapreocupado,eeu,éclaro,masnãopodia
interferir demais. Além do mais, ela nunca ouviria meus
conselhos!
—Éumaposiçãomuitodifícil—disseeu,comsimpatia.
—Nãotenhodoquemereprovar.Fizoquepude.
—Dissotenhocerteza.
—Masnãoadiantounada.ÉclaroqueTomnuncapermitiu
queela fossegrosseiracomigo,masosenhorpodecrerqueela
nãoerafácil.Quandodecidiumorarsozinhasenti-mealiviada.O
queaconteceu foi queelapassoua freqüentaruma rodamuito
pesada.
—Éoqueeuimaginei.
— Pobre Thomasina! — exclamou a Sra. Tuckerton,
ajustando um cacho de cabelo louro. — Talvez o senhor não
saibaqueelamorreuomêspassado,deencefalite.
—Dizemserumadoençaquesóatacaosjovens.
—Eusabiaqueelatinhamorrido—disseeu,levantando-me
parairembora.—Obrigado,Sra.Tuckerton,pelasuagentileza.
Apertei-lheamãoedirigi-meparaaporta.
— Por falar nisso — disse eu, voltando-me do hall. — A
senhoraconheceoCavaloAmarelo,nãoconhece?
Não havia dúvida possível diante da reação da Sra.
Tuckerton. Pânico, puro pânico, estampado nos olhos azuis. O
rostodebaixodamaquilagemtornou-sebranco.
— Cavalo Amarelo? Que Cavalo Amarelo? Não sei coisa
algumasobreisso—gritouelaestridentemente.
Fizumardesurpresa.
— Ah! Desculpe. Existe uma estalagem antiga em Much
Deepingondepasseiumdia.Foitransformadanumaconfortável
residência,mantendoporémoestilo.Penseiquefosseseunome
quefoicitado,mastalveztenhasidoodasuaenteadaouquem
sabealgumahomônima.Éumlugarmuitofamoso.
Retirei-metriunfante.Numdosespelhosdohall,viorostoda
Sra. Tuckerton refletido. A imagem de uma mulher velha,
aterrorizada...umretratoterrível.
Capítulo14
NarrativadeMarkEasterbrook
I
—Agoratemoscerteza—disseGinger.
—Játínhamos.
—Masestahistóriafechaocirculo.
Calei-meuminstanteeimagineiaSra.Tuckerton,indopara
Birmingham encontrar o Sr. Bradley. A apreensão nervosa por
parte dela em contrapartida com a reconfortante bonomia de
Bradley;gentilmentesublinhandoaausênciadoperigo.Podiavê-
la partindo sem se comprometer, deixando aos poucos a idéia
enraizar-se no pensamento. Quem sabe se a enteada não veio
passar um fim de semana em casa e sugeriu um casamento
iminente? E durante todo o tempo o pensamento constante:
DINHEIRO. A possibilidade de não ter mais que se preocupar
com economias, o início de uma vida de prazeres e diversões!
Mas, no caminho uma garota degenerada, sem educação,
eternamentemetidanuns blue jeans imundos, gastando a vida
embaresmalafamados,convivendocoma laiadeChelsea.Por
queumamoçadessas,umacriaturaquecertamenteiriaacabar
mal,teriaodireitoderoubar-lheafelicidade?
PorissovoltouaBirmingham,tomandotodasasprecauções.
Discutiramos termos,oqueme fezsorrir,poisnãocreioqueo
Sr. Bradley tenha conseguido levar a melhor com uma
mercenária da classe da Sra. Tuckerton. Finalmente devem ter
chegadoaumacordoqualquer.Masedepois?
Nãoconseguivisualizarodesconhecido.NoteiqueGingerme
observava.
—Jáimaginoucomofuncionaonegócio?—perguntouela.
—Comovocêsabequeeuestavaimaginandoisso?
— Começo a compreender o mecanismo de seu raciocínio.
Você estava tentando visualizar a Sra. Tuckerton sendo
entrevistadaporBradley.
— É mesmo, mas fui interrompido quando ela conseguiu
fecharonegócio.Oqueaconteceudepois?
Entreolhamo-nosatônitos.
—Mais cedo oumais tarde—disseGinger— alguém tem
quedescobriroqueacontecenoCavaloAmarelo.
—Como?
—Nãosei.Seiquenãoseráfácil.Nenhumadelasfalaráesó
elas podem falar porque são as únicas que sabem. É um
problema...seráque...
—Esefôssemosàpolícia?—sugeri.
—Porquenão?Játemosomaterialsuficienteparaabriro
caso.
Sacudiacabeçaemdúvida.
Omaterial prova que há intenção,mas não é o suficiente.
Caímos naquela história do desejo de morte. Sei que não é
besteira— fizumgesto comamão, antecipandoa respostade
Ginger—mas num tribunal ninguém nos acreditaria. Nem ao
menossabemoscomoelesagem.
—Portantotemosquedescobririssotambém.Mascomo?
—Precisamosestarpresentesparavereouvir.Masnãovejo
possibilidade de alguém esconder-se naquele galpão, onde elas
fazemsabeDeusoquê!
Gingerempertigou-seejogouoscabelosparatrás.
— Só temos uma saída. Você precisa se tomar cliente da
firma.
Olheiparaelaespantado.
—Cliente?
— Sim. Ou eu ou você, não importa. Precisamos querer
eliminarumapessoa.UmdenóstemquecontratarBradley.
—Nãogostodisso.
—Eporquê?
—Porquenosexpõeaoperigo.
—Paranós?
— Talvez. No fundo eu estava pensando na vítima, pois
vamos ter que arranjar uma. Não podemos inventar uma
pessoa...elesdevemverificartodasasinformações.
Gingerpensouunsmomentos.
—Realmenteavítimaprecisaserumapessoaverdadeiraque
morenumlugardeterminado.
—Porissonãogostodaidéia.Alémdomaisprecisaremosde
umarazãoparaeliminaressapessoa.
Calamo-nosuminstante,considerandoestapossibilidade.
—Avítima teriaquesaberde tudoe concordar conosco—
disseeu.—Nãoachaqueseriapedirdemais?
— Tudo tem que ser preparado nos mínimos detalhes —
disseGinger.—Numacoisavocêtemrazão.Oúnicodefeitodo
negócio é que o segredonãopode ser tão inviolável, senão eles
nãoarranjariamoutrosclientes.
— O que me espanta — retorqui — é a polícia não saber
disso.Geralmenteelaestáapardetudo...
— A única explicação que posso oferecer é o fato de eles
possuíremumaorganizaçãototalmentecompostaporamadores.
Nãodevemempregar,nemenvolvercriminososprofissionais.Não
setratadaMafia,tudoéfeitopordiletantes.
ConcordeicomGinger.
— Vamos imaginar — continuou ela, que eu ou você
(examinaremos as duas possibilidades) estamos desesperados
paraeliminaruminimigo.Quemseria?Eutenhoumtiodequem
vou herdar uma bolada assim que ele morrer. Os herdeiros
somoseueumprimoquemoranaAustrália.Portantotenhoum
motivo.Comomeu tio já está comsetenta e tantosanos, eum
pouco caduco, seria mais razoável esperar que a natureza se
encarregue dele. Porém, vamos imaginar que eu esteja
precisando de dinheiro, mas como vamos criar esta situação?
Além do mais, caduco ou não, eu adoro meu tio e não quero
privá-lo de um minuto sequer de uma existência que tanto o
diverte.Nãopossocorreresterisco.Evocê?Temalgumparente
dequemvaiherdar?
Sacudiacabeça.
—Ninguém.
— Que pena! Talvez possamos inventar uma situação de
chantagem?Masistocertamentedariamuitotrabalho.Vocênão
tem nada a perder, não é político, nem membro do Corpo
Diplomático. Eu,muitome nos. Há cincoenta anos atrás seria
fácil, forjaríamos umas cartas, tiraríamos umas fotografias
comprometedoras,mashojeemdiaquemdáimportânciaaisto?
Quemaispoderíamostentar?Bigamia!Quepenavocênuncater
casado — suspirou Ginger, com ar de reprovação, poderíamos
partirdeumaconfusãomatrimonial.
Pela expressãodomeu rosto,Gingernotou ter tocadonum
pontonevrálgico.
—Desculpe—disseela.—Eutoqueinumpontosensível?
— Não propriamente. Já faz tanto tempo, que acho que
ninguémmaisselembradisso.
—Vocêjáfoicasado?
— Sim, quando ainda era universitário. Não contamos a
ninguém.Minhafamíliaseriacontra.Alémdomaisnãotínhamos
aindaatingidoamaioridade.
Fizumapausa,rememorandoopassado.
—Nãodurariamuito—continuei,—hojeseidisso.Elaera
bonita,meiga,mas...
—Oqueaconteceu?
— Fomos passar umas longas férias na Itália. Houve um
acidentedeautomóvel.Elamorreuinstantaneamente.
—Vocêtambémficouferido?
—Não,elaestavacomoutrohomem...umamigo...
Ginger lançou-me um rápido olhar, compreendendo o que
senti quando descobri que amoça com quem tinhame casado
nãomeerafiel.
—VocêsecasounaInglaterra?—perguntouela,voltandoao
assuntoquenosinteressava.
—Sim,numcartórioemPeterborough.
—MaselamorreunaItália?
—Sim.
—Portanto,oatestadodeóbitonãofoitiradoaqui?
—Não.
—Quemaisprecisamos?Éo ideal.Vocêestáapaixonadoe
quersecasar,masnãosabesesuamulheraindaestáviva;você
estáseparadoháanosenãotevemaisnotíciasdela.Nestaaltura
reaparece a esposa, se recusa a dar o divórcio e além disso
ameaçacontartudoasuanamorada.
—Queméminhanamorada?—pergunteiconfuso.—Você?
Gingerpareceusurpresa.
—Demaneira alguma!Quem iria acreditar que eu largaria
vocêsóporquenãopodemoscasarnaigreja?Não,suanamorada
éaquelamorenaesculturaledistantecomquemvocêfreqüenta
osconcertos...
—HermiaRedcliffe?
—Estamesmo.
—Quemlhefalousobreela?
—Poppy.Suanamoradaébastanterica,nãoé?
—É.Maseunão...
— Não estou insinuando que você vai casar com ela por
causa do dinheiro. Um tipo como Bradley porém acreditaria
nisso... Muito bem, aí está nossa estratégia: quando você está
para pedir Hermia em casamento, surge sua ex-esposa. Você
pedeodivórciomaselanega.Trata-sedeumacriaturavingativa.
AívocêouvefalarnoCavaloAmarelo.Alémdomaisapostooque
vocêquiserqueThyrzaeBellaacharamquesuavisita,naquele
dia, foi intencional, por isso Thyrza foi tão incisiva. Ela estava
simplesmentedemonstrandoasvantagensdasuaorganização.
—Podeser—concordei,rememorandoavisita.
—Sua idaaBradley, emseguida, seencaixaperfeitamente
nesteesquema.Vocêéumpossívelcliente.
Gingerficoumeolhandocomumardetriunfo.
—Mesmoassim—insisti—elesvãofazerumainvestigação
minuciosa.
—Claroquevão—concordouGinger.
— É fácil inventar uma esposa,mas eles vão querer saber
outrosdetalhes:ondeelamora,comosechamaetc.Quandoeu
tentardesconversar...
— Você não vai desconversar. Para que a coisa seja bem
feita,nahoraHvocêvaimostrarumaesposa.
Gingerfezumaligeirapausa.
—Segure-sebem.Aesposasereieu!
II
Fiquei tão espantado que não consegui dizer coisa alguma.
SómeadmireideGingernãoterridodaminhaexpressão.
Quandocomeceiarecobrarafala,Gingerinterveio:
—Nãoprecisaficartãoespantado.Nãoestoulhepedindoem
casamento.
—Vocênãosabeoquediz!
— Claro que sei! Estou sugerindo uma ação prática que
possuiavantagemdenãoameaçarumapessoainocente.
—Masvaipôrsuavidaemperigo.
—Éproblemameu.
—Nãoé.Alémdomaisquemiriaacreditarnisso?
—Todoomundo,oraessa!Alugoumapartamentoparaonde
memudo,dandoonomedeSra.Easterbrook...queméquepode
negarqueeusejaaSra.Easterbrook?
—Todasaspessoasqueaconhecem.
—Quemmeconhecenãovaimeencontrarpoisvouinventar
umaviagem.Tinjoocabelo...suamulhereralouraoumorena?
—Morena—respondimecanicamente.
— Ótimo! Visto-me com outras roupas, carrego na
maquilagem e nem meu melhor amigo me reconhecerá. Como
você não está casado há quinze anos, não vejo muita
possibilidade de duvidarem da minha identidade. Por que no
Cavalo Amarelo duvidariam de uma mulher que diz ser sua
esposa? Se você que é o maior interessado está disposto a
apostarqueeusousuamulher,nãosãoelesquevãoquestionar
esta assertiva. Você não tem ligações com a polícia, disso eles
sabem. Se quiserem ter certeza podem verificar no Cartório de
Somerset o registro civil; podem também verificar facilmente se
existe uma noiva chamada Hermia etc.... Não vejo por que
duvidem.
—Vocêparecenãoquererverosriscos,asdificuldades...
—Querisco,quenada!—gritouGinger.—Queroversevocê
ganhaestaaposta.
Olhei para Ginger com carinho. Examinei encantado as
sardas, os cabelos ruivos, o espírito empreendedor. Mas, não
podiadeixá-lacorreresterisco.
—Nãopossoconcordar,Ginger.Imagineseacontecealguma
coisa?
—Amim?
—Sim.
—Masjádissequeéproblemameu.
—Não.Euaenvolvinahistória.
Elasacudiuacabeçanumgestoafirmativo.
—Talveztenhasidovocê,masnãocreioqueistotenhatanta
importância. Nós dois estamos metidos nisso e temos que
deslindar estaenrascada.Estou falandosério,Mark.Nãoestou
maisbrincando.Seéverdadeoquenóssabemosnãopodemos
ficar parados. Não se trata de crimes passionais e sim da
profissionalizaçãodeumaindústriaodiosaquenemsequersabe
queméavítima.Casotudoistosejaverdade...
—Éverdade—respondi.—Porissoestoucommedo.
Ginger colocou os cotovelos sobre a mesa, e começamos a
discutirospróseoscontrasdonossoempreendimento.
FinalmenteGingerfezoarrazoadodasituação.
— Um homem prevenido vale por dois. Sei o que querem
fazer contramimenãoacredito que ela consiga irmuito longe
comigo. Meu desejo de morte não está bastante desenvolvido!
Tenho ótima saúde e não creio que vá sofrer de meningite ou
pedras na bexiga só porque Thyrza resolveu fazer um desenho
cabalísticonochão.
—Belladevematarumgalobrancoemsuahomenagem—
disseeu.
— Você há de convir que é muita palhaçada junta —
protestouGinger.
—Nósnãosabemoscomoelasagem.
— Por isso nossa aventura é importante. O que é
inacreditável é elas pretenderem assassinar uma pessoa por
telepatia.
— Realmente é duro de acreditar — concordei. — Mas eu
acredito.
—Porissoestamosfazendoestaexperiência.
—Eque tal—sugerieu—senós trocássemos?Eu ficaria
aquievocêseriaacliente.Poderíamosinventar...
Gingersacudiuacabeçacomvigor.
— Não, Mark— disse ela,— não iria dar certo por vários
motivos. Para começar sou conhecida no Cavalo Amarelo como
Ginger.Vocêestábemsituado:paraelesnãopassadeumcliente
nervosoqueaindanãosedecidiu.Temosqueseguiravantedesta
forma.
—Não gosto de deixar você, só, num lugar, comumnome
falsosemalguémparaprotegê-la.Primeiroachoquedeveríamos
iràpolícia...
—Concordo—disseGinger,—aliásdesdeocomeçopenso
assim.Vocêachaquealguémnosacreditaria?
— Não — disse eu, — mas poderemos tentar o Inspetor
Lejeune.
Capítulo15
NarrativadeMarkEasterbrook
Eu tinha simpatizado com o Inspetor Lejeune desde que o
conhecera,nãosópeloseuareficientecomotambémporparecer
umhomemdeimaginação;elemedavaaimpressãodesercapaz
deconsideraraspossibilidadesmenosortodoxas.
—Dr.Corriganmecontouqueestevecomosenhor—disse
ele.—Nocomeçoparecequeeleseinteressoumuitopelocaso:o
padreGormaneramuitorespeitadoeconhecidonaquelazona.O
senhorparecequetemalgumainformaçãoparanosfornecer.
— Uma informação relacionada com o Cavalo Amarelo —
expliquei.
—AquelacasasituadaemMuchDeeping?
—Sim.
—Oqueosenhorgostariademeinformar?
Relateia conversacomPoppynoFantasie,descrevia visita
comRhodaefinalmenteaentrevistacomThyrzaGrey.
—Oqueeladisseoimpressionou?
Fiqueiembaraçadocomapergunta.
—Nãopropriamente...éclaroquenãoacreditei.
—Não,mesmo,Sr.Easterbrook?Tenhoaimpressãodeque
acreditou.
— O senhor tem razão. É desagradável admitir que
acreditamosemcrendices.
Lejeunesorriu.
— Mas o senhor já estava interessado no Cavalo Amarelo
quandofoiláaprimeiravez.Porquê?
—CreioqueintrigadopeloardepavordePoppy.
—Amoçadalojadeflores?
— Sim. Ela falou sobre o Cavalo Amarelo casualmente;
depois, quando se apavorou realmente fundamentou minhas
suspeitas.Depois encontrei oDr. Corrigan e elememostrou a
lista, da qual dois nomes eu conhecia, pois eram pessoas
recentemente falecidas de quem eu ouvira falar. Além de uma
terceiraquemaistardedescobriquehaviamorrido.
—ASra.Delafontaine?
—Sim.
—Continue.
—Decidiinvestigarafundoestahistória.
—Porondecomeçou?
FaleisobreaSra.Tuckertonedepoissobreaentrevistacom
o Sr. Bradley em Birmingham. A esta altura tinha conseguido
captarointeressedeLejeune.
— Bradley? — repetiu ele. — Então Bradley está metido
nisso?
—Osenhoroconhece?
—Claroqueapolíciaconhecetodosostiposindesejáveis;ele
nãoénadaburroeconseguesemanternolimiardajustiça.Sabe
todos os truques emeandros legais demaneira que ainda não
conseguimos apanhá-lo. Bradley devia escrever um livro
chamado:Cemmaneiraspráticasdeburlara lei.Nãosabíamos
quehaviaenveredadoparaocrime.
—Comoqueeulheconteiosenhorpoderiaprendê-lo?
Lejeunesacudiuacabeça.
—Não,nãopoderia.Paracomeçarnãohouvetestemunhase
elesimplesmentenegariaqualqueracusação.Alémdomais,não
há lei que proíba um sujeito de fazer apostas sobre a vida de
outra pessoa. Não há ilegalidade alguma nisso. Se não
conseguirmos ligar Bradley com algum desses crimes não
poderemosagarrá-lo.Aquientrenós,nãovaiserfácil.
Depoisdeumapequenapausa,Lejeunesorriuparamim.
— Por acaso o senhor, quando esteve em Much Deeping,
conheceuumhomemchamadoVenables?
—Sim—respondi.—Almoceicomele.
—Ah!Equeimpressãotevedele?
—Umhomemdefortepersonalidade.Éuminválido.
—Sim,vítimadaparalisiainfantil.
—Vivenumacadeirade rodas,masparecequea invalidez
aguçousuadeterminaçãodegozaravida.
—Fale-memaissobreele.
DescreviacasadeVenables,ostesourosdearteascoleções
raríssimas.
—Quepena!—comentouLejeune.
—Oqueéumapena?
— Que Venables seja paralítico — respondeu Lejeune,
secamente.
—Quemsabeelefingeserinválido?—arrisquei.
— Temos certeza de que não. O médico dele Sir William
Dougal,umprofissionalacimadequalquersuspeita.Um talde
Osborne,porém,insistequeoviu,andandoatrásdeGorman,na
noitedocrime.Mas,estáenganado,éclaro.
—Compreendo.
— Digo que é uma pena porque, se realmente existe esta
organizaçãocriminosa,Venablesseriaohomemcapazdedirigi-
la.
—Certamente.
Lejeunedistraidamentetraçouumaslinhascomoindicador.
—Vamosreunirosfatos,istoé,juntaroqueosenhorsabe
com o que nós sabemos. Parece que existe uma organização
particularcriminosadedicadaàremoçãodepessoasricas.Éuma
firma que não emprega assassinos profissionais, uma vez que
suas vítimas morrem de “doença”. Além dos três casos que o
senhor conhece temos algumas informações sobre as outras
vítimas — todas falecidas de causas naturais, embora sempre
deixemsobreviventesquelucramcomisso.
— Trata-se, portanto, de uma organização diabólica, Sr.
Easterbrook — continuou Lejeune. — Quem elaborou esse
negócioéumgênio.Pensebem,atéagorasótemosumalistade
nomeseaconfissãodeumamulheremagonia.Nemaomenos
sabemosquantasvítimasessaorganizaçãojáfez.
Lejeunesacudiuacabeçafurioso.
—EssaThyrzaGrey temrazãodesegabardosseus feitos.
Possuiimunidades.Seaacusarmosdeserumaassassinaestaria
em liberdade em uma semana. Sabemos que ela não teve o
menor contato com as vitimas e nem enviou sequer chocolate
envenenado para os pobres. Segundo ela, basta sentar numa
cadeiraeempregaratelepatia!Otribunaliriadarrisadadeum
promotorqueseatrevesseaacusá-la.
— A esta altura Lúcifer deve estar às gargalhadas —
murmurei.
—Realmenteéumnegóciodiabólico,Sr.Easterbrook.
—QuemdiriaquenoséculoXXempregaríamosesteadjetivo
paradefinirumaorganização!
— Só vejo uma possibilidade — continuei depois de uma
ligeirapausa:—eueumaamigabolamosumplanoque talvez
lhepareçapueril...
—Vamosver...
—Primeirovamospartirdoprincípiodequeestaorganização
existeefunciona.
—Muitobem,edaí?
— Mas não sabemos como funciona. Só sabemos que o
cliente ouve falar numa organização, pede mais informações e
acabaindoaBirminghamaoencontrodoSr.Bradley.Sechegaa
umacordoo clientedeve ser levadoatéoCavaloAmarelo,mas
daí em diante não sabemos o que acontece. Este é o ponto
crucial. O que acontece no Cavalo Amarelo? Alguém tem que
descobrir...
—Muitobem...
— Pois se não descobrirmos o que Thyrza Grey faz não
podemos ir adiante. Segundo Jim Corrigan isto não passa de
umaxaropada,maseulhepergunto,serámesmo?
Lejeunesuspirou.
— O senhor sabe minha resposta, isto é, a resposta de
qualquer homem normal. É realmente uma xaropada estúpida.
Porém extra-oficialmente muitas coisas estranhas acontecem.
Quemdiria, cemanosatrás,queseriapossível falardaqui com
umhomememNovaYork,atravésdeumfio?Eassimmilhares
deoutrascoisas...
—Emoutraspalavras,tudoépossível?
—Exatamente,portanto,seosenhormedizqueThyrzaGrey
écapazdematarumapessoa,enrolandoosolhosoucaindoem
transe, eu não devo duvidar, pois talvez ela tenha descoberto
algo...
—Entendo—intervi.—Osobrenaturalparecesobrenatural
masaciênciadofuturoáosobrenaturaldaatualidade.
—Nossaconversanãoéoficial—enfatizouLejeune.
—Oquepretendofazeréverdepertooqueacontece.Estaé
minhaproposta.
Lejeuneolhouparamimespantado.
—Jádeioprimeiropasso—disseeu.
Contei em detalhes o nosso plano. Lejeune não pareceu
muitosatisfeito.
— Sr. Easterbrook, vejo aonde quer chegar. O acaso o
conduziu a uma descoberta,mas quero que saiba que os ricos
são grandes, pois o senhor e sua “esposa” estarão lidando com
genteperigosa...
— Seimuito bem— protestei.—E ela também sabe,mas
nãohánadaqueademova.
—Osenhordissequeelaéruiva?
—Sim—respondiespantado.
— Não discuta com as ruivas — disse Lejeune. — Vá por
mim!
Fiqueimeperguntandoseamulherdeleseriaruiva.
Capítulo16
NarrativadeMarkEasterbrook
QuandofuiprocurarBradley,novamentenãosentiomínimo
nervoso.Acheiatédivertido.
— Imagine o que um homem nestas condições sentiria —
disseGinger.
Seguioconselho.
OSr.Bradleyrecebeu-mecomumsorriso.
—Queprazerrevê-lo—disseele,estendendoamão.—Com
queentãoestevepensandonoproblema?Felizmentenão temos
pressa...
— Infelizmente eu tenho pressa. Trata-se de um caso
urgente.
Bradleyolhou-mecomespanto,notandomeunervosismo.
—Vamosverentãooquepodemos fazerpelosenhor.Quer
fazer uma aposta, não émesmo?Nada comouma aposta para
distrairasidéias...
—Ocasoéoseguinte—disseeu,interrompendoafraseno
ar.
DeixeiocampolivreparaBradleyagir.
—Notoqueestánervoso.Osenhoréumhomemcauteloso,e
euaprecioa cautela.Nãoconfianaprópriamãe!Osenhornão
desconfia de que eu tenha ummicrofone escondido aqui nesta
sala?
Olheiparaelecomosetivesselidomeuspensamentos.
— Posso lhe garantir que não tenho aparelhagem alguma
nestasalaenossaconversanãoserágravada.Casonãoacredite,
aliás tem todoodireitodeduvidar, estoudispostoaprocurá-lo
numoutrolugarparapodermosdiscutir...
Afianceiquenãohaverianecessidade.
—Muito bem. Além domais nenhum de nós lucraria com
umachantagemdessetipo.Procuraremos,noentanto,evitarno
nossocolóquiooempregodetermosquepoderiamlegalmenteser
usadoscontranós.Porexemplo,osenhorestápreocupadocom
algo, resolve desabafar comigo, sabe que sou um homem
experienteecapazdelhedarbonsconselhos...Quelheparece?
Gaguejeiminhahistória.
O Sr. Bradley foi bastante solícito. Sempre queme via em
dificuldades,ajudava-mecompalavrasouexpressõesousorrisos
encorajadores. Não levei muito tempo para descrever meu
casamentodesastrosocomDoreen.
—Acontecefreqüentemente—comentouBradley,sacudindo
a cabeça.—Tão freqüentemente.Um jovem inexperiente, cheio
devida,umagarotabonitaepronto!Casamentoedepois...
Contei o resultado. Fui propositadamente vago em relação
aosdetalhespoisotipodehomemqueeupretendiarepresentar
nãoentrariaemdetalhessórdidos.Apresenteisomenteoretrato
deumjovemtoloedesiludido;insinueiumabrigadecasalenão
negueinemafirmeiqueelativesseoutrosamantes.
— Embora ela não fosse a mulher que eu imaginei, não
esperavaqueviesseasecomportardessaforma...
—Queforma?
—Que...elafossereaparecer...enfim.
—Oqueosenhorpensouquetivesseacontecidocomela?
—Por incrível quepareçaachei que ela tinhadesaparecido
daminhavida.
— Por um passe de mágica? — perguntou Bradley,
delicadamente.—Eporquê?
—Bem,elanuncaescreveuoumandounotícias.
—Naverdadeosenhorqueriaesquecer-sedela...
Bradleyeraumfinopsicólogo.
—Sim— respondi, agradecido.—Alémdomaisnão tinha
intençãodecasaroutravez...
—Mas,agoratem?
—Bem.
—Falefrancamente.
Admiti que queria casar de novo, recusando-me
obstinadamenteadardetalhessobreminhanoiva.Minhatática
pareceuacertadapoiselenãoinsistiu.
—Compreendo.Osenhorencontrouumapessoaquepoderá
compreendê-lomelhor.
Uma mulher que tem os mesmos gostos e os mesmos
interesses.
PercebiqueelesabiadaexistênciadeHermia.Aliásqualquer
investigação a meu respeito revelaria o fato de ela ser minha
companhia constante. Certamente quando Bradley recebeu
minha carta, marcando uma entrevista, imediatamente fez
algumasinvestigaçõesameurespeito.
—Porquenãotentaodivórcio?Nãoseriaasoluçãonatural?
— Fora de cogitação. Minha mulher recusa-se
terminantementeamedarodivórcio.
—Quepena!Qualaatitudedelaemrelaçãoaosenhor?
—Quervoltarparamim...quervivercomigo.Não...elasabe
queeuestouapaixonadoporoutrae...
—Eresolveucriarcaso.É,realmentenãovejooutrasaída,a
nãoserque...elaéjovem?
—Muito.Aindaviveráanos!
— Isso não se sabe, Sr. Easterbrook. Ela morou no
estrangeiro?
—Foioquemedisse.Nãoseibemondeesteve...
—QuemsabeelanãoandoupelaÁsiaeapanhouumgerme
qualquer, desses que ficam adormecidos e um dia reaparecem.
Conheço alguns casos; assim, pode ser que também aconteça
comsuaesposa.Creioquepodemosfazerumaaposta!
Sacudiacabeça.
—Elaviveráeternamente.
—Osenhorestálevandoumagrandevantagem,masquero
apostarmesmoassim.Aposto150.000librascontraumaqueela
embarcaantesdoNatal.
— Não posso esperar tanto... — balbuciei incoerente. Quis
propositadamente dar a Bradley a idéia de que estava sendo
ameaçadoporminhaesposa.
— Então podemos modificar a aposta. 180 contra um que
sua esposa embarca dentro de um mês. É uma espécie de
pressentimento.
Acheiquetinhachegadoomomentodepedirumabatimento.
Protesteiquenãotinhatantodinheiro.Bradley,porém,comoum
bom negociante, sabia qual a quantia de que eu podia dispor;
sabia também que Hermia tinha dinheiro. Deliberadamente
insinuou que quando eu estivesse casado não sentiria falta do
dinheiro. Além do mais, minha pressa o colocava numa boa
situação,portanto,manteveopreço.
Quandosaítinhadeixadoumapromissóriade180.000libras
e um contrato cheio de cláusulas legais absolutamente
ininteligível.
—Estecontratotemvalidadelegal?
— Não creio que tenhamos oportunidade de descobrir —
disse Bradley, num tom desagradável. — Uma aposta é uma
aposta.Seumhomemnãocumpre...
Olheiparaele.
—Nãoaconselho—disseBradley—de formaalguma.Não
gostamosdecaloteiros.
—Nãosoucaloteiro—protestei.
—Claroquenão,Sr.Easterbrook.Bem,agoravamostomar
asprovidências.ASra.EasterbrookestáemLondres?
—Precisadoendereço?
—Precisodetodososdetalhes.Voumarcarumaentrevista
suacomThyrzaGrey.Lembra-sedela?
Respondiquesim.
— Umamulher extraordinária. Repleta de poderes. Ela vai
pedirumobjetopessoaldesuaesposa:umaluva,umlenço...
—Paraquê?
—Nãomepergunteparaquê!Eunãosei.ASra.Greynão
contaseussegredos.
—Mascomoelaconsegue...
—Acredite-me,Sr.Easterbrook,quandoeudigoquenãosei
e nem quero saber. Eis meu conselho — prosseguiu Bradley,
depois de uma pequena pausa. — Vá procurar sua esposa e
convença-adequeestádispostoavoltarparaela.Sugirotambém
queosenhorpasseunstemposnoexterior...quandoregressar...
—Então?
—OsenhoriráaMuchDeeping,levandoumapeçaqualquer
de sua esposa. Quando esteve lá ficou hospedado com uma
prima?
—Issomesmo.
—Portantonadamaissimplesdoquepassardoisdiaslá.
—Amaioriadaspessoasoquefaz?
—Unsficamnohotel,ousealojamnacidadevizinha...não
sei.
—Quedevodizeraosmeusprimos?
— Que ficou impressionado com sua visita e que deseja
participar de uma sessão espírita presidida por Thyrza Grey...
nãoprecisadizermaisdoqueisso.
—Edepois?
— Não sei. Depois disso a Srta. Grey dará as instruções
necessárias. Não esqueça de levar uma luva ou um lenço. Em
seguida viaje para o exterior. A Riviera Italiana é encantadora
nestaépocadoano...nãoprecisademorar,bastaumaouduas
semanas.
InsistiquenãopoderiasairdaInglaterra.
— Pois não, pois não. Mas não fique em Londres. Não
aconselhoLondres.
—Porquenão?
OSr.Bradleyolhouparamimcomdesaprovação.
—Garantimosumserviçoperfeitoaosnossosclientesseeles
seguiremàriscanossasinstruções.
—NãopossoficaremBournemouth?
—Pode.Hospede-senohotele façaalgumasamizades.Não
seexcedaemcoisaalgumaeseenjoardeBournemouthvávisitar
Torquay...
Bradleyfalavacomosefosseumagentedeviagens.Aperteia
mãogorduchaeretirei-me.
Capítulo17
NarrativadeMarkEasterbrook
I
—VocêvaimesmoaumasessãoespíritanacasadeThyrza?
—perguntou-meRhoda.
—Porquenão?
—Nãosabiaquevocêseinteressavaporessetipodecoisa.
—Paradizeraverdade,nãoéminhaespecialidade,maselas
sãotãoestranhasquedespertaramminhacuriosidade.
Nunca soube mentir bem, de maneira que não me senti à
vontade, tentando despistar Rhoda e Hugh. Despard,
principalmente,pareciapossuirumsextosentidoemrelaçãoàs
pessoas.
—Então irei com você—disseRhoda.—Sempre quis ver
umacoisadessas.
—Não,Rhoda,vocênãovai—rosnouDespard.
— Ora, por quê? Você sabe que eu não acredito nestas
besteiras.Queroversóporcuriosidade.
— Para começar, não há razão alguma para manifestar
curiosidade — disse Despard. — Acho que elas não estão
brincandoenãoquerovê-laenvolvidaemencrencas.
—PorquenãotentaconvencerMark?
—Markémaiordeidade—respondeuDespard,olhando-me
desoslaio.
Tivecertezadequeeledesconfiavadealgo.
Rhoda ficou irritadamas teve que se conformar. Por acaso
encontramosThyrzaGrey,nacidade,umpoucomaistarde.
— Alô, Sr. Easterbrook. Não esqueça, contamos com sua
presença hoje à noite. Sybil é uma grande médium, portanto
nuncasesabe,deantemão,quaisosresultadosqueobteremos.
Sópeçoumacoisa,relaxeaomáximoeprocurenãodebochar.
—Euqueriair—interveioRhoda—masHughnãodeixou.
Vocêsabecomoeleécheiodepreconceitos.
—Dequalquermaneira,nãoiríamosquererquevocêviesse.
Bastaumestranho—respondeuThyrza,voltando-separamim.
— Que tal se viesse mais cedo e fizesse um lanche conosco.
Nunca comemos nada pesado antes de uma sessão. Podemos
esperá-loàssete?
Concordeieelasedespediu,sorrindo.
PorunsinstantesnãoouvioqueRhodadizia.
—Oquevocêdisse?
—Você tem andadomuito esquisito ultimamente,Mark. O
quehá?
—Nada,porquê?
—Estápreocupadocomolivro?Qualéoproblema?
—Livro?—porunsminutosnãoconseguimelembraraque
livroelasereferia.—Ah!sim,olivro.Não,atéqueestáindobem.
— Já sei! Está apaixonado — disse Rhoda, num tom
acusador.—Éissomesmo.Semprequeumhomemseapaixona
fica com este ar abobalhado. As mulheres, porém, parece que
florescem,tornam-sevibrantes,maisbelas.Porqueseráqueisto
acontece? As mulheres ficam mais jovens e os homens ficam
parecendounsbodesdoentes.
—Obrigado—respondi.
—Nãosezanguecomigo,Mark.Estouachandoótimoeestou
encantada...elaémaravilhosa.
—Quemémaravilhosa?
—HermiaRedcliffe,élógico.Ouachaquenãoseicomquem
vocêanda?Háanosqueesperoporisso.Vaiserperfeitoporque
elaéamulheridealparavocê:inteligenteebonita.
—Típicocomentáriovenenoso.
Rhodaolhouparamim.
—Decertaforma—disseela.
Retirou-sepretextandoumavisitaaoaçougueiro,comquem
precisavaconversar.Eudissequeiaatéacasadovigário.
—Masnãoparamarcaradatadocasamento—acrescentei.
II
Entrei na casa do pastor como quem entra em casa.
Encontreiaportahospitaleiramenteabertaeaocruzaroumbral
senticomosetirasseumpesodosombros.
A Sra. Dane Calthrop vinha entrando por outra porta,
carregando,nãoseiporque,umenormebaldeplásticoverde.
—Ah!évocê.Jáoesperava.
Entregou-meobalde.Fiqueiparadosemsaberoquefazer.
—Coloque-onaportadoladodefora—disseelaimpaciente.
Obedeci, em seguida fomos para a sala de visitas. A Sra.
Calthropavivouachamadalareiraejogouumatoradelenhaao
fogo.Comumgestoconvidou-measentarecolocando-seaomeu
ladoesperouansiosamentepelasnotícias.
—Bem?—perguntou.—Oquetemfeito?
Julgando pela intensidade da boa senhora, parecia que
estávamosprestesaperderumtrem.
—Estouseguindoseusconselhos.
—Ótimo.Edaí?
Conteitudo.
—Hojeànoite?—murmurouaSra.DaneCalthrop.
—Sim.
Elaficoucalada,pensando.
—Nãogostodisso!MeuDeus,nãogostodisso!—explodi.
—Masnãoéparagostar.
—TenhomedodoquepossaacontecercomGinger.
Elaolhouparamimcomumarbondoso.
— A senhora não imagina como ela é corajosa. Se eles
conseguiremdecertaformaprejudicá-la...
—Nãovejocomovãoconseguir—disseelavagarosamente.
—Como?
—Maselesjáfizerammalaoutraspessoas.
—Éoqueparece—disseeladuvidosa.
—Tomamostodasasprecauções.Elanãopoderásofrerdano
algum...
—Exatamenteoqueelasdizemquesãocapazesdefazer—
disse a Sra. Calthrop. — Dizem que podem atingir o corpo
através da mente por doença. No fundo é interessante mas
horríveldemaisparaserverdade.Temosquepôrum fimnessa
história.
—Maséelaqueestácorrendoorisco—resmunguei.
— Bem, alguém teria que correr este risco— disse a Sra.
Calthrop,calmamente.—Vocêestácomoorgulhoferidopornão
ter servido de cobaia. Ginger encaixou-se perfeitamente no
esquema.Éumamulhercontroladae inteligente.Tenhocerteza
dequeelanãoiránosdesapontar.
—Nãoestoupreocupadocomisso!
—Nãosepreocupecomoresto.Nãoadiantacoisaalguma.
Alémdomais,seelamorrerterásidaporumaboacausa.
—Quehorror!
—Sempreespereopior—aconselhouaSra.Calthrop.—Éo
melhorcalmante.Possuiodomdeamenizarqualquergolpe.
—Talvez—murmurei.
ASra.DaneCalthropgarantiuqueestavacomarazão.
—Asenhoratemtelefone?
—Éclaro.
Expliqueioquequeria.
—Depoisdessahistóriadehojeànoiteeuvouquerermanter
contato constante com Ginger. Telefonarei diariamente. Posso
ligardaqui?
—Claro.NacasadeRhodatemsempretantagente,alémdo
maisexistesempreoperigodeouviremalgumacoisa.
— Ficarei mais uns dias na casa de Rhoda e depois parto
paraBournemouth.NãopossovoltaraLondres.
—Nãoadiantacolocarmosocarroadiantedosbois—dissea
Sra.Calthrop.—Vamosveroquevaiacontecerhojeànoite.
—Hoje ànoite!— levantei-me.—Peço que a senhora reze
pormim.
—Claro— respondeu ela, surpreendida comminha súbita
conversãoreligiosa.
Aosairresolvifazerumapergunta.
—Eobalde?Paraqueserve?
—Obalde?Para osmeninos cataremamorasno campo.É
umbaldehorrívelmasmuitoprático.
Olheiparaabelezaoutonaldocampo.Quantabeleza...
—Anjoseministrosdocéu,protejam-nos—disseeu.
—Amém—murmurouaSra.DaneCalthrop.
III
NãoseicomoesperavaserrecepcionadonoCavaloAmarelo,
mas posso dizer que a acolhida fria e convencional me
desapontouumpouco.
ThyrzaGrey,usandoumsimples vestidode lã, recebeu-me
naporta.
— Ah! Já chegou. Que bom! — comentou, num tom
profissional.—Assimpodemoslancharlogo.
Otomcotidianomeespantou.AmesajáestavapostaeBella
nos serviu uma sopa, um omelete e uns queijos. Sybil deu a
única nota exótica: um vestido comprido estampado,
representando umas penas de pavão, todo debruado em ouro;
dois enormes braceletes de ouro, em volta dos braços, e
excepcionalmente nenhum colar de contas. Ela comeu
pouquíssimoefaloumenosainda,certamentepreocupadaemme
impressionar.Pormeulado,confessoqueacheiarepresentação
artificialefalsa.
Thyrza Grey animou como pôde a conversa, fazendo
comentáriossobreospersonagensdacidade.Estavaempenhada
emrepresentaratípicasolteironainglesa.
Pensei com meus botões que talvez estivesse louco,
completamentelouco.Querazãotinhaeuparasentirmedo?Até
Bellameparecia,estanoite,umavelhacamponesaimbecil!
Em retrospecto a conversa com a Sra. Dane Calthrop me
pareceufantástica.Creioquenosdeixamoslevarpelafantasiae
acabamosvitimasdanossaprópriaimaginação.
Finalmenteterminamosolanche.
— Não vou servir café — desculpou-se Thyrza; — não
devemosnosestimulardemais.Sybil?
— Sim — respondeu Sybil, assumindo uma expressão
supostamenteesotérica.—Jásei,devomePREPARAR.
Bella retirouospratos.Fuiatéaohall examinara tabuleta
daestalagem.Thyrzaseguiu-me.
—Comestaluznãodáparaverbem—disseela.
Eraverdade.Aimagemamareladacontraaferrugemescura
maldavaparadistinguirafiguradocavalo.
— Aquela moça ruiva... como é mesmo o nome dela?
Ginger?... é Ginger, queria restaurar esta tabuleta — disse
Thyrza—mascreioqueseesqueceu.Elatrabalhanumagaleria
dearte,emLondres—acrescentoucasualmente.
SentiumcalafrioaoouvironomedeGinger.
— Talvez não fosse má idéia — comentei, olhando para a
tabuleta.
—Não éumaboapintura—disseThyrza—mas combina
comolugar...devetermaisdetrezentosanos.
—Pronto.
Voltamo-nos.Bellaestavaparadanaporta,noschamando.
—Estánahora—disseThyrza.
Segui-aatéovelhoceleiro,atravessandoojardimescuro.Se
de dia o celeiro parecia uma agradável biblioteca restaurada, à
noite era outra coisa. As luzes não estavam acesas e a
iluminação fria provinha das frestas do teto. No centro da sala
encontrava-se uma cama ou um divã coberto por um pano
vermelhobordadocomdesenhoscabalísticos.Nofundoumvelho
caldeirão fumegando, ao lado uma bacia de cobre. Do lado
oposto, encostada na parede, uma cadeira de carvalho, onde
Thyrzamemandousentar.
Obedeci, notando que Thyrza havia mudado sem que eu
pudesse definir como. Não era uma atitude teatral como a de
Sybil e sim como se o cotidiano tivesse sido retirado da sua
existência.Maispareciaumcirurgiãoprontoparaumaoperação
complicada.Essa impressão foi reforçadaquandoelavestiuum
aventalcomprido,feitodeumtecidometálico.
—Precisotomarcertasprecauções—preveniu-meThyrza.
Acheiafrasebastantesinistra.
—Devoprevenirqueosenhordevemanter-seabsolutamente
quietoedeformaalgumasairdestacadeira,senãoquisercorrer
perigode vida.Lembre-sedequenãoestamosbrincandoe sim
lidandocomforçasperigosaseestranhas.
ThyrzaGreyfezumaligeirapausa.
—Trouxeoquelhepedimos?
Puxei do bolsouma luva de suedinemarrom.Rapidamente
Thyrzacolocoualuvaemfrentedeumestranhoabajur;acendeu
a luz e segurou a luva, diante da lâmpada, que deu ao tecido
umaestranhacoloraçãocinza.
—Muitobem—disseela,apagandoaluz.—Asemanações
físicasdadonaaindaestãobempresentes.
Emseguida,colocoualuvasobreumaparelhosemelhantea
umavitrola.
—Bella,Sybil—disse,levantandoavoz,—estoupronta.
Sybil entrou, trajando uma capa preta, que ela deixou
deslizarsobreosombros,caindoaochãocomoumamanchade
tinta.
—Esperoquedêcerto—disse.—Nuncasesabe.Porfavor,
não adote uma atitude crítica, Sr. Easterbrook. Atrapalha os
trabalhos.
— O Sr. Easterbrook não veio para brincar — preveniu
Thyrza,severamente.
Sybildeitou-senodivãvermelho.
—Estábemcômoda?—perguntouThyrzasolícita.
—Oh!Sim,obrigada.
Thyrza acendeu umas luzes, deixando Sybil no escuro,
circundadaporumraiodeclaridade.
— Muita luz atrapalha o transe — explicou. — Estamos
prontas,Bella.
Bella surgiudas sombras e encaminhou-se comThyrza em
minhadireção.
Thyrzacomamãodireitapegouminhamãoesquerda,deua
outramãoparaBella;estaapanhouminhamãodireita.Senti-me
repelido pelo contato com Bella. Thyrza deve ter acendido um
comutador qualquer, pois ouvi os acordes de uma música a
distância.PareciaamarchafúnebredeMendelssohn.
—Miseenscène—pensei.—Umaverdadeirapalhaçada.
Apesar disso, senti como se uma corrente subterrânea de
apreensãoemocionaltivesseinvadidoasala.
Amúsicaparou.Fez-seumlongosilêncio,ondesóseouvia
nossaprópriarespiração.
De repente,Sybil começoua falar, comoutravoz.Erauma
vozmasculina,gutural,comsotaqueestrangeiro.
—Cheguei—disseela.
As duas soltaram minhas mãos. Bella desapareceu nas
sombras.
—Boanoite—disseThyrza.—ÉsMacandal?
—Sim,souMacandal.
ThyrzamoveuumalâmpadaeiluminouorostodeSybil,que
parecia mergulhado num sono profundo. Seu rosto estava
inteiramentemudado;pareciamaisjovemeatémaisbonita.
—Estáspreparado,Macandal,paraobedecerameusdesejos
eminhasvontades?
—Estou—respondeuavoz.
—TomaráscontadocorpodeDossu,queestáaquideitadoe
no qual você está incorporado para que não sofra dano físico
algum?Dedicarás tua força vital aosmeuspropósitosparaque
euconsigaatravésdelesrealizarmeusdesejos?
—Sim.
—DedicarásestecorpoparaqueaMorte,passandoporele,
atinjaoutrocorpo?
Thyrzadeuumpassopara trás.Bella reapareceucomuma
espécie de crucifixo. Thyrza colocou-o de cabeça para baixo,
sobreopeitodeSybil.Bella,emseguida,trouxeumvidroverde.
Duas gotas foram colocadas na testa de Sybil, onde Thyrza fez
um pequeno desenho que me pareceu o sinal da cruz ao
contrário.
— Água benta da igreja católica de Garsington— explicou
Thyrza, numa voz comum que deveria ter dissipado o encanto
mas,noentanto,deuàcerimôniaumarmaisassustador.
Thyrza apanhou um terrível guizo, sacudindo-o três vezes,
diantedeSybil.
—Tudoestápronto!—disseThyrza,dandoumpassopara
trás.
Bellarepetiuasmesmaspalavras.
—Nãoachoqueestejamuitoimpressionadocomesteritual
— disse Thyrza. — A maioria dos nossos clientes, porém, fica
apavorada. É claro que há um pouco de palhaçada nisto,mas
nãodeveduvidardetudo.Oritualpossuiumcertoefeitosobreo
espírito humano. O que causa a histeria nas massas? Não
sabemosaocerto,masadmitimosqueéum fenômenoatuante.
Porissoempregamosestacantilena;énecessária,creia-me.
Bellasaiudoceleiro,voltandocomumgalobranco.Comum
pedaço de giz, ela ajoelhou-se e fez alguns riscos no chão, em
voltadobraseiroedabaciadecobre.Colocouogalodentroda
bacia;aave,comoporencanto, ficou imóvel.Fezoutros riscos,
cantando num tom gutural. Não pude compreender suas
palavras mas percebi que ela estava se excitando até poder
atingirumcertoclímaxdeparaxismoobsceno.
—Não gosta?—perguntou Thyrza, observando-me.—É a
velha receita da morte, que vem de geração em geração,
transmitidademãeparafilha.
Nãopodia compreender onde Thyrza pretendia chegar, pois
emvezdetentarmeconvencerelapareciaagircomoumacética
comentarista.
Bella estendeu as mãos para o aquecedor e uma chama
começouacrepitar.Atirouumaservasna fogueira,enchendoo
ardeumestranhoperfume.
—Estamosprontas—disseThyrza.
Comoum cirurgião, ela dirigiu-se para o aparelho parecido
comumavitrola,abriu-oepudeverumamaquinariaeletrônica
complicadíssima.Ela empurroua estranhamáquinaparaperto
dodivã.Ajustouoscontroles.
— Direção... Norte, norte... leste... grau... é isso mesmo.
Pegoualuva,acendendoumaluzvioleta,ecolocouofocodeluz
numa certa posição. — Sybil Diana Helen — disse Thyrza,
dirigindo-seàfigurainertenosofá.—Estáslivredoteuinvólucro
mortal. Macandal tomará conta dele. Voe para o lado da dona
desta luva que, como todos os seres humanos; só possui um
desejo na vida: MORRER. Só a Morte soluciona todos os
problemas, só a Morte dá paz verdadeira. Os grandes sabem
disso.VejaMacbeth,vejaTristãoeIsolda.AmoreMorte.Amore
Morte.
Suavoz ecoava, repetindoaspalavrasenquantoamáquina
produziaumzumbido e as lâmpadasacendiameapagavam-se.
Senti-me aterrorizado. Não era mais caçoada, pois Thyrza
dominavacompletamenteafigurainertenosofá,usando-apara
umfimcriminoso.PercebientãoporqueaSra.Olivertinhatido
uma má impressão de Sybil e não de Thyrza; pois a primeira
possuíaumdomnaturalnadarelacionadocomamenteoucomo
intelecto. Thyrza, porém, estava controlando o corpo da outra,
usando-a... e amáquina?Que relação tinha estamáquina com
isso tudo? Senti medo da máquina. Que segredo diabólico
possuiria?Queraiosemitiria,tãoletaiscapazesdedestruiruma
pessoa?
Thyrzaprosseguiaadiabólicaliturgia.
—O ponto fraco... há sempre um ponto fraco na carne de
umapessoa.Destafraquezavemaforça,aforçaeapazmental...
ametaéaMorte,amortenatural.Ostecidosdocorpoobedecem
àmente.Comandando-osemdireçãoàMorte.AMortevencedo-
te:MORTE.Ogritoaterrorizantefoiacompanhadodeumgemido
animal de Bella, que se levantou com uma faca na mão,
decepandoacabeçadofrango.Osanguepingoudentrodabacia
decobre.Bellalevantouabaciaegritou:
—Sangue...sangue...SANGUE.
Thyrzaapanhoualuvaeentregou-aaBella.Estamergulhou
aluvadentrodabacia,devolvendo-aemseguida.
— O sangue... o sangue... o sangue... — gritava Bella,
frenética, correndo em volta do braseiro. A chama reacendeu e
apagou-seemseguida.
Senti-memal.Minhacabeçacomeçouarodar,obrigando-me
asegurarnoespaldardacadeiraparanãocair.
Amáquinapareceudesligar-seautomaticamente.
AvozdeThyrzavoltouasoarpelasala,numtomnormal.
— A velha e a nova magia. As velhas crenças e os novos
conhecimentoscientíficos.Juntosvencerão...
Capítulo18
NarrativadeMarkEasterbrook
—Comofoi?—quissaberRhoda,namanhãseguinte.
—Omesmode sempre— respondi, incomodadopelo olhar
inquietantedeDespard.
—Desenharamfigurasnochão?
—Sim.
—Usaramfrangosbrancos?
—Claro,senãoqualseriaaparticipaçãodeBella?
—Transesetudoomais?
—Transesetudoomais—repeti.
Rhodapareceudesapontada.
—Vocêfalacomosetivesseachadotudomonótono—disse
elanumtommagoado.
Expliquei que essas coisas são sempre iguais e queminha
curiosidadejáestavasatisfeita.
AssimqueRhodafoiparaacozinha,Despardvoltou-separa
mim.
—Vocêficouumtantoabalado...
—Bem.
Tenteidesconversar,masDespardnãoeraumhomem fácil
deenganar.
—Foiterrível—murmurei,finalmente.
—Apesardenãoacreditar—disseele—essascoisassurtem
um certo efeito. Assisti a umas cerimônias na África, onde os
pajéspossuemumpodersobrenaturalsobreosnativos.Pormais
céticoqueeuseja,devoconfessarquevicoisasincríveis.
—Mortes?
—Claro.Seumhomemsabequeestácondenadoamorrer,
elemorre.
—Porsugestão?—perguntei.
—Talvez.
—Masvocênãopareceacreditarnessateoria.
— Para dizer a verdade, não sei em que acreditar— disse
Despard.—As teoriascientíficasocidentaisnãoexplicamesses
fenômenos, porque os europeus não pertencem a essas seitas.
Casopertencessem,creioquemorreriamtambém...
—Concordocomvocêquenãopodemossermuitodidáticos.
Coisas estranhas acontecem em todo lugar. Anos atrás, num
hospital,emLondres,apareceuumamoçaqueixando-sededores
terríveis nos ossos do braço. Nenhuma razão clínica para a
sintomatologia.Omédicosugeriuquetentassempassarumferro
em brasa pelo local dolorido, caso ela concordasse. Como ela
estava desesperada de dor, concordou. O médico pediu que
vendassem os olhos da paciente. Pegou um ferro em brasa,
mergulhou-onumtanquedeágua friaepassoupelobraço.Ela
gritoudedor.—Vocêvai ficarboa,disseele.—Achoquesim,
disse ela, mas doeu tanto! Queimou meus braços inteiros. O
estranho é que ela acreditou que tivesse sido queimada e
realmente no lugar por onde o médico havia passado o ferro
haviaumamarcacomodeumaqueimadura.
—Eelaficouboa?—perguntouDespard.
— Sim, nuncamais sentiu coisa alguma. Mas teve que se
tratardasqueimadurasnobraço.
—Estranho,nãoé?
—Omédicotambémficouadmirado.
—Imaginocomo!—disseDespard.—Porquevocêquisirà
sessãoontemànoite?
Deideombros.
—Essasmulheresmeintrigaram.Queriavê-lasemação.
Despardcalou-se.Nãocreioquetivesseacreditadonaminha
resposta.
Maistardefuiàcasadovigário.Apesardeencontraraporta
aberta,acasapareciadeserta.ResolvitelefonarparaGinger.
Pareceu-medurarumaeternidadeatéqueelaatendesse.
—Alô?
—Ginger.
—Ah!Évocê.Quehouve?
—Vocêestábem?
—Claroqueestou.Porquenãoestaria?
Umaondadealíviomeinvadiu.
Ela estava bem e eu fiquei feliz. Como pude acreditar que
aquela cantilena doida iria afetar uma moça forte e saudável
comoGinger?
—Tevealgumpesadelo?
—Não.Penseiquefosseter,massóconseguificaracordada
a noite inteira me perguntando por que não estava tendo um
pesadelo.Fiqueiatécomumpoucoderaiva.
Deiumaboarisada.
—Conte-meoqueaconteceu.—pediuGinger.
—Nada de extraordinário. Sybil deitou-se num sofá e caiu
emtranse.
Gingerriu.
—Émesmo?Quemaravilha!Elaestavavestidadenegroou
estavanua?
—SybilnãoéMme.deMontespan.Nãofoiumamissanegra.
Elaestavavestidadospésàcabeça.
—EBella?
—Bellamatouumfrangoemergulhousualuvanosangue.
—Queporcaria.Quemais?
— Uma porção de histórias... Thyrza invocou Macandal,
acendeu luzes,cantou.Creioqueoespetáculodeve fazermuito
sucessoentreosacólitos.
—Evocê?
—ConfessoquefiqueicomumpoucodemedodeBella.Ela
tinhaumafacaeeufiqueipreocupadoqueelaperdessearazãoe
resolvessemeconfundircomumgalo.
—Nadamaisoassustou?—persistiuGinger.
—Nãosoutãocrenteassim.
—Porquesuspiroualiviadoquandoeuatendi?
—Porque...
— Está bem, não precisa responder. Também não precisa
dizer que tudo foi tão pueril. É óbvio que você ficou
impressionadocomalgumacoisa.
— Talvez porque Thyrza parecia tão confiante nos
resultados...
—Confianteque sóa invocaçãopudessemataralguém?—
perguntouGinger.
—Issomesmo.
—Bellatambém?
—Bella pareciamais satisfeita com amorte do galo e das
imprecações obscenas que era obrigada a emitir. Gritava: o
sangue...osangue...
—Queriaestarláparaouvir.
— Queria que você estivesse lá. No fundo foi um grande
espetáculo.
—Agoravocêestábem?—perguntouGinger.
—Comoassim?
—Porquequandometelefonounãoestava,oraessa!
Elatinharazão.
—Quefazemosagora?Tenhoqueficaraqui?
—SequisermosreceberodinheirodoSr.Bradley.
—Entãopodecontarcomigo.Evocê,vaificarcomRhoda?
— Uns dias. Depois vou para Bournemouth. Vou telefonar
diariamentedaquidacasadovigárioparavocê.
—ComovaiaSra.Calthrop?
—Bem.Elaéaúnicaquesabedetudo.
—Euimaginei.Bem,achoqueésó.Atélogo.Vaisermuito
monótonoficaraquisozinhaestasduassemanas.Aindabemque
trouxe um trabalho para fazer e uns livros que há anos
tencionavaler.
—Eagaleria?
—Eudissequeiaviajar.
—Algumacoisaestranhaaconteceu?
— Não — respondeu Ginger. — O mesmo de sempre: o
leiteiro, o medidor do gás, uma mulher perguntando sobre
produtosdebelezaeumapessoapedindoparaeuassinarcontra
as explosõesnucleares.Osporteiros, é claro... umdeles trocou
umfusívelparamim.
—Atéaí,nadadeestranho...
—Oquevocêesperava?
—Seilá—respondi.
Creioqueesperavaalgodesuspeitoquedessealgumindício,
porém as vítimas do Cavalo Amarelo morriam por vontade
própria...
Insisti com Ginger que talvez o medidor de gás fosse um
membrodaorganização.
—Elemeapresentouascredenciais—disseela.—Quando
saiuverifiqueisenãotinhadeixadonenhumescapamento.
Alémdomais,oCavaloAmarelonãolidavacomescapamento
degás;costumavaagirdeformamenosconcreta.
—Tiveoutravisita—prosseguiuGinger,animadamente.—
ODr.Corrigan,queémuitosimpático.
—DevetersidomandadoporLejeune—disseeu.
Desligueialiviado.
Aovoltarparacasa,encontreiRhoda,nojardim,cuidandodo
cachorro.
— O veterinário acabou de sair — disse ela, ocupada em
esfregarumaespéciedeungüentonopelodoanimal.—Parece
queeleestácomsarna.Tenhoquetomarcuidadoporcausadas
crianças.
—Edosadultostambém—acrescentei.
—Geralmente são as crianças que pegam. Ainda bem que
estão internas.Quieta,Sheila,nãosemexa.Estepreparado faz
cair o pelo,mas o veterinário garantiu que depois, aos poucos,
crescedenovo.
Ofereciminhaajuda,quefelizmentefoirecusada.
O que eu acho monótono quando estou no interior é que
sempre existem somente três opções, quando se quer dar uma
volta. Em Much Deeping ou se tomava o caminho para
Garsington, ou a estrada para Long Collenham, ou então para
ShadhangerLane,nocaminhodeBournemouth—Londres.
No dia seguinte, depois do almoço, resolvi experimentar a
terceira opção. Como estava no caminho, resolvi visitar o Sr.
Venables.
Por que não? Nada que pudesse levantar suspeitas; era
portanto bastante natural que eu fosse visitá-lo, pretextando
reveralgumapeçadasuamaravilhosacoleção.
OfatodeVenablestersidoidentificadopelofarmacêutico...
Odgen?ouOsborne?eramuitointeressante.EemboraVenables,
porcausadainvalidez,nãopudesseserapessoasuspeita,ainda
assimoenganoeraintrigante.
Venableseraumafiguramisteriosa,dissonãohaviaamenor
dúvida.Erainteligenteetinhaumarpredatório,destrutivo.Não
seriaumassassinoesimumchefedeumaquadrilhacriminal.
Omestredocrimeeraumpapeiquelhecaíacomoumaluva.
Porém o farmacêutico disse tê-lo visto “andando numa rua de
Londres”!Umavezqueistoeraimpossível,resolvidarumaoutra
investigada.Abrioportãoecaminheipelalongaalameda.
Fui recebido pelo mesmo criado que informou estar o Sr.
Venablesemcasa.Pediu,porém,queeuaguardassenohall,pois
nemsempreopatrãoencontrava-seemestadoderecebervisitas.
Pouco depois voltou, dizendo que o Sr. Venables estava
encantadocomaminhapresença.
Venablesrecebeu-mecordialmente,comosefôssemosvelhos
amigos.
— Que prazer recebê-lo, meu caro. Soube que estava por
aqui e ia telefonar a Rhoda, hoje à noite, convidando-o para
jantar.
Desculpei-me pela intrusão, alegando um impulso
momentâneo.
— Além do mais — prossegui — gostaria de rever suas
miniaturasmongólicas.Nãotivetempodevê-lasdireitonaquele
dia.
—Compreendo.Acho-asmaravilhosastambém.
Nossaconversadiscorreusobretermostécnicos,oquepara
mim foi um prazer, pois Venables possuía raridades
interessantíssimasemcasa.
Na hora do chá, Venables insistiu para que eu o
acompanhasse.
Saboreeiodeliciosocháchinêsservidoemdelicadasxícaras
deporcelana.Proveiumamaravilhosafatiadepãocomanchovas
eumpedaçodepudimdeameixaquemefezrecordaroschásem
casadaminhaavó.
—Feitoemcasa!—comenteiencantado.
—Naturalmente.Bolofeitoempadarianãoentraemminha
casa.
—O senhor tem umamaravilhosa cozinheira. Não é difícil
manter-seumaboacriadagem,morandonointerior?
Venablesdeudeombros.
—Sempremecercodoquehádemelhor.Naturalmentepago
caroporisto.
Quearrogância!—pensei.
—Claro que nem todos podem dizer omesmo— comentei
secamente.
—Dependedo que o indivíduopretende conseguir da vida.
Basta desejar algo ardentemente. Tantos fazem fortunas sem
sequer saber para quê! Terminam devorados pela própria
engrenagem, tornam-seescravos!Acordamcedoedeitamtarde,
nãotêmumminutodefolga.Paraquê?Paraobteremcarrosmais
caros,esposasouamantesmaisdispendiosasedoresdecabeça
gigantescas.
Venablesinclinou-seligeiramente.
—Ganhardinheiroéametadetodososmilionáriospara,em
seguida,jogá-lodevoltaemoutrosinvestimentos.Paraquê?Será
queelesseperguntamaomenosisso?Creioquenãosabem.
—Eosenhor?
— Eu? — Venables sorriu. — Eu sabia o que desejava.
Eternodescansoparapoderapreciartodasasbelezasnaturaise
artificiais domundo.Como atualmente estou privado de viajar,
façoascoisasviremamim.
—Masparaissoéprecisomuitodinheiro.
—Planejamento— respondeu ele.—Énecessário planejar
bemumgolpe...nãonecessariamenteumgolpeilegal.
—Nãocompreendo.
— Estamos num mundo em revolução, Sr. Easterbrook.
Sempre estivemos, porém atualmente as mudanças são mais
rápidas.Oritmoacelerou...éprecisoaproveitar.
—Ummundo emmudança—disse eu,pensativo.—Abre
novos caminhos! É claro que o senhor está falando com um
homemcujavidaévoltadaparaopassadoenãoparaofuturo—
acrescenteicomoquepedindodesculpas.
—Oqueéofuturo?Quempoderáprevê-lo?Falodopresente
—doagora—domomentoimediato.Nãotomoconhecimentode
outracoisa.Asnovastécnicasestãoaqui!Játemosasmáquinas
querespondemasnossasperguntasemsegundos.
—Oscomputadores?
—Istomesmo.
—Seráqueelastomarãoolugardohomem?
—Dohomemqueviveemtermosdeenergia,sim.Dohomem
mente,não.Opensadorsemprefaráperguntas...
Sacudiacabeça.
— O Super-homem? — tentei dar à pergunta um tom de
deboche.
— Por que não, Easterbrook? Lembre-se de que estamos
começandoadescobriroHomem,oanimalhumano.Apráticado
que comumente se chama lavagem cerebral abriu uma enorme
possibilidade nesta direção. Não só o corpo, mas também a
mentedohomemrespondeacertosestímulos.
—Umadoutrinaperigosa.
—Perigosa?
—Perigosaparaossábios—disseeu.
Venablessacudiuosombros.
— Tudo na vida é perigoso. Nós, que fomos criados em
pequenos círculos de civilização, esquecemos isso. Pois nada
maissomosdoquepequenosnúcleosdecivilização,unidospara
nos proteger e controlar a natureza. Vencemos a selva
temporariamente, pois ela a qualquer momento voltará a nos
atacar. Cidades outrora altaneiras atualmente são meros
escombros.... a vida é sempre perigosa, não esqueça. No final
poderemos ser destruídos não só pelas grandes forças, como
pelas máquinas montadas por nós mesmos. Aliás, estamos
próximosdisso...
—Nãopossonegarqueosenhortemrazão.Masestoumais
interessadonasuateoriasobreamente.
— Ah! — exclamou Venables acanhado. — Creio ter-me
excedido.Devoter-meexcedido.
Acheiestranhoestedesconversar.Umhomemcomoele,que
vivesó,temnecessidadedefalarsejacomquemfor.Seráqueele
falarademais?
—OSuper-homem—disseeu.—Quasemeconverteuasua
teoria...
—Nãoénova,certamente.Existehácentenasdeanos.Éa
basefilosóficadeváriosautores.
—MasseuSuper-homemmepareceumpoucodiverso;como
umhomempoderoso que distribui o poder anonimamente, que
trabalhaporcontroleremoto.
Olheiparaele.Venablessorria.
—O senhor estáme dando um papel como numa peça de
teatro?Realmenteprecisodealgoparacompensar...isto!
Suasmãosdescerampelosjoelhoseeusentiaamargurada
suainflexão.
—Nãopossolheoferecerminhaperna—disseeu,—poisé
poucacoisaparaumhomemcomoosenhor.Masseeu tivesse
quefantasiarumpersonagemparaosenhor,seriadeumhomem
quetornaacatástrofeemtriunfo.
Eleriu.
—Osenhorestámebajulando.
Sentiporémqueelegostaradoelogio.
— Não — continuei, — conheci várias pessoas e sei
reconhecerumhomemextraordinariamentedotado.
Tive medo de ter exagerado. Mas a bajulação tem limite?
Anotei mentalmente este pensamento deprimente, como uma
utilidadefutura.
—Nãoseioqueolevaadizeristo.Éporcausadacasa?
—Achoqueelaprova—respondi—queéummilionárioque
sabecomprar,quetemgostoetirocínio.Achotambémqueexiste
maisdoqueodesejodepossuir.Suameta, creio, é alcançara
belezaeoequilíbrioepeloqueosenhordissenãocreioquese
chegueláatravésdotrabalhohonesto.
—O senhor tem razão. Só os tolos trabalham.Os espertos
planejamsuascampanhasnosmínimosdetalhes.Osegredodo
sucessoésimplesmasprecisaserestudadocomcuidado.Pensa-
seedepoisexecuta-se.Étudo!
Olhei para Venables. Seria uma coisa simples como a
eliminação de pessoas ricas? Um planejamento cuidadoso
executado por ThyrzaGrey, enquanto ele, na cadeira de rodas,
dirigiaoespetáculo?
—Suaconversasobrecontroleremotolembrou-mealgoque
ThyrzaGreydissera.
— Nossa cara Thyrza — disse Venables, num tom quase
indulgente. (Ouseráquenoteium leve trêmulonasuavoz?)—
Comodizloucuras!Eelasacreditamnoquedizem.Osenhorjá
foiaumasessãonacasadelas?Jáviucoisamaisridícula?
Resolvimudardetática.
—Sim,fuiaumasessão.
— Não achou uma palhaçada? Não vai dizer que ficou
impressionado?
Procureiparecerembaraçado.
—Creio—balbuciei,contemporizando—queosenhornão...
— olhei para o relógio. — Céus! Como é tarde. Devo voltar...
minhaprimaestámeesperando.
—Osenhordivertiumuitoumpobreinválido.Dêlembranças
a Rhoda. Precisamos breve almoçar juntos. Amanhã devo ir a
Londres,visitarumleilão.Temumaspeçasmedievaisdemarfim
quemeinteressam.Seconseguircomprá-lascreioqueosenhor
asapreciará.
Despedimo-nos afavelmente. Será que notei um ar de riso,
quando fingi ficar acanhado com sua pergunta sobre a sessão
espírita? Não podia ter certeza. Provavelmente eu estava
imaginandocoisas.
Capítulo19
NarrativadeMarkEasterbrook
Quando saí da casa de Venables já era noite. Encaminhei-
me, tateante, pela longa alameda, voltando-me para trás para
examinar a bela casa iluminada. De repente, tropecei numa
pessoa que vinha na direção oposta. Era um homem baixo,
encorpado,quefalavacomumsotaquepedante.
—Desculpe.
—Nãohádeque,aculpafoiminha—protestouele.
—Eununcaestiveaquiantes—expliquei—porissoestou
meioperdido.Deveriatertrazidoumisqueiro.
—Com licença—disseo estranho, tirandoum isqueirodo
bolso.
Quando o acendi, notei que o estranho era um homem de
meia-idade,derostoredondo,bigodesnegroseóculosdearode
tartaruga.Usavaumacapadeboaqualidadeetodoseuaspecto
transmitiaumaimagemderespeitoeintegridade.Mesmoassim,
eumepergunteiporqueelenãohaviausadoo isqueiro, jáque
estavatãoescuro.
—Ah!—disseeu,numtomidiota.—Saídaestrada.Agora
já posso achar o caminho — acrescentei, devolvendo-lhe o
isqueiro.
—Podeficarcomeleatéchegaraoportão.
—Mas...osenhornãovaientrar?
— Não, não. Eu vou tomar a estrada também. Vou até o
pontodoônibusdeBournemouth.
—Sei,sei.
Caminhamos juntos.Meucompanheiroparecia incomodado
comalgo;perguntouseeutambémiatomaroônibus;respondi
que estava hospedado por perto. Outra pausa. O embaraço do
homem crescia. Devia ser do tipo que não gosta de situações
escusas.
—O senhor esteve visitando oSr.Venables?—perguntou,
pigarreando.
Respondiquesim,acrescentando:
—Penseiqueosenhorestivesseindoparalá.
—Não—respondeuele,—não.EumoroemBournemouth,
istoé,pertodacidade.Tenhoumacasinhalá.
Poruminstantefiqueimeperguntandoondeouvirafalarde
umapessoaquetinhaumacasinhapertodeBournemouth...
— O senhor deve achar muito estranho encontrar uma
pessoa rondando uma casa. É realmente difícil de explicar,
emboraeupossua razõespara isso.Apesardemorarhápouco
em Bournemouth, existem pessoas que estariam prontas a
afiançar que sou um homem honesto e cumpridor dos meus
deveres. Sou um farmacêutico aposentado que resolvi mudar
paraestaregião.
Fez-se a luz. Imediatamente associei quem era aquele
homem.
—SouZachariahOsborne.TinhaumafarmáciaemLondres,
pertodaestação.Notempodomeupaieraumótimobairro,mas
atualmentedecaiumuito.
Suspirou.
—EstaéacasadoSr.Venables,nãoé?Éseuamigo?
—Nãodiria que sim— respondi, deliberadamente.—Só o
encontreiumavez,quandoalmoceicomele.
—Ah!Sei,sei...
Chegamos ao portão. O Sr. Osborne parou. Devolvi-lhe o
isqueiro.
—Obrigado.
—Nãotemdequê.Eunão...—aspalavraspareciamjorrar
— não gostaria de que o senhor interpretasse mal minha
presença aqui. Asseguro quenão se trata demera curiosidade.
Gostariadepoderesclarecermelhorminhaatitude.
Fiquei parado, esperando. O Sr. Osborne calou-se um
instante.
—Gostariadeexplicar,Sr....
—Easterbrook.
—Sr.Easterbrook,meuestranhocomportamento.Podeme
dispensaralgunsminutos?Podemostomarumcafénopostode
gasolina,queficaaquiperto.Meuônibussópassadaquiauns
vinteminutos.Aceita?
Aceitei o convite. Em pouco tempo estávamos no bar do
posto. Pedimos um café com biscoitos. Em seguida, Osborne
desabafou.
—Tudocomeçoucomumcasoqueosenhordeveterlidonos
jornais; não foi propriamente manchete mas foi bastante
comentado.Trata-sedoassassinatodeumpadrecatólico,perto
dolugarondeeutinhaminhafarmácia.Infelizmenteessescasos
acontecem com freqüência hoje em dia. Embora eu não seja
católico, ouvi grandes elogios sobre a bondade do padre. Mas
vamos ao que interessa. A polícia notificou que estava
interessada em entrevistar todas as pessoas que viramo padre
nanoitedocrime.Poracaso,naquelanoiteeuestavaparadona
portadafarmáciaeviopadreGormanpassar.Apoucosmetros
dedistância,noteiumhomemestranho,queobviamenteparecia
seguir o padre. É claro que na hora não deimaior atenção ao
fato,mascomosouumexcelente fisionomista,graveias feições
dodesconhecidoeasdescreviparaapolícia.Aí,então,começaa
espantosa segunda parte da história. Há uns dez dias fui à
quermesse de uma igreja e fiquei admirado de encontrar o
mesmo estranho. Como ele estava numa cadeira de rodas,
imagineiquetivessetidoumacidente.Andeiperguntandoquem
era e disseram que se tratava de um milionário chamado
Venables.Depoisdecertahesitação,escreviàpolícia.OInspetor
Lejeune, com quem eu tivera uma primeira entrevista, me
informou que o Sr. Venables era paralítico, há anos, vítima de
pólio,equeportantoeudeviatermeenganado.
OSr.Osbornecalou-se.Tomeiumgoledecafé,enquantoele
punhaaçúcaremsuaxícara.
—É,parecequenãohámaissaída—comentei.
—Éoqueparece—concordouOsborne.—Creioquedevo
suplementaresterelato.Quandocriança—continuouOsborne,
apoiando os cotovelos sobre amesa,—um amigo demeu pai,
umfarmacêutico,foichamadocomotestemunhadocasodeJean
PaulMarigot,otalqueenvenenouamulhercomumpreparado
dearsênico.Oamigodemeupaiidentificou-ocomoocomprador
quehaviadadoumnome falso.Fiquei impressionado,devia ter
unsnoveoudezanos,ecreioque,daquelediaemdiante,decidi
quetomariapartenumacausecélèbreequeajudariaaJustiça
na batalha contra o crime. Foi por essa época que comecei a
guardar fisionomias, talvez na esperança de que um homem
entrassenafarmáciaecomprassearsênicoparamataraesposa.
—Ah!UmahistóriacomoMadeleineSmith[04]?
—Exatamente—Osborne deuum suspiro.— Infelizmente
isso nunca aconteceu mas agora surgiu a possibilidade de eu
testemunharnumprocesso!
OrostodeOsborneiluminou-secomoodeumacriança.
— Mas parece que estão tirando suas esperanças —
comentei.
—É...maseusouumhomemteimoso,Sr.Easterbrook.Com
opassardotempo,cadadiameconvençomaisdequeestoucom
arazão.OhomemqueeuvieraVenables.
—Sei,sei—disseele,levantandoamão,quandotenteifalar
—queeraumanoitedenevoeiroequeeunãoestavaaoladodo
suspeito, mas sei também que tenho prática em guardar
fisionomias.Emboradigamqueeuestouenganado,nãoconsigo
me convencer. A polícia insiste que é impossível, mas eu
pergunto:Serámesmo?
—Mas,certamente,sendoparalítico...
Elemeinterrompeucomamão.
—Ouça,soufarmacêuticoeconheçoaclassemédica.Seido
queécapazquandoodinheiroestáemjogo.Existemdrogasque
induzemàparalisia,àsfebres,àsirritaçõesdepele...
—Masumaatrofiadosmembros?
— Mas quem disse que o Sr. Venables tem os membros
atrofiados?
—Ora,omédico.
— Exatamente. Procurei informações sobre o médico de
Venables,umfigurãoquemoraemLondres.Omédicodaqui,que
atendia Venables, aposentou-se emudou para o estrangeiro.O
novomédiconuncaestevecomVenables.
OlheiparaOsbornecomcuriosidade.
—Masatéaí,nãovejomá-féalguma—protestei.
—Osenhornãosabeoqueeusei—disseOsborne.—Como
exemplopossocitarocasodaSra.H.,quevivedossegurosda
própria morte, recebendo polpudos dividendos de três
companhiascomosefosseumairmãmaisnova.
—Nãoentendo...
—Poisentãoimagine—continuouOsborne,excitado,—que
oSr.Venablesconheçaumhomempobrevitimadopelaparalisia.
O homem é abordado por Venables e, por acaso, até parece
fisicamente com ele. Por uma certa quantia, vai procurar um
especialista,dandoonomedeVenables.OverdadeiroVenables
aluga uma casa no campo, traz toda a falsa documentação
médica e apresenta-se ao médico local. Como este deseja
aposentar-se, nada como uma polpuda soma para fechar os
olhossobrea“suposta”paralisiaepartirparaoestrangeiro.
—Masoscriadosnãosaberiam?
—Esefossempartedaquadrilha,issoteriaimportância?
—Eparaquetodoessetrabalho?
— Não vou revelar minha teoria, pois não quero ser
ridicularizado pelo senhor. O que não se pode negar é que
Venables possui um álibi perfeito. Pode ser visto andando em
qualquer lugar, mas obviamente não é ele, uma vez que é
paralítico!
Osbornedeuumaolhadanorelógio.
—Meu ônibus está para chegar, por isso serei breve. Pois
bem,comotenhomuitotempodisponível(sintofaltadafarmácia)
resolvi vir até aqui fazer algumas investigações. Sei que não é
direito,masafinalestouagindoassimparaajudaralei.Imagine
se eu visse o Sr. Venables dando uma voltinha pelo terraço
depoisdojantar?
—Masporque tem tantacertezadequeohomemqueviu
naquelanoiteéVenables?
—Porqueseiqueé.
Osbornelevantou-se.
Meuônibuschegou.Prazeremconhecê-lo,Sr.Easterbrook,e
obrigadoporter-meouvido.Nofundoeuachoqueéloucura,mas
quepossofazer?
—Talveznãoseja—disseeu.—Osenhorsónãodisseoque
achaqueVenablespretende.
OSr.Osbornecorou.
— O senhor vai achar graça: todos dizem que ele é rico,
porém não sabem como ganhou tanto dinheiro. Pois bem, vou
darmeupalpite: acho que ele é umdesses gênios do crime do
tipo que planeja os golpes para a quadrilha. Pode parecer uma
besteiramas...
OônibusparoueOsbornecorreu.
Voltei para casa, pensando na teoria de Osborne, que era
fantástica,mas tivequeconcordarque talveznão fossede todo
improvável.
Capítulo20
NarrativadeMarkEasterbrook
I
Namanhãseguinte,quandotelefoneiparaGinger,conteique
estavademudançaparaBournemouth.
— Encontrei um hotel bem simpático, cheio de entradas e
saídas.Quemsabenãodouumaescapadaatéaí?
— Não creio que seja prudente, mas bem que seria bom.
Estoumorrendo de tédio. Se você não puder vir quem sabe eu
vouatéaí.
—Ginger,suavozestádiferente!
—Nãoénadademais.Nãosepreocupe.
—Massuavoz?
—Estouumpoucorouca.
—Ginger!
—Ouça,Mark, qualquer pessoa pode ficar rouca.Devo ter
meresfriadoouquemsabeapanhadoumagripe.
— Gripe? Não tente minimizar os sintomas. Você está
realmentepassandobem?
—Nãosepreocupe,jádisse.Estouótima.
— Descreva os sintomas. Está sentindo um princípio de
gripe?
—Bem...sintoumasdoresnocorpo.
—Febre?
—Talvezumpouco...
Fiquei imobilizado de pavor. Percebi que Ginger, apesar de
negar,estavacommedotambém.
—Mark,nãoentreempânico.Controle-se,senãotudoestará
perdido.
—Aprimeiraprovidênciaételefonarimediatamenteparaseu
médico.
—Estábem,sóqueelevaiacharumabsurdo.
—Nãoimporta.Quandoeleforemboratelefoneparamim.
Fiquei uns instantes contemplando o telefone. Pânico, não
podiame entregar ao pânico... afinal gripe todo omundo tem,
principalmentenestaépocadoano...omédiconemiadarbola.
Umasériede imagensapareceramemminhamente...Sybil
estendida no sofá... a voz de Thyrza, comandando aMorte... e
Bellainvocandoosmausespíritosenquantosacrificavaogalo.
Bobagens...tudobobagens...esuperstições.
Eacaixa?Quedizerdacaixa?Nãosetratavamaisdeuma
superstição e sim do desenvolvimento de uma possibilidade
científica.Mas,nãoerapossível...
ASra.DaneCalthropencontrou-meaindaabsorto,emfrente
dotelefone.
—Oqueaconteceu?—perguntouela.
—Gingernãoestásesentindobem.
Desejei que ela me convencesse de que eu estava
fantasiando.
—Quepena!Nãogostonadadisso.
—Não épossível—protestei—que eles sejamcapazesde
fazerisso!
—Vocêacha?
—Asenhoranãoacreditaque...
—MeucaroMark— interrompeuaSra.DaneCalthrop,—
nós três, eu, vocêeGingeradmitimosestapossibilidade, senão
porquecontinuaríamoscomestainvestigação?
—Ofatodeacreditarmostornaacoisamaisreal.
— Não sei realmente se acreditamos... eu creio que
estávamosquerendoumaprovaparapodermosacreditar.
—Prova?Queprova?
— O fato de Ginger ter ficado doente é uma prova —
respondeuaSra.DaneCalthrop.
—Precisaser tãoagourenta?Elaestáresfriadaougripada.
Nãohárazãoparafazermosumdrama.
—Mas se for umdrama émelhor enfrentarmos a situação
emvezdeagirmoscomoavestruzes.
— Como posso acreditar que aquela cantilena, aqueles
transesderamresultado?
—Algumacoisadáresultado—respondeuela.—Istonãose
podenegar.Éclaroqueelascriamumespetáculoparadarmais
atmosfera,masatrásdissotudoestáumacoisaquefunciona.
—Comoumaondacurta?
—Algoparecido.Aciênciaavançadiaadiaetorna-secada
vezmais assustadora.Qualquer variação dessesnovos avanços
tecnológicospoderiaseradaptadoporpessoasinescrupulosas.O
paideThyrzafoiumfísico...
— E daí? Aquela maldita caixa! Se ao menos pudéssemos
examiná-la;seapolícia...
—Nãosepodecontarcomapolíciaparadissiparsuspeitas...
—Eseeuinvadisseacasadelaearrebentasseacaixa?
— Pelo que você me contou, o mal, se houve algum, foi
cometidonaquelanoite.
Deiumgemido.
—Porquefuimemeternisso?
— Motivado pela justiça. Não adianta chorar agora.
CertamenteGinger,depoisdaconsultamédica,vaitelefonarpara
acasadeRhoda...
—Entãoémelhoreuirparacasa...
— Estou sendo uma idiota — murmurou a Sra. Dane
Calthrop,—sei que estou sendouma idiota.Nãopodemosnos
preocupar com os objetos de cena da representação. Tenho
certezadequeéissoqueelasdesejam...
Talvezelativesserazão.
DuashorasmaistardeGingertelefonou.
— Ele veio — disse ela, — ficou intrigado, mas acha que
talvez seja uma gripe. Está havendo um surto por aqui. Vai
mandarum remédio e dissepara eu ficarna cama.Estou com
febrealta.Devesergripe,vocênãoacha?
Haviaumapelonapergunta.
—Vocêvai ficarboa—disseeu,semconvicção.—Estáse
sentindotãomalassim?
—Bem,estoucomfebre,comdoresnocorpo,naspernas...
umcalordosdiabos...
—Éafebre,meuamor.Ouça,vouparaaí,nãodigaquenão.
—Que bom! Estou contente que você venha... afinal estou
achandoquenãosoutãovalentequantopensei...
II
Emseguida,telefoneiparaLejeune.
—Ouça,aSrta.Corriganestádoente.
—Oquê?
— Você entendeu, está doente. Já chamou o médico que
disse que talvez fosse uma gripe forte. Acho que você devia
mandarumespecialistadarumaolhadanela.
—Quetipodeespecialista?
—Umpsiquiatra,umpsicanalistaouumpsicólogo...sei lá!
Enfimumsujeito que entendade sugestão ouhipnotismo... ou
lavagemcerebral.Nãotemgentequelidacomestascoisas?
—Claro que tem. Acho que você tem razão, pode ser uma
gripemastambémpodeserumaespéciedeinduçãopsicológica
qualquer.Eraoquenósestávamosesperando,Easterbrook!
Desliguei o aparelho. Que me importavam as armas
psicológicas?Aúnicacoisaqueme interessava realmenteeraa
saúde de Ginger. Nós dois não acreditamos na história,
brincamosdebandido emocinho e agorapodíamos ser vítimas
daprópriabrincadeira.
OCavaloAmareloestavanosdesmentindo.
Segureiacabeçaentreasmãosechoreidedesespero.
Capítulo21
NarrativadeMarkEasterbrook
I
Os dias subseqüentes transformaram-se em pesadelos
dispostos,semformaouseqüência,numcaleidoscópiodiabólico.
Ginger foi internada numa clínica particular, onde só era
permitidaminhaentrada.
O médico dela não parecia dar muita atenção ao caso;
diagnosticou uma broncopneumonia, em conseqüência de uma
gripe.Apesardadoençaapresentaralgunssintomasestranhos,
nem por isso ele mudou de opinião. Segundo ele, nenhuma
doençaeratípicaealgunspacientesnãorespondiambemacerto
tipodeantibióticos.
Naverdadeelaestavacompneumoniaeemestadograve.
Tiveumaentrevistacomumpsicólogo,enviadoporLejeune,
quemecrivoudeperguntas,masnãoofereceurespostaalguma.
Tentou, é verdade, hipnotizar Ginger mas não creio que tenha
obtidograndesresultados.
Passeiaevitarmeusamigosearecusarconvites.Minhavida
tornou-sesolitáriaetriste.
Finalmente, um dia resolvi convidar Poppy para jantar
comigonoFantasie.
Elaaceitouprontamente.
Consegui me distrair com a conversa inconseqüente da
floristaedepoisdefazê-labebermaisdoquedevia,comeceium
interrogatório cuidadoso. No fundo, eu achava impossível que
Poppysoubessedealgumacoisasemsedarcontadisso.
—VocêselembradaminhaamigaGinger?
—Claro—respondeuela,arregalandoosolhos.—Oqueela
andafazendo?
—Estámuitodoente.
—Coitada—dissePoppy,preocupadaatéondesuacabeça
ocapermitiaquesepreocupasse.
—Elasemeteucomumpessoalesquisito,aconselhadapor
você, creio. Um negócio de Cavalo Amarelo que lhe custou os
olhosdacara.
—Ah!—exclamouPoppy.—Entãoeravocê?
Por uns instantes não entendi coisa alguma. De repente,
percebiquePoppyestavameidentificandocomohomemcasado
cuja mulher “inválida” estava atrapalhando nossa vida.
Preocupadacomo ladoromânticodahistóriaapobreesqueceu
seumedodoCavaloAmarelo.
—Edeucerto?—perguntouelaexcitada,
— Deu errado — respondi. — O feitiço virou contra o
feiticeiro.
—Quefeitiço?—perguntouela,atônita.
PercebiquenãopodiaconversarcomPoppypormetáforas.
—OnegócioparecequeacaboufazendomalaGinger.Você
jáouviufalardealgumerrodeles?
Poppyrespondeuquenão.
—Éclaro—continuei—queessassessõesqueelasdãolá
no Cavalo Amarelo, em Much Deeping... você não sabia disso,
nãoé?
—Nãosabiaonomedolugar,sabiaqueeranointerior.
—Poisé,Gingernãosoubeexplicaroqueelasfaziam...
— Parece que tem alguma coisa com raios, não tem? —
perguntouPoppy.—Qualquercoisadeastral...
Percebi que Poppy estava baseando as informações na
própriaimaginação.
—Umacoisaassim—concordei.—Seiquedeveserperigoso
senãoGingernãoficariatãodoente.
—Masnãoerasuamulherquedeviaficardoenteemorrer?
—perguntouela.
—Era,masachoqueotirosaiupelaculatra.
—Querdizer...—dissePoppy, fazendoumenormeesforço
mental — que foi como se ligasse o ferro na tomada errada e
levasseumchoque?
— Istomesmo—disse eu.—Você ouviu falar deumcaso
semelhanteemrelaçãoaeles?
—Nãodestamaneira.
—Comoassim?
— Ora, se por exemplo uma pessoa não paga depois do
serviço... como um sujeito que eu conheci. Foi assassinado no
metrô,caiudaplataformaemfrenteaotrem.
—Talvezfosseumacidente.
—Quenada!Forameles.
Servi Poppy de mais champanha. Ali estava minha
oportunidade de descobrir algo, se pudesse selecionar o bric à
brac que era o cérebro da moça; ela ouvira coisas, assimilara
algumas, misturara tudo e ninguém se preocupou muito em
esconder coisa alguma, pois sabiam que ela era quase débil
mental. O mais irritante é que eu não sabia como dirigir as
perguntas.Tinhamedodedizeralgoerradoeassustá-la.
— Minha mulher é paralítica, mas por enquanto não está
pior.
—Quepena!—dissePoppy,bebericandoochampanha.
—Quefaçoagora?
Poppyarregalouosolhos.
—FoiGingerquemarrumoutudo—continuei—portanto,
nãoseiaquemrecorrer.
—TemumescritórioláemBirmingham.
—Já está fechado.Sabedemaisalguémaquemeupossa
procurar?
—TalvezEillenBrandonsaiba.
O aparecimento deste novo personagem me surpreendeu.
Pergunteiquemeraela.
—Umamulhermuitocareta—respondeuPoppy.—Destas
queusamocabeloemcoqueesaltobaixo.Ofim!Estudamosna
mesmaescola,elaeraótimaemGeografia...
—OqueelatemquevercomoCavaloAmarelo?
—Nãoseiaocerto.Achoqueeladescobriuqualquercoisae
pediudemissão.
—Pediudemissãodeonde?
—DoR.C.C.
—OqueéR.C.C?
— Para dizer a verdade, não sei. Eles dizem R.C.C. É
qualquercoisacompesquisademercado...
—EEillenBrandontrabalhavaparaelesfazendooquê?
—Perguntandosobrepastasdedentes,fogõesagásetc.Tipo
doempregomonótono.Alémdomaisoqueagentetemavercom
oqueosoutrosusam?
—TalvezoR.C.C.tenha—respondi,intrigado.
Uma mulher desta organização fora visitada pelo padre
Gormannanoitedoseuassassinato.EGinger falousobreuma
entrevistadora.Deviahaverumelonestacoincidência.
— Por que ela largou o emprego? Se aborreceu com o
trabalho?
—Achoquenão.Parecequeelespagambem.Creioqueela
descobriuqueelesnãosãobempesquisadores...
— Ela achou que eles estavam relacionados de alguma
maneiracomoCavaloAmarelo?Foiporisso?
—Não sei. Pode ser... agora ela está trabalhando numbar
emTottenham,CourtRoad.
—Precisodoendereço.
—Elanãofazseutipo.
— Não quero dormir com ela — respondi bruscamente. —
Quero saber sobre essa organização. Estou pensando em
comprarumasaçõesdessacompanhia.
—Ah!Entendo—dissePoppy,satisfeitacomaexplicação.
Como não poderia arrancarmais nada dela, terminamos o
champanhaeeualeveiparacasa,agradecendopelaencantadora
companhia.
II
NamanhãseguintetenteitelefonarparaLejeune,masnãofoi
possível.DepoisdecertadificuldadeconseguifalarcomCorrigan.
—Oqueaquelepsicólogovigarista,quevocêmandou,disse?
QueachadeGinger?
—Falou,falouenãodissenada—respondeuCorrigan.—Se
quiserminhaopiniãosincera,achoqueele,comotodoomundo,
pensa que Ginger está com pneumonia; afinal é uma doença
muitocomum.
—Tãocomumqueváriaspessoasnaquela listamorreram...
Todas de doenças como pneumonia, gastrenterite, tumor no
cérebro...
—Seicomosesentemasoquepodemosfazer?
—Elapioroumais,nãoé?
—Bem...piorou.
—Temosquefazeralgumacoisa.
—Oque,porexemplo?
— Tenho uma idéia. Que tal irmos a Much Deeping,
prendermosThyrzaGrey e assustá-lade tal formaque ela faça
umcontra-feitiço?
—Podeserquefuncione.
ConteiaCorriganateoriadeOsbornesobreVenables.
—AquelesujeitoencasquetoucomopobreVenables...
—Mas...eseeleporacasotivesserazão?
Corrigancalou-seporuminstante.
— Tudo pode ser possível... neste caso seria necessário o
silênciodeváriaspessoas...eporumpreçomuitoalto.
— Que importância tem o preço se Venables é tão rico?
Lejeunedescobriucomoelefezfortuna?
— Ainda não. É claro que existe algo de escuso com esse
milionário.Osnegóciosdelesãotãoemaranhadosquelevaríamos
anosparacolocar tudoempratos limpos.Seiqueo Impostode
Renda anda atrás dele,masVenables ématreiro. Por que você
achaqueeleéochefedatroupe?
—Nãolhepareceóbvio?
—Talvez. Pelomenos inteligênciapara isso ele teria.Agora
não creio que cometeria um ato tão grosseiro como assassinar
pessoalmenteopadreGorman.
— Creio que foi uma emergência. O padre precisava ser
silenciado antes de bater com a língua nos dentes. Além do
mais...
Calei-mederepente.
—Estámeouvindo?
—Sim...continue...équeeutiveumaidéia
—Oquefoi?
—Aindanãoestábemformulada.Seiquesóháumaforma
de se obter segurança perfeita... vou pensar melhor no caso.
Agora preciso desligar porque tenho um encontro. Mais tarde
falamos.
Desligueiotelefoneeolheiparaorelógio.Quandojáestava
na porta, o telefone tocou. Eu podia apostar que era Jim
Corrigan, querendomais informações. Nomomento, porém, eu
não queria falar com ele, resolvi sair ao som insistente do
telefone.Esefossedohospital?
—Alô?—respondicomcertaimpaciência.
—Èvocê,Mark?
—Sim.Quemé?
—Soueu,éclaro—respondeuumavozfeminina.
— Ah! A senhora! — suspirei, reconhecendo a voz da Sra.
Oliver. — Ouça, estou atrasadíssima para um encontro. Mais
tardeeutelefono.
—Deformaalguma—disseela,firmemente.—Ouçaoque
eutenhoparadizer,émuitoimportante.
—Sim?Depressa,por favor,porquenãogostodedeixaras
pessoasesperando.
—Aspessoassempreesperamporalguém.
Tenteirefrearminhaimpaciência.
—OuçaMark.Émuitoimportante.
—Diga.
—MinhaempregadaMilly foiparao interior,poisestácom
amigdalite.Airmãdelatemumacasinha...
Rangiosdentes.
—Sintomuitomas...
—Ouça,meuamigo,euaindanãocomeceiahistória.Onde
estava mesmo? Ah! Sim. Milly foi para o interior, o que me
obrigouachamarumaagência...
—Porfavor!
— Para perguntar que tipo de empregada eles tinham
disponível.Disseramque estádifícil, o quealiás sempredizem,
masqueiamfazeropossível...
JamaisacheiaSra.Olivermaisenervante.
— Só sei que hoje de manhã surgiu aqui uma criatura.
Adivinhequemera?
—Nãotenhoamenoridéia.
— Uma mulher chamada Edith Binns, que conhece você
muitobem.
—Eunão!NuncaouvifalaremEdithBinns.
— Claro que conhece. Inclusive esteve com ela há pouco
tempo.Ela trabalhounacasadasuamadrinha:LadyHesketh-
Dubois.
—Ah!
—Elaestevecomvocênodiaemquevocêpassouporlápara
apanharunsquadros.
— Muito bem, ótimo, parabéns por ter arranjado uma
empregadatãomaravilhosa.Agora...
—Querfazerofavordeesperar?Aindanãochegueiaofimda
história.Bem,elasentou-seefalouhorassobreadoençadeLady
Hesketh. Você sabe como os empregados adoram doenças e
mortes.Aí,eladisse...
—Disseoquê?
—Algoquemechamouaatenção.Eladisse:Pobremulher,
sofrendo daquele jeito. Uma mulher saudável que, de repente,
ficacomumtumornacabeça.Ocabelodelacaíaaoscachospelo
hospital. Um cabelo tão lindo! Aí, Mark, eu pensei em Mary
Delafontaine, aquela amigaminha. O cabelo dela também caia
aos chumaços. Lembrei-me do que vocême disse sobre aquela
brigademulheres,emChelsea,emqueumaarrancouunstufos
decabelodaoutra.Cabelonãosaiassimfacilmente,Mark.Tente
arrancarumpedacinho!Tenteparaverseconsegue.Estávendo?
Não é natural essas pessoas todas perderem o cabelo dessa
maneira.Deveserumanovadoença...
Agarrei o telefone para não cair. Milhões de imagens
juntaram-se diante dos meus olhos. Rhoda e os cachorros no
pátio,umartigoquelinumarevistamédica...éclaro!
PercebiqueaSra.Olivercontinuavamatraqueandodooutro
lado.
—Deusaabençoe.Asenhoraémaravilhosa.
Baticomtelefone.Emseguida,ligueiparaLejeune.Porsorte
eleestava.
—Ouça—perguntei—ocabelodeGingerestácaindo?
—Está.Deveserporcausadafebrealta!
—Febre alta,umaova!Ginger, como todos os outros, está
sofrendo de envenenamento por tálio. Deus queira que ainda
possamossalvá-la.
Capítulo22
NarrativadeMarkEasterbrook
I
—Dátempo?Elavaiviver?
Eu não podia ficar quieto, umminuto sequer. Lejeune me
observavacomimpaciência.
—Estamosfazendoopossível!
Nãoeraumarespostamuitosatisfatória.
— Mas será que eles sabem tratar deste tipo de
envenenamento?
—Seiquenãoécomum.Estãotentandooimpossível.Acho
queelatemgrandeschances.
Olhei para ele sem saber se realmente dizia a verdade ou
queriameconsolar.
—Dequalquermaneiraverificaramseeratáliomesmo?
—Sim.
—Eis a verdade sobre oCavaloAmarelo! Veneno.Nada de
magianegra, hipnotismo ou raios científicos.Veneno!E elame
atirou na cara seus grandes poderes, morrendo de rir com
certeza.
—Dequevocêestáfalando?
—DeThyrzaGrey. Lembra-se quando eu fui tomar chána
casadela?TodaaquelaconversasobreosBorgias,dosvenenos
que não deixam vestígios, das luvas envenenadas etc. Puro
arsênico, disse ela. Continuam fazendo omesmo, só que caem
em transe, matam galos, desenham pentagramas no chão,
colocam crucifixos de cabeça para baixo. E para quê? Para
enganar os supersticiosos. A caixa eletrônica é para os
materialistas racionais como nós, por exemplo, que não
acreditamosembruxasoupragas,masnãonegamosaexistência
eaeficáciadosraios,dasondasedosfenômenospsicológicos.O
CavaloAmarelonãopassadeumcavalodepau.Tudofeitopara
desviaraatençãosobreoenvenenamentodasvítimas.Omelhor
équeelasnãocorriamriscoalgum,podiamaté,comonocasode
Thyrza, gabar-sedos seuspoderesocultos.Caso fosse levadaa
umtribunalbastariamostraracaixacheiadeválvulasinúteise
seriaabsolvida.
—Elastrêsestãometidasnisso?
— Acho que não — respondi. — Bella deve acreditar
piamente em bruxaria, o mesmo acontecendo com Sybil, que
realmente possui o dom da mediunidade. É uma coitada que
acreditacegamenteemThyrza.
—EntãoThyrzaéachefe?
—PelomenosdoCavaloAmarelo.Mas,nãocreioquesejaa
cabeça de tudo; o verdadeiro líder deve trabalhar escondido,
organizando,planejando.Tudoé feitocomumverdadeirosenso
deequipe,cadaumocupandoumafunção:Bradley,apartelegal
efinanceira;Thyrza,encarregadadamagianegra.Certamenteos
doissãomuitobempagos...
— Pelo visto você já descobriu tudo — comentou Lejeune,
secamente.
—Aindanão.Sabemossomenteosfatosbásicos.Trata-sede
envenenamento.
—Quemlhedeuaidéiadotálio?
—Umasériedecoisas.Tudocomeçoucomaquelabrigaem
Chelsea; estranhei o comentário da moça de quem haviam
arrancadoocabelo:—Nãodoeunada!Elanãoestavasefazendo
de forte. Realmente não sentiu dor alguma. Há alguns anos,
quando estive nos Estados Unidos, li um artigo sobre
envenenamento por tálio. Uma porção de operários de uma
mesmafábricamorreuemconseqüênciadeváriascausascomo:
apoplexia,nevritealcoólica,paralisia,epilepsia,gastrenteriteetc.
Ossintomasvariavam.Namesmaépocaumamulherenvenenou
sete pessoas; os diagnósticos atestaram tumor cerebral,
encefalite e pneumonia. O estranho é a variedade de sintomas
quepodemserdiarréia,vômitoouintoxicação,dornosmembros
etc.
—Vocêpareceumdicionáriomédico.
—É claro que andei fazendoumaspesquisas.Umsintoma
porém sempre aparece: a queda dos cabelos. O tálio já foi
inclusive usado como depilatório mas acabou sendo
desaconselhado.Quando usado como remédio a dosagem varia
de acordo com o peso do doente. Hoje em dia é usado como
venenocontraratosporserumasubstânciasolúvelesemgosto.
Você percebe como é difícil num caso desses suspeitar-se de
envenenamento.
Lejeuneconcordou.
—Exatamente—disseLejeune.—Porissoainsistênciado
pessoal do Cavalo Amarelo de afastar o cliente da vítima. Para
evitar suspeitas. O trabalho é feito por alguém que não tem a
menor ligação com a vítima. Uma pequena visita é o bastante.
Nãoacha?
—Creio que tem razão.Oúnico fator comumé a visita de
uma agradável senhora com um questionário sobre utilidades
domésticas.
—Seráqueestasenhoraéquemdáoveneno?Comosefosse
umaamostraporexemplo?
—Nãocreioquesejatãosimplesassim—respondi.—Para
mim essas entrevistadoras são verdadeiras e participam da
história sem saberem coisa alguma. Acho que descobrirei
qualquer coisa depois de conversar com umamulher chamada
EillenBrandon.
II
EillenBrandontinhasidobemdescritaporPoppy:umcabelo
alourado em coque, no alto da cabeça, como um ninho de
passarinho. Pouca pintura, sapatos de salto baixo, roupas
severas. O marido tinha falecido em conseqüência de um
desastredeautomóvel,deixando-aviúvacomdoisfilhos.
Seu emprego anterior tinha sido numa firma chamada
ReaçãoClassificadadeConsumidoresondetrabalharaumanoe
pouco.Largouoempregopoisnãogostavadoserviço.
—PorqueSra.Brandon?—perguntouLejeune
—Osenhorédapolícia,nãoé?
—Sou.
—Achaqueháalgodeerradocomaquelafirma?
—Estousimplesmenteinvestigando.Asenhorasuspeitoude
algo?Foiporissoquesaiu?
—Nãotenhocoisaalgumaadeclarar.
— Compreendemos. Gostaria de que soubesse que esta
investigaçãoétotalmenteconfidencial.
—Poisnão,mesmoassimachoquenãotenhomuitoadizer.
—Podenoscontarporquesedespediu.
— Achei que estavam acontecendo coisas que eu não
compreendiabem.
—Coisasquenãolhediziamrespeito?
—Maisoumenos.Comoseafirmanãofossecemporcento
profissional. Suspeitei de que coisas escusas estivessem
acontecendo,masnãopodiaprecisaroquê.
Lejeune quis saber mais detalhes sobre o emprego. Eillen
explicouqueumalistadenomeseradadaacadaentrevistadora,
cujotrabalhoeravisitaralgumaspessoas,fazerumasperguntas
eanotarasrespostas.
—Eoquetinhaissodeerrado?
—Asperguntasnãopareciamconclusivascomqualquertipo
depesquisa.Comosequisessemdescobriralgumaoutracoisa...
—Oque,porexemplo?
—Nãosei.Issoéquemeintrigava.
EillenBrandoncalou-seporunsinstantes.
—Penseiaprincípio—continuouela,—quefosseumagang
de assaltantes ou coisa parecida. Conclui que não pois o
questionárionãopediadescriçãodosquartosetc....nemmesmo
oshoráriosemqueaspessoasestavamemcasa...
—Quetipodeprodutosfaziampartedoquestionário?
—Variavam.Asvezeseramsobrecomida,cereais,misturas
de bolos, ou tipos de sabão, detergentes. As vezes sobre
remédios, aspirinas, pastilhas contra a tosse, calmantes,
gargarejos.
— Não lhe pediam para levar amostras? — perguntou
Lejeune.
—Não.
—Seutrabalho,portanto,consistiaemanotarasrespostas?
—Sim.
—Comquefinalidade?
— Isto é que eu não compreendia. Também não éramos
informadas. Eles pretendiam que certas firmas gostariam de
obterinformaçõesmaisdetalhadassobreomercadodeconsumo.
O que eu estranhava era exatamente a forma amadorística e
desorganizadacomqueotrabalhoeraconduzido.
—Seriapossívelqueentreasperguntasqueasenhoradevia
fazer houvesse uma específica que contivesse a meta do
questionário e que as outras fossem unicamente empregadas
comodisfarce?
Elapareceuintrigadacomapergunta.
— Sim — respondeu, depois de uma certa hesitação. —
Talvez por isso as perguntas fossem tão disparatadas. Só não
imaginoqualseriaouquaisseriamasperguntaschaves.
LejeuneolhouparaaSra.Brandon.
—Asenhoradevesabermais—disseelecomsuavidade.
—Oestranhoéqueeunãosei.Eusimplesmenteacheique
haviaalgodeerrado.ChegueiafalarcomaSra.Davis.
—FaloucomaSra.Davis?
—Elatambémnãoestavamuitosatisfeita.
—Eporquê?
—Parecequeouviuqualquercoisa.
—Oquefoi?
—Jálhedissequenãopossosertãoprecisa.Elanãofalou
claramente.Sódisse:—Istoaquinãoéoquepareceser!Disse
também:—Afinalnãotemosnadacomisso.Ganhamosumbom
dinheiroenãoestamosinfringindoalei,portantonãovejomotivo
paranospreocuparmos.
—Étudo?
—Eladissemais,masconfessoquenãoentendi.Àsvezes,
mesintocomoumvírusmaligno!disse-meela.Nãocompreendio
queelaquisdizer.
LejeunetirouumpapeldobolsoeentregouàSra.Brandon.
—Conhecealgunsdestesnomes?Visitou-osalgumavez?
—Nãolembro.Visiteitantagente...
Os olhos da Sra. Brandon pousaram sobre um nome:
Ormerod.
—Lembra-sedealgumOrmerod?
— Não, mas a Sra. Davis falou nele. Morreu de repente
vitimadoporumahemorragiacerebral.Elaficouabaladíssima.—
Ela estavanaminha relaçãode clientesháquinzedias.Estava
tão bem de saúde, comentou ela. Foi então que fez aquele
comentáriosobreovírusmaligno.Dissemais:—Bastaeuvisitar
uma pessoa para que ela abotoe o paletó em seguida! Ela riu,
dizendo que devia tratar-se de uma coincidência.Mas eu notei
queelatinhaficadoimpressionada.
—Étudo?
—Bem...
—Fale.
— Tempos depois encontrei-a num restaurante. Contei que
tinhamedemitidoda firmae elaquis saberporquê.Expliquei
quemesentiamalpornãoentenderdireitooqueacontecialá.—
Podeserquevocêtenhafeitobem,disse-meela,maselespagam
beme ohorário é ótimo.Eununca tive sortena vida, por isso
vouaproveitarminhaoportunidade.Afinal,quemeimportaoque
aconteceaosoutros?
Respondi quenão estava entendendo bem, perguntei o que
haviadeerradonaquilotudo.—Nãoseiaocerto,respondeu-me
ela,—sóseiquevi, outrodia, saindodeumapartamento,um
sujeitoquenãotinharazãoalgumaparaestarlá.Carregavauma
maletadeferramentas.Oqueestariaelefazendolá?Emseguida
elaperguntouseeuhaviaconhecidoumamulherquetrabalhava
noCavaloAmarelo.PergunteioqueeraoCavaloAmareloeoque
tinhaavercomafirma.
—Eoqueelarespondeu?
—LeiaaBíblia, foia resposta.Nãoseioqueelaquisdizer
comisso!Foiessaaúltimavezqueeuavi.Nãoseiondeandaou
seaindatrabalhanafirma.
—Elamorreu—informouLejeune.
EileenBrandonteveumchoque.
—Morta?Como?
—Depneumonia.Hádoismeses.
—Quepena!
—Gostariadenoscontaralgomais?
—Nãosei.Jáouvi falaremdoCavaloAmarelo,massempre
que quero mais informações as pessoas se calam. Parece que
ficamcommedo.
ASra.Brandonparecianervosa.
— Não querome envolver em negócios perigosos, Inspetor.
Tenhodoisfilhospequenos.Sinceramente,nãoseimaisnada.
O Inspetor a olhou fixamente e fez sinal para que ela se
retirasse.
—Demosumbompasso—disseele,assimqueelasaiu.—
A Sra. Davis certamente sabia demais. Tentou fechar os olhos
para o que estava acontecendo, mas o fato de ela saber algo
acaboucondenando-a.Quandoela ficoudoente epercebeuque
ia morrer chamou o padre e contou tudo o que sabia ou
suspeitava.O que ela falou não sabemos.Devia ser a tal lista,
comosnomesdas pessoas que ela visitou e quemorreram em
seguida.Daíocomentáriodelasobreovírusmaligno.Gostariade
sabertambémquemelareconheceu,saindodeumapartamento
disfarçado de operário. Foi por isso que elamorreu, pois o tal
homemtambémdevetê-lareconhecido.Seelafaloucomopadre
é claro que precisavam matá-lo também, senão tudo estaria
perdido.Queacha?
—Achoquevocêtemrazão—concordei.
—Talvezvocêsaibaqueméessehomem...
—Tenhoumaidéia,mas...
—Jásei,jásei.Nãotemosprova...
Lejeunefezumapequenapausa;emseguida,levantou-se.
—Vamosapanhá-lo.Sóprecisamostercertezadequemseja.
Quandosoubermosaocertovamosprepararumaboaarmadilha.
Vocêvaiver.
Capítulo23
NarrativadeMarkEasterbrook
Trêssemanasdepoisumcarroparouemfrenteàresidência
deVenables.Quatrohomensdesceram:eu,oInspetorLejeune,o
sargentoLeeeoSr.Osborne,quemalpodiaseconterdetanta
excitação.
—Nãodigacoisaalguma—preveniuLejeune.
—Podecontarcomigo.Nãoabrireiaboca.
—Tomemuitocuidado.
—Sinto-meumprivilegiado.Sónãoentendoporque...
Como ninguém estava para explicações, Osborne achou
melhor não insistir. Lejeune tocou a campainha e pediu para
chamarem o Sr. Venables. Como se fôssemos um conselho
parlamentaremvisitaaoprefeitomunicipal,fomoslevadospara
abiblioteca.
SeVenablesficousurpresocomavisita,nãoodemonstrou.
Tratou-noscomtodaacortesiapossíveleeunãopudedeixarde
notar, enquanto ele movimentava a cadeira de rodas, quão
estranhaemarcanteerasuaaparênciapessoal.OpomodeAdão
quesubiaedesciaentreasabasdocolarinho,operfildeáguia,o
narizdeavederapina.
—Prazeremrevê-lo,Easterbrook.Parecequevocêagoravive
poresteslados.
Sentiumlevetomdesarcasmoemsuaspalavras.
— O senhor é o Inspetor Lejeune, não é? — perguntou
Venables. — Confesso que estou curioso. Nosso vilarejo é
geralmente tão calmo, tão pacato! Mas, mesmo assim, sou
visitadopelapolícia!Quepossofazerpelossenhores?
—Gostariadequeosenhornosajudasse—disseLejeune,
suavemente.
—Nãoseiondeouviestafrase.Comopossoajudá-los?
— No dia sete de outubro um padre católico, chamado
Gorman, foi assassinado na Rua West, bairro de Paddington.
Ouvi dizer que o senhor esteve pela vizinhança entre sete e
quarentaecincoeoitoequinze,equetalvezosenhorpudesse
nosdaralgunsesclarecimentos.
—Seráqueeuestivelánessanoite?Duvido.Duvidomuito.
Achomesmoquenunca estiveneste bairro de Londres. Senão
mefalhaamemória,creiomesmoquenememLondreseuestava
nessaocasião.VouaLondres,éverdade,somenteparaassistira
unsleilõesouvisitarmeumédico.
—SirWilliamDougdale?
— O senhor parece bem informado, Inspetor — respondeu
friamenteVenables.
— Não tanto quanto o necessário. Confesso que estou
desapontado com sua ajuda; no entanto, gostaria de relatar
algunsfatosligadosàmortedopadreGorman.
—Poisnão,emboraeununcatenhaouvidofalarnele.
—OpadreGormanfoichamadonaquelanoiteparaatender
umamulheragonizante.Parecequeelaestavaligada,semsaber,
a uma organização criminosa e que começou a suspeitar da
seriedade da firma. A organização especializava-se namorte de
pessoasporumpreço,éclaro.
—Nãomeparecegrandenovidade—disseVenables.—Nos
EstadosUnidos...
— Esta organização, porém, agia de outra maneira. Em
primeiro lugar,a remoçãodasvítimasera feitaostensivamente,
sob um pretenso método psicológico. O que os psicólogos
conhecemcomo “o desejo demorte”, quedizem ser inerente ao
serhumano.Poisbem,estedesejoeraestimulado...
— Forçando a pessoa a suicidar-se? Parece, Inspetor, uma
idéiaboademaisparaserverdade...
—Nãosetratadesuicídio,Sr.Venables.Avítimamorriade
mortenatural.
—Ora,ora,osenhornãovaidizerqueacreditanisso?
— O centro desta organização é a estalagem do Cavalo
Amarelo.
—Ah!Compreendo.Porissovieramparacá.AtrásdeThyrza
Grey... bem, não sei se ela acredita no que diz, mas posso
afiançar que se trata de uma bobagem. Ela tem uma amiga
médiumeumacozinheirabruxa (aliás,sãocorajosasemcomer
aquela comida). Só sei que as três ganharam fama de videntes
etc.Nãovaidizerqueapolícialevaestaconversaasério?
—Paradizeraverdade,levamos.
— Acredita realmente que Thyrza Grey é capaz desses
milagres?Queporcausadeumasinvocações,unstranseseuns
passesdemagianegra,umapessoavenhaamorrer?
— Oh! não, Sr. Venables. A causa da morte é muito mais
simples...
Lejeunefezumapausa.
—Amorteécausadaporenvenenamento.
Porunsinstantesreinouumsilêncioopressor.
—Oquê?
— Envenenamento através de sais de tálio. Nada mais
simplesmas,assimmesmo,eranecessárioencobrirocrimesob
a capa de uma organização pseudo-científica ou psicóloga. A
metaeradesviaraatençãosobreoveneno.
—Tálio—murmurouVenables.—Nãoconheciaestesal!
— Não? Usado contra ratos ou como depilatório. Fácil de
comprar.Porfalarnisso,encontramosumenvelopecomtáliona
suaestufa.
—Naminhaestufa?Impossível!
—Poiséverdade.Jáfizemosinclusivealgunstestes...
Venablescomeçouaficaragitado.
—Alguémdeveterpostolá.Desconheçoesseproduto...
— É mesmo? O senhor parece um homem de posses, Sr.
Venables.
—Eoquetemissoquevercomnossaconversa?
— O Imposto de Renda tem-lhe feito algumas perguntas
embaraçosas,nãoéverdade?Explicaçõessobrefontederendase
coisassemelhantes...
—Amaldição da Inglaterra está no seu sistema tributário.
Ultimamente tenho pensado seriamente em mudar-me para a
Jamaica.
—Nãocreioquepossairtãocedo...
— O senhor está me ameaçando, Inspetor? Por que, caso
esteja...
—Não,absolutamente.Estouemitindoumaopiniãopessoal.
Possocontinuarcomahistória?
—Jáqueestádecididoacontar,nãovejooutroremédio.
—Éumaorganizaçãoeficientíssima;osdetalhesfinanceiros
são tratados por um ex-advogado chamado Bradley, cujo
escritório fica em Birmingham, e onde os clientes o procuram
parafecharoscontratos.Trata-sesimplesmentedeapostarsea
pessoavisada,queestáatrapalhandoocliente,vaiounãomorrer
dentrodeumcertotempo.CasooSr.Bradleyganheaaposta,o
dinheiro tem que ser pago imediatamente; o não cumprimento
destacláusulaacarretaconseqüênciasfunestasparaocliente.O
Sr.Bradley,noentanto,limita-seaapostar.Simples,não?
—Em seguida— continuou Lejeune, sorrindo,— o cliente
vai ao Cavalo Amarelo, onde Thyrza Grey e as amigas
representam um espetáculo de muito efeito para os não
iniciados.
“Ouça, porém, alguns detalhes curiosos: algumas inocentes
senhorassãocontratadasparapesquisaromercadoconsumidor.
Paratanto,recebemumquestionárioeumasériedenomescom
endereços.—Qual o pão que preferem?Que artigos de toalete
usam? Qual o laxativo, tônico ou sedativo? etc. Hoje em dia o
senhorsabecomoestamoscondicionadosaresponderperguntas,
portanto, ninguém costuma reclamar. Passa-se, então, para a
etapa final. A mais simples, diga-se de passagem, e a única
executadapelochefedaorganização,quegeralmenteusavários
disfarces: porteiro, zelador, medidor de gás, bombeiro, ou
eletricista e até operário. Dependendo das circunstâncias, ele
apresentaascredenciaisnecessárias,entranacasadavítimae
substituiumproduto(queoquestionáriojárevelouqueavítima
usa) por outro igual porém envenenado. Não importa que
verifiqueogásoubatanoscanos,oqueeleveiofazerétrocaros
produtos.Cumpridaamissão,eledesaparece.
“Por algunsdiasnada acontece. Porém,mais cedo oumais
tarde a vítima começa a ficar doente.Chamamummédico que
nãotemrazãoparasuspeitardecoisaalguma,quenaturalmente
perguntasobreoshábitosalimentaresdopacienteelogicamente
não vai desconfiar do remédio que o mesmo vem tomando há
anos!
—Veja,portanto,Sr.Venables,queengenhosidade!Aúnica
pessoaquerealmentesabeoqueochefedaorganizaçãofazéo
própriochefe.Ninguémpoderáacusá-lo.
—Ecomoosenhorsabetudoisso?—perguntouVenables,
sorrindo.
—Quando suspeitamos de alguém temosmaneiras de nos
informar.
—Como?
—Nãoprecisareientraremdetalhes,mastemosorecursoda
fotografia. Hoje em dia um homem pode ser fotografado sem
saber.Temos,porexemplo,maravilhososretratosdoporteiro,do
medidorde gás etc.É claroqueapessoa emquestão recorrea
vários elementos como bigode, barba, dentes postiços, mas
conseguimosreconhecê-lo.PrimeiropelaSra.MarkEasterbrook,
aliás Katherine Ginger Corrigan, e depois por Edith Binns. A
identificação é um estranho fenômeno, Sr. Venables. Por
exemplo, este cavalheiro aqui, o Sr. Osborne, está disposto a
jurarqueviuosenhorseguindoopadreGormannanoitedesete
deoutubro,àsoitohorasdanoite.
—Evimesmo—disseOsborne,secontorcendodeexcitação.
—Descreviosenhornosmínimosdetalhes...
—Talvezestefosseoerro—interrompeuLejeune.—Poiso
senhor não viu o Sr. Venables naquela noite, enquanto estava
paradodefrontedafarmácia.Porqueosenhornãoestavaparado
esimandandoatrásdopadreGorman.Quandoeleentroupela
RuaWestosenhoroassassinou.
—Oquê?—disseZachariahOsborne.
—Sr.Venables, permita que lhe apresente oSr. Zachariah
Osborne, farmacêutico. O senhor gostará de saber que ele
colocouna sua estufauns tabletesde salde tálio eque estava
disposto a lhe dar o papel de vilão do filme. Ignorando sua
invalidez, divertiu-se em acusá-lo e, como é muito primário e
teimoso,insistiuquetinharazãoquandooidentificou.
—Primário?Osenhorseatreveamechamardeprimário?Se
soubesseoqueeufiz...
Osbornetremiadeódio.
Lejeuneencarou-ofriamente.
—Osenhornãodeviase fazerdetão inteligente.Se ficasse
calado na sua lojinha não estaria nesta situação. Nem eu
precisaria lembrá-lodeque tudoquedisserdeagoraemdiante
seráanotadoepoderáserusadocontraosenhornojulgamento.
FoientãoqueOsbornecomeçouagritar.
Capítulo24
NarrativadeMarkEasterbrook
—Queroumaexplicação!
Depoisdasformalidadespoliciais,conseguiagarrarLejeunee
levá-loaumbar.
— Pois não, Sr. Easterbrook. Creio que ficou bastante
surpreso.
—Fiqueinervoso...estavaconvencidodequeoculpadoera
Venables.Vocênãomedeupistaalguma...
—Não podia fazer isto. Tinha que agarrar todos os fios da
meadaparanãoperderumpontosequer.Comacolaboraçãode
VenablesconseguimosenganarOsborneepegá-lodesprevenido.
—Éumlouco?
—Aestaaltura jáestácompletamente incoerente.Oatode
matarpessoasdáumasensaçãodepoder.O indivíduosente-se
Deus, porém, quando confrontado com a realidade, recorre à
loucura,aosgritos.Vocêviucomoeleficou.
— Então Venables tomou parte do espetáculo? Ele achou
divertido?
—Achoquesim—respondeuLejeune.—Alémdomais,foi
bastanteimpertinenteapontodepedirumfavoremtroca.
—Qualseriaestefavor?
— Não sei se devo dizer — respondeu Lejeune. — Peço
portantosuadiscrição.Háoitoanos,houveumasériedeassaltos
embancos,semprecomamesmatécnica.Osladrõesescaparam.
Os roubos foram planejados por uma pessoa que não tomava
parte neles; e embora nós suspeitássemos quem fosse, nunca
pudemos agarrá-lo. O homem era um gênio, especialmente do
ponto de vista econômico, e além domais era tão esperto que
nunca mais cometeu outro assalto. Tratava-se de um grande
ladrãoenãodeumassassino.
—VocêsempresuspeitoudeOsborne?Desdeocomeço?
—Ofatodeelechamaratençãosobresimesmomepareceu
suspeito. Se ele se contentasse em ficar quieto, nunca
desconfiaríamos de um respeitável farmacêutico. Mas,
geralmente,oscriminososnãoficamcalados,nãoseiporquê.
—Odesejodemorte—sugeri.—Umavariantedateoriade
ThyrzaGrey.
— É melhor esquecer esta senhora e os conceitos que ela
emitia — aconselhou Lejeune. — Acho que no fundo os
assassinossesentemsós.Nãoadiantaserumgêniodocrimese
nãosetemcomquemcomentarasprópriasproezas.
—Vocêaindanãodissequandocomeçouasuspeitardele—
insisti.
— Desde o princípio ele mentiu. Pedimos informação às
pessoasquetivessemvistoopadreGormannanoitedocrime.O
testemunho dele era obviamente falso. Ele disse que vira um
homem seguindo o padre; descreveu o suspeito nos mínimos
detalhes, quando seria impossível identificarumapessoanuma
noitedenevoeiro como foi aquela.O fatode elementirnãome
pareceumuito importante;afinal, elepoderiaestarquerendose
vangloriar.Temtantagenteassim!Quandovolteiaatençãosobre
eleéquefoifatal.ImediatamenteOsbornecomeçouafalardesie
aiestáoseuerro.Eledescreveuumhomemquesemprequisser
maisimportantedoqueeranarealidade,umhomeminsatisfeito
emsercomoopai.Parecequeestevenoteatroporalgumtempo,
mas obviamente não fez grande sucesso. A razão talvez tenha
sidoarebeldianaturaldosparanóicos...poiscreioqueninguém
poderia ensiná-lo como representar um papel! É claro que ele
gostaria de ser testemunha de um crime, identificando o
assassino que comprou veneno na sua farmácia. Sei que a
descriçãoqueOsbornefezmepareceuinteressante,poisémuito
difícil descrevermos uma pessoa que nunca vimos. Tente
descreverumdesconhecidoeverácomoédifícil. Imediatamente
começamosadescrevertraçosecaracterísticasdealguémquejá
vimosemalgumlugar.Osbornedescreveuumapessoabastante
invulgar. Acontece que ele deve ter visto Venables sentado no
carroemBournemouthe ficou impressionadocoma fisionomia
do milionário. O que ele não podia saber é que o homem era
paralítico.
“Outro detalhe que me chamou a atenção foi o fato de
Osborneserfarmacêutico.Acheiqueaquelalistadopadretinha
algumarelaçãocomumaquadrilhadenarcóticosesenãofosse
Osborne eu teria enveredado por esse caminho. Aí ele manda
uma carta, dizendo que viu Venables na quermesse, ignorando
aindaqueofalsoacusadofosseparalítico.Quandosoube,nãose
calouporvaidade;aliás,vaidadetípicadeumlouco,poisparaele
seria impossível admitir que tivesse errado. Tive uma reunião
muito interessante na casa dele, em Bournemouth. O bangalô
chama-se Everest, pois ele é um grande admirador dos
escaladoresdoHimalaia.
“Por outro lado, a firma funcionava com a precisão de um
relógio;BradleyemBirmingham,ThyrzaGreyemMuchDeeping.
Pois bem, quem suspeitaria de que Osborne tivesse alguma
conexão com Thyrza Grey ou com Bradley ou com alguma
vítima?Umaverdadeirapeçadeteatroquedurariamuitosanos
emcartaz,seeletivesseficadoquieto.
—Oqueseráqueele faziacomodinheiro?Afinal,erapelo
dinheiroqueelematava?
— Claro que sim. Certamente se imaginava viajando,
recebendo, sendo convidado para grandes recepções.
Naturalmenteelenãoeraapessoaquegostariadeser,masofato
de podermatar impunemente lhe davauma sensação de força.
Quando for julgado,éclaroquevaisedivertirmuito. Imaginem
só,todoomundoolhandoparaele.
—Mas,oquefaziaeledodinheiro?
— Fácil — respondeu Lejeune, — apesar de ele ser um
grande sovina! É o típico avaro que gosta de guardar dinheiro
paravê-loamontoado.
—Guardavatodonumbanco?
— Não, provavelmente encontraremos debaixo de um
colchão...
Calamo-nos por um instante, recordando a estranha figura
deZachariahOsborne.
—SegundoCorrigan—disseLejeune,pensativo—tudoisso
seriaatribuídoàatrofiaouhipertrofiadeumaglândulaqualquer.
Eu,comosouumsujeitosimples,achoqueOsbornenãopassa
deumlouco.Oquemeimpressionaéaestranhacombinaçãode
burricecominteligência.
—Quando se fala num gênio do crime, sempre se imagina
umafigurasinistraeonipotente...
— Quando na realidade não é nada disso — interveio
Lejeune. — A maldade não é sobre-humana, é até subumana.
Um assassino quer sempre ser importante, mas nunca o será
porquenãoéumhomemcompleto.
Capítulo25
NarrativadeMarkEasterbrook
AvidaemMuchDeepingretornouaonormal.
Rhoda, ocupada com os cachorros; desta vez, creio que o
problemaeravermes...
Assim queme viu entrar, perguntou se eu queria dar uma
ajuda. Recusei prontamente, pois queria saber onde estava
Ginger.
—FoiaoCavaloAmarelo.
—Oquê?
—Dissequetinhaqueresolverumassuntolá...
—Masacasaestávazia!
—Eusei.
—Elaaindaestácansada,nãoestáemcondiçõesde...
—Vocêpareceumagalinha,falandodospintinhos!Elaestá
ótima. Você já leu o último livro da Sra. Oliver: A Cacatua
Branca?Estáemcimadamesa.
—DeusabençoeaSra.OlivereEdithBinns.
—QueméEdithBinns?
—Umasenhoraque identificouuma fotografia,alémde ter
sidogovernantadaminhamadrinha.
—Vocêenlouqueceu?Nãofalamaiscoisacomcoisa...
Saí sem dar resposta. Resolvi ir ao Cavalo Amarelo. No
caminho encontrei a Sra. Dane Calthrop, que me acolheu
efusivamente.
—Eusabiaqueestavamedeixandoenganarpelaencenação
daquelasmulheres.
Elafezumgestocomobraço,indicandoaestalagemvazia.
— A maldade não estava lá, como supúnhamos. Nada de
conluios com oDemônio ou invocaçõesmágicas. Simplesmente
umaorganizaçãocriminosasórdidaemesquinha.
—OInspetorLejeunetambémacha.
—Gosto dele— disse a Sra. Dane Calthrop.— Vamos ao
CavaloAmarelobuscarGinger.
—Oqueelafoifazerlá?
—Limparumacoisa.
Entramos e fomos invadidos por um forte cheiro de
terebintina.Ginger,cercadade traposevidros,olhouparanós;
ainda estava pálida e magra, usava um lenço na cabeça para
cobriroslugaresondetinhaperdidocabelo.
—Elaestábem—disseaSra.DaneCalthrop, lendomeus
pensamentos.
—Olhe!—exclamouGinger,triunfante.
Elamostrouavelhatabuletadaestalagem.Aferrugemtinha
sidoremovidaepodiaver-seafiguradeumesqueleto,comuma
foicenamão,montadonumcavaloamarelo.
—Apocalipse,SextoCapítulo,oitavoverso. “Eapareceuum
cavaloamarelo;eoqueestavamontadosobreeletinhapornome
MORTE,eseguia-ooInferno”—disseaSra.Calthrop,atrásde
mim,citandoaBíblia.
Por alguns instantes ficamos em silêncio, até sermos
novamenteinterrompidospelamulherdopastor.
—Entãoeraisso!—disseela,numtomdequemdespejaum
restodecomidapodrena latado lixo.—Tenhoque irandando
paraareuniãodasmães.
NaportaaSra.DaneCalthropparouevirou-separaGinger.
—Vocêseriaumaexcelentemãe.Ginger.
Gingerenrubesceu.
—Vocêquer,Ginger?—perguntei.
—Querooquê?Serumaboamãe?
—Vocêsabeoqueeuquerodizer.
—Talvez,masprefiroumapropostamaisdefinitiva.
Fizaproposta.
HorasdepoisGingerperguntou:
—VocêtemcertezadequenãoquercasarcomHermia?
—MeuDeus!Tinhaatéesquecidodela.
Tireiumacartadobolso.
—Recebiestacartadelahátrêsdias.Elameconvidoupara
iraoteatroassistiraTrabalhosdeAmorPerdidos.
Ginger arrancou a carta da minha mão e rasgou-a em
pedaços.
—Daquipordiantevocêsóiráaoteatrocomigo.
FIM
[01]BairrodeLondresconhecidoporsuaboêmia.
[02]LinguajartípicodaclassepobredeLondres.
[03]CitaçãodoHamletdeShakespeare.
[04]FamosaenvenenadorainglesadoSéculoXIX.