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Agatha christie os primeiros casos de poirot

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Page 1: Agatha christie os primeiros casos de poirot
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Dezoito histórias de suspense de Agatha Christie compõem estes Primeiros Casos de Poirot, que trarão ao leitor um Poirot no início da carreira, quando estabelecia sua reputação de detetive profissional na Inglaterra. Foi aí que ele se viu envolvido no escandaloso caso de Victorie Ball, durante a Primeira Guerra Mundial.A maioria das histórias aqui apresentadas são narradas pelo amigo de Poirot, que fez às vezes de Watson.Os Primeiros Casos de Poirot — uma dúzia e meia de novos contos do famoso detetive belga. Todos com a marca de qualidade da rainha do romance policial, que garante o suspense e o sucesso.

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OCasodoBailedaVitória

FoiasortequelevoumeuamigoHerculePoirot,antigochefedepolíciabelga, a se envolver no caso Styles. Seu êxito granjeou-lhe a fama, e eleresolveu dedicar-se aos problemas criminais. Fui ferido na França elicenciado do exército, e inalmente voltei aos nossos aposentos emLondres.Sugeriram-me,comotinhaacompanhadoamaioriadoscasosemquePoirot atuara, que izesseumrelatóriodosmais interessantes.Nessemister, creio que não poderia haver um iníciomais apropriado, do que oestranhoenigmaquedespertoutantacuriosidadepúblicanaépoca,ocasodoBailedaVitória.

EmboranãodemonstretãocabalmenteospeculiaresmétodosdePoirotcomo alguns casos mais obscuros, seus aspectos sensacionais, aspersonalidadesfamosasenvolvidasnoescândaloeatremendapublicidadeque a imprensa lhe concedeu, o tornamumacausecélèbre, e há bastantetempo creio que é justo que omundo tenha conhecimentoda atuaçãodePoirotemsuaresolução.

Numa bela manhã de primavera, estava na companhia de Poirot, emseus aposentos. Meu amigo, elegante e apurado como sempre, com suacabeça que lembrava um ovo ligeiramente inclinado para um lado,passava, com meticuloso cuidado, uma nova pomada nos bigodes. Umavaidade inofensiva era um dos traços de Poirot, compatível e paralela aoseuamorpelaordemepelométodo.ODailyNewsmonger,queeuestiveralendo, escorregara para o chão, e estava emprofundameditação quandoelemechamou.

—Emquerefleteassimcomtantaconcentração,monami?—Para ser franco, estava intrigadocomomisteriosocasodoBaileda

Vitória.Osjornaissófalamnisso—indiquei-lheafolha.—Éverdade?— Quanto mais leio sobre o assunto, mais totalmente envolto em

brumasparece-meomistério—edeclameientusiasmado:—QuemmatouLordeCronshaw?TerásidomeracoincidênciaamortedeCocoCourtenayna mesma noite? Teria sido um acidente? Ou teria ela ingerido

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deliberadamente uma dose fatal de cocaína? — iz uma pausa eacrescenteimelodramaticamente:—Eisasperguntasquemefazia.

Para meu aborrecimento, Poirot não compartilhou do meu interesse.Examinava-se no espelho, e murmurou apenas: — Decididamente, estapomada é uma maravilha para os bigodes! — mas percebendo o meuolhar, acrescentou rapidamente:— E que respostas deu a suas própriasperguntas?

Antes que pudesse responder, a porta se abriu e nossa senhoriaanunciouo inspetor Japp.OhomemdaScotlandYarderaumvelhoamigonossoeoacolhemoscomentusiasmo.

—MeucaroJapp—exclamouPoirot—,oqueotrazaqui?—Bem,MonsieurPoirot—disseJappsentando-seecumprimentando-

mecomumaceno—, fuidesignadoparaumcasoquepareceencaixar-seemsuaespecialidade,evimaquiverselheapetecepôramãonamassa.

Poirot tinha Japp em bom conceito, embora deplorasse sua falta demétodo.Quantoamim,achavaqueomaior talentododetetiveestavaemobterfavorescomosedispensassehonrarias!

—ÉocasodoBailedaVitória—explicouJapp,numtompersuasivo.—Vamos,admitaquegostariadeparticipardasinvestigações...

Poirotendereçou-meumsorriso:—Tenhocertezadequepelomenosomeu amigo Hastings adoraria. Estava agora mesmo falando sobre oassunto,n’est-cepas,monami?

— Bem, o senhor também poderá participar — disse Japp comcondescendência.—Eu lhe digo, é umprivilégio estar por dentro de umcasocomoesse.Bem,vamosàquestão.Jáconheceospontosprincipaisdocaso,nãoé,MonsieurPoirot?

—Sópelos jornais, e a imaginaçãodos jornalistas pode apresentar osfatoserradamente.Conte-metudo.

Japp pôs-se à vontade, cruzou as pernas, e começou: — Como todossabem, na última quinta-feira realizou-se o grande Baile da Vitória. Todoarrasta-pés de segunda classe tem essa pretensão, nos dias de hoje,maseste foioartigogenuíno,ColossusHall,e todasaspessoas importantesdeLondresestavamlá,incluindoLordeCronshaweseusconvidados.

—Odossierdocavalheiro,porfavor?—interrompeuPoirot.—Ouseja,seusdadosbiográficoscomodizemaqui.

—ViscondedeCronshaw,oquintodesualinhagem,vinteecincoanos,

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rico, solteiro, amante domundo teatral.Havia boatos de umnoivado comMiss Courtenay, do Albany Theatre, apelidada por seus amigos de Coco,queeraindiscutivelmenteumajovemfascinante.

—Ótimo,continuez..—O grupo de Lorde Cronshaw consistia de seis pessoas: ele, o tio, o

Honorável Eustace Beltane, Mrs. Mallaby, uma bela viúva americana, ojovematorChrisDavidsonesuaesposa,eporúltimo,MissCocoCourtenay.Era um baile a fantasia, como sabem, e o grupo de Lorde CronshawrepresentavaavelhaComédiaItaliana,oucoisasemelhante.

—ACommediadell’Arte—murmurouPoirot.—Bem, as fantasias foram copiadas de um conjunto de estatuetas de

porcelanaquefaziapartedacoleçãodeEustaceBeltane.LordeCronshaweraArlequim, Beltane era Polichinelo, sua companheiraMrs.Mallaby eraPulcinela, o casal Davidson, Pierrô e Pierrete, e naturalmente MissCourtenay era a Colombina. Mas logo nas primeiras horas da noitada,tornou-se evidente que algo estava errado. Lorde Cronshaw estavadescontente,

com modos estranhos. Quando o grupo se reuniu para a ceia napequena salaqueele reservara, todosnotaramqueMissCourtenaye elenão se falavam.Eraóbvioqueela estivera chorandoeparecia àbeiradeumataquehisté-ricoArefeiçãonãofoiagradávelequandoseretiraramdasala ela virou-se para ChrisDavidson e pediu-lhe que a levasse em casa,poisestavacansada.Ojovematorhesitou,olhandoparaLordeCronshaw,efinalmenteostrêsretornaramàsalaondehaviamceado.

Mas todos os seus esforços para conseguir uma reconciliação foramine icazes—prosseguiuJapp—eDavidsonterminouporarranjarumtáxieacompanharMissCourtenay,agoraemprantos,devoltaaoapartamentodela. Embora estivesse obviamente transtornada, ela não se abriu com orapaz, só repetindo com frequência que “faria o velho Cronch pagar porisso!” É a única pista que nos indica que sua morte pode não ter sidoacidental, e é muito pouco para nos basearmos. Quando a inal Davidsonconseguiu acalmá-la um pouco, era muito tarde para voltar ao ColossusHall,eseguiudiretoparaseuapartamentoemChelsea,aondesuaesposachegoulogodepois,trazendoas

notíciasdaterríveltragédiaqueocorreulogoapósasaídadele.—LordeCronshawfoi icandocadavezmaiscarrancudocomopassar

dotempo,afastou-sedogrupoeelesmaloviramduranteorestodanoite.

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Foimaisoumenosàumaemeia,antesdadança,quandotodosdeveriamtirar suasmáscaras, queo capitãoDigby, umcompanheirode armasqueconheciaseudisfarce,viu-onumcamarote,olhandoosalão.

—Olá,Cronch!—eleochamou.—Desçaemisture-seaosbons!Oqueestá fazendo aí feito uma coruja empalhada? Vão tocar agora umadaquelasbemanimadas!Venha!

—Estábem—respondeuCronshaw.—Espereaí,senãoeuoperconamultidão— virou-se e saiu do camarote. O capitãoDigby, que estava emcompanhia deMrs. Davidson, esperou. Algunsminutos se passaram semqueLordeCronshawaparecesse.FinalmenteDigbyficouimpaciente:

—Seráqueelepensaqueesperaremosporeleanoiteinteira?Nesse instante Mrs. Mallaby juntou-se a eles e explicaram-lhe a

situação.—Ah,opobrehomemestámeiodesorientadoestanoite—exclamoua

belaviúva.—Vamosprocurá-loetrazê-loparacá.Começaram a busca, mas só obtiveram êxito quando Mrs. Mallaby

sugeriu que dessem uma olhada na sala da ceia. Imagine a cena que osesperava:láestavaoArlequim,semdúvidaalguma,mascaídoaochãocomumafacademesaenfiadanopeito!

Jappcalou-se.Balançandoacabeça,Poirotdissecomoentusiasmodeumconnaisseur:— Une belle affaire! E não acharam nenhuma pista que indicasse a

identidadedoassassino?Mascertamentequenão!—Bem—continuouoinspetor—,orestoosenhorsabe.Atragédiafoi

dupla. No dia seguinte estava nas manchetes de todos os jornais, que apopular atriz,Miss Coco Courtenay, fora encontradamorta em sua cama,devidoaumadosefataldecocaína.Masterásidoacidenteousuicídio?Suacriada admitira, duranteo interrogatório, queMissCourtenay era viciadaemdrogas, e o veredicto foi demorte acidental. Entretanto, nãopodemosabandonarahipótesedesuicídio.Amortedaatrizfoiparanósumaduplainfelicidade, pois nos deixou no escuro quanto à causa de seudesentendimento com o morto na noite anterior. Antes que me esqueça,uma pequenina caixa esmaltada foi encontrada junto ao corpo de LordeCronshaw. Tinha o nome Coco escrito em brilhantes e estava cheia até omeio com cocaína. A criada a identi icou como pertencente a sua patroa,

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que sempre a levava consigo, pois continha o suprimento da droga querapidamenteaestavaescravizando.

—LordeCronshaweraumviciadotambém?—Muitopelocontrário.Faziagraveseveementesobjeçõesaqualquer

espéciededrogas.Poirotbalançouacabeçapensativo.—Mas já que a caixa estava em seu poder, ele devia saber queMiss

Courtenaytomavacocaína.Ébastantesugestivo,não,meucaroJapp?—Ah!—fezJappmeioatordoado.Eusorri.—Bem,esteéocaso—disseJapp.—Oquepensadele?—Nãoachounenhumapistaalémdasqueaimprensadivulgou?— Achei, sim. Isto — e Japp tirou do bolso um pequeno objeto e

mostrou-oaPoirot.Eraumpequenopompomdesedaverdeesmeralda, comalguns ios repuxados, comose tivessesidoarrancado

comviolência.—Encontramosistonopunhofechadodomorto—explicouoinspetor.

Poirotdevolveuopompomsemcomentárioseperguntou:—LordeCronshawtinhainimigos?—Queeusaiba,não.Elepareciaserumsujeitomuitopopular.—Quemlucracomsuamorte?— Seu tio, Eustace Beltane, que herda o título e as propriedades. Há

alguns fatos suspeitos contraele.Váriaspessoasa irmamterouvidoumaviolentadiscussãonasaladaceia,equeBeltaneeraumdosquediscutiam.Eofatodocrimetersidocometidocomumafacaqueestavasobreamesapareceindicarumatoimpulsivo,cometidoduranteumaexaltação.

—OquetemMr.Beltaneadizersobreoassunto?—Disse que chamava a atenção de umdos garçons, que estavameio

bêbado, e que o fato se passou por volta de uma hora. Como já vimos, otestemunho do capitão Digby limita-se a um intervalo de dez minutos, àhoradocrime.FoiesteoespaçodetempoquedecorreuentreomomentoemquefaloucomCronshaweadescobertadocorpo.

— E de qualquer forma, suponho que Mr. Beltane, como Polichinelo,usasseumacorcundaeumagoladefolhos?

—Não conheço bem os detalhes das fantasias— disse Japp olhando

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paraPoirotcomcuriosidade.—Nãovejoarelaçãoquepossamtercomocaso.

—Não?—HaviaumapontadezombarianosorrisodePoirot.Nosseusolhosbrilhavaaluzinhaverdequeeujáaprenderaareconhecer.—Haviaumacortinanasaladaceia,nãohavia?

—Havia,sim,mas...—Comespaçosuficienteatrásparaocultarumhomem?— Bem, na verdade há um pequeno nicho, mas como soube? Não

estevelá,esteve,MonsieurPoirot?—Não,meucaroJapp.Foimeucérebroquemesugeriuacortina.Sem

elaatramanãoseriapossível,etemosqueprocurarsersempreracionais.Masdiga-me,omédiconãofoichamado?

— Naturalmente, logo em seguida. Mas nada pôde ser feito, a mortedevetersidoinstantânea.

Poirotbalançouacabeçacomimpaciência.— Sim, sim, eu compreendo. E esse médico não testemunhou no

inquérito?—Testemunhou.— Elemencionou algum sintoma estranho? Nada havia no corpo que

lheparecesseanormal?Jappencarouohomenzinho.—Mencionou,MonsieurPoirot.Nãoseiaondepretendechegar,masele

disse que havia uma certa rigidez nos membros que não conseguiaexplicar.

—Haha!—fezPoirot.—MonDieu!Japp,issodáoquepensar,não?PudeverquecertamenteJappnãopensaraemnada.— O senhor está pensando em veneno,monsieur? Por que diabos

alguémenvenenariaumhomemedepoisenfiariaumafacanele?—Naverdadeissoseriaridículo—concordouPoirotcomplacidez.— Gostaria de examinar pessoalmente alguma coisa? Se quiser ver o

aposentoondeocorpofoiencontrado...Poirotabanouasmãos.—Deformaalguma.Jámedeuainformaçãomaisimportante:aopinião

deLordeCronshawsobreostoxicômanos.

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—Entãonãohánadaquedesejever?—Sóumacoisa.—Oqueé?—Acoleçãodeestatuetasdeondeforamcopiadasasfantasias.Jappoolhouespantado.—Bem,osenhorémesmoestranho!—Podearranjaristo?—PodemosiragoraaBerkelySquare,sequiser.Mr.Beltane,ouLorde

Cronshawcomodeveríamosdizeragora,nãoseoporá.Saímosimediatamentenumtáxi.OnovoLordeCronshawnãoestavaem

casa, mas a pedido de Japp fomos levados à “sala das porcelanas”, ondeeramguardadasaspeçasmaisrarasdesuacoleção.Jappolhouemtorno,atarantado.

—Nãovejocomovaiconseguiracharoqueprocura,monsieur.MasPoirotjátinhalevadoumacadeiraparaafrentedalareiraepulava

sobre o assento com a agilidade de um coelho. De um lado do espelho,numapequenaprateleira,estavamseisestatuetasdeporcelana.Poirotasexaminoumeticulosamente,dirigindo-nosalgunscomentários.

— Les voilà! A velhaComedia dell’Arte. Três casais: Arlequim eColombina, Pierrô e Pierrete, muito graciosos em verde e branco, ePolichinelo e Pulcinela, em lilás e amarelo. A fantasia de Polichinelo écomplicada, uma corcunda, folhos e franzidos, e um chapéu alto. É,bastantecomplicada, comoeupensava.—Erecolocandoasestatuetasnolugarcomcuidado,pulouparaochão.

Japp tinha uma expressão desapontada, mas como era evidente quePoirot não tinha a intenção de fornecer explicações, o detetive não teveoutra saída senão se conformar. Quando já íamos saindo, o dono da casaentroueJappfezasapresentaçõesnecessárias.

OsextoViscondedeCronshaweraumhomemdeunscinquentaanos,demaneirasafáveiseumrostoatraenteondeseviamsinaisdeumavidadissoluta. Era evidentemente um velho libertino, com um ar lânguido eposeur. Senti por ele uma antipatia instantânea. Cumprimentou-nos deformabastantecordial,declarandoterouvidograndeselogiosàperíciadePoirot.ecolocando-seànossadisposição.

—Apolíciaestáfazendotodoopossível—dissePoirot.

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—Mas receio que o mistério da morte de meu sobrinho nunca sejaesclarecido.Ocasoparece-mecompletamenteinsolúvel.

Poirotoobservavacomatenção.—Conhecealguminimigodeseusobrinho?—Não,elenãoos tinha.Tenhocertezaabsoluta—ehesitouantesde

acrescentar:—Seháoutrasperguntasquedesejefazer...—Sómaisuma—enumtomformalPoirotperguntou:—Asfantasias

eramreproduçõesfiéisdasestatuetas?—Emtodososdetalhes.—Obrigado,milorde.Eratudoquedesejavasaber.Desejo-lheumbom

dia.—Eagora?—perguntou Jappenquantodescíamosa ruaapressados.

—PrecisovoltaràYard.—Bien!Nãoodeterei.Sóprecisoverificarmaisumpontoeentão...—Então?—Ocasoestaráencerrado.—Oquê?Falasério?SabequemmatouLordeCronshaw?—Parfaitement.—Quemfoi?EustaceBeltane?— Ora,mon ami, já devia conhecerminhas pequenas fraquezas,meu

desejo de conservar os ios do mistério em minhas mãos até o últimomomento.Masnão tenha receio.Quando chegar a ocasião revelarei tudo.Nãodesejocolheros louros,oméritoseráseu,comacondiçãodequemepermitaconduzirodénouementàminhamaneira.

— É bastante justo— disse Japp.— Isto é, será, se essedénouementchegar algum dia! Mas como digo sempre, o senhor é mais fechado queuma ostra, quando se trata de revelar seus segredos, não é mesmo?—PoirotsorriueJappacrescentou:—Bem,atémaistarde.PrecisoiràYard.

Poirotchamouumtáxiqueiapassandoquandoodetetiveseafastou.—Aondeiremosagora?—pergunteicomacuriosidadeaguçada.—ParaChelsea,verocasalDavidson—edeuoendereçoaochofer.—OqueachadonovoLordeCronshaw?—perguntei.—OquepensaomeubomamigoHastings?—Meuinstintonãoconfianele.

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—Pensaqueeleéo“tiomalvado”doslivrosdehistórias,não?—Evocê,não?— Eu? Acho que ele foi muito amável conosco — respondeu Poirot

evasivamente.—Eletinhaseusmotivos!Poirotolhouparamim,sacudiuacabeçacomtristezaemurmuroualgo

quemepareceuser:—Nenhummétodo!OcasalDavidsonmoravanoterceiroandardeumpretensiosoconjunto

deapartamentos.Informaram-nosqueDavidsonsaíra,masqueasenhorapoderia nos receber. Fomos levados a uma sala comprida e baixa,decoradacomextravagantestapeçariasorientais.Oambienteeraabafadoe opressivo, comum aromapenetrante de incenso chinês.Mrs. Davidsonnosrecebeuquaseimediatamente;umamulherloura,pequenaedelicada,cuja fragilidade seria patética e atraente se não fosse pela expressãoastutaecautelosadeseusolhosazuisclaros.

Poirot explicou nossa ligação com o caso e ela sacudiu a cabeçapenalizada.

—PobreCronch... epobreCoco!Gostávamos tantodela, suamorte foiumgolpeterrívelparanós.Temalgumaperguntaamefazer?Érealmentenecessárioreviveroutravezaquelanoitehorrível?

—Acredite-me,madame, não a importunaria desnecessariamente. NaverdadeoinspetorJappjámedeutodasasinformações.Sógostariadeverafantasiaqueusounobailedaquelanoite.

Adamapareceualgosurpresa,ePoirotprosseguiunumtomsuave:— Compreenda, madame, trabalho pelo sistema de meu país. Lá nós

sempre reconstituímos o crime. É possível que encenemos até umareprésentation,eparaissoasfantasiasserãoimportantes.

Mrs.Davidsontinhaumaexpressãodedúvida.—Naturalmentejáouvifalaremreconstituiçõesdecrimes—disseela.

—Masnão sabiaqueeramassim tãometiculososa respeitodedetalhes.Masvoubuscara fantasia—esaiudasala, retornandodentroempoucocomumdelicadotrajedecetim,verdeebranco.

Poirotexaminou-oeodevolveucomumainclinaçãocortês:—Merci,madame!Vejoquetevea infelicidadedeperderumdosseus

pompons

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verdes,aquidoombro.— Ah, é verdade, caiu durante o baile. Apanhei-o e o dei ao pobre

LordeCronshawparaqueoguardasseparamim.—Issofoidepoisdaceia?—Foi.—Nãomuitotempoantesdatragédia,então?UmlevetoquedealarmeapareceunosolhosclarosdeMrs.Davidsone

elarespondeurapidamente:—Oh,não!Muitoantesdisso.Logodepoisdaceia,paraserprecisa.— Ah, sim. Bem, isso é tudo. Não a incomodaremos mais.Bonjour,

madame.—Bem,estáexplicadoomistériodopompomverde—disseeuquando

deixávamosoprédio.—Será?—Porquê?Oquepretendedizer?—Examineibemafantasia,Hastings.—E?—Ehbien,opompomperdidonãosedesprendeu,comodisseadama.

Ao contrário, meu amigo, foi cortado, cortado com uma tesoura. Os iosestavamtodoscomomesmocomprimento.

—Deusmeu!Istoestácadavezmaiscomplicado.— Ao contrário — retrucou Poirot placidamente —, o caso torna-se

cadavezmaissimples.— Poirot!— exclamei agastado.— Qualquer dia desses voumatá-lo!

Seuhábitodeconsiderartudomuitosimpleséextremamenteirritante!—Masquandochegoàsexplicações tudonãose revelaperfeitamente

simples,monami?—É verdade, o que é aindamais irritante. Sinto que deveria ter sido

capazdechegaràverdadesozinho.— E você é capar, Hastings! Se somente arrumasse suas ideias! Sem

método...—Sei,sei—corteiapressadamentepoisconheciabemaeloquênciade

Poirotquandosetratavadeseutemafavorito.—Diga-me,oquefaremosagora?Vairealmentereconstituirocrime?

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— Não, o drama está encerrado, como poderíamos dizer. Mas eupretendoacrescentaruma...arlequinada.

A quinta-feira seguinte foi o dia marcado por Poirot para essamisteriosarepresentação.Ospreparativosmeintrigaramimensamente.

Levantaramumatelabrancaemumadasparedesdoaposento,ladeadapor pesadas cortinas. Daí a pouco surgiu um homem com umaaparelhagem de iluminação e inalmente um grupo de atores quedesapareceunoquartodePoirot,transformadoemcamarimprovisório.

Pouco antes das oito chegou Japp, num estado de espírito poucootimista.PercebiqueodetetivenãoviacombonsolhososplanosdePoirot.

—Sãomuitomelodramáticos, como todas as suas ideias.Masmal nãopodem causar, e pode ser que, como ele promete, poupem-nos muitotrabalho. Ele tem revelado muita perspicácia nesse caso, embora euestivesse na mesma pista, evidentemente — senti que Japp exageravanesse ponto. — Mas prometi dar-lhe completa liberdade de ação pararesolverascoisasaseumodo.Olhe,aívemopessoal.

LordeCronshawfoioprimeiroachegar,acompanhadodeMrs.Mallaby,que eu ainda não conhecia. Era uma bonita mulher de cabelos escuros,visivelmentenervosa.Emseguida,entrouocasalDavidson.Eraaprimeiravez que via Chris Davidson, um homem bastante atraente, num estiloóbvio,altoemoreno,comagraçanatadeumator.

Poirot arranjara um grupo de cadeiras em frente à tela, fortementeiluminada.Apagouasoutrasluzes,eoaposento icouescuro,aexceçãodatela.Avozdemeuamigoecoounaescuridão:—Mesdames,messieurs,umapalavra de explicação. Seis personagens des ilarão aqui. São bemconhecidosde todos:PierrôePierrete, obufãoPolichineloe suaelegantePulcinela,adoceegraciosaColombinaeArlequim,oduendeinvisível!

Com estas palavras de introdução, começou o espetáculo.Separadamentecadapersonagemsaltavadiantedacortina, imobilizava-sepor alguns segundos, e desaparecia do outro lado. Depois que os seisdes ilaram, as luzes se acenderam e um sus-piro de alívio percorreu aplateia. Todos os componentes do grupo haviam estado apreensivos, semmesmo saber o que temiam. Pareceu-me que a representação fora umiasco. Se o criminoso, estava entre nós, e Poirot esperara que sedenunciasse à mera visão de um vulto familiar, o estratagema haviafalhadoenãoeradeadmirar.Entretanto,Poirotnãopareciadecepcionado,eadiantou-sesorrindo.

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—Agora,mesdames,messieurspoderão fazer-meoobséquiodedaremas suas impressões sobre o que acabaram de ver? Um de cada vez, porfavor.Osenhorprimeiro,milorde.

Ocavalheiropareciaperplexo.—Tenhoreceiodenãooterentendidobem.—Diga-mesimplesmenteoqueacaboudever.— Bem ... eu diria que vimos seis personagens, fantasiados como os

atores daCommedia dell’Arte, des ilando em frente a uma tela... comoestávamosvestidosnaquelanoite.

—Esqueça-sedaquelanoite—interrompeuPoirot.—Aprimeirapartede sua declaração é a que interessa agora.Madame, a senhora concordacomLordeCronshaw?—eleseviraraparaMrs.Mallaby.

—Eu...concordo,sim,naturalmente.— Concorda que viu seis personagens representando a comédia

italiana?—Ora,certamente.—MonsieurDavidson?Osenhortambémconcorda?—Concordo.—Madame?—Concordo.—Hastings?Japp?Estãotodosdeacordo?Elecorreuosolhospelogrupo.Seurostoestavaumtantopálidoeseus

olhos,verdescomoosdeumgato.— Pois os senhoresestão todos errados! Seus olhos os enganaram há

pouco, como os enganaram na noite do Baile da Vitória! Ver “com osprópriosolhos”nemsempreé ver a verdade.Éprecisover comosolhosdamente,éprecisoutilizarascelulazinhascinzentas.Saibamagora,quenanoitedobaileenestanoite,viramcincopersonagens,enãoseis!Olhem!

Asluzesapagaram-senovamente.Umvultopulouparaafrentedatela:Pierrô.

—Queméaquele?—perguntouPoirot.—SeráPierrô?—Éele,sim—todosnósexclamamos.—Olhemnovamente.Comumgestorápidoohomemlivrou-sedoseuamplotraje,eas luzes

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fortes nos revelaram o cintilante Arlequim! No mesmo instante ouviu-seumaexclamaçãoeoruídode

umacadeiraquecaía.—Maldito seja— a voz deDavidson estava cheia de ódio.—Maldito

seja!Comoadivinhou?OuvimosoestalidodealgemaseavozcalmadeJapp,noseutomo icial:

— Christopher Davidson, eu o prendo sob a acusação de assassinato doViscondedeCronshaw.Qualquercoisaquedisserpoderáserusadacontravocênotribunal.

Umquartodehorahaviadecorrido.Umapequenamasrequintadaceiafora servida e Poirot, com um largo sorriso, era agora o an itrião cordialrespondendoàsperguntasansiosas.

—Foi tudomuito simples.As circunstâncias emqueopompomverdefoi descoberto sugeriam que fora arrancado da fantasia do assassino.Deixeide ladoahipótesedePierrete,pois énecessáriomuita força ísicapara introduzir uma faca de mesa sem ponta num corpo de homem, econcentrei-me em Pierrô. Mas Pierrô deixara o baile quase duas horasantes do crime. Teria ele retornado para matar Lorde Cronshaw? Ou oteria morto antes de sair? Seria isso possível? Quem havia visto LordeCronshaw depois da ceia daquela noite? Só Mrs. Davidson, cujotestemunho eu descon iava ser uma mentira deliberada para explicar aperda do pompom, que ela deve ter cortado da própria fantasia parasubstituiroqueforaarrancadopelomortodotrajedomarido.MasentãooArlequim,queforavistonocamaroteàumaetrinta,nãoeraoverdadeiroLorde Cronshaw. Por um momento considerei a possibilidade de Mr.Beltane ser o criminoso. Mas seu traje complicado tornava umaimpossibilidadepráticaterelerepresentadooduplopapeldePolichineloeArlequim... Por outro lado, paraDavidson, um jovemdamesma altura dohomem assassinado e ator pro issional, a encenação não apresentarianenhumadificuldade.

— Mas um ponto me preocupava — prosseguiu Poirot. — Como omédico legista não havia percebido que o assassinado morrera há duashoras e não há dezminutos?Ehbien, ele havia percebido, sim,mas comoninguémperguntara: “Háquanto tempoestehomemestámorto?”, e pelocontrário, asseguraram-lhe que o homem estivera vivo há dez minutosatrás,haviasimplesmentecomentadonoinquéritoquenãosabiaexplicararigidez anormal do cadáver! Tudo con irmava minha teoria. Davidson

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matou Lorde Cronshaw logo depois da ceia, quando, como todos selembram, foi visto retornando com o mesmo para a sala de refeições.ImediatamentedepoissaiucomMissCourtenay,deixando-aàportadeseuapartamento (emvezde entrar para acalmá-la comoa irmou), e voltou atoda pressa para o Colossus Hall, agora fantasiado de Arlequim, umatransformaçãorápida,efetuadacomasimplesretiradadotrajedePierrô.

O tio domorto inclinou-se para a frente, perplexo:—Mas nesse casoele deve ter vindo ao baile preparado para matar sua vítima. Mas quemotivooimpeliu?Nãoconsigoperceberummotivo.

— Ah, agora chegamos à segunda tragédia ... a morte de MissCourtenay. Há um fato evidente que ninguém parece ter notado: MissCourtenay morreu de uma dose fatal de cocaína, mas sua provisão dadrogaestavaempoderdeLordeCronshaw.Onde,então,elaobteveadoseque a matou? Só uma pessoa poderia ter-lhe fornecido a droga mortal:Davidson.Eissoesclarecetudo.ExplicasuaamizadecomocasalDavidson,,sua súplica a eleparaquea levassepara casa. LordeCronshaw,que eraum inimigo quase fanático dos tóxicos, descobriu que ela era viciada emcocaína e suspeitou de que o fornecedor fosse Davidson. Esteindubitavelmentedeveterne-gadomasLordeCronshawresolveraobteraverdade de Miss Courtenay durante o baile. Ele podia perdoar adesgraçadamoça,mas na certa não teria clemência com um homemquevivia do trá ico de drogas. Com receio de ser desmascarado e preso,DavidsonfoiaobaileresolvidoasilenciarCronshawaqualquerpreço.

—AmortedeCocofoiacidental,então?—Acredito que tenha sido um “acidente” astutamente preparado por

Davidson.ElaestavafuriosacomCronshaw,primeiroporsuascensurasesegundo por tê-la privado da cocaína. Davidson forneceu-lhe mais, eprovavelmente sugeriu que aumentasse a dose para desa iar o “velhoCronch”.

—Maisumacoisa—disseeu.—Eonicho,eacortina?Comosoubedesuaexistência?

— Ora,mon ami, este ponto foi o mais simples. Os garçons haviamentradoesaídodopequenoaposentosemnadanotar.Entãoobviamenteocorpo não poderia estar caído nomeio da sala, onde foi encontradomaistarde. Deveria haver um local onde pudesse ter sido escondido. Pordedução pensei num nicho atrás de uma cortina. Davidson carregou ocorpo para lá, e mais tarde, depois de chamar a atenção para si no

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camarote,tornoualevá-loparaomeiodasala,antesdesair inalmentedobaile. Foi um dos seus movimentos mais brilhantes, ele é um homeminteligente!

MasnosolhosdePoiroteraevidenteasuaconclusão inal:MasnãotãointeligentequantoHerculePoirot!

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AAventuradaCozinheiradeClapham

Na época em que morava com meu amigo Hercule Poirot, era meuhábitoler-lheemvozaltaasmanchetesdojornalmatutinoDailyBlare.

O Daily Blare aproveitava todas as oportunidades para fazersensacionalismo.Rouboseassassinatosnãoseescondiamnaobscuridadedas últimas páginas. Ao contrário, agrediam o leitor em letras garrafaislogonaprimeirapágina:

BANCÁRIO FOGE COM 50 000 LIBRAS EM TÍTULOS NEGOCIÁVEIS.MARIDO INFELIZ SUICIDA-SE COM CABEÇA DENTRO DO FORNO. BELADATILÓGRAFADE21ANOSDESAPARECIDA.ONDEESTÁEDNAFIELD?

— Bem, Poirot, faça sua escolha. Um bancário foragido, um suicídiomisterioso,umadatilógrafadesaparecida.Qualdeleslheapetece?

Meuamigosacudiuacabeçapacificamente:—Nenhumdessescasosmeatrai,monami.Hojesinto-meinclinadoao

descanso,àtranquilidade.Sóumenigmamuitointeressanteseriacapazdearrancar-medaminhapoltrona.E tenhoproblemaspróprios, importantespararesolver.

—Queproblemas?—Meuguarda-roupa,Hastings.Senãomeengano,háumamanchade

gordura em meu terno cinzento. É só uma pequena mancha, mas é osu iciente para me incomodar. E meu sobretudo, preciso entregá-lo aoscuidados deKeatings. Ah, emeus bigodes, creio que a ocasião é propíciaparadar-lhesalgumaatenção.Precisoapará-loseaplicar-lhesapomada.

—Bem—disseeuandandoatéajanela—,tenhodúvidadequepossadedicar-seaessasdeliciosasocupações.Acampainha tocou.Você temumcliente.

—Amenosqueo caso sejade importância capital, nãomeenvolverei—declarouPoirotcomdignidade.

Um instante depois, uma senhora gorda e corada, com a respiraçãoofegantepeloesforçodesubirasescadas,invadiunossaintimidade.

—OsenhoréMonsieurPoirot?—elaperguntoudeixando-secairnumapoltrona.

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—Sim,souHerculePoirot,madame.—Nãosepareceemnadacomaimagemque iz—declarouasenhora

olhando-ocomalgumdesagrado.—Osenhorpagouaosjornaisparaqueoelogiassem dizendo que é um grande detetive, ou escreveram issoespontaneamente?

—Madame!—exclamouPoirot,levantando-se.—Sintomuito,desculpe,massabecomosãoos jornaisdehojeemdia.

Começa-se a ler um artigo interessante intitulado: “O que a noiva disse asuaamigasolteirona”eacaba-sevendoqueépropagandadetinturaparaocabelo!Masosenhornão icouofendido,nãoé?Poisprecisoquemefaçaumfavor:osenhortemqueacharaminhacozinheira.

Poirot olhou para ela com olhos arregalados. Sua eloquênciaabandonou-o pela primeira vez na vida. Virei a cabeça para esconder olargosorrisoquenãoconseguiaabafar.

—Aculpatodaédessamalditapensãodedesemprego—prosseguiuadama. — Põe ideias na cabeça das empregadas, agora só querem serdatilógrafasenãoseioquemais.Naminhaopiniãoéprecisoacabarcomessapensão.Egostariadesaberdequeasminhas

empregadas podem se queixar; uma tarde e uma noite de folga umavez por semana, e os domingos de quinze em quinze dias. Não lavamroupa, comemamesma comidaque a família, e saibaquenaminha casanãoentramargarina,sómanteigaedamelhor!

Ela parou sem fôlego e Poirot aproveitou a oportunidade, falando-lhecomsuaexpressãomaisaltivaearrogante:—Receioqueestejaenganada,senhora. Não faço investigações a respeito das condições do trabalhodoméstico.Souumdetetiveparticular.

—Seidissomuitobem—disseanossavisitante.—Nãolhedissequequeria que o senhor procurasse aminha cozinheira? Ela saiu de casa naquarta-feira,semmedizerumapalavra,enuncamaisvoltou.

— Sinto muito, madame. mas não me envolvo com esta espécie deinvestigação.Desejo-lheumbomdia.

Nossavisitantefungoudeindignação.—Éassim,meudistintosenhor?Édemasiadoorgulhoso,hem?Só lida

com segredos de estado e joias de condessas, não é? Deixe-me dizer-lhequeumaboaempregadaévitaleimportantíssimaparaumamulhercomoeu. Nem todas nós podemos ser elegantes damas envoltas em peles,

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brilhantes e pérolas. E uma boa cozinheira é tão importante para mimquantoasjoiasparaalgumadistintadama.

Por alguns instantes Poirot pareceu se debater entre sua dignidade eseusensodehumor.Afinaldeuumarisadaesentou-senovamente.

—Madame,asenhoraestácertaeeuestavaerrado.Seusargumentossãorazoáveiseinteligentes.Estecasoseráumanovidadeparamim.Nuncaprocureiumaempregadadesaparecida.Naverdade,esseéoproblemadeimportância capital a que me referia antes de sua chegada.En avant! Asenhora diz que essa maravilhosa cozinheira saiu na quarta-feira e nãovoltou.Istoé,anteontem.

—Sim,foiseudiadefolga.—Masmadame, é provável que lhe tenha acontecido algumacidente.

Perguntounoshospitais?—Foi exatamente o que ocorreu ontem,mas estamanhã elamandou

buscarobaú.Esemmeenviarumaúnicapalavra!Seeuestivesseemcasa,nãooteriaentregue. Imaginesó, tratar-medessa forma!Mastinha idoaoaçougue...

—Asenhorapodedescrevê-laparamim?—É umamulher demeia-idade, gorda, cabelos escuros começando a

icar grisalhos, de aspecto muito respeitável. Ficou dez anos no últimoemprego.Chama-seElizaDunn.

—Easenhoranãotevenenhumadiscussãocomelanaquarta-feira?—Nenhuma.Éporissoqueachotãoestranho.—Quantasempregadastem,madame?—Duas. A copeira, Annie, émuito boazinha. Umpouco distraída e de

cabeça meio virada por causa dos rapazes, mas é uma boa empregadaquandobemdirigida.

—Acozinheiradava-sebemcomela?— Tinham as suas diferenças, é natural. Mas em geral, entendiam-se

bastantebem.— E essa moça não pode fornecer nenhuma pista que esclareça o

mistério?—Eladizquenão,masosenhorsabecomosãoasempregadas.Têma

suapanelinha.—Bem,bem,vouinvestigarocaso.Ondereside,madame?

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—EmClapham.NaPrinceAlbertRoad,número88.—Bien,madame.Desejo-lheumbomdia,epodeesperarqueireiasua

residênciahojemesmo.Mrs. Todd, era esse o nome de nossa nova amiga, despediu-se. Poirot

olhouparamimumtantopesaroso:—Bem,Hastings,pelomenoséumcasodiferente:“ODesaparecimento

da Cozinheira de Clapham”. Mas nunca, nunca, nunca mesmo, o nossoamigoJappdevesaberdisto!

Ele então dedicou-se a remover a mancha de gordura de seu ternocinzento com o auxílio de um ferro quente e de um mata-borrão.Lamentandodeixarosbigodesparaumoutrodia,saímosparaClapham.

A Prince Albert Road era uma rua de casas exatamente iguais,pequenasmasrespeitáveis, comcortinasengomadasderendaenfeitandoas janelas e aldravas de bronze bem polidas nas portas. Tocamos acampainhadonúmero88eumabonitacopeirinhanosabriuaporta.Mrs.Toddveioaovestíbulonosreceber.

—Fique aí, Annie—ela ordenou.—Este senhor é umdetetive e vailhefazeralgumasperguntas.

OrostodeAnnierevelousualutaíntimaentreoalarmeeoentusiasmo.—Obrigado,madame—dissePoirotcomumainclinaçãodecabeça.—

Gostariadeinterrogarsuacopeiraagora,easós,sepossível.Depois de nos conduzir a uma pequena sala de estar, Mrs. Todd nos

deixoucomóbviarelutância.Poirotcomeçouseuinterrogatório.— Voyons, Mademoiselle Annie, tudo que puder nos dizer será de

máximaimportância.Sóasenhoritapodenosforneceralgumapistaparaocaso.Semasuaajuda,nadapodereifazer.

Amoçaperdeuoaralarmadoeseuentusiasmotornou-seevidente.—Poisnão,senhor—disseela.—Voulhedizertudoquesei.Ótimo— Poirot deu-lhe um largo sorriso de aprovação.—Bem, para

começar, qual a sua opinião? Posso ver de saída que é uma moça deinteligência excepcional! Como a senhorita explica o desaparecimento deEliza?

Assimencorajada.Annienãosefezderogada.—Paramimela foi vítimade tra icantesdeescravasbrancas, senhor.

Elaprópriaestavasempremeprevenindocontraeles:“Não

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cheirenada,nemaceitedoces,nãoimportaqueocamaradapareçaserumcavalheiro”.Eraoqueelasempredizia.Eagoraelesapegaram,tenhocerteza!DevetersidomandadaparaaTurquiaoualgumdaquelespaísesdoOrienteondegostamdemulheresgordas!

Poirotconservouumaseriedadeadmirável.—Massefosseesseocaso,eérealmenteumaótimasugestão,elateria

mandadobuscarseubaú?— Bem, não sei, senhor. Ela precisaria de suas coisas, mesmo lá no

estrangeiro.—Quemveiobuscarobaú?—Foiummensageiro,senhor.—Foivocêquemarrumouabagagem?—Não,senhor.Estavatudoarrumadoebemamarradocomcordas.— Ah, isto é bem interessante. Mostra-nos que ela não tencionava

regressarquandodeixouacasanaquarta-feira.Percebeisso,não?— Percebo, sim, senhor— Annie parecia um pouco desapontada, —

Nãohaviapensadonisso.Masmesmoassimpodemtersidoostra icantesdeescravas,nãoacha?—elaper-

guntouesperançosa.—Nãohádúvida—dissePoirotmuito sério, e acrescentou:—Vocês

dormiamnomesmoquarto?—Não,senhor.Temosquartosseparados.—Elizaalgumavezlhedissequenãogostavadoemprego?Vocêsduas

estavamsatisfeitasaqui?—Elanuncafalouemsair.Oempregoébom...—amoçahesitou.—Sejafranca—dissePoirotcombondade.—Nadadireiasuapatroa.—Bem,senhor,apatroaéenjoada,masacomidaéboaefarta.Elanão

émãofechada.Sempreháumpratoquentenaceia,afolgaéboa,enãoháeconomiademanteiga.Edequalquer forma, seElizaquisessevariar,nãosairia assim sem avisar. Ora, a patroa poderia exigir dela um mês deordenadoporfazerumacoisadessas!

—Eotrabalho,nãoépesado?—Bem, ela é exigente. Está sempremetendo o nariz nos cantos para

versenãohápó.Etambémháoinquilino.Massótomaocafédamanhãeojantar,comoopatrão.Elespassamodianacidade.

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—Vocêgostadeseupatrão?—Eleélegal.Émuitocaladãoeumtantounhadefome.—SuponhoquenãoserecordadaúltimacoisaqueElizadisseantesde

sair?—Lembro-me, sim. Ela disse: “Se sobrar alguma compota de pêssego

do jantar, nós poderemos fazer uma ceia com bacon e batatas fritas”. Elaeramalucaporcompotadepês-segos.Talvezatenhampegoassim...

—Elasempresaíaàsquartas-feiras?—Saía.Minhatardedefolgaénaquinta,eadelaerana:quarta.Poirot fezmais algumasperguntas edeclarou-se satisfeito.Annie saiu.

Mrs. Todd entrou afogueada, o rosto animado pela curiosidade. Elacertamente ressentira-se de ter sido excluída da nossa entrevista comAnnie.Entretanto,Poirotteveocuidadodeapaziguá-ladiplomaticamente:

— É muito di ícil para uma mulher inteligente como a senhora,madame, suportar compaciência os rodeios que nós, os detetives, somosobrigadosausar.Paraosderaciocíniorápidoédi ícilser indulgentecomosignorantes.

Tendo assim suavizado com tato qualquer leve ressentimento deMrs.Todd,Poirot

conduziuoassuntoparaomaridoeconseguiuainformaçãodequeestetrabalhavanumafirmadacidadeenãovoltariaantesdasseis.

— Certamente seu marido está muito preocupado com esse casoinexplicável,nãoéverdade?

—Não,elenuncasepreocupacomcoisaalguma—declarouMrs.Todd.—“Bem,minhaquerida,arranjeoutra.Elaéumaingrata,estamosmelhorsemela”,foioqueeledisse!Étãocalmoqueàsvezesmeirrita.

—Eosoutrosmoradoresdacasa,madame?— Refere-se a Mr. Simpson, nosso inquilino? Bem, enquanto lhe

fornecermosocafédamanhãeojantar,paraeleestátudobem.—Qualéaprofissãodele,madame?— Ele trabalha num banco — e ela mencionou um nome. Tive um

ligeirosobressalto,lembrando-medonoticiáriodoDailyBlare.—Eleéjovem?—Unsvinteeoitoanos,creio.Éumrapazamáveletranquilo.— Gostaria de trocar algumas palavras com ele, e também com seu

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marido, se for possível. Voltarei à noite para esse im. Se me permitir,gostariadesugerir-lheumpequenodescanso,madame.Asenhoraparecefatigada.

— E é natural que esteja! Primeiro a preocupação com Eliza, depoisontemgasteiumdiainteirofazendocompras,eosenhorsabecomoissoéfatigante. Com uma coisa e outra, e tanto trabalho em casa, porquenaturalmenteAnnienãopodefazertudo ...eéatéprovávelqueresolvairembora...bem,comtodaessaconfusão,estoumesmoexausta!

Apósmurmúriosdesimpatia,Poiroteeunosdespedimos.—Quecoincidênciacuriosa—disseeu—,tantoSimpsoncomoaquele

caixa desaparecido são do mesmo banco. Acredita que haja algumaligação?

Poirotsorriu.— De um lado um caixa dá um desfalque e foge, e de outro uma

cozinheira desaparece. É di ícil ver alguma ligação; a não ser que Davis,visitandoSimpson,seapaixonasseporElizaeaconvencesseaacompanhá-loemsuafuga.

Euri,masPoirotpermaneceusério.—Elepodiafazerumaescolhapior—censurou-meele.—Lembre-se,

Hastings,noexílioumaboacozinheirapodeserumconsolomaiordoqueumacarinhabonita!—Fezumapausaeprosseguiu:—Éumcasocurioso,cheio de aspectos contraditórios. Estou interessado, estou decididamenteinteressado.

Naquelanoitevoltamosaonúmero88daPrinceAlbertRoad,efalamoscomToddeSimpson.Oprimeiroeraumhomemdearmelancólico,queixocomprido,deunsquarentaepoucosanos.

— Ah, sim, Eliza — disse com ar distraído. — Elisa era uma boacozinheira,muitoeconômica.Paramiméumagrandequalidade.

— O senhor pode imaginar a razão pula qual ela saiu de forma tãorepentina?

—Bem, sabe como são as empregadas—disse o despreocupadoMr.Todd.—Minha esposa leva tudomuito a sério. Fica exausta de tanto sepreocupar.Oproblemaédefácilresolução.Ésóarranjaroutra,eudisseaela.Émuitosimples,nãoadiantachorarsobreoleitederramado.

Mr.Simpsonnãofoidemaiorajuda.Eraumrapazdeóculos,discretoecalado.

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—Creioqueaconheci—disseele—,umamulherdemeia-idade,nãoera? É a outra empregada, a Annie, que costumo ver. É uma boa moça,muitoprestativa.

—Asduasdavam-sebem?Mr.Simpsonrespondeuquenãopodiasaber,masachavaquesim.—Bem,nãoconseguimosnadade interessanteaqui,monami—disse

Poirot enquanto saíamos da casa. Nossa partida fora retardada por umaexplosão de tagarelice deMrs. Todd, que repetiu tudo que já dissera demanhãcomlongosdetalhes.

— Está desapontado? — perguntei. — Esperava descobrir algumacoisa?

Poirotsacudiuacabeça:—Haviaumapossibilidade—disseele—masnãoaconsideravamesmomuitoprovável.

NamanhãseguintePoirotrecebeuumacarta.Ficouroxodeindignaçãoquandoa leu,epassou-aàsminhasmãos: “Mrs.Todd lamentacomunicarque não precisará dos serviços deMonsieur Poirot, a inal. Depois dedebater o assunto com seu marido, viu quão tolo fora contratar umdetetive para resolver um simples problema doméstico. Anexo segue umguinéuempagamentoàconsulta.”

—Há!— fez Poirot furioso.— E pensam que se livrarão de HerculePoirot com essa facilidade! Como um favor muito especial consenti eminvestigaroseumiserávelproblemazinho,eelesmedespedem commeça!Se nãome engano, aqui andou amão deMr. Todd,mas eu digo não!Milvezes,não!Gastareiosmeusprópriosguinéus, trezentoseoitentaecincomilsenecessário,maschegareiaofundodestecaso!

—Estácerto—disseeu.—Mascomo?Poirotacalmou-seumpouco.—D’abordvamoscolocarumanúncionosjornais—disseele.—Deixe-

mepensar.Algomaisoumenosassim:“ElizaDunn,comunique-secomesteendereço. Trata-se de assunto de grande interesse seu.” Coloque-o nomaior número possível de jornais, Hastings. Enquanto isso farei algumaspequenas investigações por minha conta. Vá, vá, temos que agirrapidamente!

Sótorneiavê-loànoite,quandoteveacondescendênciademerevelaroqueandarafazendo:—Fizalgumasperguntasdiscretasna irmadeMr.Todd. Ele não se ausentou na quarta-feira, e goza de bom conceito. JáSimpsonestavadoentenaquinta-feira enão foi aobanco,masnaquarta

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estava lá. Tinha relações super iciais de amizade com Davis, nada deprofundo. Parece que por aí não conseguiremos nada. Não, temos quecentralizartodasasnossasesperançasnoanúncio.

O anúncio apareceu pontualmente em todos os principais jornais dacidade. Segundo as ordens de Poirot, deveria ser publicado durante umasemana. Sua ansiedade sobre esse caso banal de uma cozinheira sumidaeraestranhíssima,masconcluíqueeleconsideravaumaquestãodehonraperseverar até obter um resultado. Vários casos interessantes foram-lheoferecidos naquela semana, mas ele não os aceitou. Todas as manhãsexaminava sôfrego a correspondência, para inalmente deixá-la de ladocomumsuspirodesapontado.

Maspor imnossapaciência foi recompensada.Naquarta-feiraqueseseguiuàvisitadeMrs.Todd,nossasenhoriainformou-nosqueumapessoadenomeElizaDunnnosprocurava.

— Enfin! — exclamou Poirot. — Faça-a subir imediatamente, nesseminuto!

Aessaspalavrasanossasenhoriasaiuapressada, e voltou instantes depois com Miss Dunn. Nossa visitante

ajustava-se àdescriçãoquedela izeraapatroa: alta, gorda, edeaspectomuitorespeitável.

— Vim em resposta ao anúncio— ela explicou.— Embora creia quedeva haver alguma confusão. Talvez o senhor não saiba que já recebiminhaherança.

Poirot a estivera observando com atenção. Ofereceu-lhe uma cadeiracomumgestogalante.

—Averdadeéquesuaex-patroa,Mrs.Todd,estavamuitopreocupadacomvocê.Receavaquelhehouvesseacontecidoalgumacidente.

ElizaDunnpareceuficarextremamentesurpresa.—Entãoelanãorecebeuminhacarta?—Nãorecebeunenhumalinha—elefezumapausaeacrescentou,em

tompersuasivo:—Vamos,conte-metodaahistória.Eliza Dunn não precisava de encorajamentos. Iniciou imediatamente

sua longanarrativa:—Estavaquasechegandoemcasanaquarta-feiraànoite quando fui abordada por um cavalheiro. Era um homem alto, debarbas e um grande chapéu. “A senhora é Miss Eliza Dunn?”, eleperguntou e respondi que era. “Estive perguntando pela senhora no

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número 88 e eles me disseram que poderia encontrá-lo aqui quandochegasse. Miss Dunn, vim da Austrália especialmente para encontrá-la.Sabeporacasoonomedesolteiradesuaavómaterna?”,eeudisse:“JameEmmott”.“Exa-tamente”,disseeleeacrescentou:“Emboraasenhoratalveznãosaiba,suaavóteveumagrandeamiga,ElizaLeech.EstaamigaemigrouparaaAustráliaonde casou-se comumricoproprietário. Seusdois ilhosmorreram na infância e ela herdou a fortuna do marido. Há dois mesesatráselamorreu,epeloseutestamentoasenhoraherdouumacasanessepaíseumaquantiaconsiderávelemdinheiro”.

— Eu iquei tonta, completamente tonta— prosseguiuMiss Dunn.—Fiqueimeiodescon iadaaprincípio,eeledeveterpercebido,poissorriuedisse:“Asenhora fazbememacautelar-se,MissDunn.Aquiestãominhascredenciais”, e entregou-me uma carta de uns advogados de Melbourne,Hurst e Crotchet, e um cartão. Ele era Mr. Crotchet. “Há algumascondições”, disse ele, “a nossa cliente era um pouco excêntrica, sabe. Olegado está dependendo da senhora poder tomar posse da casa (é emCumberland) antes do meio-dia de amanhã. A outra condição não éempecilho,ésóumacláusulaestipulandoqueasenhoranãodeveriaestartrabalhando como doméstica.” Fiquei desapontada, e perguntei: “MasMr.Crotchet, eu sou cozinheira. Não lhe informaram lá em casa?” “Ora, ora”,disse ele, “nem imaginava uma coisa dessas. Pensei que a senhora fosseuma dama de companhia, ou coisa semelhante. Isto é uma pena, umagrandepena,realmente”.

— “Vou perder todo o dinheiro?”, perguntei ansiosa. Ele re letiu poruns dois minutos e disse: “Há meios de burlar a lei, Miss Dunn. Nós,advogados,temospráticanesseassunto.Achoqueasaídaemseucasoéasenhoradeixaroempregoestamanhã”.“Masprecisodarummêsdeavisoprévio”,eudisseeelerespondeu:“MinhacaraMissDunn,asenhorapodesairdeumempregoaqualquermomento,dandoummêsdesaláriocomoindenização. Sua patroa compreenderá, em vista das circunstâncias. Oproblemanoseucasoétempo!AsenhoraprecisapegarotremquesaideKing’s Cross às onze e cinco para o norte. Posso adiantar-lhe umas dezlibras para a passagem, e na estação a senhora poderá escrever umbilhete para sua patroa. Eumesmo o entregarei e explicarei tudo a ela.”Naturalmente eu concordei e uma hora depois estava no trem, tãoatordoadaquenãosabiaseestavaacordadaousonhando.Quandochegueia Carlisle, já começara a achar que tinha sido vítima de algum conto dovigário,destesqueaparecemnos jornais.Masfuiaoendereçoqueeleme

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dera,eerarealmenteumescritóriodeadvogadoseeratudoverdade,umacasabemboazinhaeumarendadetrezentaslibrasporano.Osadvogadossabiam muito pouco. Tinham acabado de receber uma carta de umcavalheiroemLondresdando-lhes instruçõesparameentregaremacasae cento e cinquenta libras para os primeiros seis meses. Mr. Crotchetenviou-meminhas coisas,mas não recebi uma palavra da patroa. Penseique ela estivesse zangada e invejasse aminha boa sorte. Ela icou comomeu baú e mandou-me as roupas embrulhadas em papel. Masnaturalmente, se ela nunca recebeu meu bilhete, deve ter achado muitoatrevimentodaminhaparte!

Poirotouviracomatençãoa longahistória.Eagorabalançavaacabeçacomoseestivessecompletamentesatisfeito.

— Obrigado,mademoiselle.Houve, comodisse,umapequena confusão.Permita-me compensá-la por este aborrecimento — e entregou-lhe umenvelope. — Vai voltar imediatamente a Cumberland? Permita-me umpequenoconselho:Nãoseesqueçadaarteculinária.Ésempreútil terumaprofissãoaquerecorrerseascoisascorreremmal.

—Émuitocrédula—elemurmurouquandoanossavisitantepartiu.—Mastalveznãomaisqueamaioriadesuaclasse—seurostoadquiriuumaexpressãograve.—Venha,Hastings,nãohá tempoaperder.ArranjeumtáxienquantoescrevoumbilheteparaJapp.

Poirotesperavanaentradaquandovolteicomotáxi.—Aondevamos?—pergunteiansioso.—Primeiro,mandarestebilheteporummensageiroespecial.Feito isso, Poirot retomou o táxi e deu ao chofer outro endereço: —

PrinceAlbertRoad,88,emClapham.—Entãovamosvoltarlá?—Maisoui. Embora francamente receio que seja tarde demais.Nosso

pássarojádevetervoado,Hastings.—Queménossopássaro?Poirotsorriu.—OdiscretoMr.Simpson.—Oquê?—exclamei.—Ah,vamos,Hastings.Nãomedigaqueosfatosnãoestãobemclaros

paravocê!

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—Perceboqueacozinheira foiafastadadeliberadamente—eudisse,ligeiramente melindrado. — Mas por quê? Por que Simpson desejariaafastá-ladacasa?Elasabiaalgumacoisaarespeitodele?

—Absolutamentenada.—Eentãoporque...—Porqueelequeriaumobjetoqueeradela.—Dinheiro?Aherançaaustraliana?—Não,meuamigo,algobemdiferente—elefezumapausaedisseem

tommuitosério:—Umvelhobaúdefolhadeflandres.Dirigi-lhe um olhar descon iado. Sua declaração me parecia tão

fantástica que suspeitei de uma brincadeira, mas sua expressão era deperfeitaseriedade.

—Elepodiacomprarumbaúnovo,sequisesse—protestei.— Ele não queria um baú novo. Queria um baú com um passado

respeitável,quenãolevantassesuspeitas.— Olhe aqui, Poirot — exclamei —, isto é demais, está brincando

comigo!Elemeolhou.— Faltam-lhe os miolos e a imaginação de Mr. Simpson, Hastings.

Escute:nanoitedequarta-feira,Simpsonlivra-sedacozinheira.Umcartãoe uma folha de papel de carta impressos são fáceis de obter, e ele estádisposto a gastar cento e cinquenta libras e um ano de aluguel paraassegurarosucessodeseusplanos.MissDunnnãooreconhece.Abarba,o chapéueo sotaqueaustraliano são su icientesparaenganá-la. Foi tudoque Simpson fez na quarta-feira, exceto apropriar-se de cinquenta millibrasemtítulosnegociáveis.

—Simpson?MasfoiDavis...— Permita-me continuar, Hastings. Simpson sabe que o roubo será

descoberto na quinta-feira à tarde. Ele não vai ao banco, mas ica àespreita, esperandoporDavis à horado almoço. Talvez tenha admitidooroubo a este, e prometido devolver-lhe os títulos. De qualquer forma,consegueatrairDavisaClapham.Éodiade folgadacopeira,eMrs.Toddfoiàscompras.Nãoháninguémemcasa.

Quandooroubofordescoberto,relacionarãoofatoaodesaparecimento

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deDavis.Davisseráoladrão,eMr.Simpsonestaráemperfeitasegu-rançaepoderávoltaraotrabalhonodiaseguintecomoumhonestofuncionário...

—EDavis?Poirotfezumgestoexpressivoesacudiuacabeçadevagar.— É di ícil acreditar em tamanho sangue frio, mas não consigo

encontrar outra explicação,mon ami. O problema principal de umassassino é desfazer-se do corpo, e Simpson já planejara tudo comantecedência.OcomentáriodeElizaDunnsobreacompotadepêssegos,aosair quarta-feira de manhã, indicava sua intenção de regressar, e noentanto seu baú estava pronto e amarrado quando vieram buscá-lo. FoiSimpsonquempediu à companhia de transportes que viesse buscá-lo nasexta,efoiSimpsonquemo“arrumou”naquintaàtarde.Quemsuspeitariade alguma coisa? Uma empregada sai de uma casa e manda buscar suabagagem, já pronta e endereçada em seu nome provavelmente paraalguma estação de estrada de ferro próxima a Londres. Na tarde desábado,Simpson,emseudisfarceaustraliano,

retira a bagageme adespachanovamentepara algumnovo endereçoonde icará até que as autoridades a resolvam abrir pormotivos óbvios.Tudo que poderão descobrir é que um homem barbado a despachou dealgumaestaçãopertodeLondres.Nadahaveráquearelacioneaonúmero88daPrinceAlbertRoad.Ah!Aquiestamos.

Os prognósticos de Poirot haviam sido corretos. Simpson partira doisdiasatrás.Masnãoescapariaàsconsequênciasdeseucrime.Comaajudadotelégrafo,foidescobertonoOlympia,acaminhodaAmérica.

Um baú de folha de landres, endereçado a Mr. Henry Wintergreenatraiu a atenção dos funcionários da estrada de ferro em Glasgow.Abriram-noeencontraramocorpodoinfelizDavis.

O cheque de um guinéu de Mrs. Todd nunca foi descontado. Poirotmandouemoldurá-loependurou-onaparededasaladeestar.

— É um pequeno lembrete para mim mesmo, Hastings. Nuncadesprezareio trivial,oprosaico.Umaempregadadomésticadesaparecidaleva aumassassino impiedoso.Naminhaopinião, foi umdosmeus casosmaisinteressantes.

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OMistériodaCornualha

— Mrs. Pengelley — anunciou nossa senhoria e retirou-sediscretamente.

Muitos espécimes estranhos vinham procurar Poirot, mas na minhaopinião, amulher que estava em pé junto à porta, segurando com dedosnervosososeumelancólicoboádepenas,eraomaisinverossímildetodos.Seuaspectoeraabsolutamenteprosaico:umamulhermagraeabatidadeunscinquentaanos,vestidacomumcostumecinza,agolafechadaporumbroche,eocabelogrisalhoescondidosobumchapéupoucoatraente.Nascidadesdointerior,veem-secentenasdeMrs.Pengelleys,todososdias.

Poirotlevantou-seerecebeu-acomamabilidade,percebendoseuóbvioembaraço.

—Madame,sente-se,porfavor.Esteéomeucolega,ocapitãoHastings.Elasentou-se,balbuciandosemjeito:—OsenhoréMonsieurPoirot,odetetive?—Aseuserviço,madame.Masnossavisitanteaindacontinuavareceosa.Suspirou,torceuasmãos

eruborizou-seaindamais.—Possoajudá-laemalgumacoisa,madame?—Bem,eupensei...istoé...—Prossiga,madame.Prossiga,porfavor.Assimencorajada,Mrs.Pengelleydecidiu-se:—M.Poirot,oproblemaé

quenadaquerocomapolícia.Não,eunãorecorreriaàpolíciaemhipótesealguma!Masmesmoassim,estoumuitopreocupada.Enãoseisedeveria...—elaparouderepente.

— Nada tenho a ver com a policia. Minhas investigações sãoestritamenteconfidenciais.

Mrs.Pengelleyanimou-se.—É istomesmoque desejo, uma investigação con idencialNão quero

falatórios,mexericos,ounotíciasnosjornais.Essagentemalévoladeforma

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ashistóriasatéqueumafamíliadecentenãotenhamaiscoragemdeandarcomacabeçaerguida!Enemaomenostenhocertezadecoisaalguma,ésóestaideiahorrívelquenãomesaidacabeça—elaparoupararespirar—Epossoestar caluniandoopobreEdward,umaaçãohorrorosaparaumaesposa.Masouve-sefalardecadacoisahojeemdia...

—Porfavor,asenhoraestásereferindoaseumarido?—Refiro-me,sim.—Edequesuspeita?—Nãogostonemdepensar,M.Poirot.Masouve-sefalaremcadacoisa

queacontece,semqueaspobresvítimasnemsequersuspeitem...Jácomeçavaadesesperarqueasenhoraconseguissechegaraocentro

daquestão,masapaciênciadePoiroterainesgotável.— Fale sem receio, madame. Pense em sua satisfação se pudermos

provarquesuassuspeitassãoinfundadas.—Temrazão,equalquercertezaémelhordoqueestadúvidacruel.M.

Poirot,estoucomummedohorríveldeestarsendoenvenenada.—Oqueafazpensarnisso?Mrs. Pengelley abandonou suas reservas e tornou-se eloquente,

soterrando-nos sob uma montanha de informações que seriam maisapropriadasaosouvidosdeummédico.

—Entãosentedoresemal-estarapósasrefeições?—perguntouPoirotpensativo.—Oquedizseumédico,madame?

— Diz que é gastrite aguda, M. Poirot. Mas posso perceber que estáperplexo epreocupado,mudando sempre amedicação, semquenadadêresultados.

—Asenhorafalou-lhedeseusreceios?—Não.Ahistóriapodeseespalhar.Etalvezsejagastrite.Dequalquer

forma é muito estranho que eu passe muito bem quando Edward seausenta nos ins de semana. Até Freda, aminha sobrinha, notou isso,M.Poirot.Ea latadopreparadoparamatarervasdaninhas,queo jardineirodiznuncaterusado,estápelametade.

Ela lançou a Poirot um olhar suplicante. Ele sorriu-lhetranquilizadoramenteepegoulápisepapel.

— Vamos agir com método, madame. Em primeiro lugar, onde asenhoraeseumaridoresidem?

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—EmPolgarwith,umapequenacidaderuraldaCornualha.—Vivemláhámuitotempo?—Háquatorzeanos.—Asenhoraeseumaridomoramsós?Nãotêmfilhos?—Não.—Masnãomencionouumasobrinha?—Mencionei,sim.ÉFredaStanton, ilhadaúnicairmãdemeumarido.

Elaviveuconoscoduranteoitoanos.Mudou-senasemanapassada.—Ah,eoqueaconteceunasemanapassada?— Há tempos o ambiente em casa não era agradável, não sei o que

aconteceu a Freda. Ela andava grosseira e impertinente, com um gênioterríveleacabouestourando.Resolveusairdecasaealugouumquartonacidade. Não a vejo desde então. Mr. Radnor diz que é melhor deixá-laacalmar-sesozinha.

—QueméMr.Radnor?Mrs.Pengelleyficounovamenteenleada.—Oh,eleésóumamigo,umrapazmuitoagradável.—Háalgumacoisaentreeleesuasobrinha?—Absolutamentenada—elafoienfática.Poirotmudoudeassunto.— Presumo que a senhora e seu marido estão em boas condições

econômicas,não?—Estamossim,razoavelmentebem.—Odinheiroéseuoudeseumarido?—Oh,étododeEdward.Nãotenhonenhumarendaprópria.— Madame, compreenda. Para sermos e icientes, precisamos ser

francos.Temosqueprocurarummotivo.Seumaridonãoaenvenenariasópourpasser letemps!Sabedealgumarazãoqueopoderia levaradesejarlivrar-sedasenhora?

—Háaquela louradesavergonhadaquetrabalhaparaele—avozdeMrs.Pengelleytraiuseurancor.—Meumaridoédentista,M.Poirot,efazquestãodeterumaassistentedeboaaparêncianumuniformebrancobemajustado,paraatenderosclienteseajudá-lonoconsultório.Ouvifalarqueandaenrabichadoporela,maselenegacomveemência.

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—Quemcomproualatadeveneno,madame?—Meumarido,háumano.—Esuasobrinha,temalgumarenda?— Acho que recebe umas cinquenta libras por ano. Ficaria bem

satisfeitaemvoltaredirigiracasaparaEdward,seeuoabandonasse.—Jápensounisso,então?—Nãotencionopermitirqueelemefaçadeboba.Asmulheresnãosão

maisasescravassubmissasdopassado,M.Poirot.—Congratulo-a por seu espírito independente,madame.Mas sejamos

metódicos,asenhoraretornaaPolgarwithhoje?— Volto, sim. Vim numa excursão. Saímos de lá às seis da manhã e

voltamosnotremdascinco.— Bien! Não tenho nenhum caso importante no momento. Posso

dedicar-meaoseupequenoenigma.Amanhã ireiaPolgarwith.Asenhorapoderia apresentar omeu caroHastings como um parente distante, ilhode um primo em segundo grau, e eu serei o seu excêntrico amigoestrangeiro. Nesse meio tempo, só coma o que for preparado por suasprópriasmãos,ousobsuasupervisão.Temconfiançaemsuaempregada?

—TenhocertezadequeJessieéumaótimamoça.—Atéamanhã,então,madame.Nãopercaoânimo.Apósdespedir-sedasenhora,Poirotvoltoupensativoàsuacadeira.Não

estava porém tão absorto em seus pensamentos que deixasse de notarduasminúsculaspenasarrancadasdoboápelosdedosnervososdadama.Recolheu-asmeticulosamenteecolocou-asnacestadepapéis.

—Oqueachadestecaso,Hastings?—Asituaçãopareceseria.—Certamente,seassuspeitasdela.foremprocedentes.Masnãoserão

fantasias? Pobre do marido que comprar uma lata de preparado paramatar ervas daninhas, nos dias de hoje! Se sua mulher for detemperamentonervosoesofrerdegastrite,estaránumaenrascada!

—Essaésuaopiniãosobreoassunto?—Voilà, eu não sei, Hastings. Mas o caso me interessa, interessa-me

muitíssimo. Julgar-se-iaumcasobanal,dehisterismo.MasentretantoMrs.Pengelley não parece o tipo de mulher histérica. Sim, se não estouenganado, temosaquiumdolorosodramahumano.Diga-me,Hastings,em

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sua opinião, quais são os sentimentos de Mrs. Pengelley em relação aomarido?

—Talvezlealdade,mescladaaomedo—sugeri.—Entretanto,normalmenteumamulherécapazdeacusaraqualquer

pessoa no mundo com exceção do marido. Ela manterá sua crença nohomemqueamacontratodasasevidências.

—Aexistênciaaquideumaoutramulhercomplicaoquadro.—Éverdade,aafeiçãopodetransformar-seemódio,soboestímulodociúme.Masoódioalevariaàpolíciaenão

a mim. Ela iria querer provocar um escândalo. Não, vamos usar nossaspequenascélulascinzentas.Porqueelameprocurou?Paraqueprovassequeestavaerrada,ouparaqueprovassequeestava certa?Ah,aquitemosalgoquemeescapa,ofatordesconhecido.SeráanossaMrs.Pengelleyumasoberba atriz? Não, poderia jurar que foi sincera, e portanto estouinteressado.VejaohoráriodostrensparaPolgarwith,porfavor.

O trem mais conveniente para nós saía de Paddington à uma ecinquenta e chegava a Polgarwith logo depois das sete horas. A viagemdecorreusemincidentes,eacordeideumagradávelcochiloparadepararcomapequenaesombriaestação.LevamosnossasmalasaoDuchyHotel,edepoisdeuma ligeira refeição,Poirot sugeriuquesaíssemospara fazerumavisitaaminhapretensaprima.

AcasadosPengelleys icavaumpoucoafastadadaestrada,portrásdeumjardimantiquadoeaprazível.Abrisanoturnatrazia-nosoperfumedosgoivos e dos resedás, e era quase impossível associar ideias de violênciacomesseambienteencantador.Poirottocouacampainhaegolpeouaportacom a aldrava. Como ninguém respondesse, tocou novamente. Desta vez,após umbreve intervalo, uma empregada de olhos vermelhos, soluçandoviolentamente,abriu-nosaporta.

— Gostaríamos de verMrs. Pengelley— explicou Poirot.— Podemosentrar?

Amoçanosolhouespantada.A inal,comfranqueza,perguntou-nos:—Então ainda não sabem? Ela estámorta. Faleceu esta noite, há umameiahora.

Atordoados,ficamosolhandoparaela,paralisados.—Dequeelamorreu?—pergunteifinalmente.— Aposto quealguém sabe — e ela deu uma espiada por sobre o

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ombro.—Senãofossepelofatodealguémprecisarvelarapatroa,eufariaasmalas agoramesmo e iria embora.Nãome compete dizer nada, e nãovou dizer nada, mas todomundo sabe. A cidade toda comenta. E seMr..Radnor não escrever para a polícia, alguém o fará, não importa o que odoutordiga.Acasonãoviopatrãomexendoessanoitenalatadeveneno?E ele pulou quando viu que eu estava olhando! E o mingau da patroaestavaalijuntinhonamesa,

à espera dela! Eu é que não como nem mais um pedacinho de pãoenquantoestivernessacasa,nemquemorradefome!

—Ondemoraomédicoqueatendeusuapatroa?— É o Dr. Adams. Mora na segunda casa da outra quadra na High

Street.Poirotretirou-sebruscamente.Estavamuitopálido.—Paraalguémquenãoiadizernada,aquelamoçafalouumbocado—

comentei.Poirotbateucomopunhofechadocontraapalmadamão.— Fui um imbecil, um imbecil criminoso, Hastings! Vangloriando-me

dasminhas pequenas células cinzentas, e deixei um ser humanomorrer,umavidaquepoderiatersidosalva.Nuncaimagineiquetalcoisapudesseocorrer tão cedo. Que o bom Deus me perdoe, mas na verdade nemacreditei que pudesse mesmo acontecer. A história dela me pareceufantasiosa.Bem,chegamos.Vamosveroqueomédicopodenosadiantar.

ODr.Adamseraomédicorural típico,cordialecorado,dosromances.Recebeu-noscompolidez,masàprimeiramençãodenossopropósito,seurostoficouroxo.

— É uma idiotice, uma completa e total idiotice! Por acaso nãoacompanhei a doença? Foi gastrite, pura e simples gastrite. Esta cidade éum poço de mexericos. Um monte de velhas tagarelas se reúnem einventam essas histórias fantásticas. De tanto lerem esses jornaissensacionalistas, não sossegarão enquanto não descobrirem umenvenenamentoaquimesmo.Bastaumalatadeinseticidaejáestãovendoum envenenador em ação! Eu conheço Edward Pengelley, ele nãoenvenenaria nem o cachorro de sua avó! E por que haveria de querermataraesposa?Dê-meummotivo.

— Há um fato que talvez o senhor desconheça, doutor — e muitoresumidamente, Poirot deu-lhe uma ideia da visita de Mrs. Pengelley.

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Ninguémpoderia icarmaisespantadoqueoDr.Adams.Seusolhosquasesaltaramdasórbitas.

— Que Deus me proteja! — ele exclamou. — A pobre mulher deviaestarmaluca.Porqueelanãomefalou?Eraomaisrazoável.

—Talvezosenhorrissedesuasideias.—De formaalguma!Achoquesouumapessoadeespírito lexível,de

ideiasarejadas.Poirot olhou para ele e sorriu. O médico estava evidentemente mais

perturbado do que queria admitir. Quando deixamos sua casa, Poirotsoltouumagargalhada.

—Eleéobstinadocomoumamula.Dissequeégastrite,etemquesergastrite.Mesmoassim,nãoestátranquilo.

—Quefaremosagora?—Vamosvoltaràestalagemenosprepararparaumanoitedehorror

naquelascamasdeprovíncia.Acamainglesaordináriaédecausarpena!—Eamanhã?— Rien à faire. Voltaremos a Londres e aguardaremos os

acontecimentos.— Onde está sua ousadia? — disse eu desapontado. — E se não

acontecernada?—Vaiacontecer!Eulheprometo.Ovelhomédicopodeassinartodosos

atestados de óbito domundo que não impedirá as línguas de falarem. Epodetercertezadequefalarão.

TomamosotremparaLondresàsonzehorasdamanhãdodiaseguinte.Antes de irmos para a estação, Poirot manifestou o desejo de ver MissFreda Stanton, a sobrinha que a morta mencionara. Achamos comfacilidade a casa onde alugara um quarto. Em sua companhia estava umjovemaltoemorenoquenosapresentoucomoMr.JacobRadnor.

Miss Freda Stanton era uma linda moça, uma beleza típica daCornualha, de cabelos e olhos escuros e faces coradas. O brilho de seusolhostraíaumgênioviolentoqueseriapoucoprudenteprovocar.

—Pobre titia—disseelaquandoPoirot seapresentoueexplicousuamissão.—Queinfelicidade!Passeiamanhãlamentandonãotersidomaiscompreensivaepaciente.

—Vocêaguentoumuitacoisa,Freda—interveioRadnor.

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—É verdade, Jacob,mas conheçomeu gênio estourado. A inal era sóuma tolice dela, devia ter achado graça e não ter-me importado.Naturalmentetambémeratolicesuaacharquetitioaestavaenvenenando.Elapassavamalapóstodoalimentoqueelelheoferecia,mastenhocertezade que era só sugestão. Pensava que iria sentir-semal e acabava por sesentirmalmesmo.

—Qualfoiacausadesuadesavençacomsuatia,mademoiselle?Miss Stanton hesitou, olhando para Radnor. O jovem percebeu a

indireta:—Preciso ir, Freda, vejo-a estanoite.Adeus, senhores. Suponhoqueestãoacaminhodaestação,nãoé?

PoirotrespondeuafirmativamenteeRadnorsaiu.— A senhorita está noiva? — perguntou Poirot com um sorriso

malicioso.FredaStantoncoroueadmitiuqueeraverdade.—Efoiporissoquebrigueicomtitia—elaacrescentou.—Elanãoaprovavaocasamento?—Nãoerabemisso.Sabe,ela...—amoçahesitou.—Sim?—encorajou-aPoirotdelicadamente.— Parece-me uma coisa terrivelmente desagradável dizer isto dela,

agoraqueestámorta,masnuncaentenderá,senãolhecontar.TitiaestavacompletamenteapaixonadaporJacob.

—Éverdade?—É, não é um absurdo? Ela tinhamais de cinquenta e ele ainda não

tem trinta! No entanto ela estava enrabichada por ele. Precisei dizer-lheclaramente que era em mim que ele estava interessado. Ela icoutranstornada,nãoqueriaacreditarde formaalguma, e foi tãogrosseiraeofensiva que eu perdi a cabeça, Conversei com Jacob sobre o assunto econcordamosqueeramelhoreumeafastarumpouco,atéela recobraracalma.Pobretitia,achoqueelanãoestavamuitoequilibrada,também.

—Realmente,éoqueparece.Obrigada,mademoiselle, por ter sido tãofrancacomigo.

Paraminhasurpresa,Radnorestavaanossaesperaembaixo,narua.—PossoadivinharoqueFredaestavalhecontando—disseele.—Foi

algomuito desagradável, iquei extremamente embaraçado, como podemimaginar.Nemprecisodizerquenãocolaboreiabsolutamenteparaisso.A

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princípio iquei satisfeito com suas atenções, imaginei que a velhaaprovasse minhas intenções em relação a Freda. O caso todo foilamentável,eextremamentedesagradável.

—QuandoosenhoreMissStantonpretendemsecasar?—Embreve,espero.M.Poirot,vouserfrancoagoracomosenhor.Sei

umpoucomaisdoqueFreda.Elaacreditaqueotioéinocente,maseunãotenho tanta certeza. Mas uma coisa lhe digo: vou manter minha bocafechadasobreesseassunto.Deixemosascoisascomoestão.Nãoqueroqueotiodeminhamulhersejajulgadoeenforcadoporassassinato.

—Porquenoscontatudoisso?— Porque ouvi falar no senhor, e sei que é um homem inteligente. É

muitopossívelqueapresenteumaacusação contra ele.Mas faço-lheumapergunta:dequeadiantará?Apobremulhernãolucraránadacomisso,eseriaaúltimaaterdesejadotalescândalo.Ora,elavirarianatumba,sóempensar.

—Talvezosenhortenharazão.Gostariaentãoqueeuabafasseocaso?—Eraaminhaideia.Admitocomfranquezaqueépormotivosegoístas.

Tenho minha reputação a proteger, minha alfaiataria está agora sefirmando.

—Amaiorpartedoshomenséegoísta,Mr.Radnor,emboranemtodosadmitam o fato tão francamente. Farei o que me pede, mas para sersincero,nãocreioqueconsigaabafarocaso.

—Porquenão?Poirotergueuumdedoemadvertência.Eradiadefeira,epassávamos

pelomercado.Umburburinhoanimadoenchiaoar.—A voz do povo, eis omotivo,Mr. Radnor. Ah, precisamos correr ou

vamosperderotrem.—Muito interessante, não acha, Hastings?—disse Poirot enquanto a

composição resfolegava para fora da estação. Ele tirara do bolso umpequeno pente e ummicroscópico espelhinho e arranjava o bigode, cujasimetriaforaligeiramenteafetadadurantenossacorrida.

— Se você acha... — disse-lhe eu. — Para mim é um caso sórdido edesagradável.Nãovejonenhummistérioaqui.

—Concordo.Nãohámistério.—Achaquepodemosaceitaraversãodamoçasobreaextraordinária

paixãodatia?Parece-mepoucoverossímil,elaeraumamulhereducadae

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respeitável.—Nadaháde extraordinárionessapaixão, é um fatobanal. Se ler os

jornais com. atenção, verá quantas vezes uma respeitável e educadasenhora dessa idade abandona o marido com o qual viveu vinte anos, ealgumas vezes todos os ilhos, para ligar sua vida à de umhomemmuitomaisjovemdoqueela.Vocêadmiralesfemmes,Hastings.Derrete-sediantedetodasasmulheresbonitasquetêmobomgostodelhesorrir,masnadasabe sobre a psicologia delas.No outono da vida de umamulher semprechega o momento de loucura em que ela sente fome de. romance, deaventura, antes que seja tarde demais. E não é por ser a esposa de umprósperodentista,numaaldeiarural,queescaparádessesentimento!

—Evocêcrê...—Queumhomemastutopodetirarpartidodessemomento.— Não considero Pengelley um homem astuto — comentei. —

Despertou os mexericos de uma cidade inteira. Mas suponho que tenharazão, deve ter sido por uma in luência que os dois únicos homens quesabemdealgumacoisa,Radnoreomédico,queremabafarocaso.Gostariadeterconhecidoosujeito.

—Éfácil.Voltepelopróximotremeinventeumadordedente.Lancei-lheumolharperscrutador.—Gostariadesaberoqueachoudetãointeressantenessecaso.—Meuinteressepodeserresumidoporumcomentárioseu,Hastings.

Lembra-se de ter dito, após conversarmos com a empregada, que paraalguémdispostoanãodizercoisaalguma,elafalaraumbocado?

—Ah!— izeu,aindanoar,einsistiemminhacensuraanterior.—PorquenãotentouverPengelley?

—Monami,concedo-lheumprazodetrêsmeses.Depoispodereivê-loàvontade,naprisão.

Pela primeira vez julguei que os prognósticos de Poirot não serealizariam. O tempo passou e não ouvimos mais falar no caso daCornualha. Outros assuntos nos ocuparam, e quase esquecera a tragédiados Pengelley, quando um pequeno parágrafo nos jornais atraiu minhaatenção. Fora expedido ummandado para a exumação do corpo deMrs.PengelleypeloMinistériodeNegóciosInteriores.

Poucosdiasdepois, o “MistériodaCornualha”eraassuntode todososjornais. Aparentemente osmexericos nunca haviam diminuído, e quando

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fora anunciado o noivado do viúvo com Miss Marks, sua assistente, ofalatório do povo indignado recrudescera, até que uma petição foraenviada aos canais competentes e o corpo fora exumado. Encontraramgrandesquantidadesdearsênico,eMr.Pengelleyforapresoeacusadodoassassinatodaesposa.

Poirot e eu assistimos às audiências preliminares. Os testemunhosforam os esperados. O Dr. Adams admitiu que os sintomas deenvenenamento por arsênico podiam ser facilmente confundidos com osdeumagastrite.Operito legaltestemunhou;acriadaJessieforneceuumaenxurradade informações,amaiorpartedasquais foirejeitada,masquecertamente fortaleceu o caso contra o prisioneiro. Freda Stanton admitiuqueatiapassavamalquandoingeriacomidapreparadapelomarido.JacobRadnordeclarouqueaoentrarnacopa,semseanunciar,viraomarido,nodia damorte deMrs. Pengelley, colocar a lata do exterminador de ervasdaninhas na prateleira, junto ao prato demingau da esposa! EntãoMissMarks, a loura assistente, fora chamada, e aos prantos admitira quehouvera “algo” entre ela eopatrão, oqualhaviaprometido casar-se comela na hipótese damorte damulher. Pengelley reservou sua defesa, é ojulgamentofoimarcado.

JacobRadnoracompanhou-nosàhospedaria.—Euestavacerto, comovê—dissePoirot.—Avozdopovofalou,ecomveemência.Estecasonãopoderiaserabafado.

—É,temrazão—suspirouRadnor.—Vêalgumachancedeleescapar?—Bem,elereservousuadefesa.Podeteralgumtrunfonamanga,como

dizemvocêsingleses.Quernosfazercompanhia?Radnoraceitouo convite.Pedidoisuísques comsodaeumaxícarade

chocolate. Este último pedido foi recebido com um ar consternado, e tivedúvidasseseriaatendido.

—Tenhomuitaexperiêncianessesassuntos—prosseguiuPoirot.—Sóvejoumaescapatóriaparaonossoamigo.

—Equalé?— A sua assinatura nesse papel — e com um gesto rápido e

inesperado, como um prestidigitador, Poirot apresentou-lhe uma folhadatilografada.

—Oqueéisso?—SuaconfissãodoassassinatodeMrs.Pengelley.

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Houveummomentodesilêncio,eentãoRadnordeuumarisada.—Osenhordeveestardoido!—Não,meuamigo,não estoudoido.O senhor transferiu-separa essa

cidade e iniciou seu pequeno negócio. Mas tinha pouco capital, e Mr.Pengelley estava numa bela situação. Conheceu a sobrinha dele e elasimpatizoucomosenhor.Masopequenodotequetalvezrecebessedotio,no casamento, era muito pouco para si, e decidiu livrar-se tanto do tio,comodatia.Comoúnicaherdeira,elareceberiaodinheiroéosenhorseriaumhomemrico.

—Quantaastúciaosenhorempregou!—prosseguiuPoirot..—Cortejoua mulher de meia-idade, sem atrativos, até que se transformasse numaescrava obediente. Fê-la descon iar do marido. Sob. sua in luência eladescobriu que ele a traía, e depois passou a descon iar de que estavasendo envenenada. O senhor ia à casa deles com frequência, e teveoportunidade de introduzir arsênico em sua comida, tendo entretanto ocuidado de só agir quando o marido estava presente. Sendomulher, elanãoconservousuassuspeitassóparasi;faloucomasobrinha,eétambémprovável que tenha falado às amigas. Sua única di iculdade estava emcortejar as duas mulheres ao mesmo tempo, sem que descon iassem dasuafalsidade.Masnemisso foimuitodi ícil.Explicouàtiaquecortejavaasobrinha para afastar as suspeitas do marido. E a jovem, que nuncaconsiderouatiacomorival,foifácildetranquilizar.MasentãoMrs.

Pengelleyresolveumeconsultar,semnadalhedizer.Seelaobtivesseacerteza de que o marido estava tentando envenená-la, sentir-se-iajusti icadaemabandoná-lo,emligaravidadelaàsua,oqueacreditavaserseudesejo.E issoabsolutamentenãoconvinhaaosenhor!Nãoqueriaumdetetive estorvando-lhe os passos. Um momento favorável se apresenta:Mr.Pengelleytrazomingauparaaesposaeosenhorintroduzadosefatal.O resto foi fácil. Aparentemente ansiosopor abafar o caso, o senhor sub-repticiamentefomentaofalatório.MasnãocontoucomHerculePoirot,meuastuciosojovem!

Radnor estava mortalmente pálido, mas ainda tentou manter umaatitudedetranquilidade.

—Muitointeressanteeengenhoso,masporqueestámecontandotudoisso?

—Porquenãorepresentoalei,monsieur,esimMrs.Pengelley.Porela,dou-lhe uma chance de escapar. Assine este papel e terá vinte e quatro

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horas de dianteira, vinte e quatro horas antes que eu leve o assunto àpolícia.

Radnorhesitou.—Osenhornãopodeprovarnada.— Não posso? Eu sou Hercule Poirot. Olhe pela janela,monsieur. Vê

aquelesdoishomensnarua?Elestêmordensdenãoperdê-lodevista.Radnorlevantouumadaspersianaserecuoucomumimpropério.—Vê,monsieur?Éasuaúnicachance.—Quegarantiapossoterdeque...—Quemantereiaminhapalavra?Dou-lheapalavradeHerculePoirot.

O senhor vai assinar? Ótimo. Hastings, quer ter a bondade de levantar apersianadaesquerda?ÉosinalparaquedeixemMr.Radnorirempaz.

Pálido, soltando impropérios, Radnor saiu apressadamente. Poirotbalançouacabeçalentamente:

—Éumcovarde!Comoeuesperava.— Poirot, desta vez não agiu com correção — protestei. — Sempre

declarou-se contra o sentimentalismo. E agora, a esse pretexto, deixaescaparumpoderosoassassino!

—Nãofoiporsentimentalismo.Foipornecessidade—retrucouPoirot.— Meu amigo, não percebeu que não tínhamos nem uma única provacontra ele? Queria que me erguesse e convencesse doze impassíveiscidadãos de que eu,Hercule Poirot,sabia a verdade?Eles ririamdemim.Minha única oportunidade era assustá-lo e obter sua con issão. Aquelesdoisdesocupados,queestão lá fora, forammuitoúteis.Abaixeapersiana,Hastings,por favor.Nãohavia razãopara levantá-la. Foiparteda mise enscene. Bem, bem, devemosmanter nossa palavra. Eu disse vinte e quatrohoras, não foi? O pobreMr. Pengelley terá que suportarmais um dia desuplício, e bem omerece, pois quemmandou enganar a esposa? Sou umgrande defensor da família, como sabe.Mas tenho grande fé na ScotlandYard.Elesoagarrarão,monami.Elesoagarrarão!

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AAventuradeJohnnieWaverly

—O senhor pode compreender os sentimentos de umamãe— disseMrs.Waverly,talvezpelasextavez,lançandoaPoirotumolhardesúplica.Meu amigo, sempre solidário com as mães a litas, fez-lhe um gestotranquilizador.

— Mas compreendo, madame. Compreendo perfeitamente. TenhaconfiançanoPèrePoirot.

—Apolícia...—principiouMr.Waverly.Sua esposa o interrompeu: — Não quero mais nada com a polícia.

Con iamosnela,evejaoquesucedeu.Masouvi falar tantoemM.Poiroteem sua maravilhosa perícia, que achei que poderia nos ajudar. Ossentimentosdeumamãe...

Poirotcortouessassúplicascomumgestoeloquente.AemoçãodeMrs.Waverly era obviamente genuína, mas destoava de seu rosto arguto, detraços decididos. Quando soube mais tarde que era ilha de umpreeminentelíderdaindústriametalúrgicadeBirmingham,quedeboydeescritórioascenderaàsuaimportanteposição,

compreendiqueelaherdaramuitasdasqualidadespaternas.Mr.Waverlyeraumhomemalto, robustoe jovial.Ficouempécomos

pésbemseparados,umespécimetípicodesenhorrural.—Suponhoqueouviufalarnocaso,M.Poirot?Aperguntaeraquasesupér lua.Jáháalgunsdiasosjornaissófalavam

no sensacional rapto do pequeno JohnnieWaverly, o ilho e herdeiro detrêsanosdeMarcusWaverly,Esq.,deWaverlyCourt,Surrey,deumadasfamíliasmaisantigasdaInglaterra.

— Conheço os fatos principais, naturalmente. Mas peço lhe que mecontetodaahistória,monsieur,Ecomdetalhes,porfavor.

—Bem, tudocomeçouhádezdias,quandorecebiumacartaanônima.Sãoumascoisasnojentas,não?Masnãolhedeiatenção.Omissivistatinhaa audácia de exigir o pagamento de vinte e cincomil libras, vinte e cincomil,M.Poirot,poisemcasocontrárioraptariaJohnnie.Naturalmentejogueio papel na cesta do lixo sem pensar duas vezes. Julguei fosse uma

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brincadeira de mau gosto. Cinco dias depois recebi outra carta: “Se nãopagar, seu ilho será raptado no dia vinte e nove.” Isso foi a vinte e sete.Adaestavapreocupada,maseunãoconseguialevaroassuntoasério.Quediabos, estamos na Inglaterra. Ninguém anda por aí raptando criançasparaexigirresgate!

—Nãoécomum,realmente—concordouPoirot.—Continue,monsieur.— Mas Ada não me deixou em paz, e sentindo-me um perfeito tolo

expusoassuntoàScotlandYard.Elesnãolevaramocasoasério.Comoeu,acharam que era alguma brincadeira de mau gosto. No dia vinte e oitorecebiumaterceiracarta:“Vocênãopagou.Perderáseu ilhoaomeio-diadeamanhã,diavinteenove.Teráquepagarcinquentamilparareavê-lo.”Fui novamente à Scotland Yard. Desta vez icarammais impressionados.Admitiram que as cartas tivessem sido escritas por algum lunático queprovavelmente tentaria algum golpe na hora aprazada. Asseguraram-meque tomariam todas as precauções possíveis. O inspetor McNeill e seushomensiriamaWaverlynodiaseguinteeficariamapostos.

—Volteiparacasabemmaistranquilo—prosseguiuele.—Masaindacom a sensação de estar sob um cerco. Dei ordem para que nenhumestranho fosse admitido na casa, e para que ninguém saísse. A noitedecorreu sem incidentes. Mas de manhã, minha esposa teve uma graveperturbação. Alarmado por seu aspecto, chamei o Dr. Daker, que icouperplexo ante seus sintomas e, embora hesitasse em sugerir umenvenenamento, pude perceber o que estava em sua mente. Ele metranquilizouquenãohaviamaiores perigos,mas ela deveria permanecerna cama dois dias. Quando voltei a meu quarto, tive a surpresa deencontrar um bilhete preso a meu travesseiro. Na mesma caligra ia dosdemais, continha trêspalavras: “Aomeio-dia.”M.Poirot, iquei indignado!Alguém,dentrodaminhacasa,estavaenvolvidonocaso.Deviaserumdosempregados. Reuni-os e interroguei-os. Eles se mantiveram irmes. MissCollins, a dama de companhia de minha esposa, informou-me ter visto ababádeJohnniesaindodapropriedadedemanhãbemcedo.Acusei-aeelaconfessou.Deixaraomeninocomsuaajudanteesaíraparaencontrarumamigo, algum namorado. Que falta de compostura! Ela negou ter preso obilhete ao travesseiro, e talvez estivesse falando a verdade, não sei. Masjulguei que não podia correr o risco da própria babá da criança estarmetida na trama. Não havia dúvida de que um dos empregados estava.Finalmenteperdiapaciênciaedespedia tur-ma, toda,babáecompanhia.Dei-lhesumahoraparafazerasmalasedeixaracasa.

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As bochechas vermelhas de Mr. Waverly icaram ainda mais coradasquandoelerecordousuajustaindignação.

— Sua decisão não terá sido pouco prudente,monsieur? — sugeriuPoirot.—Erabempossívelqueestivesseagindodeacordocomosplanosdoinimigo.

Mr.Waverlyolhou-oespantado.—Nãovejocomo.Minhaideiafoidemandartodaacriadagempassear.

TelegrafeiaLondresparaquememandassemnovoscriadosànoite.Nesseínterim só estariam na casa pessoas daminha con iança: a secretária deminha esposa, Miss Collins, e o mordomo, Tredwell, que me acompanhadesdeaminhainfância.

—EestaMissCollins,háquantotempoestáemsuacasa?— Só um ano — disse Mrs. Waverly. — Ela tem sido uma auxiliar

inestimávelcomodamadecompanhiaesecretária,etambémadministraacasacommuitaeficiência.

—Eababá?—Estavaconoscoháseismeses.Tinhaexcelentes referências.Apesar

dissonuncasimpatizeirealmentecomela,emboraJohnnieaadorasse.— Mas pelo que entendi, ela já havia partido quando ocorreu a

catástrofe,nãofoi?MonsieurWaverly,querterabondadedecontinuar?Mr.Waverlyprosseguiu:—OinspetorMcNeillchegouporvoltadasdez

e meia. A essa altura, os empregados já se haviam retirado da casa. Oinspetor declarou-se satisfeito com as providências que tomáramos ecolocou vários homens no parque guardando todos os acessos à casa, eassegurou-me que, se tudo não fosse uma brincadeira, sem dúvidanenhumaapanharíamosmeumisteriosomissivista.Johnnie,eueoinspetorfomos para o aposento que chamamos de sala do conselho, e o inspetortrancou aporta à chave.Há ali umgrande relógiodepêndulo e confessoquecomeceia icarnervosíssimoquandoosponteirosseaproximaramdasdoze.Quandoorelógiobateuaprimeirabadalada,agarreiJohnnieaocolo.Tinha a impressão de que alguém poderia cair do céu para pegá-lo.Quando soou a última badalada, ouvimos um alvoroço do lado de fora,gritos e homens correndo. O inspetor levantou a vidraça e um guardaaproximou-seofegante.“Nósopegamos,senhor.Eleestavaesgueirando-seentreosarbustos.Tinhaclorofórmioemseupoder”—disseele.Corremospara o terraço onde dois guardas seguravam um camarada mal vestidocomardemalfeitor,quesedebatianumainútiltentativadeselibertar.

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—Umdospoliciaisentregou-nosumpacotequearrancoudomeliante—prosseguiuMr.Waverly.—Continhaumrolodealgodãoeumvidrodeclorofórmio. Fiquei indignado. Havia um bilhete endereçado a mim.Rasguei o envelope e li: “Você devia ter pago. Para recuperar o seu ilhoteráquenosentregarcinquentamillibras.Apesardetodasasprecauçõeselefoiraptadoàsdozehorasdodiavinteenove,comoprometi.”Deiumagargalhada, de puro alívio, mas nesse mesmo instante, ouvi o ronco domotordeumcarroeumgrito.Vireiacabeçaeviumcarrocinzento,baixoe comprido disparando numa velocidade louca em direção ao portão sul.Fora o homemque estava à direção quem gritara,mas o queme deixouparalisado de horror foi a visão de uma cabecinha loura a seu lado. EraJohnnie.

Oinspetorsoltouumimpropério.—“Omeninoestavaaqui,nãofazuminstante”—elegritoueolhouparanós.Estávamosostrêslá:eu,TredwelleMissCollins.—“Quandooviupelaúltimavez,Mr.Waverly?”

Eu me concentrei, tentando me recordar. Quando o guarda noschamara, eu saíra correndo com o inspetor, esquecendo-me de Johnnie.Nesse instante o relógio do campanário da igreja começou a bater.Estremecemos. Com uma exclamação o inspetor tirou o seu relógio dobolso.Eramexatamentedozehoras.Decomumacordocorremosàsaladoconselho.Orelógiodepênduloacusavamaisdezminutos.Alguémdevetê-lo adiantado deliberadamente, pois ele sempre marcara as horas comabsolutaprecisão.

Mr.Waverlycalou-se.Poirotsorriueajeitouumpequenotapetequeopaiansiosoafastaradolugar.

—Umproblemainteressante,obscuroeatraente—murmurouPoirot.— Farei as investigações com todo prazer. Certamente o golpe foiplanejadoàmerveille.

Mrs.Waverlyendereçou-meumolhardecensura.—Masomeumenino?—suavozeraumqueixume.Poirotapressadamenteretomouumarsérioecompungido,assumindo

umaexpressãosolidária:—Eleestáemsegurança,madame.Eleestábem.Fiquetranquila,esses

meliantesterãotodoocuidadocomele.Acriançarepresentaagalinhadosovosdeouroparaeles.

—Mr.Poirot,estoucertadequesóháumasaída:pagar.Aprincípiofuicontra.Masagora...Meussentimentosmaternos...

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—Mas nós interrompemos a história domonsieur— interveio Poirotapressadamente.

—Orestoo senhordevesaberpelos jornais—disseMr.Waverly.—Naturalmente o inspetor McNeill correu logo ao telefone e enviou umadescrição do carro e dos seus ocupantes. A princípio julgamos que opegaríamos.Umcarro,correspondendoàdescrição,comumhomemeumgaroto pequeno, havia atravessado várias aldeias, evidentementedirigindo-separaLondres.Haviamparadoumavez,etranseuntesnotaramqueomeninochoravaepareciatermedodeseuacompanhante.Quandooinspetor McNeill me deu a notícia de que o carro fora interceptado edetidosseusocupantes,quasedesmaieidealívio.Masosenhorconheceosacontecimentos posteriores. Omenino não era Johnnie, e omotorista eraum ardoroso fã de crianças, que levava para passear um menino queapanhara nas ruas de Edenswell, uma aldeia a quinze milhas de nossapropriedade.Graçasaoengano,àexcessivacon iançadapolícia,perdemostodasaspistas.Senãotivesseminsistidocomtantapersistênciaemseguirocarroerrado,talveztivéssemosachadoomenino.

— Acalme-se,monsieur. A polícia é uma organização de homenscorajososeinteligentes.Oerroquecometeramémuitonatural.Notodofoiuma trama inteligente. Soube que o homem preso no parque insiste emdefender-se negando tudo. Declara que o bilhete e o pacote foram-lheentregues para levar aWaverly Court por um homem que lhe deu umanota de dez xelins e lhe prometeu outra se entregasse a encomendaexatamenteaosdezminutosparaomeio-dia,Eledeveriaaproximar-sedacasapeloparqueebaternaportalateral.

—Nãoacreditoemumaúnicapalavra—disseMrs.Waverly,revoltada.—Étudomentira.

— En verité, não é uma história convincente — disse Poirot com arpensativo.—Mas até agora elemantém com irmeza suas declarações, eouvi falar que também fez certa acusação, não foi?— e dirigiu um olharinquiridorparaMr.Waverlyquetornouaficarcorado.

—Ocamaradateveaimpertinênciade ingirterreconhecidoTredwellcomoohomemquelheentregaraopacote,“sóqueodesgraçadoraspouobigode”,disseele.Imaginem,Tredwell,quenasceuemnossapropriedade!

PoirotdeuumpequenosorrisoàindignaçãodeMr.Waverly.—Masfoiosenhorpróprioquemsuspeitoudequeummoradordesua

casafossecúmplicedoraptor.

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—Éverdade,masnãoTredwell.—Ea senhora,madame?—perguntouPoirotvirando-sesubitamente

paraela.— Não poderia ter sido Tredwell quem entregou a carta e o pacote

àquelevagabundo,seéquealguémofez,oquenãoacredito.Ohomemdizterrecebidoa

encomendaàsdezhoras,eaessaalturaTredwellestavacommeumaridonabiblioteca.

— Conseguiu ver o rosto do motorista do carro,monsieur? Acaso separeciacomTredwell?

—Eleestavalongedemaisparaquepudessever-lheorosto.—Tredwelltemalgumirmão?—Tinhavários,mastodosjámorreram.Oúltimofoimortonaguerra.—Aindanãocompreendibematopogra iadesuapropriedade.Ocarro

dirigia-separaoportãosul.Háoutrasentradas?—Há,sim.Oportãoleste.Podeservistodaoutrafachadadacasa.— Parece-me estranho que ninguém tenha visto o carro entrando no

parque.—Háumaestradapúblicaquecortaoparquedandoacessoàcapela.

Muitos carros a utilizam. O homem deve ter estacionado seu veículo ecorrido até a casa quando houve aquele alvoroço e nossa atenção foidistraída.

—Amenosquejáestivessedentrodacasa—murmurouPoirot.—Háalgumlugarondeelepudesseter-seescondido?

— Bem, nós não izemos uma busca meticulosa antes dosacontecimentos. Não achamos necessário. Creio que ele poderia estarescondidoemalgumcanto.Masquemoteriadeixadoentrar?

— Isso descobriremos depois, cada coisa a seu tempo. Sejamosmetódicos, meu amigo. Não há esconderijos secretos na casa? WaverlyCourtéumaconstruçãoantiga,enelascostu-mavamterrefúgiosemcasosdeperigo.

— Por Deus,existe um esconderijo. O acesso é por umdos painéis dovestíbulo.

—Pertodasaladoconselho?—Bemjuntodaporta.

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—Voilà!—Masninguémoconhece,excetominhaesposaeeu.—ETredwell?—Bem,elepodeterouvidofalaremsuaexistência.—EMissCollins?—Nuncaomencioneiaela.Poirotrefletiuumminuto.—Bem,monsieur,necessito iraWaverlyCourt.Seráconvenientepara

osenhor,seeuaparecerláessatarde?—Ora,omaiscedoquelheforpossível!—exclamouMrs.Waverly.—Porfavor,leiaestacartanovamente—e

ela lheentregouaúltimamensagemdo raptor, cujo recebimentonaquelamanhã causara sua rápida ida a Poirot. A carta continha instruçõesprecisaseardilosasparaopagamentododinheiro,e terminavacomumaameaça.Omeninopagaria coma vida alguma traição. Era claro queMrs.Waverly se debatia entre seus sentimentos maternos e seu amor aodinheiro, sendo que os primeiros inalmente agora estavam vencendo abatalha.

Poirot deteve Mrs. Waverly à saída por umminuto:—Madame, sejafranca, por favor. A senhora compartilha dos sentimentos de seumaridoemrelaçãoaTredwell?Elemereceasuatotalconfiança?

— Nada tenho contra ele,monsieur, nem vejo como poderia estarenvolvidonorapto.Mas...bem,nuncasimpatizeirealmentecomele,nunca!

— Mais uma coisa, madame. Pode dar-me o endereço da babá domenino?

—Netherall Road, 149, Hammersmith. O senhor não está imaginandoque...

—Eununca imagino, sóutilizominhas células cinzentas.Masalgumasvezes,sóalgumasvezes,ocorre-meumapequenaideia...

Depois de fechar a porta, Poirot voltou e disse-me:— Entãomadamenuncasimpatizoucomomordomo...Istoéinteressante,nãoacha,Hastings?

Recusei-me a emitir umaopinião. Poirot tinha-me feito de bobo tantasvezesqueagorame tornara cauteloso. Semprehaviaumdentede coelhoescondidoemalgumlugar.

Depois de nos vestirmos com esmero para uma excursão ao campo,

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saímos para Netherall Road. Tivemos sorte em encontrar Miss JessieWithersemcasa.Eraumamulherdeunstrintaecincoanos,comumrostosimpático, de aspecto e iciente e educada. Não me pareceu possível queestivesse envolvidano caso.Ressentia-se amargamenteda forma emquehaviasidodespedida,masadmitiaqueestiveraerrada.Iasecasarcomumpintoredecoradorqueestavatrabalhandonasproximidadesde,WaverlyCourt,esaíraparaencontrá-lo.Ofatopareceu-mebastantecompreensível.Não consegui alcançar a meta de Poirot; todas as suas perguntas mepareceram irrelevantes. Eram todas concernentes à rotinadiária deMissJessie em Waverly Court. Eu estava francamente entediado e iqueisatisfeitoquandoPoirotdespediu-se.

— Um rapto não oferece di iculdades maiores,mon ami — elecomentouno táxiquenos levouàestaçãodeWaterloo.—Aquelacriançapoderiatersidoraptadafacilmenteemqualquerdiadosúltimostrêsanos.

— Não vejo como essa conclusão pode nos ajudar — retruquei comfrieza.

— Au contraire, é de grande ajuda, de enorme ajuda. Hastings, senecessitausarumalfinetedegravata,aomenosprenda-obemnocentro.Oseuestánomínimodeslocadoummeiocentímetroparaadireita!

Waverly Court era uma bela construção antiga e havia sidorecentementerestauradacomgostoecuidado.Mr.Waverlymostrou-nosasala do conselho e o terraço e todos os outros locais relacionados com ocaso. Por im, a pedido de Poirot, ele apertou umamola na parede e umpainel deslizou para o lado. Atravessamos uma estreita passagem echegamosaumcubículo.

—Comovê,nãohánadaaqui.O esconderijo estava limpo, não se viam nem pegadas no chão. Poirot

curvou-separaexaminaralgumacoisanumcanto.—Oqueachadisto,meuamigo?Eramquatropequenasmarcas,bempróximas.—Umcão!—exclamei.—Umcãozinhobempequeno,Hastings.—UmluludaPomerânia?—Menorainda.—Umpoodleminiatura?—Aindamenor.UmaespéciedesconhecidapeloKennelClub.

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Olheiparaele.Seusolhostraíamseuentusiasmoesuasatisfação.—Euestavacerto—elemurmurou.—Sabiaqueestavacerto.Venha,

Hastings.Malopainel se fechara àsnossas costas, uma jovemsaiudeuma sala

maisadiante.Mr.Waverlyfezasapresentações:—EstaéMissCollins.Miss Collins tinha cerca de trinta anos, um ar e iciente, cabelos claros

um tanto opacos e usavapince-nez. A pedido de Poirot, passamos a umapequena sala de estar e ele interrogou-a meticulosamente sobre oscriados,Tredwellemparticular.Elaadmitiunãogostardomordomo.

—Eleémuitoemproado—justificou-seamoça.Poirot fez perguntas sobre a refeição ingerida por Mrs. Waverly na

noitedodiavinte eoito.MissCollinsdeclarou ter comidoomesmomenu,emcima,emsuasaletadeestarparticular,semtersentidoabsolutamentenada.Quandoelaiaseretirar,cutuqueimeuamigo:—Pergunte-lhesobreocachorro—sussurrei.

—Ah, sim, o cachorro— e elemostrou um largo sorriso—A famíliapossuialgumcão,mademoiselle?

—Hádoisretrieversnocanil.—Enenhumcachorropequeno,deumadessasraçasminiatura?—Não,nãotemosumcãodessaespécie.Poirot deu-lhe, permissão para que se retirasse, e apertando a

campainha, comentou: — Ela está mentindo, essaMademoiselle Collins.Talvezeutambémmentisseemseulugar.Passemosagoraaomordomo.

Comumarmuitodigno,segurodesi,Tredwellcontou-nossuahistória,queemseuspontosessenciaiscoincidiacomadeMr.Waverly.Omordomoadmitiuconhecera

existência do esconderijo. Quando se retirou, mantendo sua posemajestosaatéofim,Poirotmeolhou:—Qualésuaopinião,Hastings?

—Qualéasua?—retruquei.—Nãoseja tãocauteloso,asminhascélulascinzentasnão funcionarão

sem o seu estímulo. Ah, está bem, não o provocarei mais. Vamos fazernossasdeduçõesemconjunto.Quaissãoospontosqueconsiderademaisdifícilexplicação?

—Há um detalhe queme parece estranho— disse eu.— Por que oraptornão saiupeloportão leste emvezdoportão sul?Lánão teria sido

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visto.— Excelente, Hastings. Tem toda razão. Vou sugerir-lhe outro ponto

para re lexão: por que avisar a família do rapto? Por que não pegaramsimplesmenteacriançaeexigiramoresgate?

—Porqueesperavamconseguirodinheirosemseremforçadosàação.— Não acha pouco provável que obtivessem o dinheiro só com uma

simplesameaça?—Talvezpretendessemchamaraatençãoparaomeio-diaparaqueo

raptorpudessesairdesapercebidodoseuesconderijoeescaparcomacriança.— Esse raciocínio não altera o fato de que estavam di icultando uma

ação simples. Se não especi icassem nem o dia, nem a hora, seria fácilaguardarem uma oportunidade propícia e raptarem a criança numautomóvelquandoestivessepasseandoasóscomagovernanta.

—É,podeser—admitinumtomdedúvida.—Naverdade,tudomepareceumaencenação!Examinemosasituação

por outro ângulo. Tudo indica que havia um cúmplice dentro da casa:primeiro,omisteriosoenvenenamentodeMrs.Waverly;segundo,obilhetepresoaotravesseiro:terceiro,orelógioadiantadodezminutos.Emaisumfato que você não reparou: não havia poeira no esconderijo, fora bemvarrido.Agora,nacasahaviacincopessoas,podemosexcluiragovernantapois não poderia ter varrido o esconderijo, embora pudesse ter-seencarregado dos outros três pontos. Ficamos assim reduzidos a quatropessoas: Mr. e Mrs Waverly, o mordomo Tredwell e Miss Collins.Comecemos por esta. Nada temos contra ela, exceto que sabemos muitopouco a seu respeito. É obviamente umamulher inteligente e só está noempregoháumano.

—Elamentiuarespeitodocachorro,nãoesqueça—disseeu.— Ah, sim, o cachorro... — Poirot deu um estranho sorriso. — Bem,

consideremos Tredwell, agora. Há vários detalhes suspeitos contra ele.ParacomeçarovagabundodeclarouquefoiTredwellquemlheentregouopacotenaaldeia.

—MasTredwelltemumálibiparaaquelahora.—MesmoassimelepoderiaterenvenenadoMrs.Waverly,presoanota

aotravesseiro,adiantadoorelógioevarridooesconderijo.Poroutrolado,ele nasceu e cresceu a serviço dosWaverlys. Parece pouco provável que

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colaborassecomoraptodoherdeirodacasa,nãoseajustaaoquadro!—Então,oquesugere?—Precisamosordenarnossoraciocíniodemaneiralógica,nãoimporta

quãoabsurdopareça.ConsideremosrapidamenteMrs.Waverly.Maselaérica, o dinheiro é dela. Não há motivos para que rapte o próprio ilho epague o resgate a si própria.Mas já seumarido está numa posição bemdiferente.Temumaesposarica,oquenãoéamesmacoisadoqueserrico.Naverdade,parece-mequeadamanãogostamuitodeseseparardoseudinheiro, a não ser por uma razãomuito forte. E vê-se logo de saída queMr.Waverlyéobonvivant.

—Éimpossível—exclamei.—Deformaalguma.Quemdespediuoscriados?Mr.Waverly.Eleteve

oportunidadedeescreverosbilhetes,darumsoníferoàesposa,adiantarorelógioefornecerumexcelentealibiparaseu ielservidor,Tredwell.Estenunca teve simpatia por Mrs. Waverly, é absolutamente dedicado aopatrão e está disposto a obedecer a todas as suas ordens. Três pessoasestavamenvolvidasnatrama:Waverly,Tredwelleumamigodoprimeiro.Esse foi o erro da polícia: não investigou os antecedentes do homemquedirigiuocarroqueosdespistou.Eleeraoterceirohomem.Dácaronaaumgarotode cabelos lourosencaracoladosnaaldeia, entrapeloportão leste,atravessa a propriedade e sai pelo portão sul, exatamente ao meio-dia,acenando e aos gritos. Não viram seu rosto, nem o número do carro eobviamentetambémnãoviramorostodacriança.Eledeixaumapistafalsaaté Londres. Nesse ínterim Tredwell fez sua parte providenciando oaparecimento do vagabundo com o pacote incriminador no momentopropício. Seu patrão pode lhe fornecer um álibi caso seja reconhecidoapesar do bigode falso. Quanto a Mr. Waverly, logo que o inspetor saicorrendo com o alvoroço, ele coloca a criança no esconderijo secreto e osegue. Mais tarde, quando o inspetor se retirar e Miss Collins formomentaneamente afastada, será fácil levar a criança para um lugarseguro.

—Maseocachorro?—perguntei.—EasmentirasdeMissCollins?— Foi brincadeira minha. Perguntei-lhe se havia algum cachorro

miniatura em casa, e ela respondeu não.Mas era evidente que havia: noquartodacriança!Mr.WaverlycolocoualgunsbrinquedosnoesconderijoparamanterJohnnieentretidoequieto.

— M. Poirot? — era Mr. Waverly quem entrava. — O senhor já

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descobriu alguma coisa? Tem alguma pista que indique onde está omenino?

Poirotestendeu-lheumafolhadepapel.—Eisoendereço.—Masestafolhaestáembranco!—Sóatéqueosenhoroescrevaparamim.—Oquê?—Mr.Waverlyficouroxo.—Seidetudo,monsieur.Dou-lhevinteequatrohorasparadevolvero

menino. Explicar seu reaparecimento não será tarefa árdua para si. Emcasocontrário,Mrs.Waverlyseráinformadadetodaaverdade.

Mr.Waverlydeixou-secairnumapoltronaeescondeuorostonasmãos.— Ele está comminha velha governanta, a quinze quilômetros daqui.

Estáfeliz,eemótimasmãos.—Nãotenhodúvidasaesserespeito.Senãoacreditassequenoíntimo

éumbompai,nãoestariadispostoalhedarmaisumachance.—Oescândalo...—Exatamente.Onomequelevaéantigoehonrado.Nãoocoloqueem

perigo novamente. Boa noite, Mr.Waverly. Ah, e um conselho! Nunca seesqueçadevarreroscantos!

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ODuploIndício

—Eacimade tudo,nenhumapublicidade—advertiu-nosMr.MarcusHardman,talvezpeladécimaquartavez.

A palavra publicidade repetia-se em sua conversação com aregularidade de um leitmotif. Mr. Hardman era um homem baixo,ligeiramente balofo, com unhas extravagantemente bem cuidadas e umavoz lamurienta de tenor. Era uma celebridade, à sua maneira, e suaocupação, a vidamundana. Era rico,mas não exageradamente, e gastavaseu dinheiro com zelo e diligência à procura dos prazeres da vida social.Tinha o espírito do colecionador. Seu passatempo favorito era colecionarvelhos leques, rendas e joias antigas.Mr. Hardman só gostava de coi-sasrefinadaseabominavaomoderno.

Poirot e eu, acorrendo a seu chamado urgente, encontramos ohomenzinho debatendo-se nas agonias da indecisão. Naquelascircunstâncias era-lhe repugnante chamar a polícia. Por outro lado, nãochamarimplicariaemperderalgumasjoiaspreciosasdesuacoleção.ComomeiotermoconcordaraemchamarPoirot.

—MonsieurPoirot,meusrubis!EocolardeesmeraldasquedizemterpertencidoaCatarinadeMedici!Omeucolardeesmeraldas!

— O senhor não quer nos descrever as circunstâncias em quedesapareceram?—sugeriuPoirotcomdelicadeza.

—Mas é o que estou tentando fazer! Ontem à tarde ofereci um chá,uma reunião informal, só com meia dúzia de pessoas. Nesta estação jáoferecidois,eemboranãocaibaamimdizê-lo,foramumsucessoabsoluto!Uma reunião seleta, para ouvirmos boa música: Nacora ao piano,acompanhando o contralto australiano Katherine Brid, no grande salão.Mas antes eu mostrara aos meus convidados minha coleção de joiasmedievais. Guardo-as naquele pequeno cofre de parede. É in-teiramenteforradodeveludo,eas joiasestavamexpostascomonumavitrina.Depoisvimososleques,aliadiante,enosdirigimosaosalão,paraouvirmúsica.Sódepoisquetodososconvidadossehaviamretirado,foiquedescobriqueocofre fora assaltado. Não devo tê-lo fechado bem, e alguém aproveitou aoportunidadeparalimparseuconteúdo.

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Monsieur Poirot, meus rubis, meu colar de esmeraldas, a coleção detodaumavida!Oquenãodariapararecuperá-los!Masnãodevehaveramenorpublicidade!Compreendetodasasimplicações,nãocompreende,M.Poirot? Meus convidados, meus próprios amigos! Seria um escândalohorrível!

— Quem foi a última pessoa a deixar esse aposento quando foramembora?

—FoiMr. Johnston.O senhoro conhece?Éummilionário sul-africanoqueacabadealugaramansãoAbbotburyemParkLane.Recordo-mequeseatrasoualgunsinstantes.Mascertamentenãopoderiatersidoele!

— Mais algum de seus convidados voltou a este aposento durante atardesobqualquerpretexto?

— Estava à espera dessa pergunta,Monsieur Poirot. Três deles ofizeram:aCondessaVeraRossakoff,Mr.BernardParkereLady.Runcorn.

—Fale-nosarespeitodeles.— A Condessa Rossakoff é uma encantadora dama da velha nobreza

russa.Chegourecentementeaestepaís.Elajásehaviadespedidoe iqueium tanto surpreso em encontrá-la neste aposento, aparentementecontemplando embevecida a minha coleção de leques. Sabe,MonsieurPoirot, quanto mais penso nesse episódio, mais suspeito me parece, nãoconcorda?

—Extremamentesuspeito.Masfale-mesobreosoutros.—Bem, Parker voltou aqui só para apanhar um estojo deminiaturas

queeuestavaansiosoparamostraraLadyRuncorn.—Equantoaela?— Como deve saber,Lady Runcorn é uma senhora demeia-idade, de

considerável força de caráter, que dedica amaior parte de seu tempo avários comitês de caridade. Ela voltou para buscar a bolsa que haviaesquecidoaqui.

— Bem,monsieur, então temos quatro possíveis suspeitos: a condessarussa, agrande dame inglesa, o milionário sul-africano e Mr. BernardParker.Apropósito,queméesteMr.Parker?

AperguntapareceuembaraçarconsideravelmenteMr.Hardman.—Ele...bem,eleéumjovem...Naverdade,éumconhecidomeu.— Já chegara a essa conclusão—dissePoirot perfeitamente sério.—

QualéaocupaçãodesseMr.Parker?

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—Elenãopertenceàaltasociedade,etalveznãotenhaumaocupaçãodefinida.

—Comosetornouseuamigo,semepermiteapergunta?—Bem... emumaouduas ocasiões ele... realizou alguns serviçospara

mim.—Prossiga,monsieur—dissePoirot.Hardmanendereçou-lheumolharqueixoso.Eraevidentequecontinuar

era a última coisa que desejaria fazer. Mas como Poirot manteve-se emsilêncio,inexorável,elecapitulou.

— Bem,Monsieur Poirot,meu interessepor joias antigas éum fatodoconhecimento público. Algumas vezes umapessoa precisa se desfazer deumbemdefamília,quenuncapoderiaservendidoabertamente,masumatransação particular é diferente. Parker arranja os detalhes dessastransações, servedemediadorentreaspartes interessadaseassimevitaqualquerinconveniência.Elememantéminformadodetaisoportunidades.Porexemplo,aCondessaRossakofftrouxejoiasdefamíliadaRússiaeestáansiosaparavendê-las.BernardParkeriafuncionarcomomediador.

— Compreendo — disse Poirot pensativo. — E deposita nele plenaconfiança?

—Nãovejomotivosparaprocederdeoutraforma.—Mr.Hardman,dequaldessasquatropessoasosenhorsuspeita?—Oh,MonsieurPoirot,quepergunta!São todosmeusamigos,como já

lhedisse.Nãosuspeitodenenhumdeles.— Não concordo. O senhor suspeita, sim, e não é da Condessa

Rossakoff,nemdeMr.Parker.ÉdeLadyRuncornoudeMr.Johnston?—Osenhorestámedeixandoencurralado,M.Poirot,estámesmo.Lady

Runcorn pertence a uma das famílias mais antigas da Inglaterra, mas éverdade,infelizmenteéaverdade,queLadyCaroline,suatia,sofriadeumdesagradável mal. Todos os seus amigos compreendiam, e sua criadasempre devolvia as colheres de chá, ou o que fosse, tão prontamentequantopossível.Agoravejaaminhasituação!

— EntãoLady Runcorn tinha uma tia cleptomaníaca? Muitointeressante.Possoexaminarocofre?

Com a permissão de Mr. Hardman, Poirot abriu a porta do Cofre eexaminouseuinterior.Sóas.prateleirasdeveludo,completamente

vazias,nosesperavam.

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—Mesmo agora a porta não está fechando bem—murmurou Poirottentando trancá-lo.— Por que será? Ah, o que temos aqui? É uma luvapresa na dobradiça, uma luva masculina — e Poirot a mostrou a Mr.Hardman.

—Estaluvanãoéminha—declaroueste.—Haha!Há algomais!— e Poirot curvou-se e apanhouumpequeno

objetodofundodocofre.Eraumacigarreiraforradademoirépreto.—Minhacigarreira!—exclamouMr.Hardman.— Sua? Certamente não,monsieur. Estas não são suas iniciais — e

Poirotapontouparaduasletrasentrelaçadasexecutadasemplatina.Hardmanexaminouoobjeto.—Osenhortemrazão—eledeclarou.—Émuitosemelhanteàminha,

masasiniciaissãodiferentes,um“P”eum“B”.MeuDeusdocéu!Parker!— É, parece — disse Poirot. —Um jovem um tanto descuidado,

especialmentesealuvatambémédele.Seriaumapistadupla,não?— Bernard Parker! — murmurou Mr. Hardman, — Que alívio! Bem,

Monsieur Poirot, con io-lhe a tarefa de recuperar as joias. Leve o caso aoconhecimento da polícia, se julgar necessário, isto é, se estiver bem certodequeeleéculpado.

—Vejasó,meuamigo—disse-mePoirotenquantodeixávamosacasa—,nossoMr.Hardman temuma leiparaanobrezaeoutraparaaplebe.Eu, como ainda não fui agraciado com nenhum título, estou do lado daplebe.Tenhosimpatiaporessejovem.Ocasotodoéumpoucocurioso,nãoacha? EnquantoHardman suspeitava de LadyRuncorn, eu suspeitava dacondensaedeJonston.E,noentanto,todootempooculpadoeraoobscuroMr.Parker.

—Porquesuspeitavadosoutrosdois?—Parbleu!Éumacoisatãosimplespassarporumarefugiadarussaou

por um milionário sul-africano. Qualquer mulher pode intitular-se umacondessarussa,equalquerpessoapodecomprarumacasaemParkLanee transformar-se num milionário sul-africano. Quem irá contradizê-los?Mas vejo que já estamos em Bury Street. É aqui a casa do nossodescuidado amigo. Vamosmalhar enquanto o ferro está em brasa, comodizemvocês.

Mr.BernardParkerestavaemcasa.Encontramo-loreclinadosobreummontede almofadas, envolvidonumextravaganterobe-de-chambre roxoe

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laranja. Raras vezes já senti uma antipatia tão forte e instantânea poralguém, como por aquele jovem pálido e efeminado, de fala afetada eciciante.

—Bomdia,monsieur—dissePoirotsecamente.—VenhodapartedeMr. Hardman. Ontem, durante a reunião, alguém roubou todas as suasjoias.Permita-meperguntar,monsieur,estaluvaésua?

Os processosmentais deMr. Parker não pareciam sermuito rápidos.Ficou olhando ixamente para a luva, talvez ganhando tempo para serecompor.

—Ondeaencontrou?—perguntoufinalmente.—Aluvaésua,monsieur?Mr.Parkerdeveterchegadoaumadecisão:—Não,nãoé—declarou.—Eestacigarreira,ésua?—Não,deformaalguma.Aminhaédeprata.—Muitobem,monsieur.Voupassarocasoàsmãosdapolícia.— Oh! Não faria isso se fosse o senhor! — exclamou Mr. Parker

preocupado. — Esse pessoal da polícia é uma gente muito poucocompreensiva.Espereaí, ireiverovelhoHardman!Olheaqui,hei,espereumminuto!

MasPoirotjábatiaemretirada.—Demos-lhealgoparapensar,não?—eleriu.—Amanhãveremoso

quevaiacontecer.MasodestinonãonosdeixariaesquecerocasoHardman,nemporuma

tarde. Sem aviso prévio, nossa porta abriu-se de sopetão, e um furacãohumano invadiunossa intimidade, envolta num casaconegrode peles dezibelina(emborafosse junhonaInglaterra),esobumchapéuexuberanteenfeitado por uma guirlanda de pássaros empalhados. A Condessa VeraRossakofferacertamenteumapersonalidadeperturbadora.

—OsenhoréMonsieurPoirot?Oqueestápretendendofazer?Acusouaquelepobre garoto!Éuma infâmia, é escandaloso!Euo conheçobem, éumpintainho, um inocente carneirinho, nunca roubaria coisa alguma. Elefez tantacoisapormim,nãoposso icar imobilizadaevê-lo ser torturado,martirizado!

— Diga-me, madame, esta cigarreira é dele? — Poirot mostrou-lhe oestojonegro.

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Acondessadeteve-seporuminstanteparaexaminá-lo.—Sim,édele.Euaconheço.Edaí?Osenhoraencontroupor lá?Mas

nóstodosestivemosnasaladocofre.Eleadeveterdeixadocair.Ah,vocêspoliciaissãomaiscruéisqueaGuardaVermelha...

—Eestaluva,édele?— Como eu iria saber? Todas as luvas são parecidas. Não tente me

deter, ele precisa ser libertado, sua reputação restabelecida! Vendereiminhasjoiasedar-lhe-eimuitodinheiro.

—Madame...— Estamos de acordo? Não, não argumente. Oh pobre garoto! Veio a

mim, com os olhos cheios de lágrimas. “Eu o salvarei”, eu lhe disse. “Ireiprocuraressehomem,esseogre,essemonstro.DeixecomVera.”Eagoraqueestamoscombinados,euvou.

Com tão pouca cerimônia como entrara, ela saiu, deixando atrás de siumperfumepenetranteeexótico.

—Quemulher!—exclamei.—Equepeles!— Ah, sim,elas eram genuínas! Poderia uma falsa condessa ter peles

verdadeiras?Perdoeapiada,Hastings...Não,creioqueelaémesmorussa.Bem,bem,entãoMr.Bernardfoicorrendochorarnosombrosdela...

—Acigarreiraédele.Seráquealuvatambémé?Com um sorriso Poirot retirou do bolso uma outra mão de luva e

colocou-aaoladodaprimeira.Nãohaviadúvidaqueformavamumpar.—Ondearranjouessaoutra,Poirot?— Estava sobre a mesa do vestíbulo de Bury Street, junto a uma

bengala. Não há dúvida,Monsieur Parker é um jovemmuito descuidado.Entretanto,monami, nãopodemos seromissos.Vamos fazerumavisita aParkLane.

Édesnecessáriodizerqueacompanheimeuamigo.Johnstonnãoestava,mas falamos com seu secretário particular. Disse-nos que Johnstonchegara recentemente da África do Sul e nunca havia estado antes naInglaterra.

— Ele se interessa por pedras preciosas, não é verdade?— arriscouPoirot.

— Acho que asminas de ouro gozam de sua preferência— sorriu osecretário.

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Poirot deixou a entrevista pensativo. À noite, para minha completasurpresa,encontrei-oentretidonoestudodeumagramáticarussa.

— Por Deus, Poirot! — exclamei. — Está aprendendo russo parafascinaracondessaemseupróprioidioma?

—Elacertamentenãodariaouvidosaomeuinglês,monami.—Mas Poirot, os russos de boa estirpe não falam invariavelmente o

francês?—Vocêéumaminadeinformações,Hastings!Nãocansareimaisomeu

cérebrocomasdi iculdadesdoalfabetorusso—edizendoissoelejogouolivrolonge,numgestomelodramático.

Não iquei totalmente satisfeito.Havia em seus olhosumbrilhoque jáconheciademuito.EraumindícioinvariáveldequePoirotestavacontenteconsigomesmo.

—Talvezestejaduvidandodequeelasejarealmenterussa,não?—euarrisquei,querendodemonstrarsapiência.—Vaitestá-la?

—Ah,não!Elaémesmorussa.—Bem,então...— Se quer realmente ter uma bela atuação nesse caso, Hastings, “As

PrimeirasLiçõesdeRusso”ser-lhe-ãodeinestimávelajuda—eleriuenãodeumaisnenhumapalavra

Pegueiolivrodochãoemergulheicuriosonaleitura,masnãoconseguientenderarazãodocomentáriodePoirot.

A manhã seguinte não nos trouxe nenhuma novidade, mas isto nãopareceu preocupar meu amigo. À mesa, ele anunciou suas intenções defazerumavisitaaMr.Hardmannasprimeirashorasdodia.Encontramosavelharaposaemcasa,maselepareciamaiscalmoquenodiaanterior.

—Bem,monsieur,temnovidades?—perguntouansioso.Poirotentregou-lheumafolhadepapel.—Estaéapessoaqueroubouasjoias,monsieur.Querqueleveocasoà

polícia? Ou acaso prefere que eu recupere as joias sem envolver estescavalheirosnoassunto?

Mr.Hardmanolhavafixoparaopapel.Finalmenterecuperouavoz.— É surpreendente. Pre iro indubitavelmente que o assunto não

provoqueescândalo.Dou-lhecarieblanche,M.Poirot.Tenhocertezadequeserádiscreto.

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Nosso próximo passo foi apanhar um táxi, que Poirot mandou seguirparaoCarlton.AliperguntoupelaCondessaRossakoff.Empoucosminutosfomos conduzidos à suíte da dama. Ela veio ao nosso encontro de mãosestendidas,envolvidanummaravilhosonegligéedeumestampadoexótico.

—Monsieur Poirot! — exclamou ela. — Já conseguiu? Já inocentouaquelapobrecriança?

—MadamelaComtesse,seuamigoMr.Parkernãocorrenenhumperigodeserpreso.

—Ah!Masosenhorétãointeligente!Ésoberbo!Etãorápido,também!—Por outro lado, prometi aMr.Hardmanque lhe devolveria as joias

hoje.—Eentão?— Então,madame, icaria extremamente agradecido se as entregasse

imediatamente. Sinto apressá-la, mas o táxi está esperando, se acaso fornecessário ir até a Scotland Yard! Nós, os belgas, somos um povoeconômico,madame.

A condessa havia acendido um cigarro. Por alguns segundos icouperfeitamenteimóvel,soltandoanéisdefumaça,olhandoparaPoirot.Entãoelaexplodiunumagargalhadaelevantou-se.Andouatéumaescrivaninha,abriuumagavetaeretirouumabolsadesedapreta.Jogou-acomumgestograciosoparaPoirotedissenumtomcalmoejovial:

—Nós.osrussos,aocontrário,somosumpovopródigo.Masparaisso.infelizmenteénecessárioterdinheiro.Nãoprecisaverificar.Estãotodasaí.

Poirotlevantou-se.—Madame, eu a congratulo pela sua rapidez de raciocínio, e por sua

presteza.—Masoquemaiseupoderiafazer,seotáxiestáasuaespera?— A senhora é muito amável, madame. Vai icar muito tempo em

Londres?—Receioquenão.Graçasaosenhor.—Aceiteminhasdesculpas.—Talveznosencontremosoutravez.—Esperoquesim.—Maseunão!—exclamouacondessacomumagargalhada.—Eisto

éumelogioquelheestoufazendo.Hámuitopoucoshomensnomundoque

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meinspiramreceio.Adeus,MonsieurPoirot.— Adeus,Madame la Comtesse. Ah, perdão, estava me esquecendo.

Permita-medevolver-lheasuacigarreira.E com uma reverência ele entregou-lhe o pequeno estojo demoiré

negroqueencontráramosnofundodocofre,Elaoaceitousemmodi icaraexpressãodorosto.Sóergueuumasobrancelhaemurmurou:—Ah,agorapercebo!

—Quemulher!—exclamouPoirotentusiasmadoenquantodescíamosas escadas. —Mon Dieu, quelle fernme! Nem uma palavra deargumentação, de protesto, de ingimento. Num olhar ela fez a avaliaçãocorreta de sua situação. Eu lhe digo, Hastings, uma mulher que podeaceitar a derrota assim, com um sorriso descuidado, irá longe! Ela éperigosa,temnervosdeaço,ela...—eletropeçou.

— Se conseguirmoderar sua admiração, e olhar onde pisa, será bemmelhor—eusugeri.—Quandocomeçouasuspeitardacondessa?

—Monami,foioduploindício,aluvaeacigarreira.quemepreocupou.Bernard Parker poderia facilmente ter deixado cair uma ou outra, masdi icilmenteasduas.Não,eradescuidodemasiado!Damesma formaseaintenção fosse incriminar Parker, uma teria sido su iciente, a luva ou acigarreira,nãoambas,novamente.Entãofui levadoaconcluirqueumdosobjetosnão pertencia a Parker. A princípio pensei que a cigarreira fossedele, enãoa luva.Masquandodescobri aoutra luvaemsuacasa, viqueme enganara. Então, de quem era a cigarreira? Evidentemente nãopertencia aLady Runcorn, as iniciais não coincidiam.Mr. Johnston? Só seestivesse sob um nome falso. Mas pela entrevista com o seu secretáriotornou-se evidente para mim que sua posição era clara e acima dequalquer suspeita.NadahaviadeobscuronopassadodeMr. Johnston.Acondessa então? Ela pretendia ter trazido joias daRússia, só necessitariaretirar as pedras dos engastes e penso que nunca mais poderiam seridenti icadas.OqueseriamaisfácildoqueapanharumaluvadeParkerdovestíbulo e deixá-la no cofre? Mas,bien sur, ela não tivera nenhumaintençãodedeixarcairsuaprópriacigarreira.

—Masseacigarreiraeradela,porquetinhaasiniciaisB.P.?AsiniciaisdacondessasãoV.R.

Poirotmostrouumlevesorriso.—Exatamente,monami,masnoalfabetorussoBéV,ePéR.— Bem, não poderia esperar que eu adivinhasse isso. Não conheço o

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russo.— Nem eu, Hastings. Foi por isso que comprei aquele manual, e o

recomendeiavocê.Eledeuumsuspiro.—Quemulhernotável!—Tenhoumaintuição,umaintuiçãomuitofortedequetornareiavê-la.

Masonde?Gostariabemdesaber.

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OReidePaus

—A realidade émais estranhaque a icção—comentei, deixandodeladooDailyNewsmonger.

Ocomentáriotalveznãofosseoriginal,eirritouomeuamigo.Inclinandoa cabeça que lembrava um ovo, o homenzinho retirou uma imagináriapartícula de poeira de suas calças de vincos impecáveis, e disse:— Quepensamento profundo! O meu amigo Hastings está se revelando umfilósofo!

Sem demonstrar qualquer melindre ante sua inesperada zombaria,indiquei-lheojornalqueacabaradefolhear.

—Jáleuojornaldestamanhã?—Já,equandotermineidobrei-ocomcuidadoesimetria,enãooatirei

aochãocomoacabadefazer,comsualamentávelfaltadeordememétodo.O mal de Poirot é sua idolatria pela ordem e pelo método. Chega ao

pontodeatribuir-lhestodasassuasvitórias!— Então deve ter lido a notícia do assassinato do empresário Henry

Redburn; foioqueprovocoumeucomentário.A realidadenãoé somentemaisestranhaquea icção,étambémmaisdramática.Imagineumafamíliade classemédia, típica deste país, composta de pai,mãe, um ilho e umailha.Oshomensvãoparaotrabalhonacidadetodososdiaseasmulherescuidam da casa. Suas vidas decorrem em perfeita tranquilidade emonotonia. Pois na noite de ontem, quando a família Oglander jogavapaci icamentebridgeemsuasaladêestar,emDaisymead,Streatham,umadas portas envidraçadas abre-se de supetão e uma mulher invade oaposento.Seuvestidodecetimcordeareiaestámanchadodesangue.Elabalbucia uma palavra: “assassinado” e cai no chão inconsciente. Talvez atenham reconhecido por seus retratos nos jornais: é Valeria SaintClair, afamosadançarina,últimacoqueluchedeLondres!

—EssanarrativaeloquenteésuaoudoDailyNews-monger?—Napressadelançaremnovaedição,oDailyNews-mongerrestringiu-

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se aos simples fatos, mas logo percebi as possibilidades dramáticas dahistória.

Poirotbalançouacabeça,pensativo.—Ondeestáanaturezahumana,estáodrama.Masnemsempreonde

acreditamos vê-lo. Lembre-se disto. Também estou interessado no caso,poiséprovávelquevenhaacolaboraremsuainvestigação.

—Éverdade?— É. Um cavalheiro telefonou-me estamanhã paramarcar uma hora

paraoPríncipePauldaMaurânia.—Masoquetemessefatoavercomocaso?—Pelo jeito não tem lido as seções demexericos dos jornais, aquelas

que começam assim: “Um passarinho me contou...” Olhe aqui. — E meindicouumparágrafocomseudedocurtoeroliço:“...queumpríncipedocontinenteestáencantadoporumafamosadançarinaqueagoraostentanodedoanularumnovoedeslumbrantesolitário...”

—Mas prossiga a sua dramática narrativa— disse Poirot.—DeixoumademoiselledesmaiadanasaladeestardeDaisymead,lembra-se?

Encolhiosombros.— Em consequência às primeiras palavras pronunciadas por

Mademoiselle SaintClair ao recobrar a consciência, Mr. Oglander e o ilhosaíram, um para chamar um médico que socorresse a dama, queevidentemente sofria de choque, e o outro para a delegacia, onde contousua história e conseguiu que a polícia o acompanhasse a Mon Désir, amagní ica propriedade doMr. Redburn, vizinha a Daisymead. Encontramesta conhecida personalidade, que gozava de uma reputação duvidosa,caídonabibliotecacomocrânioarrebentadocomoumacascadeovo.

—Pareceque tolhi o seuestilo—dissePoirot amavelmente.—Peço-lhedesculpas...Ah,aívemopríncipe!

Nossonobre visitante foi anunciado sobo títulodeCondeFeodor. Eraumjovemdeestranhaaparência,alto,nervoso.comumqueixoindeciso,afamosa boca dos Mauranberg e os olhos escuros e ardentes de umfanático.

—ÉMonsieurPoirot?Meuamigoinclinou-se.—Monsieur, estou numa situação angustiosa, mais dolorosa do que

possaimaginar.

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Poirotfez-lheumgestotranquilizador.—Compreendosuaansiedade.MademoiselleSaintClairéumaamigamuitoquerida,nãoéverdade?O príncipe respondeu com simplicidade: — Espero fazê-la minha

esposa.Poirotergueuacabeçaeseusolhosmudaramdeexpressão.O príncipe prosseguiu: — Não serei o primeiro de minha família a

realizar um casamento morganático. Meu irmão Alexandre tambémdesa iouoImperador.Vivemosagoranumaeramaisesclarecida,livredospreconceitos de casta. Além disso,Mademoiselle SaintClair é na realidadede uma estirpe tão nobre quanto a minha. Não ouviu boatos sobre seupassado?

—Hámuitashistóriasromânticassobresuaorigem,oqueécomumnocasodebailarinas célebres. Já ouvi falarque seria ilhadeuma faxineirairlandesaetambémdeumagrã-duquesarussa.

—Aprimeirahistórianãopassadeumatolice,naturalmente—disseojovem. — Mas a segunda é verdadeira. Valerie, embora tenha juradoguardar segredo, deixou-me entrever a verdade. Além disso, ela odemonstra, inconscientemente, de mil maneiras. Acredito emhereditariedade,MonsieurPoirot.

— Eu também acredito em hereditariedade— disse Poirot pensativo.— Tenho visto estranhas coisas a este respeito,moi qui vous parle... Masvoltandoaoassunto,MonsieurlePrince,oquedesejademim?Oqueteme?Posso falar com franqueza, não? Há qualquer elemento que possa ligarMademoiselleSaintClairaocrime?ElaconheciaRedburn,não?

—Conhecia.Elesediziaapaixonadoporela.—Eela?—Nadatinhaalhedizer.Poirot lançou-lhe um olhar penetrante. — Ela possuía algum motivo

paratemê-lo?Ojovemhesitou.—Houveumincidente...JáouviufalaremZara,avidente?—Não.—Elaémaravilhosa,devia irvê-la.Valerieeeu formosconsultá-lana

semana passada. Zara leu as cartas para nós. Falou para Valerie de

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di iculdades, de nuvens tempestuosas se acumulando no horizonte, einalmentevirouaúltimacartaEraoreidepaus.EladisseaValerie: “Elesigni icadesastreparavocê.Tomecuidado.Háumhomemquea tememseu poder. Sabe a quem me re iro?” Valerie estava pálida, balançou acabeçaedisse:“Sim,sei.”Logodepoissaímos.AsúltimaspalavrasdeZaraforamumaadvertênciaparaValerie: “Tomecuidadocomoreidepaus.Operigo a ameaça!” Interroguei Valerie, mas ela nada quis me dizer, eassegurou-mequetudoestavabem.Masagora,depoisdosacontecimentosde ontem; estou mais certo do que nunca de que o rei de paus eraRedburn,queeleeraohomemqueValerietemia.

Opríncipecalou-seabruptamente.—Agorapode compreenderminhapreocupaçãoquandoabri o jornal

estamanhã.SuponhamosqueValerienumacessodedesespero...Não,nãoépossível!

Poirotlevantou-seedeuumaspalmadinhastranquilizadorasnoombrodorapaz.

—Nãosedesespere,peço-lhe.Deixetudoemminhasmãos.—Osenhor iráaStreatham?Seiqueelaaindaestá lá,emDaisymead,

prostradapelochoque.—Ireiimediatamente.— A embaixada facilitará seus passos. Terá livre acesso ao local do

crime.— Então partiremos já. Hastings, quer me acompanhar?Au revoir,

MonsieurlePrince.MonDésir era uma belíssima casa,moderna e confortável. Uma curta

estradadavaacessoàconstrução,elindosjardinsestendiam-seaosfundosdacasaporumavastaextensão.

Quandomencionamos o nome do Príncipe Paul, omordomo levou-nosimediatamenteàcenadatragédia.Abibliotecaeraumaposentomagní ico,estendendo-sedafachadaaosfundosdacasa,comumagrandejanelaemcadaextremo,umadandoparaaentradaeaoutraparaosjardins.Ocorpofora encontrado no nicho formado pela segunda. Tinha sido removido hápoucotempo,depoisqueapolíciaconcluíraseusexames.

— Que aborrecimento — murmurei para Poirot. — Podem terdestruídoprovasimportantes.

Meuamigosorriu.

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—Quantasvezesprecisodizer-lhequea soluçãoestáaquidentro?—eleindicouocrânio.—Naspequeninascélulascinzentasdocérebroéquese encontram as pistas para todos os mistérios! — e virando-se para omordomo, perguntou-lhe: — Suponho que não houve modi icações noaposento,alémdaretiradadocorpo?

—Não,senhor.Estáexatamentecomoapolíciaoencontrounanoitedeontem.

—Eascortinas?Vejoqueelasencobremonichoformadopelasjanelas,eamesmacoisanafachadadafrente.Estavamfechadasànoitepassada?

—Estavam,sim,senhor.Corro-astodasasnoites.—EntãoRedburndevetê-lasaberto.—Creioquesim,senhor.—Sabeseoseupatrãoesperavaalgumvisitanteontemànoite?— Ele não disse, senhor. Mas deu ordens para que não o

perturbássemosdepoisdojantar.Háumaportaabrindodabibliotecaparaoladodacasa.Elepoderiaadmitirqualquervisitanteporali.

—Esteprocedimentoerahabitual?Omordomotossiudiscretamente.—Acreditoquesim,senhor.Poirot dirigiu-se à porta em questão. Não estava trancada. Desceu ao

terraço que acompanhava a fachada lateral, terminando na frente naestradadeacesso,eatrásnumaparededetijolosvermelhos.

— É o pomar, senhor — explicou o mordomo. — Há um portão deentradaaliadiante,masestásemprefechadodepoisdasseishoras.

Poirotfezumsinaldeaquiescência,etornouaentrar.— Não ouviu ruídos alarmantes ontem à noite? — perguntou ao

mordomo.—Bem,senhor,ouvimosvozesnabiblioteca,umpoucoantesdasnove.

Mas issoerahabitual, especialmente tratando-sedevoz feminina.E comofomos todosentãoparaasaladoscriadosque icanooutroextremo,nãoouvimosmaisnada,atéquechegouapolícia,porvoltadasonzehoras.

—Quantaspessoasfalavam?—Nãopoderiaprecisar,senhor.Sónoteiadasenhora.—Ah!—ODr.Ryanaindaestáaqui,senhor.Sedesejarvê-lo...

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Aceitamospressurososa sugestão, eempoucosminutosomédico,umhomemdemeia-idade,muito cordial, juntou-se a nós e forneceu a Poirottodasasinformaçõesaseualcance.Redburnforaencontradocaídojuntoàjanela,pertodobanco largodemármoreembutidononicho formadoporaquela.Tinhadoisferimentos:umentreosolhoseoutro,queomatara,naparteposteriordocrânio.

—Estavadeitadodecostas?— Estava. Olhe a marca — e ele indicou uma mancha escura no

assoalho.—Oferimentodocrâniopoderiatersidocausadopelaqueda?—Impossível.Qualquerquetenhasidoaarma,elapenetrounocrânio

aalgumaprofundidade.Poirot examinou pensativo o local. No recesso formado pela janela,

haviaumbancodemármorecomosbraçosesculpidosemfeitiodecabeçadeleão.Osolhosdomeuamigoseiluminaram.

—Suponhamos que ele tenha caído para trás e batido o crânio nestacabeçadeleão,daíescorregandoaochão.Essapancadanãoproduziriaumferimentosemelhanteaoqueosenhordescreveu?

—É possível.Mas o ângulo emque estava o corpo não con irma estateoria.Ealémdissoencontraríamosvestígiosdesanguenomármore.

—Obancopodetersidolavado.Omédicoencolheuosombros.— Istoémuitopoucoprovável.Não trariavantagensaninguémdara

umacidenteoaspectodeassassinato.—Concordo—dissePoirot.—Acreditaquequalquerdosdoisgolpes

possatersidodesferidoporumamulher?— Na minha opinião, não. Acaso está pensando emMademoiselle

SaintClair?—Nãopensoemninguémemparticularatétercerteza—dissePoirot

numtomsuave,examinandoaportaenvidraçada.Omédicoexplicou:—FoiporaíqueMademoiselle SaintClair fugiu.Por

entre as árvores pode se ver ao longeDaisymead. Há outras residênciasmaispróximasnadireçãodaestrada,masdestelado,Daisymeadéaúnicavisível.

— Agradeço suas informações, doutor — disse Poirot. — Venha

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Hastings,vamosseguirospassosdemademoiselle.Com Poirot a minha frente, atravessamos o jardim, passamos por um

portãodeferrobatidoecortamosporumpequenobosqueatéchegarmosà entrada de Daisymead, uma casa pequena e despretensiosa com cercadedoismilmetrosquadradosde terreno.Algunsdegraus levavamaumaportalateralenvidraçada.Poirotindicou-acomumacenodecabeça.

— Foi por ali quemademoiselle entrou. Nós, que não estamos numasituaçãotãoaflitiva,entraremospelaportadafrente.

Uma criada nos recebeu e conduziu-nos à sala de estar, antes de irprocurar Mrs. Oglander. O aposento evidentemente não fora arrumadodesdeanoiteanterior.A lareiraaindaestavacheiadecinzaseamesadebridge deslocada para o centro da sala, com as cartas do morto viradaspara cima e as cartas de cada jogador ainda em frente a seus lugares. Asala estava atulhada de bibelôs e vários horríveis retratos de famíliadecoravamasparedes.

Poirot examinou-os commais complacência que eu e alinhoudois queestavamtortos.

— La famille, são fortes os laços de sangue, não? Os sentimentossupremafaltadebeleza.

Concordei,olhandooretratodeumgrupodominadoporumsenhordesuíças,umasenhoracomumpenteadoalto,umgarotoforteeatarracadoeduasmeninazinhas enfeitadas comumnúmero excessivode laçarotes deita.Deduziqueeraumafotogra iaantigadafamíliaOglandereexaminei-acominteresse.

A porta abriu-se e uma jovem entrou. Seus cabelos escuros estavampresosnumarranjoseveroetrajavaumasaiade tweedeumcasacodelãdeumacorneutra.Haviaumaperguntaemseusolhos.

Poirotadiantou-se.— É Miss Oglander? Lamento importuná-la depois do transtorno por

quepassaram.— É, icamos bastante preocupados — admitiu a jovem com cautela.

Comecei a suspeitar de que os aspectos dramáticos do caso não haviamsidopercebidosporMissOglander,quesuafaltadeimaginaçãoaimpediade sentir a tragédia.Minha impressão acentuou-se com as suas palavrasseguintes: — Peço desculpas pelo desarranjo da sala. Os criados icamexcitadoscomqualquertolice.

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—Estavamreunidosnestasalananoitedeontem,n’est-ce-pas?—Sim,jogávamosbridgedepoisdaceiaquando...—Desculpe-meinterrompê-la,masháquantotempoestavamjogando?—Bem...—MissOglanderre letiuuminstante.—Nãopossoprecisar,

mas quando ela entrou por volta das dez horas já jogáramos váriaspartidas.

—Easenhoritaondeestavasentada?—Emfrenteàjanela.Jogavadeparceriacomminhamãeeacabarade

dizer “umasemtrunfo”,quando inesperadamenteaportaenvidraçadaseabriueMissSaintClairprecipitou-sedentrodasala.

—Asenhoritaareconheceu?—Tiveumavagaideiadequejáviraseurostoantes.—Elaaindaestáaqui,não?— Está, mas recusa-se a receber qualquer pessoa. Ainda está muito

prostrada.— Penso que ela me receberá. Quer dizer-lhe que vim a pedidos

insistentesdoPríncipePauldaMaurânia?Pareceu-me que a menção de um príncipe real abalou a calma

imperturbáveldeMissOglander,mas eladeixoua salapara cumprir suamissão, sem mais comentários, e voltou quase imediatamente após paradizerqueMademoiselle.SaintClairnosreceberiaemseuquarto.

Subimos as escadas até umquarto amplo e arejado.Num sofá junto àjanela, uma mulher estava reclinada. À nossa entrada virou a cabeça. Ocontraste entre as duasmulheres era gritante, e fazia-semais veementeainda pela ligeira semelhança de coloração e de traços isionômicos.Masquediferença!Oolhar, osgestos, tudoemMissSaintClair eraexpressivo,dramático!Umaatmosferaderomancepareciaenvolvê-la.Um peignoirdelanela vermelha aquecia seus pés, uma peça de vestuário bastanteprosaica, mas o encanto de sua personalidade conferia-lhe um saborexótico,eeletransformava-seemreluzentemantooriental.

OsgrandesolhosescurosdajovemprocuraramPoirot.— O senhor vem da parte de Paul? — a voz dela ajustava-se a sua

personalidade,eraprofundaelânguida.—Venho,mademoiselle.Estouaquiparaserviraambos.—Oquedesejasaber?

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—Tudoqueaconteceunanoitepassada.Tudo!Eladeuumsorrisocansado.—Pensaqueeumentiria?Nãosouestúpida.Vejoclaramentequenada

possoesconder.Ohomemquemorreusabiaumsegredodeminhavida,eameaçou divulgá-lo. Por causa de Paul, tentei entrar em acordo com ele.Não poderia arriscar-me a perder Paul... Agora que Redburn estámorto,estouemsegurança.Masapesardisso,eunãoomatei.

Poirotsacudiuacabeçaesorriu.—Não era necessário que o dissesse,mademoiselle. Agora conte-meo

queaconteceunanoitepassada.—Eulheoferecidinheiro.Ele ingiuestardispostoanegociaremarcou

um encontro para as nove horas da noite passada, em Mon Désir. Euconhecia a casa, já estivera lá antes. Deveria entrar pela porta lateral dabiblioteca,paraqueoscriadosnãomevissem.

— Desculpe-me,mademoiselle, mas não teve medo de ir lá sozinha ànoite?

Fora imaginação minha, ou ela teria hesitada antes de responder:—Talvezeutivessemedo.Masnãohavianinguémaquempudessepedirqueme acompanhasse, e estava desesperada. Redburn recebeu-me nabiblioteca. Que homem horrível! Estou satisfeita com sua morte. Elebrincou comigo, como um gato atormentando um pobre camundongo.Zombavademimenquantoeuimplorava,suplicavadejoelhos!Ofereci-lhetodas as minhas joias, em vão. Então ele impôs suas condições. Talvez osenhor possa imaginar quais fossem. Recusei, disse-lhe o que pensavadele, injuriei-o, e ele permaneceu calmo e sorridente. Quando me caleiinalmente, ele dirigiu-se às cortinas, de onde viera um ruído suspeito, ecorreu-as num gesto rápido. O homem que estivera ali escondido,maltrapilho, com um ar feroz saltou e golpeou Mr. Redburn duas vezes,com violên-cia e ele caiu. O vagabundo agarrou-me com sua mãoensanguentada, mas consegui me desvencilhar, pulei pela janela e corripara salvar minha vida. Então vi as luzes desta casa e corri para cá. Asvenezianasestavamabertasevialgumaspessoas jogandobaralho.Quaseme lancei para dentro da sala, consegui balbuciar “assassinado”, edesmaiei.

— Obrigado,mademoiselle. Deve ter sido um grande choque para seusistemanervoso.Equantoaessevagabundo,podedescrevê-lo?Lembra-sedecomoestavavestido?

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—Não, foi tudomuito rápido.Maspoderia reconhecer aquelehomememqualquerlugar.Seurostoestáimpressoemmeucérebro.

— Sómais uma pergunta,mademoiselle. As cortinas da outra janela, aqueabreparaaentradadeacesso,estavamfechadas?

Pelaprimeiravezumaexpressãodeperplexidadeapareceunorostodabailarina.Elaesforçava-separarecordar.

—Ehbien,mademoiselle?— Tenho quase certeza... sim, tenho certeza! Elasnão estavam

fechadas.— É curioso, já que as outras estavam. Mas não creio que tenha

importância.Vaificaraquimuitotempo,mademoiselle?—Naopiniãodomédicojádevoestaremcondiçõesdevoltaràcidade

amanhã—elaolhouparacerti icar-sedequeMissOglanderhavia saído.— Esta gente tem sido muito bon-dosa, mas não fazem parte do meumundo.Euoschoco!E...bem...nãosimpatizocomabourgeoisie!—emsuaspalavrashaviaumlevetraçodeamargura.

— Compreendo — disse Poirot. — Espero não a ter fatigado emdemasiacomasminhasperguntas.

— De forma alguma,monsieur. Estou ansiosa para que Paul tomeconhecimentodosfatostãocedoquantopossível.

—Desejo-lheumbomdia,mademoiselle—dissePoirotdespedindo-seeia saindo quando indicou um par de delicados sapatos de cromo eperguntou:—Sãoseus,mademoiselle?

— São,monsieur. A criada acabou de trazê-los. Alguém os deve terlimpo.

— Ah... — fez Poirot quando descíamos as escadas. — Então osempregados não estão nervosos demais para limparem sapatos, emboranão tenham limpado a lareira. Bem,mon ami, a princípio acrediteiperceberalgunspontosestranhos,masreceioagoraquetenhamosdedarocasocomoencerrado.Tudomeparecebastanteclaro.

—Eoassassino?—HerculePoirotnão corre atrásdevagabundos—retrucouele com

arrogância.EncontramosMissOglandernovestíbulo.—Ossenhorespoderiamesperarumminutonasaladeestar?Mamãe

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gostariadelhesfalar.Oaposentoaindanãoforaarrumado,ePoirotdistraidamentejuntouas

cartaseasembaralhou,comsuasmãospequenasebemcuidadas.—Sabeoqueestoupensando,meuamigo?—Oquê?—pergunteiansioso.— Acho que Miss Oglander cometeu um erro em declarar uma sem

trunfo.Deveriaterditotrêsdeespadas.—Ora,Poirot!— Mon Dieu, não posso falar o tempo todo em sangue e mistérios

profundos!Mas meu amigo abandonou o ar brincalhão e subitamente animado

disse:—Hastings!Veja,estáfaltandooreidepausnestebaralho.—Zara!—exclamei.—Oquê?—elenãopareceucompreenderaminhaalusão.Arrumouas

cartasmecanicamente e guardou-as no estojo. Seu rosto estava sério.—Hastings—disse ele, inalmente—, eu, Hercule Poirot estive a ponto decometerumgraveerro.

Olheiparaele,impressionado,massemnadaentender.— Precisamos recomeçar, Hastings. Precisamos recomeçar.Mas desta

veznãoerraremos.Suas palavras foram interrompidas pela chegada de uma atraente

mulherdemeia-idade.Poirotfez-lheumainclinaçãorespeitosa.—AcasoosenhoréamigodeMissSaintClair?—Vimapedidodeumamigodela,madame.—Ah,compreendo.Penseique...Poirotindicou-lheasjanelas.—Asvenezianasnãoestavamdescidasontemànoite?—Não.Deve ter sidopor isso queMiss SaintClair viu as nossas luzes

comtantaclareza.—Havialuarontem.Doseulugaremfrenteàjanelaasenhoranãoviu

MissSaintClairseaproximando?— Estávamosmuito entretidos com o jogo, e nada semelhante jamais

noshaviaacontecido.—Acredito,madame,equerotranquilizá-la.MademoiselleSaintClairvai

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emboraamanhã.—Ah.—Orostodaboasenhoradesanuviou-se.—Desejo-lheumbomdia,madame.Uma criada limpava os degraus quando passamos pela porta. Poirot

dirigiu-seaela:—Foivocêquemlimpouossapatosdajovemqueestáláemcima?Amoçasacudiuacabeça.—Não,senhor.Nãocreioquetenhamsidolimpos.—Quemoslimpouentão?—pergunteiaPoirotenquantodescíamosa

estrada.—Ninguém.Elesnãoestavamsujos.—Concordoquenão icariamenlameados se tivessemsidousadosna

estradanumanoitedebomtempo.Masdepoisdeatravessaraquelelongotrechoderelvaaltaentreasárvores...

— É, neste caso deveriam mesmo estar sujos — e Poirot deu umestranhosorriso.

—Mas...—Meuamigo,tenhaumpoucodepaciência.VamosvoltaraMonDésir.O mordomo pareceu surpreso ao nos ver retornar, mas não fez

nenhumaobjeçãoaquevoltássemosàbiblioteca.— Ei, a janela não é esta, Poirot— exclamei quando o vi dirigir-se à

fachadadafrente.— Pois penso o contrário, meu amigo. Olhe aqui — e ele indicou a

cabeça do leão de mármore. Percebi uma pequena mancha desbotada.Poirot apontou para uma mancha semelhante no assoalho encerado. —AlguémacertouumsocoentreosolhosdeRedburn.Estecaiuparatrás,eseucrânio chocou-se comobraçodemármore, e eleescorregouao chão.Depoisarrastaram-noatéaoutra janelaeodeixaramlá,masnumângulodiferente,comonosexplicouomédico.

—Masporquê?Nãovejoafinalidadedestamudança.—Pelocontrário,eraessencial,econstituiachaveparaaidentidadedo

assassino.Masnãodevíamosdar-lheesteró-tulo,poisnãoteveaintençãodematarRedburn.Devetersidoumhomembastantevigoroso!

—Porterarrastadoocorpoatravésdasala?—Pormaisdoqueisso.Estefoiumcasomuitointeressante,emboraeu

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tenhameconduzidocomoumimbecil.—Estáinsinuandoquejásabedetudo,eocasoestáencerrado?—Estou.Umdetalhemeveioàmente.—Aindanão!—exclamei.—Háumacoisaquevocênãosabe!—Eoqueé?—Ondeestáoreidepausquefaltavaaobaralho.—Estatemgraça,meuamigo.—Porquê?—Por que ele está aqui no meu bolso! — e apresentou-o como num

passedemágica.—Ah—fizeumeiodesapontado.—Ondevocêoencontrou?Aqui?— Não há nada de sensacional nessa descoberta. A carta fora

simplesmenteesquecidadentrodoestojo.—Emesmoassim,forneceu-lheumapista,nãofoi?—Éverdade,meuamigo.DevomeusagradecimentosasuaMajestade!—EaMadameZara.—Ah,sim.Aestasenhora,também.—Bem,quefaremosagora?—Vamos voltar à cidade.Mas primeiro preciso trocar umas palavras

comumacertasenhoradeDaisymead.Amesmacriadinhaabriu-nosaporta.— Estão todos almoçando agora. A menos que queira ver Miss

SaintClair,queestárepousando.—GostariadefalarcomMrs.OglanderalgunsminutosQuerchamá-la?Elanosconduziuàsaladeestar.Aopassarpelasaladerefeições, tive

umarápidavisãoda família,agoraacrescidadapresençadedoishomensforteseatarracados,umdebigodeeooutrobarbado.

EmpoucosminutosMrs. Oglander veio ao nosso encontro. Havia umaperguntaemseusolhos.

Poirotinclinou-se.—Madame, temos um grande respeito pelasmães, em nosso país.La

mèredefamille,elaéabasedetudo!

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Mrs.Oglanderficouespantadacomessaintrodução.—Éporestarazãoqueestouaqui,paratranquilizarumamãea litaO

assassino de Mr. Redburn não será descoberto, não tenha receio. Eu,Hercule Poirot, lhe asseguro. Estou certo, não estou? Ou acaso será aesposaquecumpretranquilizar?

Houveumpequenosilêncio.Mrs.Olganderdirigiuumolharpenetrantea Poirot, tentando avaliá-lo. Finalmente disse num tom baixo:— Não seicomodescobriu,masestácerto.

Poirotbalançouacabeça,muitosério.—É tudo,madame.Não tenha receio, os policiais ingleses não têm os

olhos de um Hercule Poirot — e indicando um retrato na parede,perguntou:—Asenhorateveduasfilhasmadame.Aoutraestámorta?

Houve uma nova pausa, enquanto ela o itava. Finalmente respondeu:—Sim,elamorreu.

— Ah! — fez Poirot e acrescentou: — Bem, precisamos voltar aLondres. Permita-me devolver-lhe este rei de paus do seu baralho. Foi aúnica falha da encenação. Sabe, ninguém acreditaria que teriam podidojogarporquaseumahorasócomcinquentaeumacartas!Bonjour.

— E agora, meu amigo — disse-me Poirot enquanto nos dirigíamosapressadosparaaestação—,jádescobriutudo,não?

—Nãodescobrinada!QuemmatouRedburn?—JohnOglanderJúnior.Nãosabiaaocertoseforaopaiouo ilho,mas

inclinava-meparao ilho,porseromaisjovememaisfortedosdois.Tinhaqueserumdeles,porcausadajanela.

—Porquê?—Haviaquatro saídasdabiblioteca: duasportas e duas janelas. Três

dessas saídas davam para a frente, direta ou indiretamente. Era precisofazer acreditar que a tragédia ocorrera na janela dos fundos, para dar aimpressão de que fora o acaso que impelira Valerie SaintClair paraDaisymead. Na realidade ela desmaiou, e John Oglander carregou-a nosombrosFoiporissoqueeudissequeeledeveriaserumhomemforte.

—Entãoosdoisvieramjuntos?—Vieram.Lembra-sedahesitaçãodeValeriequandolhepergunteise

nãotiverareceiodevirsó?JohnOglanderaacompanhou,oquenãodevetermelhorado emnada a disposição deRedburn. Eles discutiram e devetersidoalguminsultodirigidoaValeriequefezOglanderagredi-lo.Oresto,

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vocêjásabe.—Masporqueobridge?— São necessárias quatro pessoas para jogar bridge, Um fato óbvio

como esse é muito convincente. Ninguém imaginaria que só havia trêspessoasnaquelasalanaquelanoite.

Euaindaestavaintrigado.—Há um fato que não entendo. O que têm os Oglander a ver com a

bailarinaValerieSaintClair?—Ora,admira-mequenãotenhadescobertodepoisdeterolhadotanto

tempo aquele retrato na parede,mais tempo do que eu. A outra ilha deMrs. Oglander pode estarmorta para a família, mas omundo a conhececomoValerieSaintClair!

—Oquê?—Nãonotouasemelhançaquandoviuasduasirmãsjuntas?—Não—confessei.—Sópenseiquãoextraordinariamentediferentes

elaseram.—A suamente se deixa in luenciarmuito por impressões externas e

românticas,meucaroHastings.Ostraços isionômicosdasduassãoquaseidênticos,assimcomoacordapeleedoscabelos.OfatointeressanteéqueValerieseenvergonhatantodesuafamíliaquantoestadela.Apesardessefato, num momento de perigo, ela recorreu ao irmão. E quando osacontecimentos se complicaram, todos se mantiveram coesos, numamaravilhosaunião.Oslaçossanguíneossãomuitofortes,enaquelafamíliatodos são capazes de representar. É daí que Valerie herdou seu talentodramático. Como o príncipe Paul, também acredito em hereditariedade!Elesconseguiramenganaratéamim!SenãofosseporumfelizincidenteeporumarespostadeMrs.Oglanderemquecontradissesua ilhaquantoasua posição namesa do jogo, a família Oglander teria derrotado HerculePoirot!

—Oquediráopríncipe?— Que Valerie não poderia ter cometido o crime, e que duvido que

possam localizar o assaltante. Pedir-lhe-ei que apresente meuscumprimentosaZara.Quecoincidênciacuriosa!Pensoqueintitulareiestecasode“AAventuradoReidePaus”.Queacha,meuamigo?

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AMaldiçãodosLemesurier

EmcompanhiadePoirot, tenhoseguidoa investigaçãodemuitoscasosestranhos, mas nenhum se compara àquela espantosa série deacontecimentos que atraiu nosso interesse por um período de anos, atéculminar no problema apresentado a meu amigo. A primeira vez queouvimos falar na história da família Lemesurier foi durante a guerra.Poirot e eu reencontráramo-nos há pouco e rememorávamos os velhostempos da nossa amizade na Bélgica. Ele acabara de resolversatisfatoriamenteumapequenaquestãoparaoMinistériodaGuerra,enósestávamos jantando no Carlton com uma alta patente que fez osmaioreselogiosaPoirotdurantearefeição.O igurão tevequesair logoparaumareuniãocomcolegasdefarda—enquantonósterminamosnossocafécomtranquilidade.

Íamos deixando o restaurante, quando ouvi uma saudação numa vozfamiliar.Voltei-meevioCapitãoVincentLemesurier,umo icialjovemqueconhecera na França. Estava em companhia de um homem mais velho,muito parecido com ele e evidentemente da mesma família, que nos foiapresentadocomoMr.HugoLemesurier,tiodomeujovemamigo.

Na verdade não conhecia intimamente o Capitão Lemesurier, mas oconsiderava um camarada jovial e agradável, de um temperamento algosonhador.Lembrei-medeterouvidoquepertenciaaumavelhaedistintafamília, que possuía propriedades em Northumberland desde antes daReforma. Poirot e eu não estávamos com pressa, e a convite do jovem,sentamos à mesa de nossos dois novos amigos e batemos um papoagradável sobre diversos assuntos. O mais velho era um homem de unsquarentaanos,deombroscaídos,testainteligente,quenaépocadedicava-seapesquisasquímicasparaogoverno.

Nossa conversa foi interrompida por um jovem alto emoreno que sedirigiuànossamesa.Suaagitaçãoeraevidente.

—GraçasaDeus,euosencontrei!—eleexclamou.—Oqueaconteceu,Roger?— Trata-se de seu pai, Vincent. Teve uma queda feia daquele potro

novo — o resto ele explicou a uma pequena distância onde os dois o

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haviamseguido.Logoapósosdoisamigossedespediramapressadamentedenós.Opai

de Vincent Lemesurier sofrera um sério acidente enquanto domava umcavalo novo e não deveria sobre-viver às primeiras horas da manhã.Vincenthaviaperdidotodaacor,epareciacompletamenteatordoadopelanotícia. De certa forma, iquei surpreso, pois pelas poucas palavras quetrocáramos sobreo assuntona França, icara-me a impressãodeque elenãoeramuitochegadoaopai,eassimsuasatuaisdemonstraçõesdeamorfilialmeespantaram.

O jovem alto que nos fora apresentado como um primo, Mr. RogerLemesurier,nãoosacompanhou,ecomentoudirigindo-seameuamigo:—Éumcaso curioso, este, e talvez interessasse aM.Poirot. Já ouvi falarnosenhor,porHigginson.—(Higginsonerao igurãoquenosconvidaraparajantar).—Disse-mequeosenhoréummonstroempsicologia.

— A psicologia me interessa, é verdade — admitiu meu amigo comcautela.

—Viu a expressãodemeuprimo?Ele icou completamente arrasado,não icou?E sabeporquê?Por causadeumaantigamaldiçãode família.Gostariadeouvi-la?

—Comonão!Conte-nos,porfavor.RogerLemesurierconsultouorelógio.— Tenhomuito tempo ainda. Devo encontrá-los na estação de King’s

Cross. Bem,M. Poirot, os Lemesurier são uma velha família que data dostemposmedievais. Nessa época, um Lemesurier suspeitou da virtude desuamulher, por tê-la encontrado em uma situação comprometedora. Elajurou inocência, mas o velho Barão Hugo não quis dar-lhe ouvidos. Elatinhaum ilho, e ele jurouqueomeninonão seria seuherdeiro,poisnãoeraseu ilho.Nãomelembrodoquefez,provavelmentealgumaagradávelinvençãomedieval comoem-paredarvivosmãee ilho.Bem,dequalquerforma os matou, e ela morreu protestando inocência e amaldiçoando osLemesurier para sempre. Nenhum ilho primogênito jamais herdaria aspropriedades, assim reza a maldição. O tempo passou e icou provado,acima de qualquer dúvida, que a dama estava inocente. Parece que o talHugoentrouparaummosteiroeusouumcilícioempenitênciaatéo imdeseus dias. Mas o fato curioso é que, desde aqueles tempos, nenhumprimogênito realmente herdou os bens da família. Esses passaram aoutros, irmãosmaisnovos,sobrinhos,tios,nuncaaumpri-mogênito.Opai

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deVincenteraosegundodecinco irmãos,omaisvelhotendomorridonainfância.Vincentacreditavaqueestavadestinadoamorrernaguerra.Mascoisaestranha,seusdoisirmãosmaisnovosfalecerameeleescapouileso.

— Uma interessante história de família — disse Poirot pensativo. —Masagoraopaiestáàmorte,eele,ofilhoprimogênito,seráoherdeiro...

— Exatamente. Uma velha maldição perdeu a força, incapaz desobreviveraosrigoresdavidamoderna.

Poirot sacudiu a cabeça, como se reprovasse o tom jocoso de nossocompanheiro. Lemesurier consultou novamente o relógio e declarou queprecisavairembora.

Namanhã seguinte, ao sabermos damorte trágica do Capitão VincentLemesurier,vimosqueahistórianãohavia terminado.EleseguiraparaonortepelotrempostaldaEscócia,eduranteanoitedeveterabertoaportade sua cabina e se atirado sob as rodas. O choque do acidente ocorridocom o pai, somado à sua neurose de guerra, deve ter provocado umatemporária privação de sentidos. Novamente veio à baila a curiosasuperstição da família, pois o novo herdeiro, o irmão de seu pai, RonaldLemesurier, já havia perdido o ilho mais velho na França durante aguerra.

SuponhoquenossoencontroacidentalcomojovemVincentnavésperade sua morte tenha despertado nosso interesse por tudo que serelacionasse à família Lemesurier, e dois anos mais tarde soubemos dofalecimento de Ronald Lemesurier, que já era um inválido na época emque herdara as propriedades. Seu irmão John o sucedeu, um homemvigorosoesaudávelcomumfilhoemEton.

CertamenteumdestinocruelperseguiaosLemesurier.Logonasfériasseguintesomeninomatou-seacidentalmentecomumtirodecarabina.Eamortesúbitadopai,apósapicadadeumaabelha,passouoespólioaomaisnovo dos cinco irmãos, Hugo, que conhecêramos naquela noite fatal nuHotelCarlton.

Atéentãonãonosenvolvêramospessoalmentecomafamília,apesardecomovidos com a extraordinária série de infortúnios que perseguiam osLemesurier, mas a ocasião em que tomaríamos uma parte ativa nosacontecimentosaproximava-se.

Certamanhã,umaMrs.Lemesuriernosprocurou.Eraumamulheralta,deuns trinta anosde idade, quedava a impressãodeum temperamentodecididoebastantebomsenso.Falavacomumlevesotaqueamericano.

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—ÉM.Poirot?Tenhomuitoprazer emconhecê-lo.Meumarido,HugoLemesurier,foi-lheapresentadohámuitosanos,masémuitoprovávelquenãoserecorde.

—Recordo-meperfeitamente,madame.FoinoCarlton.— Sua memória é surpreendente, M. Poirot. Eu estou muito

preocupada.—Qualéomotivo,madame?—Meu ilhomaisvelho.Tenhodoismeninos:Ronalddeoito, eGerald

deseis.—Prossiga,madame.PorqueestápreocupadacomopequenoRonald?—M.Poirot,nosúltimosseismeseseleescapoudemorrertrêsvezes:a

primeira por afogamento, quando estávamos na Cornualha no verão; asegunda quando caiu da janela de seu quarto, e a terceira porenvenenamentoporptomaína.

TalvezorostodePoirotdeixassetransparecerseuspensamentos,poisMrs.Lemesurieracrescentouimediatamente:

— Naturalmente está pensando que sou uma mulher tola, dada afantasias,eexagerada.

— Não, madame. Qualquer mãe icaria perturbada por essasocorrências,mas não vejo como posso ajudá-la. Não sou le bon Dieu paracontrolarosmares,maspoderia sugeriralgumasbarrasparaa janeladoquarto.Quantoàcomida,oquesepodecompararaoscuidadosmaternos?

—MasporquetudoissoaconteceuaRonaldenãoaGerald?—Asorte,madame.Lehasard!—Acreditanisso?—Oquepensamasenhoraeseumarido,madame?UmasombratoldouorostodeMrs.Lemesurier.—NãoadiantarecorreraHugo.Elenãomedáouvidos.Comotalvezo

senhor saiba, existe uma maldição sobre a família: nenhum ilhoprimogênitoherdaráaspropriedades.Hugoacreditanisso, estáobcecadopela história da família e é supersticioso até o último grau. Quando lheexponhomeusreceios,eledizqueéamaldição,quenãoescaparemosdela.Mas eu sou americana, M. Poirot, e por aqueles lados não damos muitocrédito a superstições. Não nego que dão um certocachei a uma famíliaantiga,detradições.Eueraatriz,comumpapelsecundárionumacomédia

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musical, quando Hugo me conheceu. Naquele tempo achei deliciosa essahistória de maldição de família. É um ótimo assunto para animar aconversa num serão de inverno, mas quando se trata de meus própriosfilhos...Euadoromeusfilhos,fariaqualquercoisaporeles.

—Entãonega-seaacreditarnestalendafamiliar,madame?—Acasoumalendapodeserraroscaulesdeumahera?— O que está dizendo? — exclamou Poirot com uma expressão de

grandesurpresanorosto.— Perguntei se uma lenda, ou um fantasma, se preferir, pode serrar

caules de hera.Nada posso a irmar sobre a Cornualha, qualquermeninopode se arriscardemais e se colocarnuma situação embaraçosa, emboraRonaldsaibanadardesdeosquatroanos.Masahera,édiferente.Osmeusdois meninos são muito levados. Descobriram que podem subir ao seuquartodo segundoandarpelahera, e estão sempre repetindoa façanha.Um dia, Gerald estava fora, Ronald foi escalar a paredemais uma vez, ahera cedeu e ele caiu. Feliz-mente não se feriu gravemente. Mas resolviinvestigaredescobriquealguémserraraoscaules—deliberadamente!

—Émuitosériooqueestámedizendo,madame.Dissequeoseu ilhomaismoçoestavaforanaocasião?

—Estava.—Enaépocadaintoxicaçãoalimentar,eletambémestavafora?—Não,osdoisestavamemcasa.— Curioso — murmurou Poirot. — Diga-me, madame, quais são os

outrosmoradoresdesuapropriedade?— A governanta das crianças. Miss Launders, e o secretário de meu

marido, John Gardiner... — Mrs. Lemesurier hesitou, como se estivesseligeiramenteembaraçada.

—Equemmais,madame?— O Major Roger Lemesurier, que o senhor também deve ter

conhecidonaquelanoite.Elapassalongastemporadasconosco.—Ah,sim...Eleéprimodeseumarido,nãoé?— Um primo distante. Não pertence ao nosso ramo da família. Mas

suponho que agora seja o parente mais próximo de meu marido. É umótimocamarada,etodosnósgostamosmuitodele.Osmeninosoadoram.

—Nãofoielequemosensinouasubirpelahera?

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— Pode ter sido. Ele costuma instigá-los a travessuras, com bastantefrequência.

— Madame, peço-lhe desculpas por minhas palavras anteriores. Operigoéreal,eacreditoquepossaauxiliá-la.Proponhoquenosconvideapassarunsdiasemsuacasa.Seumaridonãofaráobjeções?

—Oh,não.Sódiráquedenadaadiantará.Ficofuriosadevê-loesperarsentadoamortedemeufilho.

—Acalme-se,madame.Faremosnossospreparativoscommétodo.No dia seguinte viajamos para o norte. Poirot estava imerso em seus

pensamentos.Subitamentedisse-me:—FoideumtremsemelhanteaestequeVincentLemesuriercaiu?Eledeuumacertaênfaseao“caiu”.—Suspeitadeumcrime,poracaso?—perguntei.— Já lhe ocorreu que algumas dessas mortes da família Lemesurier

podem ter sido planejadas, Hastings? A de Vincent, por exemplo, e a dogaroto de Eton também. Há um elemento equívoco em todo acidente porarma de fogo. Se essa criança tivesse caído da janela do seu quarto emorrido, seria mais um acidente plausível, que não levantaria suspeitas.Masporque sóumadas crianças,Hastings?Quem lucra comamortedoilho primogênito? Seu irmãomais novo, uma criança de seis anos. É umabsurdo!

— Eles pretendemmatar o outromais tarde— sugeri, sem amenorideiadequemfossemesses“eles”.

Poirotsacudiuacabeça,comoseaideianãoosatisfizesse.—Envenenamentoporptomaína—murmurou.—Atropinaproduzos

mesmossintomas.É,anossapresençasefaznecessária.Mrs.Lemesurieracolheu-noscomentusiasmo,levou-nosaogabinetedo

marido, e nosdeixou a sós. Elemodi icara-sebastantedesde a vezqueovíramos.Suascostas

estavammais curvadas que nunca e o rosto tinha uma cor doentia eacinzentada.OuviuemsilêncioPoirotexplicaromotivodenossapresençaemsuacasa.

— É bem típico do espírito prático e do bom senso de Sadie! —comentou ele inalmente.—Peço-lhe que ique,M. Poirot, e agradeço-lhesuavinda,masoqueestáescrito,estáescrito.Asendadopecadoréárida;nós,osLemesurier,sabemosdissobem.Nenhumdenóspodeescapardo

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destino.Poirot mencionou a hera serrada, mas Hugo não pareceu

impressionado.—Devetersidoalgumjardineirodescuidado.Sim,podeterhavidoum

instrumentohumano,masfoiamãododestinoqueomanejou.Evoudizer-lhemais,M.Poirot,elanãopoderáserdetidapormuitotempomais.

Poirotolhou-ocomatenção.—Porquedizisso?—Porque eu próprio estou condenado. Fui aomédico o ano passado.

Sofro de uma doença incurável, e o im está próximo. Mas antes que eumorra,Ronaldserádestruído.Geraldseráomeuherdeiro.

—Eseaconteceralgumacoisatambémaseufilhomaisnovo?—Nadalheacontecerá.Elenãoestáameaçado.—Masseacontecer?—insistiuPoirot.—MeuprimoRogerseráopróximoherdeiro.Fomos interrompidos. Um homem alto, com um belo ísico e cabelos

ruivosentroucomummaçodepapéis.—Vamosdeixaristoparadepois,Gardiner—disseHugoLemesuriere

acrescentou:—Meusecretário,Mr.Gardiner.Osecretáriocumprimentou-nos,dissealgumaspalavrasamáveisesaiu.

Apesardesuabelaestampa,haviaalgorepelentenohomem.Comuniqueiessa impressão a Poirot logodepois, quandopercorríamos o belo parquejuntos,eparaminhasurpresa,eleconcordou.

— Também acho, Hastings. Não gosto dele, é excessivamente bonito.Pareceumhomempoucoafeitoaotrabalhopesado.Ah,aívêmascrianças.

Mrs.Lemesurierseaproximavacomseus ilhos.Erambelosmeninos,omais novo moreno como a mãe, e o mais velho de cabelos ruivos.Cumprimentaram-nospolidamentee

logo se mostraram encantados com Poirot. Em seguida fomosapresentadosaMissSaunders,umamulherinsigni icante,quecompletavaogrupo.

Durante algunsdias levamosumaexistência fácil e agradável, semprevigilantes, mas sem obter resultados. Os meninos continuavam sua vidaativa e normal, e nada parecia fora dos eixos. No quarto dia de nossaestada, o Major Roger Lemesurier chegou. Pouco mudara, ainda era o

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camaradafolgazãoedescontraídodosvelhostempos,comomesmohábitode não levar as coisas a sério. Sua popularidade com osmeninos, que oreceberam com gritos de prazer, era evidente. Imediatamente o levarampara brincar de mocinho no jardim. Percebi que Poirot os seguiu,disfarçadamente.

Nodiaseguinte, fomostodosconvidados, inclusiveascrianças,atomarchá comLady Claygate, cuja propriedade era vizinha à dos Lemesurier.Mrs.Lemesuriersugeriuquetambémosacompanhássemos,maspareceualiviadaquandoPoirotdeclinouoconvite,declarandoquepreferiaficaremcasa.

Quando todos saíram, Poirot começou sua tarefa, fazendo-me lembrarum terrier inteligente. Penso que não houve nenhum canto da casa quenão fosse revistado,mas sem estardalhaço e com tantométodo que seusmovimentos não atraíram a atenção. Mas no inal da tarde era evidenteque continuava insatisfeito. Tomamos chá no terraço comMiss Saunders,quenãoforaincluídaentreosconvidados.

—Osmeninosdevemestarsedivertindo—disseelaemseutomisentodequalquervibração.—.Sóesperoqueseportembem,nãoestraguemoscanteiros,nemcheguempertodasabelhas.

Poirot icouparalisado,comaxícaraaoslábios.Pareciaumhomemqueviraumfantasma.

—Abelhas?—perguntouelenumavozrouca.— Abelhas, sim, M. Poirot.Lady Claygate temmuito orgulho das suas

colmeias.—Abelhas!—exclamouPoirotoutravez,elevantando-senumímpeto,

começou a andar de um lado para outro no terraço, com as mãos nacabeça.Eunãopodia imaginarporqueohomenzinho icara tãoagitadoàsimplesmençãodeabelhas.

Naquele instanteouvimosoruídodocarroretornando.Poirotrecebeuogruponaescadaria.

—Ronaldfoipicadoporumaabelha!—exclamouGerald.— Não foi nada— disse Mrs. Lemesurier.— Nem ao menos inchou.

Esfregamosamônianolocal.—Deixe-mever,meurapaz—dissePoirot.—Ondefoi?—Aqui,nopescoço—disseRonald, todo importante.—Masnãoestá

doendo nada. Papai me disse: “Fique quieto, há uma abelha em seu

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pescoço”. E eu iquei, e ele tirou a abelha, mas antes ela me mordeu,pareceuumaal inetada.Masnãochorei,porquejásougrandeevouparaaescolanoanoquevem.

Depoisdeexaminaropescoçodacriança,Poirotpegou-mepelobraçoemurmurou:

—Esta noite temos um trabalho a realizar, monami. Não diga nada aninguém.

Elerecusou-seasermaiscomunicativoepasseioserãodevoradopelacuriosidade.Retirou-se cedo, e segui seu exemplo. Enquanto subíamos asescadas, elemepegoupelobraçoedeu-me instruções:—Não troquederoupa.Esperealgumtempo,apaguealuzeencontre-meaqui.

Obedeci, e encontrei-o à minha espera, quando chegou o momentocombinado. Com um gesto ele impôs-me silêncio, e esgueiramo-nossorrateiramente pela ala das crianças. Ronald ocupava sozinho umpequeno quarto. Entramos e icamos a postos no canto mais escuro. Arespiraçãodacriançaeraregular.Pareciaprofundamenteadormecida.

—Osonodelenãolheparecemuitopesado?—murmurei.Poirotfezummovimentoafirmativo.—Narcotizado—sussurrou.—Porquê?—Paranãogritarquando...—Quandooquê?—pergunteiaovê-localar-se.— Quando o espetarem com a agulha de injeção,mon ami! Agora

quieto, não vamos falar mais, embora ache que os acontecimentos aindavãodemorar.

Maseleestavaerrado.Menosdedezminutosdepois, aporta seabriusuavemente e alguém entrou no quarto. Ouvi o arfar de uma respiraçãoacelerada.Passosdirigiram-separaacamaeouvimosumestalido.Aluzdeuma pequena lanterna focalizou a criança adormecida. A pessoa que aempunhavaaindaestavainvisívelnassombras.Ovultocolocoualanternaemposiçãosobreacama.Umaseringahipodérmicaapareceuemsuamãodireita,enquantoaesquerdaseguravaopescoçodomenino.

Poirot e eu saltamos sobre ele nomesmominuto. A lanterna rolou aochãoelutamoscomointrusonoescuro.Suaforçaeraextraordinária,masfinalmenteconseguimosdominá-lo.

— A lanterna, Hastings — pediu Poirot. — Preciso ver seu rosto,

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emborareceiesaber,atébemdemais,quemeleé!Tambémsei,penseienquantoprocuravaoobjetocomopé.Poralgum

tempo suspeitara do secretário, levado pela antipatia que me inspirara,masagoraestavacertodequeomonstroquesegurávamoseraohomemquesetornariaherdeirocomamortedossobrinhos.

Meupéchocou-secomalanterna.Apanhei-aeacendialuz,eviorostode Hugo Lemesurier, o pai domenino! Chocado, quase deixei a lanternacair.

—Éimpossível!—murmureicomvozrouca.—Éimpossível!Lemesurier estava inconsciente. Poirot e eu o carregamos para o seu

quarto e o deitamos na cama. Poirot debruçou-se sobre ele e retirou umobjetodesuamãodireita.Eraumaseringa.Euestremeci.

—Oqueelacontém?Veneno?—Creioqueéácidofórmico.—Ácidofórmico?— É, obtido provavelmente de formigas. Ele é químico, lembra-se? A

mortedomeninoseriaatribuídaàpicadadaabelha.—MeuDeus!—murmurei.—Seuprópriofilho!Vocêsabia?—Sabia.Eleestá louco,naturalmente.Ahistóriadafamíliadeveter-se

tornado uma obsessão para ele. Sua grande ambição de herdar aspropriedadeslevaram-noacometerumasériedecrimes.ÉpossívelqueaideiatenhalheocorridonaquelaviagemdetremparaonortecomVincent.Elenãopode suportar ver amaldição cairpor terra.O ilhodeRonald jáhavia morrido, e o próprio Ronald era quase um moribundo, pois elesconstituem uma raça débil. Hugo preparou o acidente com a arma eprovocou a morte do irmão por esse mesmo método de injetar ácidofórmiconaveiajugular.Realizouassimsuasambiçõesetornou-seosenhordas terras da família. Mas seu triunfo foi curto! Descobriu que sofriadeuma doença incurável. E tinha a ideia ixa do louco: o primogênito deum Lemesurier não podia herdar! Descon io que o menino quase seafogou por sua causa. Deve ter encorajado o ilho a se afastar da praia.Quandoissofalhou,eleserrouahera,emaistardeenvenenouacomidadacriança.

—Diabólico!—murmurei.—Etãohabilmenteplanejado!— Mon ami, nada há mais surpreendente que a extraordinária

acuidade dos loucos, a não ser a extraordinária excentricidade dos sãos!

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Penso que só nos últimos tempos ele tenha perdido completamente ocontrole.Inicialmentehaviamétodoemsualoucura.

—EpensarquesuspeiteideRoger,aqueleótimosujeito!— Era a dedução lógica,mon ami. Sabíamos que também viajara com

Vincentnaquelanoiteequeeraopróximoherdeirona linhadesucessão,depoisdeHugoede seusdois ilhos.Masos fatosnão con irmavamessahipótese.AheraforaserradaquandosóopequenoRonaldseencontravaemcasa,eeradointeressedeRogerqueasduascriançasmorressem.Damesma forma, só a comida de Ronald fora envenenada. E hoje, quandochegaram em casa, percebi que só tínhamos a palavra do pai paracorroborar o fato de que uma abelha picara o menino. Lembrei-me daoutramorteprovocadaporumaabelha,edescobriaverdade!

Hugo Lemesurier morreu alguns meses depois num sanatório dedoenças mentais no qual fora internado. Sua viúva tornou a casar-se noanoseguintecomMr. JohnGardiner,osecretárioruivo.Ronaldherdouasextensaspropriedadesdopai,eéhojeumsaudáveladolescente.

— Bem, bem — comentei com Poirot —, outra ilusão perdida. VocêprovouafalsidadedamaldiçãodosLemesurier.

— Tenho minhas dúvidas — disse Poirot pensativo. — Tenho sériasdúvidas.

—Aqueserefere?—Monami,responder-lhe-eicomumaúnicapalavra:vermelho.—Sangue?—pergunteieminhavozeraummurmúriodehorror.—Masqueinclinaçãoparaomelodramatemvocê,Hastings!Re iro-me

aalgomuitomaisprosaico,àcordoscabelosdopequenoRonald.

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AMinaPerdida

Largueimeutalãodechequescomumsuspiro.—É uma coisa curiosa— comentei—mas não consigo fechar omês

comumsaldo!— E isso não o perturba? Se eu estivesse nessa situação não

conseguiriapregarosolhosanoiteinteira—declarouPoirot.—Suponhoquedevaterumsaldotranquilizador!—retruquei.— Quatrocentos e quarenta e quatro libras, quatro xelins e quatro

penies — disse Poirot num tom complacente. — Um belo número, nãoacha?

—Ogerentedobancodeve serumhomemde tato. Provavelmente jápercebeusuapaixãopelasimetria.Quetalachadeinvestirumastrezentaslibrasdessaquantianos cam-pospetrolíferosdaPocurpineCompany?Osjornais de hoje anunciam que pagarão cem por cento de dividendos nopróximoano.

—Istonãoéparamim—dissePoirotsacudindoacabeça.—Nãogostode coisas sensacionais. Pre iro investimentos prudentes: les rentes, ostítulosdogoverno,açõesseguras.

—Nuncafezuminvestimentoemqueentrasseofatorjogo?—Não,monami—dissePoirotcomseveridade—,eunão.Easúnicas

açõesquepossuoquenãosãototalmenteconservadoras,sãoquatorzemilcotasdeparticipaçãodasMinasdeBurma,Ltda.

Poirot deteve-se com um ar de quem queria ser encorajado aprosseguir.

—Comoascomprou?—perguntei.—Nãomecustaramumtostão.Foramumarecompensapelobomuso

deminhaspequenascélulascinzentas.Gostariadeouvirahistória?—Naturalmente.—Essasminas estão situadasno interior deBurma, a umasduzentas

milhas para o interior deRangoon. Foramdescobertas pelos chineses noséculo quinze e exploradas até o tempo da rebelião maometana, sendoinalmenteabandonadasnoanode1868.Oschinesesextraíramominério

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ricoemchumboeprata,fundindo-oparaobteraprataedeixandograndesquantidades de ganga rica em chumbo. Isto foi logo descoberto pelostrabalhos de prospecção,mas como as velhas galerias estavam cheias dedetritosehaviamsido inundadas, todasas tentativasdeencontraro ilãoprincipal foram infrutíferas. Uma grande área foi explorada, semresultados. Mas o representante de um dos sindicatos de mineraçãodescobriuapistadeumafamíliachinesaqueteriaconservadoumregistrodalocalizaçãodamina.Ochefedafamílianaocasiãochamava-seWuLing.

—Quepáginafascinantederomancemercantil!—exclamei.—Nãoé?Monami,podeexistirromancesemapresençadebelíssimas

moçasdecachosdourados...Ah,não,estouenganado.Oqueo fascinasãoascabeleirasruivas!Lembra-se...

—Continueahistória—disseeudepressa.—Ehbien,meuamigo,conseguiramlocalizaressetalWuLing.Eraum

prósperomercador,muitorespeitadonaprovínciaondevivia.Admitiulogoquepossuíaosdocumentoseestavadispostoanegociarsuavenda,massóentraria em entendimentos com os chefões. Finalmente icou combinadoque ele viajaria para a Inglaterra para encontrar-se com os diretores deumaimportantecompanhia.

WuLingviajouparaa Inglaterra abordodo S. S.Assunta queatracouem Southampton numa fria e enevoada manhã de novembro. Um dosdiretores,Mr.Pearson,foiaocaisesperaronavio,masdevidoaonevoeiroseutrematrasou-seequandochegouWuLingjádesembarcaraeseguirapara Londres num trem especial. Mr. Pearson voltou à cidade um tantoaborrecido,poisnãotinhaideiaondeochinêspretendiasehospedar.Maistarderecebeuumtelefonema.WuLingestavanoRusselSquareHotel,nãose sentiamuito bem após a viagemmas comprometia-se a comparecer àreunião da diretoria no dia seguinte. A reunião principiou às onze horas.Quando bateu onze emeia eWu Ling ainda não aparecera, a secretáriatelefonouparaoRusselHotel, informaram-lhequeochinêssaíracomumamigo por volta das dez emeia. Parecia evidente que seu propósito foracomparecer à reunião,mas a tarde se escoou sem que tivessem notíciasdele. Era possível que se tivesse perdido, pois não conhecia Londres.Quando a noite chegou e Wu Ling não retornara ao hotel, Mr. Pearson,alarmadíssimo, procurou a polícia. Um dia se passou sem queencontrassem vestígios do homem desaparecido, mas na tarde seguinteapareceuboiandonoTâmisaumcorpoquefoi

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identi icadocomosendoodo infortunadochinês.Ospapéis relativosàminanãoforamencontradosnocorpo,nemnabagagemdohotel.

A essa altura,Mr. Pearson procurouminha ajuda, e embora estivesseprofundamentechocadopelamortedeWuLing,seuobjetivoprincipalerarecuperar os documentos que haviam ocasionado a ida do chinês àInglaterra.Jáametaprimordialdapolíciaeradescobriroassassino,sendoarecuperaçãodospapéisumapreocupaçãosecundária.OqueMr.Pearsondesejava de mim era que cooperasse com a polícia, ao mesmo tempoagindonointeressedacompanhia.

Concordeiprontamente.Dois camposdepesquisas se abriamàminhafrente.Deumlado,osempregadosdacompanhiaqueestavamcientesdavinda do chinês, e de outro, os passageiros do navio que poderiam terdescoberto a inalidade de sua viagem. Comecei por esses últimos, queeramemmenornúmero.Nistoasminhasdeduçõescoincidiramcomasdoinspetor Miller, que estava encarregado do caso — um homem muitodiferente do nosso amigo Japp, convencido, grosseiro; em suma,insuportável. Juntos interrogamos os o iciais do navio. Tinham pouco adizer. Wu Ling mantivera-se muito reservado durante a viagem, sótravando relações com dois passageiros: um europeu decaído chamadoDyer, que tinhama reputação, e com Charles Lester, um jovem bancárioquevoltavadeHongKong.Tivemosa sortedeobteruns instantâneosdeambos. No momento, tudo parecia indicar que se algum dos dois estavaenvolvido, deveria ser Dyer. Era fato notório quemantinha relações comumagangdeescroqueschineses,sendopoisumsuspeitomuitoprovável.

Nosso próximo passo foi fazer uma visita ao Russel Square Hotel.Reconheceram logo o instantâneo deWu Ling,mas quandomostramos oretrato de Dyer, o recepcionista declarou enfaticamente, para nossodesapontamento,queaquelenãoeraohomemqueprocuraraochinêsnamanhã fatídica. Para desencargo de consciência,mostrei-lhe o retrato deLester,eparaminhasurpresa,ohomemoreconheceuimediatamente.

—Sim, senhor—a irmou—,esteéo cavalheiroquechegouàsdezemeiaeperguntouporMr.WuLing,saindoemsuacompanhialogodepois.

A investigação progredia. Nosso próximo passo seria interrogar Mr.CharlesLester.Elenosrecebeucomumaatitudemuitofranca,mostrou-sedesoladoaosaberdamorte trágicadochinêsecolocou-se inteiramenteànossadisposição.Suahistóriaeraaseguinte:conformecombinaçãoprévia,fora encontrar-se com Wu Ling no hotel às dez e meia. Em seu lugaraparecera o criado, e explicando que seu amo saíra, ofereceu-se para

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conduzir o jovem ao seu encontro. De nada suspeitando, Lesterconcordara, e tomaraum táxi como chinês. Seguiamháalgum tempoemdireçãoaocaisquandoLester,descon iado, izerapararocarroesaltara,apesar dos protestos do criado. E isto era tudo o que sabia, ele nosassegurou.

Aparentemente satisfeitos, agradecemos e nos despedimos. Cedo icouprovadoquesuahistórianãoeraverdadeira.Paracomeçar,WuLingnãose izeraacompanhardenenhumcriado,nemnonavio,nemnohotel.Emsegundo lugaromotoristado táxique conduziraosdoishomensnaquelamanhãseapresentara,esegundoseutestemunho,Lesternãoabandonaraocarronopercursomasseguiracomochinêsatéumacertacasasuspeitaem Limehouse, bem no coração de Chinatown. O lugar em questão eraconhecido como um antro de ópio da mais baixa categoria. Os doiscavalheiros haviam entrado, e mais ou menos uma hora mais tarde, ocavalheiro que identi icara pela fotogra ia saíra só. Estavamuito pálido eabatido,ederaordensaomotoristaparadeixá-lonaestaçãodometrômaispróxima.

Os antecedentes de Charles Lester foram investigados, e veri icou-seque,emboragozassedeumaboareputação, tinhapesadasdívidaseumagrandepaixãopelojogo.Dyernãofoiesquecido,naturalmente.Haviaumaligeira possibilidade de que pudesse ter representado o papel do outro;mas icou pro-vado que esta ideia não tinha fundamento, pois seu álibiparatodoodiadoassassinatoeramuitosólido.Oproprietáriodoantrodeópio negou tudo com imperturbabilidade oriental, nunca havia visto WuLing,nemCharlesLester.Ninguémentraraemsuacasanaquelamanhã,apolícia estava comple-tamente enganada. Nunca se fumara ópio em seuestabelecimento!

Suas negativas, embora bem intencionadas, não ajudaram Lester emnada.

Foi preso pelo assassinato de Wu Ling. Deram busca em seuapartamento, mas os papéis da mina não foram descobertos. Oproprietáriodoantrotambémfoipreso,eoseuestabelecimentorevistado,sem resultados. Nem vestígios de ópio foram encontrados pararecompensarosesforçosdapolícia.

Nesse ínterim, meu amigo Mr. Pearson passava por um estado degrande agitação. Andava de um lado para outro em minha sala, emprofundaslamentações:

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—Masosenhor temque teralguma ideia,M.Poirot—ele repetia.—Nãoépossívelquenadalheocorra!

—Éverdadeque tenhoalgumas ideias— respondi comcautela.—Eesteéoproblema,poiscadaumaconduzaumadireçãodiferente.

—Porexemplo?—eleinsistiu.—Por exemplo: temos só apalavradomotoristade táxi que levouos

doishomensàquelacasa.Outra ideia:acasa teriasidorealmenteopontoinaldaquelaexcursão?Talveztenhamsaídopelooutroladoe idoaoutrolugarqualquer...

OimpactodaquelasugestãoabalouMr.Pearson.—Masosenhornãopodefazernadaalémde icarsentado,pensando?

Nãopodemosfazeralgumacoisa?Eletinhaumtemperamentoimpaciente,sabe.—Monsieur— retruquei-lhe com toda a minha dignidade—, correr

pelasruasmal-cheirosasdeLimehouse,atrásdemalfeitores,nãoé tarefapara Hercule Poirot. Tenha calma. Meus agentes estão trabalhando nocaso.

No dia seguinte, eu tinha novidades para ele. Os dois homens haviamrealmente atravessado a casa em questão, e seu objetivo real fora umapequena casadepastopertodo rio. Tinhamsido vistos ao entrarmas sóLester saíra. E foi então que Mr. Pearson teve uma ideia pouquíssimorazoável.Imaginesó,Hastings!Elesóficariasatisfeitosefôssemososdoisàcasa de pasto investigar. Argumentei, implorei, mas ele não me deuouvidos. Falou em disfarces, e chegou a sugerir que eu, Hercule Poirot,raspasse meus bigodes! E,rien que ça! Mostrei-lhe que era uma ideiaabsurda e ridícula, não se destrói assim um objeto de arte, e além disso,porqueumcavalheirobelgadebigodesnãopoderiatertantointeresseemvivernovasexperiências,conheceroópio,tantoquantoumsembigodes?

Ehbien,eledesistiudessedetalhe,mas insistiuque levássemosavanteosseusplanos.Voltouànoite,eMonDieu,que igura!Trajavaumajaponagrossademarinheiro,não izeraabarba,orostoestavasujo,eo lençodoseu pescoço ofendia o olfato! E imagine só, estava se divertindo! Naverdade, os ingleses são doidos. Ele fez algumas modi icações na minhaaparência, fui obrigado a permitir, pois não se pode discutir com ummaníaco. E a inal saímos, pois não podia deixá-lo ir sozinho como umacriançaquefosseparticipardeumabrincadeira.

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—Temrazão,nãopodiamesmo—comentei.—Continuando, chegamosa tal casadepasto.Mr.Pearsoncomeçoua

empregar um inglês macarrônico, ingindo ser um velho lobo do mar.Entramosnumasalapequenaeabafada,cheiadechinesescomendoumascoisas esquisitas. Nós os imitamos.Ah, Dieu, mon estomac! — Poirotesfregou essa parte de sua anatomia, antes de prosseguir: — Entãoapareceu o proprietário, um chinês de sorriso sinistro:—Os cavalheirosnãogostarcomidaaqui—disseele.—Querercoisamelhor,nãoé? Quererfumarumpouco?

Mr. Pearsondeu-meumpontapé sob amesa (e aindapor cimausavabotas de marinheiro) e disse: — Não é uma ideia má, John. Vamosexperimentar!

O chinês sorriu e nos conduziu a um porão. Depois de atravessarmosumasportasedescermaisalgunsdegraus,chegamosaumasalacheiadedivãs e confortáveis almofadas. Um chinês nos tirou as botas depois quenosrecostamos(eesse foiomelhormomentodanoite!),enostrouxeramos cachimbos de ópio e os acenderam. Fingimos estar fumando, einalmente adormecer, mas quando icamos sozinhos, Mr. Pearson mechamou num sussurro, e nos esgueiramos para fora da sala. Passamos aoutro cubículo onde homens dormiam e continuamos até que ouvimosduaspessoasconversando.Ficamosatrásdeumacortina.OsdoisfalavamdeWuLing.

—Eospapéis?—disseumdeles.—OMr.Lester levou—disseooutrochinês.—Falouque iaguardar

todoselesnumlugarbemseguroondeapolícianuncaencontraria.—É,maselesopegaram—disseoprimeiro.—Elevaisersolto.Apolícianãopodeprovarquefoiele.Nessaalturaosdoishomensselevantaramenósrastejamosdevoltaa

nossoslugares.—Émelhorsairmosdaqui—dissePearsondepoisdealgunsminutos.

—Esselugarnãoémuitosaudável.— Tem razão,monsieur — respondi. — Já representamos esta farsa

portemposuficiente.Conseguimossair semsermolestados,depoisdepagarumbompreço

por nossas cachimbadas. Quando nos afastamos de Limehouse, Pearsondeuumsuspirodealívio.

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—Aindabemqueestamos longedaqueleantro—disseele.—Masaexperiênciafoilucrativa.

— É verdade — concordei. — E creio que não teremos maioresdi iculdades em descobrir o que procuramos, depois de toda essaencenação.

— E na realidade não houve di iculdade alguma — concluiu Poirotabruptamente.

Esse epílogo inesperado foi tão surpreendente que iquei olhandoespantadoparaele.

—Mas...masondeestavamospapéis?—perguntei.—Nobolsodele,toutsimplement.—Nobolsodequem?—NodeMr.Pearson,parbleu!—evendomeuarestupefato,explicou

delicadamente:—Entãonãopercebeu?Mr.Pearson,comoCharlesLester,estavaendividado.Tinhamamesmapaixãosecretapelojogo.Eleconcebeuo plano de roubar os papéis do chinês. Encontrou-o em Southampton,seguiucomeleparaLondresdiretamenteparaLimehouse.Onevoeiroeradenso, e o chinês não percebeu para onde era levado. Penso que Mr.Pearsoncostumavafumarópionaqueleestabeleci-mentoe izeraalgumasamizades esquisitas. Não creio que planejasse um assassinato. Suaintenção fora que um dos chineses tomasse o lugar de Wu Ling erecebesse o dinheiro pela venda dos documentos. Até aímuito bem,masparaumamenteoriental,erain initamentemaissimplesmatarWuLingeatirarseucorponorio,eoscúmplicesdePearsonseguiramseusprópriosmétodossemoconsultar.Imaginemaa liçãodeMr.Pearson!Alguémpodetê-lovistonotremcomWuLing,eassassinatoéumacoisamuitodiferentedeumsimplessequestro.

SuasalvaçãorepousanachinêsquerepresentaopapeldeWuLingnoRusselSquareHotel.Seaomenosnãodescobriremocorpocedodemais...Provavelmente Wu Ling falara-lhe sobre a combinação que izera comCharles Lester de saírem juntos pelamanhã. Pearson vê nesse fato umaexcelenteoportunidadedeafastarassuspeitasdesi.CharlesLesterseráaúltima pessoa a ser vista em companhia deWu Ling. O impostor recebeordens de se apresentar como criado de Wu Ling e conduzir o rapaz omais rapidamentepossível a Limehouse.Ali devem ter-lheoferecidoumabebidanarcotizada, e quandodespertouumahoramais tarde, tinhaumaimpressão muito nebulosa do que lhe acontecera. Tanto é verdade, que

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quandodescobreoassassinatodeWuLing,CharlesLesterperdeacabeçaenegaterchegadoaLimehouse.

EaíelecaidireitinhonaarmadilhadePearson.Masesteaindanãoestásatisfeito. Não, meus modos o intranquilizam e ele decide reforçar asprovas contra Lester. E assim encena aquela farsa, e acredita ter-meenrolado completamente. Não disse que ele parecia uma criança numabrincadeira?Eh bien, eu represento meu papel: Ele volta para casaexultante!MasdemanhãoinspetorMillerbateàsuaporta.Ospapéissãoencontradosemseupoder,ojogoterminou.Eleserecriminaamargamentepor ter querido enganar Hercule Poirot! Só houve uma di iculdade realnessecaso.

—Qualfoi?—pergunteicurioso.—ConvenceroinspetorMiller!Masqueanimal!Obstinadoeimbecil!E

nofinalcolheutodososlouros.—Quedesaforo!—exclamei.—Ah,bem,tiveminhascompensações.OsdemaisdiretoresdasMinas

deBurmapresentearam-me comquatorzemil ações em recompensa aosmeusserviços.Bemrazoável,nãoacha?MasHastings,quandoforinvestirseu dinheiro, siga meu conselho, seja conservador. O que lê nos jornais,nemsempreéverdade,eosdiretoresdessaCompanhiaPocurpinepodemserdamesmalaiadeMr.Pearson!

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OExpressodePlymouth

AlecSimpson,daMarinhaReal,subiuaumcompartimentodeprimeiraclasse do Expresso de Plymouth, em Newton Abbot. Um carregador oseguiu levando uma pesada valise. Ia colocá-la em cima, no porta-malas,quandoojovemodeteve.

—Não,podedeixá-lanobanco.Guardo-amaistarde.Tomeaqui.— Obrigado, senhor— e o carregador retirou-se com uma generosa

gorjeta.Portas bateram, e uma voz potente gritou: — Direto até Plymouth.

FaçambaldeaçãoparaTorquay.ApróximaparadaéPlymouth.—Soouumapito,eotremdeixouvagarosamenteaestação.

OTenenteSimpsonestavasóemsuacabina.Oardedezembroestavagelado,eele fechoua janela.Deuuma ligeira fungadela,e franziua testa.Aquelecheiro...Fazia-lhe lembrarsuaestadanohospital,eaoperaçãonaperna.Issomesmo,eraclorofórmio,nãohaviadúvida!

Tornou a fechar a janela, e mudou-se para o outro banco, icando decostas para a locomotiva. Tirou um cachimbo do bolso, e o acendeu. Poralgumtempoficouocioso,olhandoefumando.

Finalmente levantou-se, retirou alguns papéis e revistas da mala,tornouafechá-laetentouempurrá-laparabaixodobancoemfrente,semsucesso. Algum obstáculo invisível opunha-se à sua pretensão. Empurroucomforça,impaciente.Masamalasóentravaatémeiocaminho.

—Porquediaboselanãoentra?—ele resmungouepuxando-aparafora,curvou-seeolhouparabaixodobanco.

No momento seguinte um grito cortou a noite, e o grande expressofreoucomrelutânciaobedecendoaoimperiososinaldealarme.

—Monami—dissePoirot—, jáqueestáprofundamente interessadonomistériodoExpressodePlymouth,leiaisto.

Apanhei o bilhete que ele me estendia sobre a mesa, Era breve econciso.

“Carosenhor,Ficareiagradecidosemeprocuraromaiscedopossível.

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Seufiel,EbenezerHalliday.”Nãopercebialigação,elanceiumolharinquiridoraPoirot.Por resposta, pegou o jornal e leu em voz alta: “Uma descoberta

sensacional foi feita na noite passada. Um jovem o icial de marinha,voltando a Plymouth, achou sob o banco de sua cabina o corpo de umamulher, com o coração transpassado por um punhal. O o icial puxouinstantaneamenteoalarme,eacomposiçãofreou.Amulher,deunstrintaanospresumíveis, ricamente trajada, aindanão foi identi icada.” E noutraedição,estanotícia:“AmulherencontradamortanoExpressodePlymouthfoiidenti icadacomoaHonorávelMrs.RupertCarrington.”Percebeagora,meu amigo? Se ainda não o fez, saiba queMrs. Rupert Carrington foi emsolteiraFlossieHalliday,filhadovelhoHalliday,oreidoaçoamericano.

—Eeleomandouchamar?Esplêndido!— Prestei-lhe um serviço no passado, no extravio de umas ações ao

portador.EemParisviumavezMademoiselleFlossieemcompanhiadopai.Lajoliepetitepensionnaire!Elatinhaumjolidot,também,quesólhetrouxeinfelicidade.Elaquasedeuummaupasso.

—Comofoi?—UmcertoCondedelaRochefour,unbienmauvaissujet!Umcanalha,

como você diria. Um aventureiro, que sabia como fascinar uma jovemromântica. Felizmente o pai desco-briu em tempo e levou-a de volta àAméricabemdepressa.Ouviralarquesecasara,maistarde,masnadaseisobreomarido.

— Hum! — iz eu. — O Honorável Ruper Carrington não é nenhumamorzinho,deformaalguma.Tinhadesbaratadoquasetodasuafortunanoturfe, e creio que os dólares do velho Halliday chegaram em boa hora.Pensoqueseriadi ícilencontraroutrocalhordatãoinescrupuloso,tãobemparecido,edemaneirastãorefinadasquantoasdele!

—Ah,pobrezinha!Ellen’estpasbientombée!—Pelojeitoeledemonstrou-lhedeformabemóbvia,logonoinício,que

fora o seu dinheiro, e não ela, que o atraíra. Ultimamente ouvi boatos dequefinalmenteiriamsesepararlegalmente.

— O velho Halliday não é nenhum tolo. Deve ter tomado todas asprecauçõesparaqueelanãofosseespoliadadeseusbens.

—Acredito.Fala-setambémqueoHonorávelRupertestámuitomalde

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finanças.—Ah...Dáoquepensar...—Pensaroquê?—Meubomamigo,não tiremosconclusõesapressadas.Vejoquevocê

está interessado. Que tal acompanhar-me à casa deMr. Halliday? Há umpontodetáxinaesquina.

Poucosminutos foram su icientesparaque chegássemos à esplêndidacasaqueomagnataamericanoalugaraemParkLane.Fomosconduzidosàbiblioteca e quase imediatamente um homem alto e vigoroso, com olhospenetranteseumqueixoagressivo,juntou-seanós.

— Mr. Poirot, acredito que não preciso dizer-lhe a razão de meuchamado— disse Halliday.— Já deve ter lido os jornais, e não costumodeixarnadaparamaistarde.OuvifalarqueestavaemLondres,elembrei-me do bom trabalho que realizou a respeito daquelas ações. Nunca meesqueçodeumnome.OsasesdaScotlandYardestãotrabalhandonocaso,masquerotambémumagentesobminhaorientaçãodireta.Dinheironãoéproblema. Acumulei todos os meus dólares para a minha garotinha, eagora que ela se foi, gastarei até meu último centavo para apanhar omalditocanalhaqueamatou!Compreende?Oencargoestáemsuasmãos.

— Aceito, e empregarei todos os meus esforços,monsieur — dissePoirot com umamesura.—Mas agora peço-lhe que me esclareça sobretodososdetalhesdaviagemparaPlymouth,equaisqueroutrospontosquepossamterrelaçãocomocaso.

—Bem.paracomeçar,elanãoiaparaPlymouth—disseHalliday.—Iahospedar-se por alguns dias em Avonmead Court, a propriedade daDuquesadeSwansea.Minha ilhadeixouLondresno tremdas12:14quepartedaestaçãodePaddingtonechegaaBristol,ondeeladeveriabaldear,às 14:50. A maioria dos expressos para Plymouth vão pelo ramal deWestbury e não passam por Bristol. Mas o trem das 12:14 vai direto aBristol, e depois pára emWeston, Tauton, Exeter eNewtonAbbot.Minhailhaviajousozinhaemsuacabina,queestavareservadaatéBristol,esuacriadaianumcompartimentodeterceiraclassenovagãoseguinte.

Poirot fez um sinal de aquiescência e Mr. Halliday prosseguiu: — Atemporada em Avonmead Court deveria ser movimentada, com váriosbaileseconsequentementeelalevavaquasetodasassuasjoias,numvaloraproximadodeunscemmildólares.

— Un moment — interrompeu Poirot. — Quem levava as joias? Sua

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filhaouacriada?— Minha ilha sempre se encarregava delas, levando-as numa

frasqueiraazuldemarroquim.—Prossiga,monsieur.—EmBristol, JaneMason, a criada, pegou amala e os agasalhos que

estavamconsigoedirigiu-seàcabinadeFlossie.Parasuaimensasurpresa,minha ilha disse-lhe que não ia descer em Bristol, e que continuaria aviagem.Deuordema Janeparaqueapanhasseasmalaseasdeixassenodepósito de bagagens da estação. Ela poderia tomar um chá norestaurante, mas deveria voltar à plataforma para esperá-la, poisregressaria a Bristol num dos próximos trens. A criada, embora muitoespantada, obedeceu às ordens. Guardou a bagagem, tomou um chá evoltou para esperar a patroa. Mas vários trens volta-ram para Londressem que esta aparecesse. Depois que o último trem passou, ela resolveupassar a noite num hotel próximo da estação. Esta manhã ela soube datragédiapelosjornaisevoltouaLondrespeloprimeirotrem.

—Nãohánadaquepossaexplicarasúbitamudançadeplanosdesuafilha?

—Bem,segundoJaneMason,FlossienãoestavasozinhaemsuacabinaemBristol.Haviaaliumhomemque icouempé,viradoparaajanela,paraqueelanãopudessever-lheorosto.

—Ovagãopossuíaumcorredor?—Possuía.—Dequeladoficavaessecorredor?— Do lado da plataforma. Minha ilha icou em pé no corredor

enquantofalavacomJaneMason.— E o senhor não tem dúvidas de que... ah, desculpe-me— e Poirot

levantou-se e endireitou cuidadosamente o tinteiro que estava um poucodelado,—Jevousdemandepardon —disse,tornadoasentar-se—,afeta-me os nervos ver qualquer coisa torta. Estranho, não é? Eu perguntava,monsieur, se acaso não tem dúvidas de que esse encontro inesperadotenhasidoacausadasúbitamudançadeplanosdesuafilha?

—Parece-meseraúnicasuposiçãorazoável.—Temalgumaideiadequempossaserocavalheiroemquestão?Omilionáriohesitouporummomentoantesderesponder:—Não,não

possosaber.

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—Equantoàdescobertadocorpo?—Foium jovemo icialdamarinhaquemodescobriuedeuoalarme.

Havia um médico no trem, e examinou o corpo. Ela fora cloroformizadaantes, e depois apunhalada. Em sua opinião ela estava morta há umasquatrohoras,demodoqueocrimedeveterocorridologoapósasaídadeBristol,prova-velmenteantesdeWeston,ouentreWestoneTaunton.

—Eoestojodejoias?—Oestojodejoiasnãoestavalá,M.Poirot.—Maisumdetalhe,monsieur.Aquempassaafortunadesua ilhapor

suamorte?— Flossie fez um testamento logo após seu casamento deixando tudo

para o marido— ele hesitou um instante e acrescentou:—M. Poirot, émelhorquelhedigaqueconsideromeugenroumpatifesemprincípios,equeameu conselho,minha ilhaestavaemvésperasde se separarpelosmeios legais, o que não apresentava di iculdades. Apliquei a fortuna delade tal formaque elenãopoderia tocá-la enquantominha ilha fosse viva,embora eles vivessem separados há alguns anos, ela frequentementeatendiaseuspedidosdedinheiroparaevitarumescândalo.Entretantoeuestava determinado a pôr um paradeiro nessa situação. A inal Flossieconcordouedeuinstruçõesameusadvogadosparainiciaroprocesso.

—EondeestáoMonsieurCarrington?— Aqui em Londres. Parece que esteve fora ontem, mas retornou à

noite.Poirotrefletiualgumtempoedisse:—Étudoporhora,monsieur.—Gostariadeveracriada,JaneMason?—Seopermitir.Hallidaytocouacampainhaedeuumaordemaolacaio.Algunsminutos

depoisJaneMasonapresentou-se.Eraumamulherdetraçosseveroscomum ar respeitável, impassível diante da tragédia como todo bomempregado.

— Permita-me fazer-lhe algumas perguntas, senhorita. O estado deespírito de sua patroa, antes da viagem, era normal? Não se mostravaexcitada,ounervosa?

—Oh,não,senhor!—MasemBristolelaestavabemdiferente,nãoé?

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—Sim,mostrava-sebastanteagitada,etãonervosaquenemsabiabemoquedizia.

—Quaisforamexatamenteassuaspalavras?—Bem,senhor,algoparecidocom:“Jane,precisoalterarmeusplanos.

Aconteceu algo que... Bem, não voumais descer aqui. Preciso prosseguirviagem.Leveabagagemedeixe-anoguarda-malas.Podeirtomarumchá,masdepoisespere-menaestação.”—Querqueesperepelasenhoraaqui,madame?—perguntei.—“Quero, sim.Nãosaiadaestação.Voltareimaistarde num outro trem, não sei qual ainda. Posso me demorar.” — Estácerto,madame—disseeu,poisnãomecabia fazerperguntas,masacheitudomuitoestranho.

—Elanãocostumavaagirdessaforma,nãoé?—Não,senhor.—Oquepensoudesuaatitude?— Bem, senhor, julguei que era devido ao cavalheiro que estava na

cabina.Elanãosedirigiuaele,masvirou-seumasduasvezescomoselheperguntasseseestavaagindocorretamente.

—Nãoconseguiuverorostodessecavalheiro?—Não,senhor.Eleficoudecostasparamimotempotodo.—Podedescrevê-lo?— Ele usava chapéu e um sobretudo castanho — claro. Era alto e

esbelto,eseuscabeloseramescuros.—Nãooreconheceu?—Não,achoquenão,senhor.—Masnãotemcerteza?—Eleeradamesmaalturadopatrão,senhor.Masnãopenseinelena

hora.Nósovemostãoraramente,senhor...Masnãopossoa irmarquenãofosseele.

Poirot abaixou-se para pegar um al inete no tapete, e olhando-ocarrancudoprosseguiu:—Seriapossível queohomem tivesse subido aotrememBristol,antesqueasenhoritachegasseàcabina?

JaneMasonrefletiu.— É possível, senhor. Meu compartimento estava superlotado, e

demorei algum tempo para sair, e a plataforma estava cheia de gente, eisto me atrasou mais ainda. Mas mesmo assim ele só teria uns poucos

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minutosparafalarcomapatroa.Euestavacertadequeelevieradeoutrovagãopelocorredor.—Certamenteémaisprovável—Poirotcalou-secomatestafranzida.—Osenhorsabeacasocomoaminhapatroaestavavestida?— Os jornais forneceram alguns detalhes, mas gostaria de que os

confirmasse.—Elausavaumchapeuzinhobrancodepelescomumvéudebolinhas,

tambémbranco,eumcostumeazulelétrico.—Deviachamarbastanteaatenção,então.— É verdade — concordou Mr. Halliday. — O inspetor Japp tem

esperanças de que esse fato ajude a precisar o local onde o crime foicometido.Quemaviu,nãoadeveteres-quecido.

—Précisément!Obrigado,mademoiselle.Acriadaretirou-se.—Bem!—Poirot levantou-secomumardecidido.—Nãoposso fazer

maisnada,monsieur,senãomecontartudo.Tudo!—Masjáofiz.—Temcerteza?—Absoluta.—Entãonadamaisháqueeupossafazer.Vourecusarocaso.—Porquê?—Porqueosenhornãofoifrancocomigo.—Eulheasseguro...—Não,osenhorestámeescondendoalgumacoisa.Houveumsilênciomomentâneo.FinalmenteHallidaytirouumpapeldo

bolsoeoentregouameuamigo.—Creioqueserefereaisso,M.Poirot,emboranãoconsigasabercomo

adivinhou.Poirotsorriuedesdobrouafolha.Eraumacartaescritanumacaligra ia

indecisaerebuscada.Poirotleuemvozalta:“ChèreMadame,Écomin initoprazerqueesperoahora felizderevê-la.Apóssuaamável

respostaàminhacarta,malpossorefrearminhaimpaciência.NuncaesqueciaquelesdiasemParis.ÉumainfelicidadequeprecisedeixarLondresamanhã.

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Entretanto, em breve, mais cedo do que imagina, terei a alegria de re-encontraramulhercujaimagemsempreestevepresenteemmeucoração.

Esteja certa, chère madame, de que meus sentimentos permaneceminalterados.

SeudedicadoArmanddelaRochefour.”PoirotdevolveuacartaaHallidaycomumamesura.—Possoconcluir,monsieur,quenãosabiadasintençõesdesua ilhade

reatarrelaçõescomoCondedelaRochefour?—Paramimfoiumatremendasurpresa!Acheiessacartanabolsade

minha ilha.Comoprovavelmentesabe,MonsieurPoirot,estepseudocondeéumaventureirodapiorespécie.

Poirotfezumsinalafirmativo.— Mas gostaria de saber como teve a intuição da existência dessa

carta?Meuamigosorriu.—Monsieur,eunãosabiacomcerteza.Masumdetetivenãoselimitaa

examinar pegadas e a recolher cinzas de cigarro. Precisa ser um bompsicólogo.Sabiaqueosenhornãogostanemcon iaemseugenro.Eapesardele se bene iciar com amorte de sua ilha, e da descrição da criada seaproximar bastante dele, o senhor não está muito empenhado em suacaptura.Porquê?Certamenteporquesuassuspeitas incidemsobreoutroalvo!Portanto,estavameescondendoalgumacoisa.

—Temrazão,Poirot.EstavacertodequeRuperteraoculpadoatéqueacheiessacartaqueabalouminhasconvicções.

— Acredito. O conde diz aqui: “Dentro em breve, talvez antes do queimagina”.Obviamenteelenãopretendiaesperaratéqueo senhor tivesseciência do seu reaparecimento. Seria ele o passageiro do expresso das12:14queestavanacabinadesua ilha?Senãoestouenganado,oCondedelaRochefourtambéméaltoemoreno.

Omilionáriofezumsinalafirmativo.— Bem,monsieur, minhas despedidas. Presumo que a Scotland Yard

tenhaumalistadasjoias,não?—Tem,sim.OinspetorJappestáaqui.Sedesejarvê-lo...Japp era um velho amigo nosso, e cumprimentou Poirot com uma

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atitudezombeteira,porémafetuosa.—Comovai,monsieur?Esperoquenãoguarderessentimentosdemim,

embora nossasmaneiras de encarar os fatos sejamdiferentes. Como vãoassuascélebrescélulascinzentas?Estãofuncionandobem?

Poirotdeu-lheumlargosorriso.— Ótimo. Acha que o culpado é o Honorável Rupert ou algum outro

escroque?Estamosvigiandoos locaisconhecidos,evidentemente.Saberemos logo

setentaremsedesfazerdasjoias,enãoacreditoqueoautordafaçanhaastenha roubadopara contemplaro seubrilho!Nãoénadaprovável.Estouten-tando descobrir agora onde Rupert Carrington estava metido ontem.Parecehaveralgummistérionocaso.Eleestásendoseguido.

—Umaótimaprecaução,comtalvezumdiadeatraso,não?—sugeriuPoirotdelicadamente.

— Sempre fazendo piadas, M. Poirot. Bem, estou de saída paraPaddington.TenhoqueiraBristol,WestoneTaunton.Atébreve.

—Poderiairvisitar-meessanoiteecontar-meosresultados?—Certamente,setivervoltado.— O nosso bom inspetor é a favor da ação das pistas materiais —

murmurouPoirotquando Jappsaiu.—Eleviaja,medepegadas,colecionacinzas, está sempre ocupado! É extremamente diligente! Se acaso eumencionasse psicologia, sabe o que ele faria? Iria sorrir, e diria para simesmo:PobrePoirot!Estáficandovelho,estágagá!

—Eoquevaifazeragora?—Comotemoscarieblanchevougastartrêspennies para dar um telefonema para o Ritz, onde você deve ter

visto que o nosso conde está hospedado. Depois disso, como meus pésestão úmidos e já espirrei duas vezes, voltarei aos meus aposentos epreparareiumatisanenofogareiro.

Só tornei a ver Poirot na manhã seguinte. Encontrei-o placidamenteterminandodetomarseucafédamanhã.

—Bem?—inquiriansioso.—Oqueaconteceu?.—Nada.—EJapp?—Nãoovi.—Eoconde?

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—DeixouoRitzanteontem.—Nodiadoassassinato?—Issomesmo.—Issodecideaquestão.RupertCarringtonéinocente.— Só porque o Conde de la Rochefour deixou o Ritz? Anda depressa

demais,meuamigo.—Dequalquerformaeledeviaserseguido,oupreso!Masqualseriao

seumotivo?—Cemmil dólares de joias é umótimomotivopara qualquer pessoa.

Não,aperguntaquenãomesaidacabeçaé:porqueeleiriamatá-la?Porquenãoroubariasimplesmenteasjoias?Elanãoapresentariaqueixa.

—Porquenão?— Porque era uma mulher, mon ami. Ela já amou esse homem e

suportariaaperdaemsilêncio.Eoconde,queéumótimoconhecedordapsicologia feminina, e daí o seu sucesso, sabia disso perfeitamente. Poroutro lado, se Rupert Carrington amatou, por que levaria as joias que opoderiamincriminar?

—Paradeixarumapistafalsa.— Talvez tenha razão, meu amigo. Ah. aí vem Japp. Reconheço seu

mododebateraporta.Oinspetorsorriabem-humorado.—Bomdia,Poirot.Acabeidechegar.Obtivebonsresultados.Evocê?— Eu? Estive ordenando minhas ideias — replicou Poirot com toda

calma.Jappsoltouumagargalhadajovial.—Nossoamigoestá icandovelho—elecomentoubaixinhoparamim.

—Paranós,jovens,háoutrosmétodos—disseemvozalta.—Queldommage!—dissePoirot.—Bem,quersaberoqueconsegui?—Possoadivinhar?Vocêencontrouopunhal com o qual o crime foi cometido ao lado dos trilhos entre

WestoneTaunton,eachouojornaleiroquefaloucomMrs.CarringtonemWeston!

OqueixodeJappcaiu.

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—Commildiabos!Comodescobriu?Nãovámedizerquefoiatravésdesuastodo-poderosascélulascinzentas!

— Fico satisfeito em vê-lo admitir, pelomenos uma vez, que elas sãopoderosas!Diga-me,eladeuumxelimdegorjetaaogaroto?

— Não, foi meia-coroa — Japp havia recuperado seu bom humor esorria.—Essesamericanosricossãoumbocadoextravagantes!

—Econsequentemente,omeninonãoaesqueceu,nãoé?— Esqueceu nada! Não é todo dia que ganha uma moeda de meia-

coroa.Elaochamouecomprouduasrevistas,umacomumretratodeumamoçadeazulnacapa.“Estacombinacomigo”foiocomentáriodela.Ora,elese lembrava perfeitamente. E para mim é o su iciente. Na opinião domédico o crime deveria ter sido cometido antes de Taunton. Deduzi quehaviam jogado o punhal logo pela janela e andei ao longo dos trilhos atédescobri-lo.Estavamesmoondepensei.EmTaunton izperguntassobreonossohomem,masaestaçãoémuitograndeedeveterandadoporlásemqueovissem.Provavel-mentevoltouaLondreslogoemseguida.

Poirotfezumsinalafirmativo.—Émuitoprovável.— Mas soube de outra novidade quando cheguei. Eles estão se

desfazendodasjoias.Aesmeraldagrandefoipenhoradananoitedeontemporumconhecidoladrão.Quempensaquefoi?

—Nãosei.Sóseiqueéumhomembaixo.Jappoolhouespantado.—Bem,vocêtemrazão,eleébembaixinho.FoiRedNarky.—QueméRedNarky?—perguntei.—Umladrãode joiasmuitoastuto,senhor,equenãoteriaescrúpulos

decometerumassassinato.Geralmentetrabalhacomumamulher,GracieKidd.Mas desta vez ela não parece estar envolvida, a não ser que tenhafugidoparaaHolandacomorestodoroubo.

—JáprendeuNarky?— Certamente. Mas é o outro homem que queremos, o homem que

estavacomMrs.Carringtonnotrem.Foielequemplanejouoserviço.MasNarkynãovaidelatarocompanheiro.

PercebiqueoverdedosolhosdePoirotseintensificara.— Creio que posso descobrir o companheiro de Narky para você—

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disseelenumtomsuave.—Teveumadesuaspequenasideias,hem?—Jappolhoucuriosopara

Poirot.—Émaravilhosocomoconsegueencontrarasolução,nasuaidade!Temumasortedosdiabos,meuamigo.

— Talvez, talvez — murmurou Poirot. — Hastings, meu chapéu e aescova. Ótimo! Eminhas galochas, se ainda está chovendo. Não podemosdesperdiçarosbonsefeitosdatisane.Aurevoir,Japp.

—Boasorte,Poirot.Poirot fez sinal ao primeiro táxi que encontramos e deu ordem ao

chofer paranos levar a Park Lane.Quando chegamos à casa deHalliday,elesaltoucomagilidade,pagouaomotoristaetocouacampainha.Fezumpedido em voz baixa ao lacaio que nos abriu a porta, e fomosimediatamenteconduzidosparacimaatéumpequenoquarto.

Os olhos de Poirot percorreram o aposento e se detiveram numpequeno baú preto. Ele se ajoelhou diante dele, examinou as etiquetas eretiroudobolsoumpequenoaramefino.

— Peça a Mr. Halliday a gentileza de subir até aqui— disse ele porsobreoombroaolacaio.

OhomemsaiuePoirotforçouafechaduradobaúcomahabilidadeeadestrezadeumperito.Empoucosminutosa fechaduracedeu,eelepodeerguera tampa.Rapidamentecomeçouaexaminarseuconteúdo, jogandoasroupasnochão.OuvimospassosnaescadaeHallidayentrou.

—Quediabosestáfazendoaqui?—perguntouele!— Estava procurando isto — e Poirot tirou do baú um costume azul

elétricoeumpequenochapéubrancodepelederaposa.—Oquequercommeubaú?EraavozdeJaneMasonqueacabaradeentrarnoquarto.— Por favor, feche a porta, Hastings, e ique encostado aí. Agora,Mr.

Halliday, deixe-me apresentar-lhe Gracie Kidd, vulgo Jane Mason, quedentroembrevereunir-se-áaseu

cúmpliceRedNarky,graçasàgentilezadoinspetorJapp.— Foi realmente muito simples— Poirot fez um gesto de protesto e

serviu-se de mais caviar. — Foi a insistência da criada em chamar aatenção para as roupas que a patroa usava, que me despertou asprimeiras suspeitas. Por que estava tão interessada em que nosocupássemos do fato? Re leti que só tinha a palavra dela sobre o

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misterioso ocupante» da cabina em Bristol. Pela parte que tocava aomédico legista,Mrs. Carrington poderia ter sidomorta antes de chegar aBristol.Masseforaassim,acriadadeveriasercúmplicedocrime,enestecasoprecisariaqueoutros testemunhos corroborassemsuaspalavras.AsroupasqueMrs.Carringtonusavanaocasiãoatraíammuitaatenção,eumacriadageralmentepodeterbastantein luêncianasroupasquesuapatroaveste.Ora, se alguémvisse, depois deBristol, uma senhoranumcostumeazul elétrico e um chapéu de peles, estaria pronto a jurar ter visto Mrs.Carrington.

Comeceiareconstruirocrime.Acriadalevouumaduplicatadotrajedapatroa. Ela e seu cúmplice cloroformizaram e apunhalaram Mrs.Carrington entre Londres e Bristol, prova-velmente aproveitando-se dealgumtúnel.Colocaramocorposobobancoeacriadatomouseulugar.EmWeston ela precisa atrair a atenção sobre si. Como? É fácil. Chama umpequenojornaleiroelhedáumagenerosagorjeta,paraquenãoaesqueça.Também o faz notar a cor do seu vestido pelo comentário a respeito darevista.Depoisqueo tremsaiudeWeston,ela jogouopunhalpela janelapara marcar o local onde o crime teria sido supostamente cometido emudou de roupa, ou colocou uma capa sobre o costume. EmTaunton eladesce do trem e volta a Bristol, onde seu cúmplice deixou a bagagem noguarda-malas. Ele lhe entrega o talão das malas e volta a Londres,enquanto ela espera na plataforma, representando o seu papel, passa anoitenumhotelevoltaaLondresdemanhã,exatamentecomodisse.

Quando Japp voltou de sua expedição, con irmou todas as minhasdeduções,edisse-mequeumconhecidoescroqueestavapassandoasjoias.Sabiaque, fossequemfosse,deveriaseroopostodohomemdescritoporJane Mason. Quando soube que se tratava de Red Narky que sempretrabalhacomGracie

Kidd...Bem,soubenomesmoinstanteondeencontrá-la.—Eoconde?—Quantomaispensavanocaso, icavacadavezmaisconvictodeque

nadativeraavercomocrime.Ocavalheiroédemasiadopreocupadocoma própria pele para arriscá-la num assassinato. Não se ajustaria ao seucaráter.

— Bem,Monsieur Poirot — disse Halliday —, sou eu devedor, e ochequequepreenchereidepoisdoalmoçonãoresgataráaminhadívida.

Poirot deu um sorriso demodéstia emurmurou paramim:—O bom

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Jappvaicolheroslourosoficiais,eemboraváreceberdemãosdadasasuaGracieKidd,quemvaireceberotutu,comovocêsdizem,soueu!

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ACaixadeChocolates

A noite era de tempestade. O vento uivava lá fora e fortes rajadas dechuvasacudiamasvidraças.

Poirot e euestávamos sentadosem frente a lareira, aquecendo-nosàschamas reconfortantes. Do meu lado, sobre a mesa que nos separava,fumegava uma caneca detoddy1 preparado com carinho. Junto a Poirotuma xícara de chocolate espesso e perfumado, que eu não beberia nemporcemlibras.

Poirotbebeuumgoledabeberagememsuaxícararosadeporcelanaedeuumsuspirodesatisfação.

—Quebellevie!—murmurou.— É ummundo bem satisfatório— concordei.— Aqui estou eu, com

umbomemprego,eaíestávocê,famoso...—Ora,monami!—protestouPoirot.— É verdade, e bem omerece. Quando recordo a sua longa série de

êxitos,ficoabismado.Creioquenuncaconheceuofracasso!—Queideia,meucaro!—Falandosério,jáfracassoualgumavez?—Inúmerasvezes,meuamigo.Oquequer?Labonnechancenãopode

estarsempreanossolado.Jáfuichamadoquandoeratardedemais.Váriasvezes outra pessoa, comosmesmos propósitos, passou aminha frente, eemduasocasiões iqueidoentequandojávislumbravaasoluçãodocaso.Éprecisoaceitarosfracassosjuntamentecom.osêxitos,meuamigo.

—Nãomereferiabemaessescasos—disseeu.—Queriasabersejámeteuos pés pelasmãos algumavez, e fez alguma trapalhada, por culpaexclusivasua.

—Ah,compreendo.Quersaberse já izpapeldebobo.nãoé? Já,meuamigo,umavez—eumsorrisoespalhou-selentamentepeloseurosto.—Já iz papel de bobo. — Empertigando-se subitamente em sua cadeira,acrescentou:— Olhe, não está escrevendo um relato demeus pequenossucessos?Poisterámaisumahistóriaparaasuacoleção,ahistóriadeumfracasso!

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Ele inclinou-se e colocou mais uma acha no fogo. Limpoumeticulosamente as mãos numa lanela pendurada ao lado da lareira,recostou-se,einiciousuahistória:

—O que vou lhe contar aconteceu hámuitos anos na Bélgica. Foi naépocada luta entre a Igreja eoEstadonaFrança.M.PaulDéroularderaum famoso deputado francês. Falava-se que seria designado para umMinistério. Ele formava entre a facção anticatólica mais encarniçada, ecertamente teria que enfrentar violenta oposição, uma vez nomeadoministro. Em muitos aspectos era um homem estranho. Embora nãobebesse, nem fumasse, não era tão escrupuloso em outros setores. Vocêentende,Hastings,c’étaitdesfemmes,toujoursdesfemmes!

Casara-se alguns anos antes com uma jovem de Bruxelas que lhetrouxeraumdote substancial. Indubitavelmenteodinheiro lhe foiútil emsuacarreira,poissuafamílianãoerarica,emborapudesseusarotítulodebarão, se lhe aprouvesse. O casamento não produziu ilhos, e sua esposamorreu dois anos depois, em consequência de uma queda. Entre aspropriedadesqueelalhedeixou,constavaumacasanaAvenueLouise,emBruxelas.

Foinesta casaquePaulDéroulard faleceusubitamente,nomesmodiaem que o ministro que deveria substituir demitiu-se. Todos os jornaispublicaramlongasreportagenssobresuacarreira,esuamorteocorridaànoite,apósojantar,foiatribuídaaumcolapsocardíaco.

Naquele tempo, como você sabe,mon ami, eu era detetive da políciabelga.AmortedeM.PaulDéroulardnãomecomoveu. Soucatólico, comosabe,esuamortepareceu-meumafor-tunadoincidente.

Três dias depois, mal entrara em férias, recebi uma visita em meuapartamento: uma senhora, com um espesso véu, mas evidentementemuito jovem. Percebi logo de saída que era uma jeune ilie tout à faitcommeilfaut.

—É.MonsieurHerculePoirot?—elaperguntounumavozdoceebaixa.Fiz-lheumamesura.—Odetetive?Inclinei-menovamente.—Sente-seporfavor,mademoiselle.Ela aceitou uma cadeira e levantou o véu. Seu rosto era encantador,

emboradesfeitopelaslágrimaserevelandoumaprofundaangústia.

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—Monsieur—disseela—,seiqueentroude férias, e talvezesteja livreparaencarregar-se,nãoo icialmente,de

umcaso.Compreenda,nãodesejochamarapolícia.Sacudiacabeçanumanegativa.— Receio que não possa aceder a seu pedido. Mesmo em férias,

pertençoàpolícia.Elainclinou-separamim:— Ecoutez, monsieur. Só lhe peço para investigar, ica a seu critério

comunicar à polícia os resultados dessa investigação. E se o que pensoéverdade,precisaremosdasengrenagensdalei.

Estadeclaraçãocolocavaoassuntosobumoutroprisma,ecoloquei-meprontamenteaseuserviço.Umpoucodecorvoltouàssuasfaces.

—Obrigado,monsieur.VoulhepedirparainvestigaramortedeM.PaulDéroulard.

—Comment?—exclameisurpreso.—Monsieur, não tenho provas, nada além do meu instinto feminino,

masestouconvencidadequeM.Déroulardnãomorreudemortenatural!—Mascertamenteosmédicos...—Osmédicos podem se enganar. Ele era tão vigoroso, tão forte... Ah,

MonsieurPoirot,imploro-lhequemeajude!Apobrecriançaestavatranstornada,prestesaseajoelharameuspés.

Eu a tranquilizei no que estava a meu alcance; — Eu a ajudarei,mademoiselle. Tenho quase certeza de que seus receios são infundados,mas investigarei o caso. Em primeiro lugar, quero que me descreva osmoradoresdacasa.

— Além das empregadas, Jeanette, Félice e Denise, a cozinheira queestá lá há muitos anos, temos o velho criado François. Há a mãe deMonsieur Déroulard que morava com ele, e eu. Meu nome é VirgineMesnard. Souumaprimapobreda falecidaMadameDéroulard, a esposadeM. Paul, e vivo com a família hámais de três anos. Osmoradores sãoesses,mashaviadoishóspedesnaocasião.

—Quemerameles?— M. de Saint Alard, um vizinho de M. Déroulard na França, e um

amigoinglês,Mr.JohnWilson.—Aindapermanecemlá?

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—Mr.Wilson,sim,masM.deSaintAlardviajouontem.—Equaléoseuplano,MademoiseleMesnard?— Se o senhor me conceder uma meia hora, arranjarei um pretexto

paraexplicarsuapresença.Talvezpossaapresentá-locomoum jornalistavindodeParis,quetrouxeumacartadeapresentaçãodeM.deSaintAlard.MadameDéroulardtemumasaúdemuitoprecáriaenãoprestaráatençãoadetalhes.

Sob esta ardilosa desculpa fui recebido pelamãe do deputadomorto,umaimponente,earistocrática igura,emboradesaúdeobviamentefrágil,e após breve troca de palavras, iquei em liberdade para começar asinvestigações.

Meu amigo, tem alguma ideia das di iculdades da minha tarefa?(perguntou-mePoirot).Tratava-sedeumamorteocorridahátrêsdias.Setivessehavidoumcrime,umaúnicapossibilidadeeraadmissível:veneno!Eocorpoestavaforadealcance,enãohaviapossibilidadedeexaminarouanalisarqualquerveículoemqueovenenopudessetersidoadministrado.Nãohaviapistas,falsasougenuínas.Tratava-sedeumenvenenamento,oudeumamortenatural?Cumpriaamim,HerculePoirot,decidir, semnadaemquemepudessebasear.

Inicialmente interroguei os empregados, e comsua ajuda reconstituí oserão. Dediquei uma atenção especial à comida e à maneira como foraservida.OpróprioM.Déroulardserviraasopadeumasopeira.Osegundoprato foi de costeletas, seguido de galinha. Finalmente uma compota defrutas, tudo colocado na mesa e servido pelo próprio dono da casa. Umgrandebuledecafécompletaraarefeição.Portantofuiobrigadoaexcluiro jantar,monami.Nãohaviapossibilidadedeenvenenarumapessoasemenvenenaratodos!

Após o jantar, Madame Déroulard se retirara para seus aposentosacompanhada porMademoiselle Virginie.Os três homenshaviampassadoaoescritóriodeM.Déroulard,ondeconversavamanimadamenteháalgumtempo, quando de repente, sem nenhum aviso, o deputado tombarapesadamenteaosolo.M.deSaintAlardcorreraparapediraFrançoisquechamasse imediatamente o médico, acreditando tratar-se de umaapoplexia.Masquandoestechegou,opacientejáhaviafalecido.

Mr.JohnWilson,aquemfuiapresentadoporMademoiselleVirginie,eraumtípicoecorpulentoinglêsdemeia-idade.Seurelato,numfrancêsmuitobritânico, foi basicamente omesmo:—Déroulard icou coma caramuito

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vermelha,ecaiu.Foi tudo que pude obter. Em seguida, dirigi-me à cena da tragédia e

pedi que me deixassem só, Até ali nada encontrara que corroborasse ateoria deMademoiselle Mesnard. Estava quase certo de que fora umafantasiasua.Eraevidentequenutriraumapaixãoromânticapelomorto,eeste fatonão lhepermitia encarar o casonormalmente.Apesardisso, deiuma busca meticulosa no escritório, pois era possível que uma seringahipodérmicahouvessesidoinseridadetalmodonapoltronadomorto,quelhe injetasse uma dose fatal de veneno ao sentar-se. Aminúscula picadanem seria notada, provavelmente.Mas não descobri nenhum indício quedesseforçaaessateoria.Deixei-mecairnumacadeira,desalentado.

—Ah,voudesistir!—disseeuemvozalta.—Nãoháindícios,tudoestáperfeitamentenormal.

Malpronunciaraessaspalavrasquandomeuolharfoiatraídoporumagrandecaixadechocolatessobreumamesinha.Meucoraçãodeuumpulo.Talvez não fosse uma pista, mas inalmente encontrara algo fora danormalidade. Levantei a tampa. O conteúdo não fora tocado, nem um sóchocolateestavafaltando,masessefatotornavaodetalhequemechamaraa atenção ainda mais estranho. Pois, Hastings, embora a caixapropriamenteditafosserosa,atampaera azul.É frequenteencontrarmosuma ita azul numa caixa rosa, e vice-versa, mas a base de uma cor e atampadeoutra,não,decididamentenão,çanesevoitjamais!

Aindanãopercebiaaondeaqueladescobertapoderiamelevar,masdequalquer forma resolvi investigar, por se tratar de um detalhe estranho.Chamei François pela campainha, e perguntei-lhe se seu falecido patrãofora um apreciador de bombons. Um leve sorrisomelancólico pairou emseuslábios.

—Eradoidoporeles,monsieur.Faziaquestãodetersempreumacaixadechocolatesemcasa.Elenãobebianenhumaespéciedebebidaalcoólica,sabe.

—Mas esta caixa nem chegou a ser tocada— disse eu levantando atampaparamostrar-lheoconteúdo.

— Esta é a caixa nova comprada no dia de sua morte, pois a outraestavaquasevazia.

—Entãoesvaziaram-nanessedia...—Éverdade,monsieur.Encontrei-avazianamanhãseguinte,eajoguei

fora.

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—M.Déroulardcostumavacomerbombonsodiainteiro?—Geralmentesódepoisdojantar,monsieur.Umaluzacendeu-seemmeuespírito.—François,possoconfiaremsuadiscrição?—Sehouvernecessidade,senhor.—Bon! Vou con iar em si. Sou da polícia. Sabe onde está essa outra

caixa.—Semdúvida,senhor.Deveestarnalatadelixo.Elesaiuevoltoudentrodepoucosminutoscomumobjetoempoeirado.

Eraaduplicadadaoutracaixa,sóquecomascorestrocadas,abasedestaeraazuleatamparosa.AgradeciaFrançois,recomendei-lhemaisumavezque fosse discreto e, semmais, deixei a casa da Avenue Louise. ProcureiemseguidaomédicoqueatenderaM.Déroulard.Dialogarcomelefoiumatarefa delicada. Entrincheirou-se por trás de um jargão técnico, massuspeiteidequenãoseencontravatãotranquiloquantodesejaria.

— Casos curiosos acontecem — ele comentou depois que conseguidesarmá-lo um pouco. — Uma explosão de raiva, uma emoção violenta,depoisdeumlautojantar,c’estentendu,eosanguesobeàcabeçaepronto,dá-seodesastre!

—MasM.Déroulardnãotevenenhumaemoçãoviolenta.— Não? Pois segundo me disseram estava no meio de uma acirrada

discussãocomM.deSaintAlard.—Arespeitodequê?—C’estévident!—omédicoencolheuosombros.—M.deSaintAlardé

um católico fanático e a amizade dos dois estavamuito abalada por essadivergênciaentreoEstadoeaIgreja.Elesdiscutiamtodososdias.ParaM.de Saint Alard, Déroulard estava se transformando num verdadeiroAnticristo.

Eraumainformaçãoinesperada,edeu-meoquepensar.— Sómais uma pergunta, doutor: seria possível introduzir uma dose

fataldevenenonumchocolate?— Creio que sim — disse o médico lentamente. — Poder-se-ia usar

ácido prússico se não houvesse evaporação, ou talvez encher o bombomcomminúsculosglóbulosdeuma

substânciaqualquervenenosa,oquenãomeparecemuitoplausível.Ou

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ainda um bombom cheio de mor ina ou estriquinina — e ele fez umacareta—umasómordidaseriasuficiente,M.Poirot!

—Obrigado,M.ledocteur.Retirei-me. Em seguida corri às farmácias, especialmente as da

vizinhança da Avenue Louise. É prático pertencer à polícia; consegui asinformações que desejava sem muita di iculdade. Uma única soluçãovenenosa fora preparada para aquele endereço: tratava-se de um colíriode sulfato de atropina para Madame Déroulard. Atropina é um venenopoderoso e por um instante me senti exultante, mas os sintomas deenvenenamento por atropina são bastante semelhantes aos de umaintoxicaçãoalimentar,oquenãoocorreranocasoemquestão.Alémdissoareceita era antiga, Madame Déroulard sofria hámuitos anos de catarataemambososolhos.

Ia saindo, desanimado, quando o farmacêutico me chamou: —Unmoment.M.Poirot, lembrei-medeumacoisa.Amoçaquetrouxeareceitadissequeprecisavairàfarmáciadosingleses.Tenteporlá.

Foi o que iz, e consegui a informação usando minhas prerrogativaso iciais.NavésperadamortedeM.Déroulard,haviamaviadoumareceitapara Mr. John Wilson, coisa simples, uns minúsculos comprimidos detrinitrina. O farmacêutico foi buscá-los, e meu coração começou a batermaisdepressa,poisospequenoscomprimidoseramdechocolate.

—Essasubstânciaévenenosa?—perguntei.—Não,monsieur.—Queefeitosproduz?— Abaixa a pressão sanguínea. É indicada para alguns males do

coração,angina pectoris, por exemplo. Alivia a tensão arterial. Emarterioesclerose...

Eu o interrompi: —Ma foi! Esse palavrório está complicado demais.Acasoatrinitrinafazosanguesubiraorosto?

—Certamente.— E se eu engolisse dez ou vinte desses comprimidos, o que

aconteceria?—Nãooaconselhariaatentar—foiseucomentárioseco.—Eapesardisso,aindadizquenãoévenenosa?—Hámuitassubstânciasnãovenenosascapazesdematarumhomem

—elerespondeunomesmotom.

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Deixeiexultantea farmácia.A inal,osacontecimentos seprecipitavam.Sabia agoraque JohnWilson tivera em seupoder osmeiosde cometer ocrime,mas,eomotivo?ElevieraàBélgicaanegócios,e tinhapedidoaM.Déroulard, que conhecia super icialmente, para hospedá-lo.Aparentemente, a morte deste em nada o bene iciava. Além disso,informações da Inglaterra con irmaram que sofria há anos de umadolorosa doença do coração chamada angina. Tinha pois uma razãolegítima para ter os comprimidos de trinitrina em seu poder. Mas dequalquer forma, eu estava convencido de que alguém, depois de abrirprimeiro a outra caixa por engano, pegara um dos últimos bombons,retirara o recheio, e o atulhara deminúsculos comprimidos de trinitrina,unsvinteatrinta,possivelmente.Masquem?

Haviadoishóspedesnacasa. JohnWilsonpossuíraaarmadocrime,eSaintAlard,omotivo.Lembre-se,eleeraumfaná-tico,enãohá fanatismopior que o religioso. Será que de alguma forma ele poderia ter-seapoderadodatrinitrina?

Outra ideiame ocorreu. Ah, não ria dasminhas pequenas ideias! PorqueWilsonteriatidonecessidadedecomprarmaistrinitrina?Certamenteele deveria ter viajado com um suprimento adequado. Voltei à casa daAvenueLouise.Wilsonnãoestava,mas faleicomacriadaencarregadadaarrumação de seu quarto, Félicie. Perguntei-lhe se acaso o vidro deremédio de Mr. Wilson não se extraviara há algum tempo? A moçacon irmou minhas suspeitas imediatamente. Era verdade, e ela, Félicie,levaraaculpa.Ocavalheiroinglêshaviaevidentementepensadoqueelaoquebrara, embora não o tivesse dito. E ela nem ao menos o tocara, semdúvidaforaJeanette,quesempremetiaonarizondenãoerachamada.

Tranquilizei-aemeretirei.Agorasabiatudoqueeranecessáriosaber.Sómefaltavamasprovas,eestasnãoseriarafáceisdeobter. EupodiatercertezadequeSaintAlardpegaraovidrodetrinitrinadolavatóriodeJohnWilson, mas precisava de provas para convencer outras pessoas, e nãotinhanenhuma.

Não me a ligi.Eu sabia, isto era o importante. Lembra-se de nossasatribulações no caso Styles, Hastings? Naquela época também, eu sabia,mas não fora fácil achar o último elo da cadeia que incriminaria oassassino. Pedi para falar comMademoiselle Mesnard, Ela veioimediatamente. Pedi-lhe o endereço de M. de Saint Alard. Seu rostoassumiuumaexpressãopreocupada.

—Paraque,monsieur?

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—Énecessário,mademoiselle.Comumtomdedúvidaepreocupação,eladisse:— Ele nada lhe poderá informar, não pensa nas coisas dessemundo.

Malvêoquesepassaemtornodesi.— É possível,mademoiselle. Mas ele era um velho amigo de M.

Déroulard. Talvez possame contar fatos do passado, velhas rixas, velhoscasosdeamor.

Amoçacorouemordeuoslábios.—Como queira,mas agora estou certa de queme enganei. Foimuita

bondade sua aceder ao meu pedido, mas eu estava nervosa, quasetranstornada, naquela altura. Agora vejo que não há mistério algum.Desista,eulhepeço,monsieur.

Olhei-aatentamente.—Mademoiselle—disse-lhe—,algumasvezesumcãotemdi iculdade

emdescobrir o rastro de uma caça,mas depois que a fareja, nada dessemundofaráqueaabandone!Istoseforumbomcão,eeu,HerculePoirot,souumesplêndidocãodecaça,mademoiselle.

Sem mais uma palavra ela retirou-se, e poucos minutos depoisregressou com uma folha de papel onde escrevera um endereço. Saí.Françoisestavaaminhaesperadoladodefora.Olhou-mecomansiedade.

—Algumanovidade,monsieur?—Aindanão,meuamigo.— Ah!PauvreMonsieur Déroulard — e ele suspirou. — Eu também

pensavacomoele.Nãogostodepadres,masnuncadiriaissoládentro.Asmulheresdacasasãomuitoreligiosas,oque talvezsejabom.Madame esttrèspieuse, etMademoiselleVirginieaussi, Mademoiselle Virginie? Seria ela“très pieuse”? Tive minhas dúvidas, lembrando-me do seu rostotranstornadodaquelaprimeiraentrevista.TendoobtidooendereçodeM.deSaintAlard, nãoperdi tempo.Hospedei-menos arredoresde sua casade campo em Ardennes, mas alguns dias se passaram antes quearranjasseumpretextoparaalipenetrar.A inalconsegui,eadivinhecomo,meuamigo!Comobombeiro.Nãogasteimuitosminutosparaprovocarumpequeno vazamento de gás em seu quarto. Retirei-me para buscarferramentas, e só voltei quando calculei que o campo estaria livre. Nemmesmo sabia o que procurava. Nãome parecia crível que conservasse aprovaincriminatória,nãocorreriatamanhorisco.

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Mas quando descobri que o pequeno armário sobre a pia estavafechadoa chave,nãopude resistir à tentaçãodeexaminaro seu interior.Forcei a fechadura, de um tipomuito simples, e deparei com prateleirasrepletas de velhos medicamentos. Examinei-os um a um, com a mãotrêmula.Umgritomeescapousubitamente.Adivinheoque tinhanamão,meuamigo:umvidracomumrótulodeumafarmácia inglesaonde lia-se:“ComprimidosdeTrinitrina.Dose:umcomprimido,quandonecessário.Mr.JohnWilson.”

Contivemeu entusiasmo, fechei o armarinho, coloquei o vidro nomeubolsoecontinueiaconsertarovazamento.Éfundamentalagircommétodo,Hastings.Sóentãodeixeiacasae tomeioprimeirotremparaomeupaís.ChegueiaBruxelastardedanoite.Escreviaumrelatórioparao préfet, demanhã, quando recebi um bilhete da velha Madame Déroulard, pedindoquefosseàcasadaAvenueLouisesemdemora.

Françoisabriu-meaporta.—Abaronesaestáasuaespera.Encontrei-asentadanumaamplacadeiradebraços,emseusaposentos.

NãovisinaldeMademoiselleVirginie.—M.Poirot—disseavelhasenhora—,soubehápoucoqueosenhoré

funcionáriodapolícia,enãoumjornalista.—Éverdade,madame.—Veioinvestigarascircunstânciasemquemeufilhofaleceu?—Éverdade,madame—repeti.—Gostariadeserinformadasobreosprogressosdainvestigação.Hesitei.—Comodescobriu,madame?—Poralguémquejánãopertencemaisaestemundo.Suas palavras e seu ar sombrio provocaram-me um estremecimento.

Nãosoubeoquedizer.—Monsieur,conte-medetalhadamenteoquedescobriu.—Madame,ainvestigaçãochegouaofim.—Eamortedemeufilho?—Elefoienvenenado.—Sabeporquem?—Sei,madame.—Quemfoi?

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—M.deSaintAlard.A velha senhora sacudiu a cabeça numa negativa. — O senhor está

errado.M.deSaintAlardéincapazdecometerumcrime.—Tenhoprovas.—Peço-lhemaisumavezmecontetudo.Desta vez, obedeci, descrevendo cada passo da investigação, até a

descobertadaverdade.Elaouviacomatenção.Nofinal,balançouacabeça:—Suasdeduçõesestãotodascorretas,menosuma.NãofoiM.deSaint

Alardquemmatoumeufilho.Fuieu,suamãe.Encarei-a, sem poder desviar os olhos. Ela continuou a balançar a

cabeçamuitosuavemente.—Ainda bemquemandei chamá-lo, dou graças à ProvidênciaDivina.

Virginiecontou-meoque izera,antesdepartirparaoconvento.Ouça,M.Poirot!Meufilhoeraum

homemmau. Perseguia a Igreja, vivia em pecado mortal, e arrastavaconsigooutrasalmas.Masnãoésó.Umamanhã,quandosaíadestequarto,vi minha nora lendo uma carta em pé, junto às escadas. Vi quandomeuilho esgueirou-se por trás dela e deu-lhe um forte empurrão. Ela caiu epartiuocrânionosdegrausdemármore.Jáestavamortaquandoaforamsocorrer.Meufilhoeraumassassino,esomenteeu,suamãe,sabia.

Elafechouosolhosporummomento.— O senhor não pode perceber minha agonia, meu desespero,

monsieur.Oquedeveriaeufazer?Denunciá-loàpolícia?Nãoconseguimeobrigaraisto.Erameudever,masminhacarneéfraca.Alémdisso,quemacreditaria?Minhavisãovemdiminuindoháalgumtempo,diriamquemeenganara.Guardeisilêncio,masminhaconsciêncianãomedeixouempaz,pois silenciando estava sendo cúmplice de seu crime.Meu ilho herdou odinheiro da mulher, e sua carreira teve um grande impulso. Iria sernomeado ministro, sua perseguição à Igreja recrudesceria. E haviaVirginie.Apobrecriança,bela,piedosa,estavafascinadaporele.Meu ilhotinhaumestranhoeterrívelpodersobreasmulheres.Vioqueiria

acontecer, não tinha forças para impedir, e ele não tinha nenhumaintenção de casar-se com ela. E Virginie estava prestes a entregar-setotalmente.

Vimeucaminhoclaramente.Eleerameu ilho,eudera-lheavidaeeraresponsável por ele. Paul matara o corpo de uma mulher e agora iria

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destruiraalmadeoutra!FuiaoquartodeMr.Wilsonepegueiovidrodecomprimidos.Umavezeledisserarindoqueoseuconteúdoerasu icienteparamatar umhomem! Fui ao escritório e abri a caixa de bombons quesemprehaviasobreamesa.Porenganoabrianovaqueestavaaolado.Naoutra só havia um bombom, o que simpli icava as coisas. Só meu ilho eVirginiegostavamdechocolate,eeuamanteriaameuladonaquelanoite.Tudodecorreucomoeuhaviaplanejado...

Elacalou-se,fechouosolhosporalgunsinstanteseostornouaabrir:—M.Poirot,estouemsuasmãos.Dizemquetenhopoucosdiasdevida.EstouprontaaresponderpormeusatosdiantedemeuCriador.Devoresponderporeles,aquitambém?

Hesitei.—Mas e o vidro vazio,madame?—perguntei para ganhar tempo.—

ComofoipararentreosobjetosdeM.deSaintAlard?—Quandoeleveiosedespedirdemim,coloqueiovidroemseubolso,

semqueovisse.Nãosabiacomome livrardele,monsieur.Estou tão fracaque não possome locomover sem auxílio, e se alguém o encontrasse emmeuquarto,vazio,poderia tersuspeitas.Entenda,monsieur—elaergueua cabeça com grande dignidade—, nunca tive a intenção de desviar assuspeitas para M. de Saint Alard, nunca pensei nisso. Julguei que o seucriado de quarto acharia o vidro vazio e o jogaria fora, sem fazerperguntas.

—Compreendo,madame—ecurveiminhacabeçadiantedela.—Equalasuadecisão,monsieur?Suavozerafirme,inabalável,emantinhaacabeçaerguida.Levantei-me. — Madame, tenho a honra de desejar-lhe um bom dia.

Minhasinvestigaçõesterminaram,fracassei.Ocasoestáencerrado.Poirot icouemsilêncioporummomentoeentãodissepausadamente:

—Elamorreudaliaumasemana.MademoiselleVirginiecompletouseunoviciadoefezvotosperpétuos.E

estaéahistória,meuamigo.Devoadmitirquenãotiveumbelopapelnela.—Masnãovejoporqueaconsideraumfracasso—protestei.—Oque

maispoderiafazeremtaiscircunstâncias?—Ah,sacré,monami—exclamouPoirotsubitamenteexaltado.—Mas

vocênãopercebe?Banqueioidiotacompleto!Minhascélulascinzentasnãofuncionaram, o tempo todo, apistaque levaria à verdade estavabemem

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frenteameusolhos!—Quepista?—Acaixadechocolates!Nãopercebe?Ninguémcomumavisãoperfeita

cometeria tal erro. E eu sabia queMadame Déroulard sofria de cataratapelasgotasdeatropina.Eraaúnicapessoadacasaqueenxergavatãomalque seria capaz de trocar as tampas. Foi a caixa de chocolates que medespertou as suspeitas, mas apesar disso, até o inal fui incapaz deperceberseusigni icadoreal!Eminhapsicologiatambémfalhou.SeM.deSaintAlardfosseocriminosojamaisguardariaovidroincriminador.Achá-lofoiprovadesuainocência.Notodofoiumcasodeplorável,emeupapelnãofoimelhor.Umavelhasenhoracometeumcrimedeformatãosimplese inteligente que engana completamente a. mim, Hercule Poirot.Sapristi!Nãoadiantaremoerofato,émelhoresquecê-lo...outalveznão!Tenhaistosempre emmente, e se algumavez achar que estou icando convencido...Nãoémuitoprovável,maspodeacontecer.

Reprimiumsorriso.— Eh bien, meu amigo, então você me dirá: “Caixa de chocolates”.

Estamoscombinados?—Certamente.—A inal—dissePoirotcomumarpensativo—,valeuaexperiência.E

eu, que sou o cérebro mais poderoso da Europa no momento, pude memostrargeneroso.

—Caixadechocolates—murmureibaixinho.—Pardon,monami?Olheiparaa expressão inocentedePoirot, emeu coração confrangeu-

se.Passaramauspedaçosemsuasmãos,masemboraeunãopossuísseocérebromaispoderosodaEuropa,podiasergeneroso.

—Nãofoinada—menti,esorrindoacendimeucachimbo.

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OsPlanosdoSubmarino

Um mensageiro especial trouxera-nos um bilhete. Os olhos de Poirotbrilharam de entusiasmo e interesse enquanto o lia. Despediu o homemcomalgumaspoucaspalavrasevirou-separamim:—Arrumeamalabemdepressa,meuamigo.VamosaSharples.

À menção da famosa casa de campo de Lorde Alloway tive umsobressalto. Recentemente nomeado Ministro da Defesa, Lorde Allowayeraummembro importantedoGabinete.ElesedestacaranaCâmaradosComuns, ainda como Sir Ralph Curtis, chefe de uma grande irma deengenharia,eagoramencionava-seinsistentementeoseunomecomoodohomemdomomento,e seriaprovavelmente indicadopara formarummi-nistério se os boatos sobre o estado de saúde de Mr. David MacAdamfossemverdadeiros.

UmgrandeRolls-Roycenosesperavaembaixo,eenquantocortávamosaescuridão,enchiPoirotdeperguntas.

— Que diabos eles querem de nós a esta hora da noite? — O meurelógioacusavaonzeedez.

Poirotsacudiuacabeça.—Algomuitourgente,semdúvida.— Lembro-me de que há alguns anos, o então Ralph Curtis foi

envolvido em um escândalo, uma trapaça com títulos, se nãome engano.Terminou sendo completamente inocentado. Será que algo semelhantetornouaocorrer?

— Não justi icaria esse chamado no meio da noite, não acha, meuamigo?

Fui forçado a concordar, e o resto da viagem decorreu em silêncio.QuandosaímosdeLondresapoderosamáquinaaumentoudevelocidadeechegamos a Sharples pouco antes da umahora.Um imponentemordomonos conduziu imediatamenteaumpequenogabineteondeLordeAllowaynos esperava. O homem alto e esbelto que irradiava força e vitalidadelevantou-separanosreceber.

—M.Poirot,estouencantadoemvê-lo.Éasegundavezqueogovernorecorreaseusserviços.Lembro-memuitobemdoquefezpornósdurante

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a guerra, quando o Primeiro-Ministro foi raptado daquela formainacreditável. Suas deduções magistrais — e devo acrescentar, suadiscrição—salvaramasituação.

UmlampejopassoupelosolhosdePoirot.—Possodeduzirqueesteéoutrocasoaexigir...discrição,milorde?—Totaleabsoluta,M.Poirot.Ah,deixe-meapresentá-lo:AlmiranteSir

HarryWeardale,PrimeiroLordedoAlmirantado...M.Poirot.EoCapitão...—Hastings—completei.—Tenhoouvidofalarcomfrequêncianosenhor,M.Poirot—disseSir

Harryapertando-lheamão.—Estamosdiantedeumenigmainexplicável,esepuderresolvê-loficar-lhe-emosextremamentegratos.

Era um o icial de marinha do tipo antigo, de uma franqueza rude, esimpatizeiimediatamentecomele.

Poirot icouà esperade suas revelações, eAlloway tomouadianteira:—Osenhorcompreende,certamente,queesteéumassuntocon idencial,M. Poirot. Sofremos há pouco uma séria perda. Os planos do novosubmarinoZforamroubados.

—Quandosedeuofato?— Esta noite, há menos de três horas. Talvez o senhor avalie quão

desastroso istoé.É fundamentalqueo fatonãopasseaodomíniopúblico.Mas far-lhe-ei um resumo dos acontecimentos. Neste im de semana, oalmirante, sua esposa, seu ilho, e Mrs. Conrad, uma senhora bemconhecida da socie-dade londrina, são meus hóspedes. As senhorasretiraram-secedo,porvoltadasdezhoras,logoseguidasporMr.LeonardWeardale. Sir Harry está aqui em parte para deliberarmos sobre aconstruçãodessenovotipodesubmarino,eassimpediaMr.Fitzroy,meusecretário, que retirasse os planos daquele cofre ali, para que ospudéssemos examinar Juntamente com outros documentos relativos aoassunto.

— Enquanto ele se desincumbia dessa tarefa — prosseguiu LordeAlloway—,oAlmiranteeeufomosdarumavoltapeloterraço,saboreandonossos cachimbos e apreciando a noite agradável de junho. A inalresolvemos iniciar nosso trabalho e íamos voltando quando tive aimpressão de ver um vulto sair por esta porta envidraçada, atravessar oterraçoedesaparecer.Nãodeimuitaatençãoaofato,entretanto.SabiaqueFitzroyestavaaquienãomepassoupelacabeçaquepudessehaveralgo

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errado. Foi esse o meu erro. Bem, entramos no gabinete pela portaenvidraçada do terraço e no mesmo ins-tante vimos Fitzroy entrar pelaportadovestíbulo.

—Jáaprontoutodosospapéisquelhepedi,Fitzroy?—perguntei.— Já, Lorde Alloway. Estão sobre a escrivaninha — e desejando-nos

umaboanoite,dirigiu-separaaporta.— Espere um minuto — disse eu indo até a escrivaninha. — Posso

precisardemaisalgumacoisa.Examineirapidamenteospapéisquealiestavam.—Você seesqueceudomais importante,Fitzroy—disseeu.—Onde

estãoosplanosdosubmarino?—Osplanosestãobememcima,LordeAlloway.—Não,nãoestão—disseeuexaminandomaisumavezospapéis.—Maseuoscoloqueiaínãofazumminuto!—Bem,elesnãoestãoaquiagora.Fitzroy aproximou-se com uma expressão de espanto no rosto, sem

acreditar. Conferimos os papéis que estavam sobre a escrivaninha,revistamosocofreefinalmentetivemosque

admitir o fato: os planos haviam desaparecido no breve intervalo detrêsminutosemqueFitzroyseausentaradoaposento.

—Porqueelesaiudogabinete?—interveioPoirot.— Foi a primeira pergunta que lhe iz! — exclamou Sir Harry. —

Justamente quando acabara de arrumar os papéis sobre a escrivaninhaouviuumgritodemulher.Precipitou-separaovestíbuloeviunasescadasacriadinhafrancesadeMrs.Conrad,muitopálidaecomumarassustado.Amoçadissequeviraumfantasma,umvultoalto,vestidodebranco,quesemoviasemruído.Fitzroyriu,achandograçaemseusreceios,eadvertiu-a, de forma cortês, para que não bancasse a tola. Voltava ao gabinetequandoentramospelaportaenvidraçada.

—Ocasoparececlaro—dissePoirotpensativo.—Minhadúvidaéseacriadaécúmplice.Teriagritadoseguindoumacombinaçãopréviacomumassecla, ou acaso alguém estaria somente esperando uma oportunidadepropícia?Ovultoqueo senhorvislumbroueradeumhomemoudeumamulher?

—Nãopossoprecisar,M.Poirot.Foisóumasombra.

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OAlmirantepigarreoudeumaformatãoestranhaqueatraiuaatenção.—OAlmirante parece ter algo a dizer— sugeriu Poirot comum leve

sorriso.—Viuasombra,SirHarry?—Não,nãovi—retrucouooutro—,eAllowaytambémnão.Deveter

visto algum ramo de árvore agitado pelo vento, e quando descobrimos oroubomaistarde,essa imagemtransformou-seemsuamentenovultodeumladrão,masfoisóoprodutodesuaimaginação.

— Muitos me julgam totalmente desprovido de tal atributo — disseLordeAllowaycombomhumor.

— Bobagem, todos nós possuímos imaginação, e facilmente nosconvencemos de ter visto mais que a realidade. Tenho uma longaexperiência nomar e con io emmeus olhos. Estava olhando diretamenteemfrentenoterraço,eteriavistoessasombrasehouvessealgoparaver.

O Almirante estava in lamado e parecia categórico sobre o assunto.Poirot levantou-se com um ar decidido e dirigiu-se para a portaenvidraçadadoterraço.

— Com sua permissão, precisamos esclarecer logo este ponto, se forpossível.

Nós o seguimos. Ele tirou uma lanterna elétrica do bolso e começou aexaminaragramaaolongodoterraço.A inaldesligoualanternaeergueu-se.

—SirHarrytemrazão.Osenhorequivocou-se,LordeAlloway—disseelecomgentileza.—Choveufortenocomeçodanoite.Sealguémhouvessepassadoporaquideixariapegadas,enãohámarcasdeespéciealguma.

Lorde Alloway assumiu uma expressão de perplexidade enquanto oAlmirante se mostrava visivelmente satisfeito: — Sabia que não estavaerrado.Tenhoplenaconfiançaemminhavisão.

Era tão semelhante ao protótipo do velho e honesto lobo domar quenãopudedeixardesorrir.

—Eistonoslevaaosocupantesdacasa—dissePoirotpausadamente.— Vamos entrar. Milorde, será que alguém poderia ter entrado pelovestíbuloenquantoFitzroyfalavacomacriadanasescadas?

LordeAllowaysacudiuacabeçanumanegativa.—Absolutamenteimpossível.Teriamquepassarporeleparachegaraogabinete.

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—Eosenhortemplenaconfiançaemseusecretário?LordeAllowaycorou.—Absoluta,M.Poirot.Respondoporele,comtodaatranquilidade.Não

épossívelqueestejaenvolvidonesseassunto.—Nadaparece ser possível— comentouPoirot secamente.—Talvez

os planos tenham criado asas e voado,commeça!— e Poirot, lembrandoumcômicoquerubim,encheuasbochechaseassoprou.

—Émesmo inacreditável— concordou Lorde Alloway impaciente.—Maspeço-lhequenem sonhe emdescon iar de Fitzroy. E se ele quisesseroubarosplanosseria facílimo,emsuaposição, tirarumacópiadelesemvezdearriscar-seassim.

—Milorde,asuadeduçãoébienjuste—dissePoirotcomaprovação.—Vejoquetemumamenteordenadaemetódica.L’Angleterredeveorgulhar-sedetê-locomofilho.

LordeAlloway icousemjeitoanteesseinesperadoelogio.Poirotvoltouaoassunto.

—Oaposentoparaoqualossenhoresseretiraramapósojantar...—Asaladeestar?—Tambémpossui umaporta para o terraçopor onde saíram, não é?

Acasonãoseriapossívelalguémsairdasaladeestar,passarpeloterraçoeentrarnogabineteenquantoFitzroyestavaentretidonasescadas?

—Masnósoteríamosvisto—protestouoAlmirante.— Não se estivessem de costas, andando para a extremidade do

terraço.— Fitzroy só se ausentou do gabinete uns poucos minutos, o tempo

justoparaquefôssemosaofimdoterraçoevoltássemos.—Não importa, é umapossibilidade.Na verdade é a única queposso

vislumbrarnomomento.—Masnãoficouninguémnasaladeestarquandosaímos.—Alguémpodeterentradomaistarde.— Está querendo dizer que quando Fitzroy ouviu o grito da criada e

saiu, alguém que estava escondido na sala de estar passou rapidamentepelo terraço, apoderou-se dos planos e voltou a sala de estar? —perguntouLordeAlloway.

— A mente metódica revela-se novamente — disse Poirot com uma

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mesura.—Osenhordescreveuaaçãodeformaperfeita.—Talveztenhasidoumdoscriados.—Outalvezumhóspede.FoiacriadadeMrs.Conradquemgritou.Que

informaçõespodemeforneceracercadessasenhora?LordeAllowayrefletiuumminuto.— É uma senhora bastante conhecida na alta sociedade. Costuma

oferecer grandes recepções, e é recebida em toda parte. Mas pouco sesabeacercadesuasverdadeirasorigensedeseupassado.Ela frequentamuito os meios diplomáticos, e o Serviço Secreto está interessado emdescobriroporquê.

—Compreendo—dissePoirot.—Eelafoiconvidadaparapassaraquiofimdesemana...

—Paraquepudéssemosobservá-ladeperto.— Parfaitement! E é possível que ela tenha conseguido inverter a

jogadacommuitahabilidade.LordeAlloway icou comumardesconcertadoePoirotprosseguiu:—

Milorde,acaso izeram,empresençadela,algumareferênciaaosassuntosqueiriamdebater?

—Fizemos— admitiu LordeAlloway.— SirHarry disse: “E agora aotrabalho!Vamos ao nosso submarino!”, ou coisa semelhante.Os outros jásehaviamretirado,maselavoltaraparaapanharumlivro.

—Compreendo—dissePoirotpensativo.—Milorde, jáémuito tarde,mas o assunto é importante. Se fosse possível gostaria de interrogar oshóspedesagora.

—Certamente—disseLordeAlloway.—Opontodelicado équenãoqueremosqueanotíciaseespalhe.LadyJulietWeardaleeojovemLeonardsãodecon iança,masjáMrs.Conrad,seacasonãoforculpada,éumcasodiferente. Talvez o senhor possa se limitar a declarar que um papelimportante se extraviou, sem especi icar a sua natureza, nem entrar emdetalhessobreascircunstânciasdeseudesaparecimento.

— É exatamente o que lhe ia propor— disse Poirot sorrindo.— Naverdade julgo umamedida recomendável para todos os três, pois até asmaisdevotadasesposas...

— Estou de acordo — disse Sir Harry. — Todas as mulheres falamdemais,pobrezinhas.Maseuprefeririaque Juliet jogassemenosbridgeefalasseumpoucomais.Mashojeemdiaparecequeasmulheressóestão

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satisfeitas se estão jogandooudançando!Vou lá emcima chamar Juliet eLeonard,Alloway.

—Obrigado. Eume encarregarei de chamar a criada francesa. Poirotvai querer vê-la, e ela poderá acordar a patroa. Vou tratar disso agora.EnquantoissomandareiFitzroyaqui.

Mr.Fitzroyeraumjovemmagroepálido,de pince-nezeumaexpressãosevera. Seu testemunho foi praticamente igual ao de Lorde Alloway,palavraporpalavra.

—Qualéasuateoria,Mr.Fitzroy?Mr.Fitzroyencolheuosombros.— Não há dúvida de que alguém enfronhado no assunto estava à

espreita lá fora. Ele podia ver o que estava acontecendo pela portaenvidraçada, e aproveitou-se da minha saída. É uma pena que LordeAllowaynãotenhacorridoemsuaperseguiçãoquandooviu.

Poirotnãoodesiludiu. Limitou-se aperguntar:—Acreditanahistóriadacriadafrancesaarespeitodetervistoumfantasma?

—Émuitopoucoprovável,nãoachaM.Poirot?—Masacreditaqueelaestavasendosincera?—Bem,nãopossodizer.Elapareciabemagitada.Estavacomasmãos

norosto.—Haha!—fezPoirotcomosehouvessefeitoumadescoberta.—Eela

ésemdúvidaumabonitamoça,não?—Nãoreparei—disseMr.Fitzroymuitosério.—Poracasoviuapatroadela?— Para falar a verdade, vi. Ela estava em cima na galeria e chamava

pelacriada:—“Leonie!”Entãomeviuenaturalmenteretirou-se.—Emcima...—repetiuPoirotcomatestafranzida.— Compreendo que os fatosme colocam numa posição desagradável,

oumelhor, colocariam se LordeAllowaynãohouvesse visto o intruso.Dequalquer forma gostaria de que revistassem o meu quarto e a minhapessoa.

—Érealmenteseudesejo?—Certamente.NãoseiqualteriasidoarespostadePoirotsenaquelemomentoLorde

Alloway não houvesse reaparecido para nos informar que as duas

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senhoraseMr.LeonardWeardaleesta-vamnasaladeestar.As duas mulheres trajavam atraentes négligées. Mrs. Conrad era uma

belamulherdeunstrintaecincoanos,comcabelosdouradoseumaligeiratendênciaparaoembonpoint.LadyJulietWeardaledeviaterunsquarenta,eraaltaemorena,muitomagra,aindabela,commãosepésdelicadoseumar tenso e irritado. Seu ilho era um jovem de aspecto efeminado, umcontrastegritanteaopairudeejovial.

Poirot proferiu o pequeno discurso que combináramos previamente,mostrando-seansiosoparasabersealguémviraououviraqualquercoisaque pudesse auxiliar-nos. Virou-se para Mrs. Conrad e pediu-lhe quefizesseumadescriçãodetodososseusmovimentosnaquelanoite.

— Deixe-me pensar... Subi e toquei a campainha para chamar minhacriada. Como ela não apareceu, saí para o corredor e a chamei, pois ouvisuavoznasescadas.Logodepoisqueelaescovoumeuscabelosadespedi,elaestavabastantenervosa.Liumpoucoemedeitei.

—Easenhora,LadyJuliet?—Subiefuidiretoparaacama.Estavamuitocansada.— Esqueceu-se do livro, querida?— perguntouMrs. Conrad com um

sorrisomaldoso.—Quelivro?—disseLadyJulietcorando.— Não se lembra de que estava subindo as escadas quando Leonie

desceu?Nãomedissequeforabuscarumlivronasaladeestar?—Ah,sim, foimesmo. Jáhaviameesquecido—eLady Juliettorceuas

mãosnumgestodenervosismo.—OuviuacriadadeMrs.Conradgritar.Milady?—Não.nãoouvi.—Écurioso,poisasenhoradeviaestarnasaiaaessaaltura.—Nãoouvinada—repetiuLadyJulietnumavozmaisfirme.Poirotvirou-separaojovemLeonard:—EMonsieur?—Nadafeito.Subidiretoemedeitei.Poirotpassouamãopeloqueixo:— Pelo jeito não obterei nada aqui.Mesdames, messieurs, lamento

muitíssimo ter interrompido o seu sono por tão pouco. Peço-lhes queaceitemminhasdesculpas.

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Sempredesculpando-seeleos levouaté aporta e voltou coma criadafrancesa, uma bonita moça com um ar atrevido. Alloway e Weardalehaviamacompanhadoassenhoras.

—Mademoiselle,agoradiga-meaverdade,nadadehistóriasfantásticas.Porquegritounaescadaria?

—Ah,monsieur,viumvultocomprido,tododebranco...Poirotainterrompeu,sacudindoenergicamenteoindicador:—Nãolhe

dissequenãoqueria saberdehistórias fantásticas?Deixe-meadivinhar...Eleabeijou,nãofoi?EstoufalandodeMr.LeonardWeardale.

—Ehbien,monsieur,quemalhánisso?—Acho atémuitonatural—dissePoirot galantemente.—Até eu e o

próprioHastingsficaríamostentados...Masconte-meoqueaconteceu.— Ele veio por trás e me agarrou. Levei um susto e gritei, mas se

soubesse que era ele não teria gritado. Então apareceuM. le secrétaire, eM. Leonard subiu as escadas correndo. E o que eu poderia dizer a umrapazcomoaquele,tellementcommeilfaut?Mafoi,inventeiumfantasma!

—Eestátudoexplicado—exclamouPoirotcomumsorriso.—Entãoasenhoritasubiuparaoquartodesuapatroa,nãofoi?Porfalarnisso,qualéoquartodela?

—Nofinaldocorredor,monsieur.Daqueleladodelá.— Bem em cima do gabinete, então.Bien,mademoiselle, não a deterei

mais.Edaprochainefois,nãogrite.Levouamoçaatéaportaevoltousorrindo.—Éumcasointeressante,não,Hastings?Começoaterumaspequenas

ideias...Etvous?—OqueLeonardWeardaleestavafazendonasescadas?Nãosimpatizo

comaquelejovem,Poirot.Creioqueéumde-pravado.—Tenhoamesmaimpressão,monami.—JáFitzroypareceserumcamaradahonesto.—ComoLordeAllowayfazquestãodeafirmar.—Masapesardissoháqualquercoisanele...— Que parece boa demais para ser verdade? Também tive essa

sensação. Por outro lado, nossa cara Mrs. Conrad é obviamente umelementoperigoso.

— E o quarto dela ica bem em cima do gabinete — disse eu para

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Poirot.Elesacudiuacabeçanumanegativacomumlevesorriso:—Não,mon

ami, não consigo imaginar aquela elegantíssima senhora descendo pelachaminéouescalandoparedes.

A essas palavras a porta se abriu e, paraminha surpresa, Lady Julietentroucomumarfurtivo.

—M.Poirot—elaestavaumtantoofegante—,possofalar-lheasós?—Milady, con io plenamente no Capitão Hastings. Pode ignorar a sua

presença.Sente-se,porfavor.Elasentou-se,sempreolhando ixamenteparaPoirot:—Oquetenhoa

dizer é bastante di ícil. O senhor está encarregado desse caso... Se ospapéis fossem devolvidos, isso encerraria o assunto? Quero saber se osaceitariam,semfazerperguntas.

Poirotencarou-a.— Deixe-me tentar entendê-la bem, madame. Esses planos me serão

entreguesedevodevolvê-losaLordeAllowaycomacondiçãodequenãofaçaperguntasarespeitodecomoosobtive.Éisso?

Elainclinouacabeça.—É issomesmo.Maspreciso tercertezadequeo fatonãose tornará

público.—CreioqueLordeAllowaynãofaránenhumaquestãodepublicidade

—dissePoirotmuitosério.—Aceita,então?—suavoztraíagrandeansiedade.—Ummomentinho,milady.Depende.Daquiaquantotempopoderáme

entregaressespapéis?—Quasedeimediato.Poirotconsultouorelógio.—Exatamenteaquehoras?—Digamos...daquiadezminutos—elasussurrou.—Aceito,milady.Elasaiuquasecorrendo.Solteiumassobio.—Oquededuzdisso,Hastings?—Bridge—respondisucintamente.—Ah,entãonãoseesqueceudaspalavras imprudentesdoAlmirante.

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Queboamemória!Euofelicito,Hastings.NãodissemosmaisnadapoisLordeAllowayentrou,lançandoumolhar

indagadoraPoirot.— Teve alguma ideia nova, M. Poirot? Receio que não tenha obtido

informaçõesmuitoesclarecedoras.— Ao contrário, milorde. Auxiliaram-me o su iciente. Minha

permanênciaaquinãoserámaisnecessária,ecomsuapermissãovoltareiimediatamenteaLondres.

LordeAllowayoolhouespantado.—Mas...masoquedescobriu?Sabecomquemestãoosplanos?— Sim, milorde, eu sei. Diga-me, se os papéis lhe forem devolvidos

anonimamente,desistiriadainvestigação?LordeAllowayoencarou.—Devolvidoscontraopagamentodeumaquantiaemdinheiro?—Não,milorde.Devolvidosincondicionalmente.— Naturalmente. O que importa é recuperarmos os planos— Lorde

Allowayfaloupausadamente.Aindatinhaumardeperplexidade.—Entãoeuoaconselhariaaconcordar.Sóosenhor,oAlmiranteeseu

secretário têm conhecimento do roubo, e só os três precisam saber queforam restituídos. Pode contar com o meu apoio irrestrito. Deixe aresponsabilidadecairsobreosmeusombros.Pediuqueeurecuperasseospapéis, e assimo iz. Podedizer que é tudoque o senhor sabe.—Poirotlevan-tou-se e estendeu-lhe a mão: — Milorde, estou feliz por tê-loconhecido.Tenhocon iançanosenhor,eemsuadedicaçãoa Inglaterra.Osenhorguiaráosdestinosdopaíscommãosfortesefirmes.

—M.Poirot,juro-lhequeempregareitodososmeusesforçosparaessefim.Podeserumdefeito,ouumavirtude,mastenhoféemmimmesmo!

— Como todo grande homem. Eu também! — disse Poirot comimponência.

Em poucosminutos o carro estava à nossa disposição. Lorde Allowaydespediu-sedenósnaentradadacasacomgrandecordialidade.

— Ele é um grande homem, Hastings — disse Poirot quandodeixávamos a propriedade. — Tem inteligência, iniciativa, energia. É ohomem forte que a Inglaterra necessita para guiá-la nessa fase di ícil dereconstrução.

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—Estouprontoaconcordarcomtudoisso,Poirot,maseLadyJuliet?Elairá entregar os planos diretamente a Alloway? O que irá pensar quandodescobrirquepartimossemumaúnicapalavradeexplicação?

— Hastings, vou lhe propor uma pergunta: Por que ela não meentregouosplanosnaquelemomento?

—Elanãoostinha.—Exato.Equanto tempogastariapara irbuscá-los emseuquartoou

emqualquer ponto da casa?Nãoprecisa responder, eumesmo lhe direi:provavelmente uns dois minutos e meio! Mas ela pediu dez. Por quê? Éevidente que pensava obtê-los de alguma outra pessoa, e precisaráargumentar até convencer esse alguémparaqueos entregue.Ora, quempode-rá ser essa pessoa? Não Mrs. Conrad, de forma alguma, mas ummembro de sua própria família, seu ilho ou seumarido. Qual dos dois émaisprovável?LeonardWeardaledissequefoidiretoparaacama,oquesabemosserfalso.Suponhamosqueamãetenhaidoaseuquartoenãootenha encontrado. Suponhamos que tenha descido imensamente receosa,poissabequeofilhonãoénenhumanjinho.Elanãooencontra,masoouvedeclararquenãosaiudeseuquarto.Elaconcluiqueeleéoladrão,evemme procurar. Mas, mon ami, sabemos de um fato queLady Juliet ignora.Sabemosqueseu ilhonãopoderiaterentradonogabinetepoisestavanasescadas, roubandobeijosda criadinhabonita. LeonardWeardale temumálibi,emborasuamãenãosaiba.

— Bem, então quem roubou os planos? Parece que eliminamos todomundo.LadyJuliet,ofilho,Mrs.Conrad,acriada...

— Exatamente. Use suas células cinzentas,meu amigo. A solução estábemnasuafrente.

Sacudiacabeçadesnorteado.— Mas a solução é óbvia! Se ao menos você perseverasse... Escute,

Fitzroy sai do gabinete e deixa os papéis sobre a mesa. Poucos minutosdepoisLordeAllowayentranoaposento,vaiatéaescrivaninhaeospapéisdesapareceram. Só há duas hipóteses: primeiro, Fitzroy não deixou ospapéissobreamesa,eosembolsou.Istonãoérazoável,poiscomoAllowaynos mostrou, ele poderia ter tirado uma cópia se quisesse. Segundo: ospapéis ainda estão sobre a escrivaninha quando Lorde Alloway seaproxima.Nestecasoelesforampararemseubolso.

—LordeAlloway,umladrão?—disseeuestupefato.—Masporquê,porquê?

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—Vocêmesmonãomefalousobreumescândaloemseupassado?Elefoi inocentado,mas suponhamos que tivesse culpa. Nem uma sombra desuspeitadevepairar sobreavidadeumpolítico inglês. Seo fatoviesseàtona e pudessemprovar sua culpa... adeus à sua carreira política. Vamossupor pois que ele estava sofrendo uma chantagem, e o preço fosse osplanosdosubmarino.

—Masentãoeleéumtraidorabjeto!—exclamei.—Não,elenãoénadadisso.Éumhomeminteligente,ehábil.Suponha

queele tenhacopiadoaquelesplanos fazendoalgumas ligeirasalteraçõesqueos tornem inexequíveis (poiséumengenheirocapaz).Eleentregaosplanos falsi icados ao agente inimigo (Mrs. Conrad, provavelmente), eencenaorouboparaqueacreditemquesãolegítimos.Fazopossívelparaafastar as suspeitas dos ocupantes da casa, ingindo ter visto um vultoatravessar o terraço. Mas não contava com a. atitude obstinada doAlmirante,eficaansiosoparaquenãosuspeitemosdeFitzroy.

—Tudoissonãopassadededuções,Poirot—protestei.— Mais que dedução, é psicologia,mon ami. Um homem capaz de

entregarosplanosverdadeirosaoinimigonãoteriaescrúpulosemdeixarque as suspeitas caíssem sobre outros. E por que estava tão preocupadoqueMrs. Conradnão tomasse conhecimentodas circunstâncias emqueorouboseefetuara?Porquelheentregaraosplanosmaiscedo,enãoqueriaqueelasoubessedahoradoroubo.

—Aindatenhoasminhasdúvidas.— Pois eu não. Meu diálogo com Lorde Alloway foi de um grande

homemparaoutro.Ofuturolhedirá!Uma coisa é certa. No dia em que Lorde Alloway tornou-se Primeiro-

Ministro,recebemosumchequeeumafotogra iaautografada,ondeselia:AomeudiscretoamigoHerculePoirot,Alloway.

SoubequeonovosubmarinoZémotivodegranderegozijonoscírculosnavais. Dizem que revolucionará as táticas de guerra naval. Ouvi dizertambém que certa potência estran-geira tentou construir um submarinosemelhante, mas a empreitada redundou num completo fracasso. Masainda creio que Poirot estava só arriscando um palpite. Qualquer diadesseselevaisedarmal!

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OApartamentodoTerceiroAndar

— Que diabo! — exclamou Pat, e com a testa franzida revirouimpacienteo conteúdode sua frágil carteirade seda.Dois jovens e outramoça a observavam ansiosos. Os quatro estavam em frente à. portafechadadoapartamentodePatríciaGarnett.

— Não adianta— disse Pat.— Não está aqui. E agora, o que vamosfazer?

—Dequevaleavidasemumachave?—murmurouJimmyFaulkener.Eraumrapazbaixodeombroslargoscomolhosazuisbem-humorados.

Patvirou-separaele,zangada.—Nãobrinque,Jimmy.Istoésério.—Procuremaisumavez,Pat—disseDonovanBailey.—Deveestaraí

mesmo— sua voz era pausada e agradável e combinava com seu vultoesbeltoemoreno.

—Seéquevocêatrouxe—disseaoutramoça,MildredHope.—Trouxe,sim—dissePat.—Creioqueadeiaumdevocêsdois—e

ela virou-se acusadoramente para os rapazes.—Disse a Donovan que aapanhasse.

Mas ela não conseguiria assim tão facilmente um bode expiatório.DonovanprotestoucomoapoiodeJimmy.

—Euviquandovocêacolocounabolsa—disseele.—Bem,entãoumdevocêsdoisaperdeuquandoapanhouminhabolsa.

Euadeixeicairumasduasvezes.— Duas vezes, nada! — disse Donovan. — Umas cinco, pelo menos,

alémdeesquecê-laemtodososlugaresporondeandamos.—Nãoseicomonãoperdetudooquetem—disseJimmy.—Aquestãoagoraé:comovamosentrar?—disseMildred,umagarota

sensata, que não se perdia em rodeios,masmuitomenos atraente que aimpulsivaetrapalhonaPat.

Osquatroolharamaporta,desnorteados.—Que tal chamar o porteiro?— sugeriu Jimmy.— Ele não tem uma

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chavemestra?Patsacudiuacabeça.Sóexistiamduaschaves.Umaestavapendurada

lánacozinhaeaoutradeveriaestaremsuamalfadadabolsa.— Se ao menos o apartamento fosse térreo — lamentou-se Pat. —

Poderíamosforçarumajanelaoucoisaassim.Donovan,queachada ideiadebancaroalpinistaeescalaressasparedes?

Donovanachouaideiapéssima.— Não está querendo muito, Pat? Um quarto andar é uma altura

respeitável—disseJimmy.—Eaescadadeincêndio?—lembrouDonovan.—Nãotemosescadadeincêndio.—Deviamter—disseJimmy.—Umprédiodecincoandaresdeviater

umaescadadeincêndio.—Tambémacho—dissePat.—Masissonãonosajudaemnada.Como

vouentraremcasa?— Vocês não têm um elevador de carga, por onde sobem as

mercadorias?— Temos, sim, mas é muito pequeno, praticamente só uma cesta de

metal.Ah,espereaí!Eoelevadordecarvão?—Ora,éumaboaideia—disseDonovan.Mildreddeuseupalpitedesanimador:— A porta de acesso deve estar trancada pelo lado de dentro, na

cozinhadePat.—Poiseunãocreio—disseDonovan.—Patnuncafechanadaachave—concordouJimmy.—Aportanãodeveestarfechada—dissePat.—Recolhialatadelixo

esta manhã e tenho certeza de que não a tranquei, e não cheguei maispertodela.

— Bem— disse Donovan—, essa sua omissão vai nos sermuito útilestanoite,masdequalquerforma,moçasemjuízo,deixe-mealertá-laqueesseshábitosdisplicentesadei-xamàmercêdosladrões.

Patnãofezcasodessaadvertência.— Venham— e com esse convite ela começou a descer correndo as

escadas. Pat os conduziu a um corredor escuro atulhadode carrinhosdebebê. Finalmente chegaram à área interna onde ela lhes mostrou o

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elevador,ocupadonomomentoporuma latade lixo.Donovanaretiroue,franzindo.onariz,subiunaplataformacomcautela.

—Essageringonçaéumbocadobarulhenta—elecomentou.—Maséo jeito. Devo me aventurar sozinho ou alguém está disposto a meacompanhar?

—Vou comvocê—disse Jimmyse colocandoao ladodeDonovan.—Esperoqueoelevadoraguenteonossopeso—eleacrescentoucomumardedúvida.

— Vocês não devem pesar mais do que uma tonelada de carvão —dissePatquenuncaforaboaemmatemática.

— Nós logo descobriremos— disse Donovan jovialmente, puxando acorda.

Comumrangidoestridenteoelevadorcomeçouasubir.— Que barulho horrível! — comentou Jimmy. — O que pensará o

pessoaldosoutrosandares?—Que somos fantasmas ou ladrões— disse Donovan.—Não é sopa

puxar essa corda.Oporteirodesse edi ício temum trabalhomaispesadodoqueeucalculava!Ei,Jimmy,amigovelho,estácontandoosandares?

—Oh,Deus!Esqueci.—Aindabemqueeunão.Esteéoterceiro.Opróximoéonosso.— E agora preparemo-nos para descobrir que Pat a inal trancou a

porta—resmungouJimmy.Mas seus receios eram infundados. A porta abriu-se facilmente e

DonovaneJimmypularamparadentrodacozinhaescuradePat.—Devíamos ter trazido uma lanterna para essa empreitada perigosa

—disseDonovan.—SeconheçobemPatochãodeveestarcheiodelouçasuja,evamostropeçarnoscacosatéconseguirchegaraointerruptor.Nãosemexa,Jimmy,atéqueeuacendaaluz.

Orapaztateounaescuridãosoltandoumfurioso“Porcaria!”quandosechocou contra a quinadamesada cozinha.A inal alcançouo interruptor,masnomomentoseguinteoutro“Porcaria”ressoounapenumbra.

—Oquehá?—perguntouJimmy.—Aluznãoacende,deveestarqueimada.Espereaí,vouacenderada

sala.Aportada salaeraaprimeirado corredor. Jimmyouviuospassosde

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Donovanseafastandoedaliapouconovosimpropériosoalcançaram.—Oquehá?—Não sei.A casaparece enfeitiçada, nada estánomesmo lugar. Está

cheiademesasecadeirasportodososlados.Oh,diabo!Hámaisumaaqui.MasfelizmentenessemomentoJimmyachouointerruptoreoapertou.

No instante seguinte os dois jovens se olhavamhorrorizados. Aquela nãoera a sala de Pat. Estavam no apartamento errado. Para começar, oaposentoestavadezvezesmaisentulhadoqueodePat,oqueexplicavaoatordoamento deDonovan ao chocar-se com tantosmóveis. No centro dasala havia uma mesa redonda coberta por uma toalha de renda, e umagrandesamambaiana janela.Eraaespéciedesalaquedeviapertenceraumapessoamuitoformal,aquemseriadifícilexplicaroengano.Haviaumapilhadecartassobreamesa.

—Mrs.ErnestineGrant—murmurouDonovanapanhandoadecimaelendooenvelope.—Ohdiabo!Seráqueelanosouviu?

—Éummilagrequeaindanãotenhaaparecido—disseJimmy—,comos seus impropérios e essa barulhada toda! Vamos, pelo amor de Deus,vamossairdaquidepressa!

Elesapagarama luzprecipitadamentee recuaramnaspontasdospésaté o elevador. Jimmy soltou um suspiro de alívio quando se viram nointeriordopoçosemmaisincidentes.

—EssaMrs. Ernestine Grant temum sono profundo— comentou elecomaprovação.—Umaótimaqualidadeparaumamulher.

— Agora entendo por que nos enganamos de andar. Esqueci quesaímosdoporão—disseDonovanpuxandoacorda.Oelevadorsubiu.—Destavezestamosnoandarcerto.

— Faço votos que sim — disse Jimmy enquanto saltavam. — Meusnervosnãoaguentarãomaischoques.

Masnãohouvenovossustos.Oprimeirocliquedointerruptorrevelouacozinha de Pat. Mais uns instantes e eles abriram a porta para deixarentrarasduasmoças.

— Vocês demoraram — resmungou Pat. — Mildred e eu estávamosesperandoaquihácemanos.

—Tivemosumaaventura—disseDonovan.—Podíamosteridopararnapolíciacomoperigososmalfeitores.

Estavam na sala de estar e Pat largara o abrigo sobre a poltrona,

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ouvindocominteressecrescenteorelatodasaventurasporDonovan.—Aindabemqueelanãoossurpreendeu—elacomentou.—Recebi

umbilhetedelaestamanhã.Elaquerfalarcomigo,temumareclamaçãoafazer.Calculoquesejasobreomeupiano.Gentequenãogostadepianonavizinhançanãodeviaalugarapartamentos!Ei,Donovan,vocêcortouamão,estácheiadesangue!Válavá-lanapia.

Donovanolhousurpresoparaasmãosedeixouasalaobedientemente.DaliainstanteschamouJimmy.

—Oi—respondeuooutro—,oqueaconteceu?Ocorteéprofundo?—Eunãomecortei.Havia algo estranho no seu tom de voz e Jimmy o olhou surpreso.

Donovanestendeuasmãos recém-lavadas e Jimmyviuque apele estavailesa.

—Éestranho!—dissefranzindoocenho.—Deondeveiotodoaquelesangue?—ederepentechegouàmesmaconclusãoqueoraciocíniomaisrápido do amigo já alcançara. — Meu Deus, deve ter vindo daqueleapartamento! — e calou-se re letindo sobre as possíveis explicações. —Temcertezadequeera...sangue?Nãoeratinta,poracaso?

Donovansacudiuacabeçanumanegativa.—Erasanguemesmo—dissecomumestremecimento.Osdoishomensseencararam.Omesmopensamentolhesocorrera.Foi

Jimmyquem inalmenteoexpressou:—Achaquedevíamosvoltarláedarumaolhada?—dissesemmuitaconvicção.—Paratercertezadequeestátudobem?

—Easgarotas?— Não diremos nada a elas. Pat foi arranjar um avental para nos

prepararumaomelete.Quandonosprocuraremjáestaremosdevolta.— Está certo, vamos — disse Donovan. — Só para desencargo de

consciência, não acredito que haja nada de errado — mas não haviafirmezaemsuaspalavras.

Pegaram o elevador e desceram ao andar de baixo, atravessando acozinhasemdificuldadesatéalcançarointerruptordasala.

—Devetersidoaquiquesujeiamão—disseDonovan.—Nacozinhanãotoqueiemnada.

Osdoiscorreramumolharatentopelasala.Tudoparecianormal,nada

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sugeria violência ou tragédia. Súbito Jimmy estremeceu violentamente eagarrouobraçodocompanheiro.

—Olhe!Donovan obedeceu a sua voz imperiosa e também soltou uma

exclamação.Umpédemulhercalçadonumsapatoaltodecromoembaixodaspesadascortinas.

Jimmyadiantou-seecomumrepelãopuxouascortinas.Ocorpoinerteesemvidadeumamulherocupavaonichodajanelaemmeioaumapoçaescura de sangue coagulado. Ele curvou-se instintivamente para erguê-laquandoDonovanodeteve:

—Nãofaçaisso.Nãotoqueemnadaatéqueapolíciachegue.— Tem razão, vamos chamar a polícia. Que coisa pavorosa, Donovan!

Quemseráela?Mrs.ErnestineGrant?— Tem todo o jeito. Se há mais alguém por aqui é gente muito

silenciosa.— Que faremos agora? Vamos chamar um guarda na rua ou será

melhortelefonardoapartamentodePat?—Achomelhortelefonar.Vamossairmesmopelaportadafrente.Não

podemos levar a noite inteira subindo e descendo por aquele elevadorfedorento.

Jimmyconcordou.Masquando já iamsaindoelehesitou:—Olheaqui,não achaqueumdenósdevia icardeolhono cadáver atéque apolíciachegue?

—É,vocêtemrazão.Fiqueaíquevouláemcimatelefonar.Donovan subiu correndo as escadas e tocou a campainha. Pat, muito

atraentedeaventalefacescoradas,veioabriraporta.Arregalouosolhos,surpreendida:—Você?Mascomo?Oqueaconteceu?

Elesegurouasmãosdela.— Está tudo bem, Pat. Nós izemos uma descoberta desagradável no

andardebaixo.Háumamulhermorta.—Oh!—elaprendeuarespiração.—Quecoisahorrível!Elateveum

colapsooucoisaassim?—Não.Parece...bem,elafoiassassinada.—Donovan!—É,éhorrível!

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Eleaindaseguravaasmãosdela.Amoçanãoasretirara,eapertavaasdele com força. Querida Pat, como ele a amava! E ela, gostaria dele? Àsvezes achava que sim, às vezes tinha receio de que Jimmy Faulkener... Aimagem de Jimmy esperando pacientemente embaixo fê-lo sentir-seculpado.

—Pat,querida,precisamostelefonaràpolícia.—Monsieurtemrazão—disseumavozatrásdele.—Etalvezeupossa

auxiliá-losenquantoelanãochegar.Amoça e o rapaz olharam para trás. Um vulto descia as escadas que

levavam ao pavimento superior. Dali a um segundo puderam ver umhomembaixinho,comumimponentebigodeeumacabeçaemfeitiodeovo.Trajavaumrobedechambre exóticoechinelosbordados.FezumamesuraamávelparaPatrícia.

—Mademoiselle,souoinquilinodoandardecima—disseele.—Gostodeandaresaltos,avistasobreLondresébelíssima.Alugueioapartamentosob o pseudônimo de Mr. O’Connor, mas não sou irlandês. Meu nomeverdadeiroéoutro.Éporissoquemeatrevoaoferecer-lhemeusserviços.Permita-me—eapresentouoseucartãoaPat.Elaleuemvozalta:

—M.HerculePoirot.Oh!—elaprendeua respiração.—O famosoM.Poirot?Ograndedetetive?Equernosajudar?

— Esta é a minha intenção,mademoiselle. Quase lhe ofereci meusserviçosháumameiahoraatrás.

OrostodePatrevelousuaperplexidade.—Euosouvidiscutindooproblemadecomoentrarnoapartamento,e

tenho grande habilidade para forçar fechaduras. Poderia, com toda acerteza, ter aberto a porta para a senhorita, mas hesitei em sugerir talmedida.Poderiaterdespertadosuassuspeitas.

Patriu.—Vamos,monsieur—exortouPoirotaDonovan—, telefoneàpolícia.

Voudesceraoandardebaixo.Pat o acompanhou e explicou a Jimmy a presença do detetive. Poirot

ouviucomatençãoenquantoorapazrelatavaasaventurasdanoite.—Osenhordissequeaportadoelevadornãoestavatrancada?Enão

conseguiramacenderaluzdacozinha?—ePoirotatravessouocorredoreapertouointerruptor.—Tiens!Voilàcequiestcurieux!—disseelequandoa luz se acendeu. — Está funcionando muito bem agora. Será que... —

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nesseinstanteelelevouumdedoaoslábiospedindosilêncio,eescutou.Umsom ritmado quebrava a quietude da noite, o ruído inconfundível dealguémqueroncava.—Ah!Lachambrededomestique.

O detetive atravessou pé ante pé a cozinha até uma pequena área.Abriuumaportaeacendeualuz.Ocubículoeraaquiloqueascompanhiasconstrutorasdesignamotimisticamentecomoquartodeempregada,emalacomodavauma camaondeuma garota de bochechas rosadas ressonavaplacidamentecomabocaaberta.

Poirotapagoualuzebateuemretirada.— Ela não acordou— disse ele.— Vamos deixá-la dormir até que a

políciachegue.Voltaramàsala.Donovanacabaradeentrar.— A polícia virá imediatamente — ele estava ofegante. — Ninguém

devetocaremnada.Poirotfezumgestodeaquiescência.—Nãotocaremos—disseele.—Vamossóolhar.Mildred acompanharaDonovan e agora todos os quatro jovens empé

noportaloobservavamcominteresse.—Não posso entender uma coisa, senhor—disseDonovan.—Como

fuisujaramãodesanguesenãochegueipertodaquelajanela?—Meujovemamigo,arespostaestábemnasuafrente.Dequecoréa

toalhadamesa?Évermelha,nãoé?Comtodaacertezaosenhorapoiou-senamesa.

—Éverdade!Foiassimque...—elecalou-se.Poirot balançou a cabeça numa a irmativa. Estava curvado sobre a

mesaeindicoucomumgestoumanódoaescuranatoalha.— O crime foi cometido aqui— declarou num tom solene.— Depois

levaramocorpoparaajanela.Correu os olhos pela sala. Não se moveu, não tocou em nada. e no

entanto os quatro espectadores tinham a impressão de que todos osobjetos lhe revelavam seus segredos ocultos. Finalmente Hercule Poirotbalançouacabeçacomoseestivessesatisfeito.

—Nãohádúvida—disseele.—Nãohádúvidadequê?—perguntouDonovancurioso.—Nãohádúvidadequehámóveisdemais,vocêestavacerto.

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Donovansorriu.—É,andeiporaíaosesbarrões—confessou.—Tudoestavaemlugar

diferente,fiqueibemconfuso.—Nemtudo—dissePoirot.Donovanoolhouperplexo.—Estavamereferindoaosdetalhesidênticosdosapartamentosdeum

mesmo edi ício: as portas, as janelas, a lareira, por exemplo, estãodispostosdamesmaforma.

—Aondepretendechegar?—perguntouMildredolhandoparaPoirotcomumligeiroardedesaprovação.—Devemosnosexpressarcomclarezaeprecisão.Éumamaniaqueeu

tenho,mademoiselle.Ouvirampassos nas escadas e em segundos três homens apareceram

noportal:uminspetordapolícia,umguardaeomédicolegista.Oinspetorreconheceu Poirot e o cumprimentou quase com deferência, antes devirar-separaogrupo:—Vouquererouvirosdepoimentosdetodosvocês,masemprimeirolugar...

Poirot o interrompeu: — Permita-me uma sugestão. Nós cincosubiremos para o apartamento de cima pois amademoiselle vai nospreparar uma omelete, e eu tenho paixão por omeletes. E quandoM.l’inspecteur terminar o seu trabalho aqui, poderá subir e interrogar-noscommaiscalma.

Asugestãofoiaceita.NasescadasPatdisse:—M.Poirot,osenhoréumamor.Voulheprepararumalindaomelete,especialidademinha.

—Ótimo,mademoiselle.Sabe,umavezestiveapaixonadoporumalindamoça inglesa parecida com a senhorita, mas infelizmente ela não sabiacozinhar.Talveztenhasidomelhorassim...—haviaumlevetomdetristezanavozdePoiroteJimmyFaulkeneroolhoucomcuriosidade.

Mas no apartamento ele esforçou-se aomáximo para ser um convivaalegre e divertido. A deprimente tragédia do andar inferior quase foiesquecida.Dadeliciosaomeletesórestavaa lembrançaquandoospassosdoinspetorressoaramnasescadas.Eleentrouemcompanhiadomédico.

— Bem,M. Poirot, o casome parece bastante óbvio, bem fora de suaespecialidade, embora talvez não seja fácil apanharmos o culpado. Agoragostariaquemecontassemcomoencontraramocorpo.

Donovane Jimmyderamasexplicaçõesnecessárias.O inspetorvoltou-

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se para Pat e a repreendeu: — Não deve se esquecer nunca mais detrancaraportadoelevador,miss.Émuitoperigoso.

—Nãomeesquecerei—dissePatcomumestremecimento.—Alguémpodeentraremematarcomoaquelapobremulher.

—Masocriminosonãoentrouporlá—disseoinspetor.—Podenoscontaroquedescobriu?—pediuPoirot.—Nãoseisedevo,mascomosetratadosenhor,M.Poirot...—Précisement—dissePoirot—,eessesjovenssãodiscretos.—Osjornaispublicartudodaquiapouco,dequalquerforma—disseo

inspetor. — Bem, a morta é mesmo Mrs. Grant, o porteiro a identi icou.Tinhaunstrintaecincoanos.Estavasentadanamesaquandofoiatingidapor uma bala de pistola de pequeno calibre, provavelmente por alguémqueestava sentadoemsua frente. Ela caiu sobre amesa, daí anódoadesangue.

—Masporqueninguémouviuotiro?—perguntouMildred.—Apistolatinhaumsilenciador.Porfalarnisso,ouviramoberroquea

criada soltou quando soube que a patroa estava morta? Não? Bem, issolhesmostraqueninguémdeveterouvidonada.

—Aempregadanãotemnadaparacontar?—perguntouPoirot.— Foi sua noite de folga. Ela tem sua própria chave. Voltou às dez

horas,tudoestavaemsilêncioeelajulgouqueapatroajásedeitara.—Elanãofoiàsaladeestar?—Foi.Deixouacorrespondênciaentreguepelocarteirodanoitesobre

a mesa, mas não notou nada de anormal, pois o assassino escondera ocorpoatrásdacortina.

—Nãoachaofatocurioso?Porqueteriafeitoisso?—AentonaçãodavozdePoirotfezcomqueoinspetorvirasseacabeça:

—Nãoqueriaquedescobrissemocorpoatéquepudesseescapar.—Éumahipótese,mascontinueoseurelato.— A criada saiu às cinco horas. O doutor aqui diz que amulher está

mortaháumasquatrooucincohoras,nãoéissomesmo,doutor?O médico, homem de poucas palavras, contentou-se em balançar a

cabeçaafirmativamente.— Faltam quinze minutos para a meia-noite, agora. Podemos

determinarahoradocrimecombastanteprecisão;achamosistonobolso

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damorta— e o inspetormostrou-lhes uma folha amassada de papel.—Nãotenhareceiodepegá-la,nãotemimpressõesdigitais.

Poirot alisou o papel e leu a curta mensagem escrita em letras deimprensa:

ESTAREIAÍESTANOITEÀS7EMEIA.J.F.— O assassino não devia ter-se esquecido de um documento tão

comprometedor—comentouPoirotdevolvendo-oaoinspetor.—Bem,elenãodescon iouqueestivessenobolsodela,provavelmente

calculouqueelaorasgara.Masteveocuidadodelimparmeticulosamenteapistolacomumlençodeseda.Encontramosaarmasobocadáverenãotinhaimpressãodigital.

—Comosabequeolençoeradeseda?—perguntouPoirot.—Porquenós o encontramos—disse o inspetor comumaexpressão

detriunfo.—Devetê-lodeixadocairquandofechavaascortinas.Elenosmostrouumgrandelençobrancodesedadeboaqualidade.Em

letrasbemnítidaselegíveislia-seaumcanto:JohnFraser.— John Fraser — disse o inspetor —, o nosso J. F. do bilhete. Já

sabemos o nome do assassino, e quando descobrirmos os parentes damortasaberemosondeprocurá-lo.

—Não tenho tanta certeza de que o pegarão assim tão facilmente—dissePoirot.—EsseJohnFraseréumapersonalidadeestranha,cuidadosoedescuidado aomesmo tempo,marca seus lenços e limpa as impressõesdigitais,masesqueceobilheteedeixacairolençoincriminador...

—Deviaestarnervoso—disseoinspetor.—Épossível—retrucouPoirot.—Ninguémoviuentrarnoedifício?—Hásempremuitomovimento,onúmerodeapartamentoségrande.

Poracasoalgumdevocês—disseoinspetordirigindo-seaogrupo—nãoviualguémsuspeitodeixandooprédio.?

Patsacudiuacabeça.—Nóssaímosantes,porvoltadassete.Opolicialdespediu-seePoirotoacompanhouatéaporta:—Comasua

permissão,gostariadeexaminaroapartamentodamorta.—Ora,certamente,M.Poirot.Meuschefesotêmemaltoconceito.Vou

lhe deixar umadas chaves que tenho.O apartamento deve estar vazio, aempregada foi para a casa de uns parentes, pois teve receio de passar a

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noitelá.—Obrigado—dissePoirot,evoltouparaoapartamentodePatcomar

pensativo.—Nãoestásatisfeito,M.Poirot?—perguntouJimmy.—Não,nãoestousatisfeito.Donovanoolhoucomcuriosidade.—Oqueopreocupa?Poirotnãorespondeu.Ficouemsilêncioalgunsmomentoscomocenho

franzidoefinalmenteergueuosombrosnumgestodeimpaciência.— Vou me retirar, mademoiselle. Deve estar bem cansada depois de

cozinharparatantaspessoas,nãoé?Pat riu. — Foi só o omelete, não jantaram aqui. Fomos comer num

pequenorestaurantenoSohocomDonovaneJimmy.—Ecertamentedepoisaoteatro,não?—Acertou.FomosverOsOlhosCastanhosdeCaroline.—Nãodeviamsermaisbonitosqueosolhosazuisdemademoiselle—

dissePoirotnumgalanteio,edesejoumaisumavezumaboanoiteaPateMildred. Esta, atendendo a insistentes apelos de Pat, passaria ali a noite,poisaamigaconfessarafrancamentequenãoconseguiriadormirsozinha,commedo.

Osdois jovensacompanharamPoirot.Quandoaportase fechouPoirotantecipou-seàssuasdespedidas:

— Meus caros jovens, estava sendo sincero quando disse que nãoestava satisfeito. Vou descer e fazer minha investigaçãozinha particular.Gostariamdemeacompanhar?

A proposta foi recebida com entusiasmo.Desceram as escadas e apósabriraportacomachaverecebidadoinspetor,Poirotnãosedirigiuàsalade estar, como seus companheiros esperavam. Em vez disso foi direto àpequena área junto à cozinha, abriu uma grande lata de lixo metálica ecomeçou a revolver o conteúdo com a energia de um terrier. Jimmy eDonovanoobservavamespantados.

— Voilà! — exclamou, subitamente e com uma expressão triunfanteergueu-setendonamãoumvidroarrolhado.—Acheioqueprocurava—elevoucautelosamenteovidroaonariz.—Ora,quepena,estouresfriado!

Donovan adiantou-se, pegou o vidro e o cheirou, mas como não

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percebessenenhumodor, retiroua rolhae levounovamenteo recipienteaonarizantesquePoirotpudesse impedi-lo. Instantaneamenteperdeuossentidos, mas o detetive, precipitando-se em seu auxílio, conseguiusuavizarsuaqueda.

— Imbecile! Que ideia! Ele não reparou como segurei o vidro comcautela?Monsieur... Faulkener, quer me fazer o favor de apanhar umpoucodebrandy?Viumagarrafanasaladeestar.

Jimmy saiu apressado,mas quando voltou Donovan já estava sentadoprotestandoqueestavabem.Poirotfez-lheumapequenapreleçãosobreanecessidadedecautelaaocheirarumasubstânciadesconhecida.

— Acho que vou para casa — disse Donovan levantando-se aindatrôpego.— Isto é, se não precisam mais de mim. Estou um pouco tontoainda.

— É uma boa ideia— concordou Poirot.—M. Faulkener, espere pormimuminstante,voltareilogo.

DepoisdeacompanharDonovanatéaporta,Poirotdirigiu-seàsaladeestar,ondeJimmyoesperavacomumaexpressãodeperplexidade:

—Oquevamosfazeragora,M.Poirot?—Nadamais.Ocasoestáencerrado.—Como?—Agorajáseidetudo.Jimmyolhouparaele.—Porcausadaquelevidro?—Exatamente,porcausadaquelevidro.Jimmysacudiuacabeça.—Nãoconsigoentendernada.Sóqueporalgumarazãoosenhornão

está satisfeito com as provas contra John Fraser, seja lá quem for essecavalheiro.

—Sejaláquemfor—repetiuPoirotcomumaexpressãopensativa.—Paramimseráumagrandesurpresaseeleexistir.

—Nãoestouentendendo.— Esse cavalheiro não passa de um nome, uma marca ictícia num

lenço.—Mas,eobilhete?—Não reparouque estava escrito em letras de imprensa?Um trecho

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datilografado ou em caligra ia corrente são identi icáveis, mas um JohnFraser de carne e osso não se importaria com isso, não após assinar obilhete. Não, aquela mensagem é uma pista falsa, colocadapropositadamente no bolso da morta para que a encontrássemos. NãoexisteninguémchamadoJohnFraser.

Jimmyoencarouperplexo.— Com esta dedução voltei ao primeiro detalhe que me atraiu a

atenção. Você me ouviu comentar que há detalhes idênticos emapartamentos superpostos. Dei-lhes três exemplos, e poderia teracrescentadoumquarto:osinterruptoresdeluz,meuamigo.

Jimmyoolhavaaindasemcompreender.Poirotprosseguiu:— Seu amigo Donovan não passou perto da janela, sujou a mão de

sangue na toalha da mesa, e eu perguntei a mim mesmo: por que eleestariaandandopelasalaescura?Nãoseesqueçadequeointerruptorficajuntoàporta.Porqueelenãooacendeulogo?Eraomaisnatural!Segundoele, a luz da cozinha estava queimada,mas quando apertei o interruptorela funcionou perfeitamente. Acaso não estaria evitando que vocêpercebessequehaviamseenganadodeapartamento?Nãoteriaentãoumpretextoparaviraestasala.

—Aquepontoestáquerendochegar,M.Poirot?—Aeste—disseohomenzinhomostrando-lheumachaveYale.—Éachavedesteapartamento?— Não,mon ami, é a chave do apartamento de cima, a chave de

Mademoiselle Patrícia, queM. Donovan surrupiou de sua bolsa em algummomentodestanoite.

—Masporquê?Qualarazão?— Parbleu! Para que pudesse realizar seu intento: entrar nesse

apartamentodeuma forma inteiramente inocente.Tivera aprecauçãodedestrancaraportadoelevador.

—Ondeachouessachave?Poirotsorriu.— Acabei de encontrá-la onde deduzi que estaria: no bolso de M.

Donovan. Entenda, aquele vidro não estava na lixeira, foi um ardil, e M.Donovan caiu como um patinho na armadilha. Conseguimeu intento: eleaspirou o conteúdo, clorido de etila, um anestésico muito poderoso einstantâneo.Ficou inconscientealgunssegundos,o su icienteparaqueeu

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tirassedeseubolsoosdoisobjetosqueprocurava.Estachaveéumdeles.Ele fez uma pausa e prosseguiu: — Não me pareceu plausível a

explicação do inspetor para o fato de o corpo estar escondido atrás dacortina.Somenteparaganhartempo?Umoutropensamentomeocorreu:ocorreio!Ocarteirodanoitepassamaisoumenosàsnoveemeia,edigamosque o assassino, não tendo encontrado o que procurava, tenha deduzidoque este algo seria entregue pelo correio noturno. Ele precisava voltar eresolveu esconder o corpo para impedir que a criada o descobrisse echamasseapolícia. Semsuspeitardenada, estadeixoua correspondênciasobreamesa,comosempre.

—Umacarta?—Exatamente, eis o outro objeto que retirei do bolso deM. Donovan

quando estava inconsciente — e Poirot mostrou-lhe um envelopeendereçado a “Mrs. Ernestine Grant”. — Mas antes de vermos seuconteúdo, quero lhe fazer uma pergunta: o senhor está apaixonado porMademoisellePatrícia?

—Souloucoporela,masnãocreioquetenhachance.— Pensou que ela gostasse deM. Donovan? É possível que ela tenha

começadoaseapaixonarporele,masfoisóumprelúdio,meuamigo.Cabe-lhefazê-laesquecer,dar-lheoseuapoionessahoradifícil.

—Horadifícil?—estranhouJimmy.—Exatamente,meuamigo.Faremosopossívelparaconservaronome

delalongedestecaso,masnãoconseguiremosabafartotalmentealigação.Sabe,elafoiomotivodocrime.

Poirot rasgou o envelope e um documento caiu ao chão. Anexa vinhaumacartadeumafirmadeadvogados:

“Carasenhora,A certidão anexa é perfeitamente legal. O fato do casamento ter sido

realizadonumpaísestrangeironãooinvalida.Aseudispor...”Poirot apanhou a outra folha. Era uma certidão de casamento de

DonovanBaileyeErnestineGrant,comdatadeoitoanosatrás.— Meu Deus! — exclamou Jimmy. — Patty recebeu hoje uma carta

dessamulherdizendoqueprecisavalhefalar,maselanuncaimaginouqueoassuntofosseimportante!

Poirot balançou a cabeça num gesto de compreensão. — Mas M.

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Donovansabiadoquesetratava,eveioaoapartamentodamulherpoucoantesdesubiràcasadePat.Aliás foiumaestranha ironiadodestinoqueconduziu esta mulher ao mesmo prédio da rival. Ele matou a esposa asangue-frioesubiuparapassarumaalegrenoitadacomsuanovapaixão.Antes de ser assassinada, a esposa deve ter-lhe dito que mandara acertidãoaseusadvogadoseesperavaumarespostaaindahoje.Comtodaacertezaelehaviatentadoconvencê-ladequeocasamentonãoeraválido.

—Eeleesteve tãobem-humoradoanoite toda!—Jimmyestremeceu.—M.Poirot,seráquenãoodeixouescapar?

—Paraelenãoháescapatóriapossível—dissePoirotcomgravidade,.—Nãotenhareceio.

—ÉPatquemmepreocupa.Acreditaqueelaoamava?—Monami,cabeavocêfazê-laesquecer.Nãoacreditoqueatarefaseja

difícil...

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ODuploDelito

Ao visitar meu amigo Poirot, encontrei-o sobrecarregado de trabalho.Talerasuafama,quetodagrã- inaquedesseporfaltadeumapulseira,ouperdesse seu gatinho de estimação, recorria imediatamente aos serviçosdo grande Hercule Poirot. Meu amigo era uma estranha mistura deparcimônia lamenga e fervor artístico, e aceitava muitos casos poucointeressantes quando o primeiro instinto predominava. Mas quando oproblema o interessava, envolvia-se embora o caso não compensasseinanceiramente.Oresultadoéquetrabalhavademais.Elemesmoadmitiuo fato, e não tive di iculdades de convencê-lo a me acompanhar numasemana de férias a Ebermouth, o conhecido balneário da costa sul daInglaterra.

Quatro dias agradabilíssimos haviam decorrido quando Poirot meprocurou com uma carta nas mãos:— Lembra-se de meu amigo JosephAarons,oempresárioteatral?

Aquiesci após unsmomentos de re lexão. Os amigos de Poirot são emgrandenúmeroevariados,incluindogariseduques.

—Eh bien, Hastings, Joseph Aarons está em Charlock Bay. Sua saúdenãoestáboa,ealgumacoisaopreocupa.Eleéumamigo iel,emeauxilioumuito no passado. O bom Joseph me pede para ir vê-lo, e creio queatendereioseuchamado.

—E temtodarazão—disseeu.—OuvidizerqueCharlockBayéumlugarlindo.

—Entãopoderemosuniroútilaoagradável—dissePoirot.—Podeseinformarsobreohoráriodostrens?

—Éprovávelquetenhamosalgumasbaldeaçõespelocaminho—disseeu com uma careta. — Sabe como são esses trens do interior. Às vezesleva-seumdiainteiroparairdosulatéonortedeDevon.

EntretantodescobriqueaviagemsóincluíaumabaldeaçãoemExeter,emtrensconfortáveis.Voltavaapressadoparatransmitiressa informaçãoa Poirot quando vi anunciado na vitrina da Agência de TransportesRápidos uma excursão de um dia a Charlock Bay. “Amanhã” — dizia ocartaz—“Saídaàs8:30.Otrajetoincluialgumasdasmaisbelaspaisagens

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deDevon”.Pedidetalhesevolteiaohotelcheiodeentusiasmo.Infelizmente Poirot não compartilhou da minha animação. — Meu

amigo, onde arranjou essa súbitapaixãopelas jardineiras 2? Os trens sãomuito mais seguros, sem pneus passíveis de um estouro, nem ventoexcessivo, e o risco de acidentes é muito menor. Poderemos fechar asjanelaseevitarcorrentesdear.

Insinuei delicadamente que as delícias do ar fresco constituíam paramimumdosatrativosdasjardineiras.

—Esechover?Oclimainglêsémuitoinstável.—Ajardineiratemcapota.Alémdisso,sechovermuito,aexcursãoserá

cancelada.—Ah!—fezPoirot.—Entãovamostorcerparaquechova.—Sevocêfaztantasobjeções...— Não, não,monami. Estou vendo que a perspectiva o entusiasma, e

felizmentetrouxemeusobretudoedoiscachecóis—eelesuspirou.—AomenosteremostemposuficienteemCharlockBay?

—Bem,precisaremospassaranoitelá.DaremosavoltaporDartmoor,almoçaremos em Monkhampton e por volta das quatro chegaremos aCharlockBay.Ajardineirainiciaaviagemdevoltaàscincoechegaaquiàsdezdanoite.

—Imaginesó!Eaindahágentequefazumaviagemdessasporprazer!Naturalmenteteremosumdesconto,jáquenãovoltaremosnajardineira.

—Nãoachomuitoprovável,não.—Masvocêdevefazerquestãododesconto!— Vamos, Poirot, não seja tão parcimonioso. Você está praticamente

nadandoemdinheiro.—Meuamigo, éumaquestãodeprincípio.Aindaque fossemilionário

sópagariaopreçojustoerazoável.Entretanto, como eu previra, desta vez Poirot perdeu. O cavalheiro do

guichê da Agência de Transportes Rápidos, embora calmo e amável,manteve-se in lexível. Segundo seu ponto de vista deveríamos fazer aexcursão completa. Chegou atémesmo a insinuar que deveríamos pagarumataxaextrapeloprivilégiodesaltaremCharlockBay.Derrotado,Poirotpagouaquantiaexigidaesaímos.

— Os ingleses não têm noção de dinheiro — ele resmungou. —

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Reparou naquele jovem que pretende saltar em Monkhampton e noentantopagouapassageminteira?

—Não.Parafalaraverdade...—Vocêestavaobservandoaquelabelamocinhaquereservouobanco

númerocinco, juntoaosnossos.Vimuitobem,meuamigo,e foiporcausadela que você protestou dizendo que os lugares quatro e cinco erammelhores,quandoeuquisreservaroquatorzeeoquinze,bemnocentroeprotegidos.

—Ora,Poirot...—disseeucorando.—Oscabeloscastanhosavermelhadossãooseufraco,não?—Dequalquermaneiravaliamaisapenaolharparaeladoqueparao

talrapaz.—Dependedopontodevista.Amim,ojoveminteressou.UmaentonaçãoestranhanavozdePoirotatraiuminhaatenção.—Porquê?Dequemaneira?—Ah,nãoseexalte,elemeinteressouporqueestavadeixandocrescer

o bigode e o resultado era desanimador— Poirot acariciou com orgulhosua imponente bigodeira. — Cultivar um bigode é uma arte. Tenhosimpatiaportodosqueapraticam.

Era sempredi ícil saber quandoPoirot falava sério, ou quando estavasimplesmentesedivertindoàcustadosoutros.Acheimaisprudentecortaroassunto.

O dia seguinte amanheceu limpo e ensolarado, uma belíssimamanhã.Poirot,entretanto,nãoiasearriscar.Usavaumcoletedelã,umsobretudo,umacapa impermeável, edois cachecóis, alémde trajaro seu ternomaisgrosso. Antes de sairmos engoliu dois comprimidos antigripais e en ioumaisalgunsnobolso.

Levamos conoscoduaspequenas valises. A belamocinhaque víramosna véspera também levava uma. assim como o jovem que despertara asimpatiadePoirot.Maisninguémtraziabagagem.Omotoristaguardouasquatrovalisesnocompartimentopróprioeocupamosnossoslugares.

Poirot,commalícia,deixou-meobancodaponta,“jáqueeutinhamaniade ar fresco”, e sentou-se junto à nossa bela companheira. Dali a pouco,entretanto, a pretexto de que o ocupante do banco seis era tagarela eatrevido, ofereceu-se, em voz baixa, para trocar de lugar com amocinha.Ela concordou, agradecida, e entabulamos uma conversa agradável e

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animada.Ela era bem jovem, com menos de vinte anos, e ingênua como uma

criança. Logo con iou-nos o objetivo de sua viagem. Ia a Charlock Bay aserviçodesuatia,proprietáriadeumalojadeantiguidadesemEbermouth.Esta senhora icara numa situação precária com a morte do pai eempregara o seu pequeno capital e o punhado de belos objetos queornamentavam sua casa para abrir a loja. Obtivera grande sucesso eirmara sua reputação no ramo. A moça, Mary Durrant, estava morandocom a tia para iniciar-se no negócio, e estavamuito entusiasmada com otrabalho,achando-omuitasvezessuperioràalternativade tornar-seumagovernantaoudamadecompanhia.

Poirot ouviu-a com interesse e demonstrou sua aprovação: — Estoucertodequemademoiselle terásucessoemsuapro issão—disseelecomgalanteria.—Maspermita-meumconselho:nãosejademasiadocon iante.Omundoestácheiodepilantrasevigaristas.Podeencontrá-losatémesmoaquinessajardineira.Deveestarsemprealerta,esuspeitardetodos!

Ela o encarou com uma expressão de pasmo, e ele sacudiu a cabeça,comumarsolene.

— É, não tenha dúvidas, não. Até eu posso ser um malfeitor da piorespécie — e seus olhos brilharam divertidos ante o rosto surpreso damoça.

Paramos emMonkhampton para almoçar. Após umas palavras com ogarçom,Poirotnosarranjouumamesaparatrêsjuntoàjanela.Fora,numgrandepátio,umasvintejardineirasestavamestacionadas,procedentesdetodo o país. O restaurante do hotel estava repleto e o barulho eraconsiderável.

— Essa atmosfera de férias atordoa um pouco, não?— disse eu comumacareta.

Mary Durrant concordou. — Os verões em Ebermouth não são maiscomo antigamente. As calçadas estão sempre apinhadas de gente. Minhatiacostumadizerqueeramuitodiferente.

—Masoturismoébomparaocomérciolocal,mademoiselle.— Para nós não faz diferença. Só vendemos objetos raros e valiosos,

nada de quinquilharia barata. Minha tia tem fregueses em todo o país.Quandoqueremumamesaou

uma cadeira de um determinado período, escrevem para ela, e mais

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cedo oumais tarde ela arranja o que procuram. Foi o que aconteceu hápoucotempo.

Mostramo-nos interessados e ela explicou. Um certo cavalheiroamericano, Mr. J. Baker Wood, era connaisseur e colecionador deminiaturas.Um jogomuitovaliosodeminiaturashaviasidopostoàvendarecentementeeforaadquiridoporMissElizabethPenn,atiadeMary.Elaescrevera a Mr. Wood, descrevendo a mercadoria e ele responderaimediatamente que estava disposto a comprá-la se correspondesse àdescrição. Pediu que asminiaturas fossem levadas a Charlock Bay, ondeestavahospedado.Ealiseguiaanossaamigacomorepresentantedafirma.

— Elas são lindas, sem dúvida alguma — disse a moça — mas nãopossoimaginarcomoexistaalguémdispostoapagarquinhentaslibrasporelas. Émuito dinheiro. Foram pintadas por Cosway.... será que o nome éessemesmo?Aindameconfundotodanessesdetalhes.

Poirotsorriu.—Mademoiselleaindanãotemmuitaexperiência,nãoé?— Não tive nenhum preparo especial para esse ramo — disse ela

aborrecida. — Nunca me ensinaram nada sobre coisas antigas, tenhomuito que aprender— disse ela num suspiro. De repente arregalou osolhos. Seu lugar era em frente à janela, e estivera olhando para o pátio.Com uma exclamação levantou-se e saiu, quase correndo. Voltou empoucos minutos, ofegante, e desculpou-se: — Sinto muito ter saídocorrendo daquele jeito, mas pensei ter visto um homem tirando minhamaladajardineira.Corriatrásdele,masamalaeradelemesmo.Eraquaseigualaminhae iqueicomcaradeboba.Pareciaqueeuoestavaacusandodeladrão—eelariuàlembrança.

Poirot entretanto não riu. — Como era esse homem,mademoiselle?Descreva-oparamim.

—Vestia um ternomarrom, um rapazmagricela comumbigode bemralo.

— Há-ha! — fez Poirot. — É o nosso amigo, Hastings. Conhece essehomem,jáoviuantes?

—Não,nunca.Porquê?—Nada.Écurioso,ésó.Elesecalouenãotomoumaispartenaconversaatéqueumafrasede

MaryDurrantatraiusuaatenção.

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—Oquedisse,mademoiselle?—Naviagemdevoltaprecisareitomarcuidadocomosmalfeitores,pois

Mr.Woodsemprepagaemdinheirosonante.Ecomquinhentas librasemmeupodersereiumabelaiscaparaladrões.

Ela tornou a rir, mas Poirot não a acompanhou. Em vez dissoperguntou-lheondehospedariaemCharlockBay.

— No Anchor Hotel. É pequeno e não é dispendioso, mas é bemrazoável.

—Ora,nomesmohotelemquevamosficar!—Poirotpiscouparamim.—Vãodemorar-semuitoemCharlockBay?—perguntouMary.—Só umanoite. Tenho um trabalho a realizar.Não adivinha qual é a

minhaprofissão,mademoiselle?ViqueMarypesavaváriashipóteseseasrejeitava,provavelmentepor

cautela. A inal arriscou o palpite de que Poirot era ummágico. Ele icouencantado.

— Ah, que bela ideia! Entãomademoiselle pensa que tiro coelhos deuma cartola? Não, não, eu sou o oposto de um mágico. Um mágico fazdesaparecerobjetos,eeuosfaçoaparecer!—eleinclinou-sediantedelaedissenumtommelodramáticoparadarmaisimpactoàsuarevelação:—Ésegredo,mademoiselle,masvoulhecontar:souumdetetive!

Ele recostou-se na cadeira satisfeito com o resultado obtido. MaryDurrantoolhavaestupefacta.Masaconversafoi interrompidapeloroncodasbuzinasanunciandoqueonossoveículoestavaprontopararetomarocaminho.

Poiroteeusaímosjuntoscomentandooencantodenossacompanheiradeviagem.

—Elaémesmoencantadora—disseele.—Masavoada.—Avoada?—Nãoseexalte,Hastings.Umamoçapodeserlinda,combeloscabelos

avermelhados,eaindaassimseravoada.Éocúmulodainsensatezcon iaremdoisestranhos,comoelafez.

—Bem,elaviuqueéramospessoashonestas.— Isso é uma tolice, meu amigo. Qualquer bom vigarista tem uma

aparênciaperfeitamenterespeitável.Aquelamocinhadissequeprecisariatercuidadoquandotivesseasquinhentas librasemseupoder.Masela já

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astem,nessemomento.—Emminiaturas.—Exatamente,emminiaturas,monami.Enãohámuitadiferença.—Masninguémsabedissoalémdenós.—Nós,ogarçom,opessoaldamesaaolado,ecomcertezamuitagente

emEbermouth.MademoiselleDurrantéencantadora,masseeufosseMissElizabeth Penn primeiro lhe daria lições de bom senso— ele calou-se eacrescentou mudando de tom:—Meu amigo, seria a coisa mais fácil damundo roubar uma valise desta jardineira enquanto estávamosalmoçando.

—Ora,vamos,Poirot,alguémveria,comcerteza.—Veriaoquê?Umapessoaretirandoasuabagagem.Oladrãopoderia

agirabertamenteeninguémsuspeitaria.—Poirot,vocêestáinsinuandoque...Masavalisequeorapazdeterno

marromlevoueradelemesmo.Poirotfranziuatesta.—É,parece.Dequalquerformaécuriosoqueelenãotenharetiradoa

bagagem logo que chegamos.Não sei se você notou que ele não almoçouaqui,Hastings.

—SeMissDurrantnãoestivesseemfrentedajanelanemoteriavisto—disseeulentamente.

— E não teria importância, pois a mala era dele — disse Poirot. —Portantovamosesqueceresteassunto,meuamigo.

Apesardessaspalavras,quandoaviagemrecomeçou,eleaproveitouaoportunidadeparafazeraMissDurrantmaisumapequenapreleçãosobreosperigosdaindiscrição.Elaouviucomcomplacência,comumlevesorriso.

Chegamos a Charlock Bay às quatro horas e tivemos a sorte deconseguir quartos no Anchor Hotel, uma encantadora e antiquadahospedarianumadasruassecundárias.

Poirotabriraamalaepassavaumapomadanosbigodespreparando-separa uma visita a JosephAarons, quando ouvimos batidas insistentes emnossaporta.—Entre—gritei,eparameumaiscompletoespanto,aportaabriu-se e lá estava Mary Durrant com o rosto muito pálido e os olhoscheiosdelágrimas.

— Peço-lhes desculpas, mas aconteceu uma coisa horrível. As

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miniaturasdesapareceram!Elasestavamnesseestojodecrocodilodentroda minha mala, vejam! — e ela estendeu-o a Poirot. A fechadura foraforçada,ossinaiseramevidentes.—Elassumiram,foramroubadas.Oquefareiagora?

— Não se preocupe — disse eu. — Meu amigo é Hercule Poirot. Asenhorita deve ter ouvido falar nele. Se for possível recuperar as suasminiaturas,eleofará.

—MonsieurPoirot!OgrandeMonsieurPoirot!Poirot era vaidoso, e a óbvia admiração na voz da moça deve ter-lhe

sidoagradável.— Sim,minha ilha, sou eumesmo. Deixe o seu problema emminhas

mãos, farei todoo possível.Mas receio que seja tardedemais.Diga-me, afechaduradamalatambémfoiforçada?

Elasacudiuacabeçanumanegativa.—Deixe-mevê-la.FomosaoquartodelaePoirotexaminouamalacomcuidado.Nãohavia

sinaisdearrombamento.— As fechaduras dessas malas são todas muito semelhantes, não

haveriagrandedificuldadeemabri-lacomoutrachave.Ehbien,precisamostelefonaràpolíciaeentraremcontatocomMr.Baker

Woodomaiscedopossível.Tratareidissopessoalmente.Saímoseperguntei-lheoqueinsinuaracomaquele“tardedemais”.— Mon cher, apesar de eu ser o oposto de um mágico e fazer

reaparecer objetos perdidos, talvez alguém tenha se antecipado a mim.Aindanãocompreendeu?Compreenderádentrodeumminuto.

Ele dirigiu-se a uma cabina telefônica, de onde saiu, depois de algunsminutosdeconversa,comumaexpressãotaciturna.

—Oquereceava,aconteceu.UmasenhoraprocurouMr.Woodhámeiahoradizendo-seenviadaporMissElizabethPenn.Ele icouencantadocomasminiaturasepagouimediatamenteopreçopedido.

—Hámeiahora?Foiantesdechegarmosaqui!Eoquefaremosagora?— Meu bom Hastings, sempre o homem prático! Vamos informar a

polícia e ter uma entrevista com Mr. J. Baker Wood. Faremos por MissDurrantoqueestiveremnossoalcance.

AinfelizMaryestavaterrivelmentepreocupadacomreceiodequeatia

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aculpassepeloacontecido.—Oque ela fará,muito provavelmente, com toda razão,— comentou

Poirot quando saímos para o Hotel Beiramar onde Mr. Wood estavahospedado.—Que ideia adela, ir almoçar edeixarquinhentas libras emobjetosvaliososdentroda jardineira!Mashádetalhesdessecasoquesãocuriosos,meuamigo.Porqueforçaramafechaduradaqueleestojo?

—Paratirarasminiaturas,ora.—Parece-meumatolice. Imagineo ladrãoremexendonaquelamala,a

pretextoderetirarsuabagagem.Nãoeramuitomaissimples transferiroestojo para a sua valise e safar-se, do que perder tempo forçandofechaduras?

—Elequeriacertificar-sedequeasminiaturasestavamali.Poirot nãopareceu convencido,masnaquele instante fomos admitidos

aosaposentosdeMr.Woodenãohouvetempoparamaisdiscussões.Senti uma antipatia instantânea por Mr. Baker. Era um homem

grandalhão, de aspecto vulgar, com roupas espalhafatosas e um grandesolitárionodedo.Mostrou-seagressivoeloquaz.

Não,nãosuspeitaradenada.Eporquehaveria de suspeitar? A mulher trouxera as miniaturas e eram belos

exemplares. Não, não tomara nota dos números das notas. E quem eraPoirotparalhefazertantasperguntas?

— Só lhe pedirei mais uma informação,monsieur. Descreva-me essamulher,porfavor.Acasoerajovemebonita?

—Nãosenhor,de formaalguma.Eraumamulherdemeia-idade, alta,decabelosgrisalhos,pelemanchadaebuço.marcado.Estavalongedeserumasereiasedutora.

—Poirot!—exclameiquandosaímos.—Ouvi-omencionarobigode?—Minhaaudiçãofelizmenteénormal,Hastings.—Equehomemdesagradável!—É,suasmaneirasestãolongedesermodelares.—Bem,deveserfácilagarraroladrão—comentei.—Nóspoderemos

identificá-lo.Acreditaqueeletenhaumálibi?— Espero que sim, sinceramente — respondeu Poirot, para minha

surpresa.—Oseuproblemaéquegostadecomplicarascoisas.

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— Tem razão,mon ami. Eu não gosto... como dizer? Eu não gosto dacaçadasememoções.

AprofeciadePoirotrealizou-se.Nossocompanheirodeviagemdeternomarrom chamava-se Mr. Norton Kane. Fora direto ao George Hotel emMonkhamptonelápassaratodaatarde.AúnicaprovacontraeleeraofatodeMissDurranttê-lovistomexernodepósitodebagagens.

—Oqueéumatoinocente,emsi—dissePoirotcomumarpensativo.Apósessecomentárioele icouemsilêncioorecusou-seadiscutirmais

oassuntodizendo,quandoopressionei,queestavapensandoembigodesemgeral,equeeudeveriaseguiroseuexemplo.

Descobri porém que ele pedira informações a Joseph Aarons, comquem jantara, sobreMr. BakerWood. Como estavam ambos hospedadosnomesmohotel,haviaapossibilidadedecolheralgunsdados.MasPoirotguardouparasioqueconseguiradescobrir.

MaryDurrant,depoisde interrogadapelapolícia,voltaraaEbermouthpelo primeiro trem damanhã. Almoçamos com Joseph Aarons, e à tardePoirotdeclarouterresolvidosatisfatoriamenteoproblemadeseuvelho

amigo,eestarlivrepararetornaraEbermouth.—Masdestavez,vamosdetrem.— Está com receio de deparar com algum ladrão de carteiras, ou

algumaoutradonzelaemperigo?— Isso pode acontecer tanto numa jardineira quanto num trem. Não,

tenhopressaemchegaraEbermoutheresolveronossocaso.—Nossocaso?— Exatamente, meu amigo.Mademoiselle Durrant procurou minha

ajuda. Só porque a polícia assumiu as rédeas da investigação, não querdizer que eu vá lavar minhas mãos. Ninguém dirá que Hercule Poirotabandonou um estranho em di iculdades! — disse ele com um armajestoso.

— Penso que o seu interesse é ainda anterior a todos essesacontecimentos—euarrisquei.—Começounaagênciadeviagensquandoviuaquelerapaz,emboranãosaibaoquedespertouasuaatenção.

—Poisdeviasaber,Hastings.Masvouguardaressepequenosegredo,porenquanto.

Antes de partirmos, trocamos algumas palavras com o inspetor dapolícia encarregado do caso. Ele havia interrogado Mr. Norton Kane, e

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revelou con idencialmente a Poirot que a reação do jovem não oimpressionara de modo favorável. O rapaz icara nervoso, negara aacusação,masfizeradeclaraçõescontraditórias.

— Mas ainda não sei como deu o golpe — confessou o inspetor. —Talvez tenha entregue as miniaturas a um cúmplice que seguiuimediatamente de carro para Charlock Bay. Mas por enquanto são sóteorias.Precisamosencontraressecúmpliceparapoderacusá-lo.

Poirotbalançouacabeçapensativo.—Concordacomateoriadoinspetor?—pergunteiaPoirotnotrem.—Não,meuamigo.Foiumgolpeaindamaisinteligente.—Nãovaimecontaroquesabe?—Aindanão. Você conheceminhas fraquezas. Gosto demantermeus

segredosatéofinal.—Eofinalestápróximo?—Muitopróximo.Chegamos a Ebermouth um pouco depois das seis, e Poirot dirigiu-se

imediatamente à loja de antiguidades de Miss Elizabeth Penn. A portaestava fechada, mas Poirot tocou a campainha e dali a pouco a própriaMaryveio

abriraporta.Pareceusurpresaeencantadaaover-nos.—Porfavor,entrem.Minhatiaestáládentro.Ela nos levou a uma sala nos fundos. Uma velha senhora de cabelos

brancos, pele rosada e olhos azuis, parecendo ela própria uma delicadaminiatura antiga, recebeu-nos. Usava em volta dos ombros umamantilhaderendafiníssima.

— É o grandeMonsieur Poirot? — disse ela numa voz suave eagradável.—Malpossoacreditar.Osenhorestárealmentedispostoanosauxiliar?

Poirotolhou-aporummomentoefez-lheumamesura.— Mademoiselle Penn, é uma visão encantadora. Mas alguma vez

considerouahipótesededeixarcrescerobigode?MissPennprendeuarespiraçãoerecuou.—Asenhoranãoestavaemsualojaontem,nãoé?—Estiveaquidemanhã,masà tardesentiuma fortedordecabeçae

fuiparacasa.

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—Paracasa,não,mademoiselle.Pensouqueumamudançadearesfariabemasuaenxaqueca,não foi?OardeCharlockBayémuitorevigorante,nãoé?—Poirotmepegoupelobraçoeandouemdireçãoàporta.Antesdesairmos, ele voltou-se para ela: — Compreenda, eu sei de tudo. A suaencenaçãodeveterumfim—haviaumaameaçaemsuavoz.

Miss Penn,muito pálida, balançou a cabeça numa aquiescênciamuda.Poirotvirou-separaamoça:—Mademoiselle—eledissecomgentileza—,é jovemeencantadora.Massecontinuaraenvolver-seemtaisaventuras,suajuventudeacabaráindofeneceratrásdasgradesdeumaprisão.Eeu,HerculePoirot,digo-lhequeseráumapena!

Eleabriuaportaesaiu,eeuosegui,atordoado.— Desde o começo eu estava intrigado,mon ami. Aquela moça

interessou-se subitamente por nosso companheiro Mr. Kane quando elereservoupassagematéMonkhampton.Porquemotivo?Elenãoeradotipoque atrai a atenção de umamulher. Quando tomamos a jardineira tive aintuiçãodequealgoanormaliriasepassar.Quemviuojovemremexernabagagem?Sóanossaamiga,elembre-sedequeelaescolheuolugarde

frente para a janela, uma escolha pouco feminina. Depois ela nosprocura comaquelahistóriade roubo, enada justi icava terem forçadoafechaduradoestojo,comoeudissenaquelaaltura.

—Equaléoresultadodisso tudo?—prosseguiuPoirot.—Mr.BakerWood pagou um bom dinheiro por mercadoria roubada, que serádevolvida aMiss Penn. Ela tornará a ven-dê-la, e. ganharámil libras, emvez de quinhentas. Fiz algumas perguntas discretas e descobri que seusnegóciosvãomal,estáàbeiradafalência.Eentãodisseamimmesmo:atiaeasobrinhasãocúmplicesdessafalcatrua.

—EnuncasuspeitoudeNortonKane?— Mon ami! Com um bigode daqueles? Um criminoso usa o rosto

escanhoado,ouentãoumbigodedeverdadequepossaserremovido.Masaqueles iozinhostímidos?..Queoportunidadeparaumasenhoraidosadepele clara! Basta ela en iar uns sapatos pesados, acrescentar umasmanchas a suapele euns cabelinhos esparsos ao lábio superior equal oresultado?Umamulhercomumjeitomasculino,naopiniãodeMr.Wood.Enósjulgaríamoslogotratar-sedeumhomemdisfarçadodemulher!

—ElafoimesmoaCharlockBayontem?— Com toda a certeza. O trem, como você me informou, sai daqui as

onze e chega a CharlockBay às duas horas. E o tremde retorno é ainda

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maisrápido:saideláàsquatroecincoechegaaquiàsseisequinze.Não,as miniaturas nunca estiveram naquele estojo. Ele foi forçado antes daviagem. Mary só precisava encontrar dois bobos que se deixassemenvolver por seus encantos e estivessem dispostos a se transformar emdefensoresdabelezadesvalida...Masacontecequeumdosbobosnãoerabobo,esim,HerculePoirot.

Não gostei da indireta e retruquei: — E você me tapeoudeliberadamente com aquela conversa de ajudar estranhos emdificuldades!

—Eununcaoenganei,Hastings.Sópermitiquevocêseenganasseasipróprio. Referia-me a Mr. Baker Wood, um hóspede estrangeiro nessasplagas— e seu rosto assumiu uma expressão indignada:— Ah, quandopensonaquelaexploração,naqueleabusodecobrarporumapassagemdeidaaCharlockBayomesmopreçodeidaevolta,sintomeusangueferver!Mr. BakerWood não é um homem agradável, nem simpático, mas é umvisitantenumaterraalheia.Enósprecisamosnosunir,Hastings.Éprecisoprotegerosvisitantes!

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OMistériodeMarketBasing

—Nãohánadacomoocampo,nãoéverdade?—perguntouoinspetorJapp inspirando sofregamente pelo nariz e soltando o ar pela boca, naformarecomendadapelosentendidos.

Poirot e eu concordamos plenamente. Partira do inspetor da ScotlandYard a ideia de passarmos o im de semana em Market Basing, umacidadezinhadointerior.NashorasdefolgaJapperaumardorosobotânicoe discorria sobre lores minúsculas com estranhos nomes em latim(pronunciados de forma ainda mais estranha), com mais entusiasmo doquededicavaaseuscasos.

— A grande vantagem está em não conhecermos ninguém aqui, nemninguémnosconhecer—declarouJapp.

A verdade não era bem essa, pois o representante local da polícia jáserviraemumlugarejoavinteecincoquilômetrosdali,ondeestiveraemcontato como nosso inspetor de-vido a umenvenenamentopor arsênico.Entretantomostrara-setãoencantadoaoreverograndehomemqueJappsentia-se eufórico naquela manhã de domingo. O sol brilhava e asjardineirasdajaneladasaladerefeiçõesdahospedariaestavamcheiasdemargaridas em lor. Os ovos combacon estavam excelentes, e o café,emboranãodamesmaqualidade,erapassávelebemquente.

— Isto é que é vida! — disse Japp. — Quando me aposentar voucomprarumsitiozinhonocampo,bemlongedocrime.

—Lecrime, il estpartout — retrucouPoirot, servindo-sedeuma fatiadepãodecenteioefranzindoocenhoaumpardalquepousaranopeitorildajanela.

— É, ninguém sabe omal que se esconde no coração dos homens—disseeu,achandoomomentoapropriadoparaumacitação.

—Hum—fez Japprecostando-sepachorrento—.achoquevoupedirmaisumovoeumasfatiasdebacon.Queachadaideia,capitão?

—Euoacompanho—respondicomentusiasmo.—Evocê,Poirot?Ohomenzinhosacudiuacabeça.—Nãosedeveencheroestômagoapontodeimpedirofuncionamento

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docérebro.—Euvoumearriscar—disseJapprindo.—Meuestômagoégrande.

Por falar nisso, está engordando um pouco, M. Poirot. Ei,miss, mais doispratosdeovoscombacon.

Nesse momento, entretanto, um vulto imponente bloqueou a entrada.EraoguardaPollard.

—Esperoquenãoseaborreçamcomesta interrupção, senhores,masgostariadequeoinspetormedesseumamãozinha.

—Estou de folga, não quero nada com o trabalho— foi logo dizendoJapp.—Masoqueaconteceu?

—OinquilinodamansãodosLeighsuicidou-secomumtironacabeça.—Bem,issoacontece—disseJappprosaicamente.—Devetersidopor

causa de dinheiro, ou talvez de uma mulher. Sinto não poder ajudá-lo,Pollard.

— O problema é que, na opinião do Dr. Giles, ele não poderia ter-sematado.

Japppousouaxícaranopires.—Nãopoderiater-sematado?Oquequerdizercomisso?— É o que o Dr. Giles diz — repetiu o guarda. — Segundo ele é

completamenteimpossível,enãovêcomopodetersido,poisaportaestavafechada a chave e a janela bem trancada. E ele insiste em a irmar que ohomemnãopoderiater-sesuicidado.

Essa curiosa declaração resolveu o assunto. Des izemos o pedidotentador de mais ovos ebacon e em poucos minutos andávamos a todapressa em direção da mansão dos Leigh, enquanto Japp ia fazendoperguntasaopolicial.

O morto chamava-se Walter Protheroe, um homem solitário de meia-idadequechegaraaMarketBasingháoitoanosealugaraavelhamansãodos Leigh, um casarão arruinado.Utilizava umadas alas da casa, servidopor uma governanta vinda em sua companhia. Miss Clegg. uma mulhereducadaebemconceituadanacomunidade.HápoucosdiasMr.Protheroereceberadoishóspedes,umcasaldeLondres,Mr.eMrs.Parker.

Nestamanhã,nãoobtendorespostaaochamaropatrãoeencontrandoaportatrancadaachave,MissCleggsealarmaraetelefonaraaomédicoeaopolicial. Foramnecessários seus esforços conjugadospara arrombar apesadaportadecarvalho.

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EncontraramMr.Protheroecaídoaochãocomumabalanacabeçaeapistolaemsuamãodireita.Pareciaumcasoóbviodesuicídio.

Entretanto,depoisdeexaminarocorpo,oDr.Gilessentira-seintrigadoecon iarasuasdúvidasaoguardaPollard,quepensarainstantaneamenteemJapp,edeixandoomédiconolocal,correraàhospedaria.

Quando o policial acabou de relatar os fatos, chegamos à mansãoarruinada, no centro de um grande jardim abandonado e invadido pelaservas daninhas. A porta da frente estava aberta, e atravessando umvestíbulochegamosaumapequenasalaondesereuniamquatropessoas:um homem com uma indumentária espalhafatosa pelo qual senti umaantipatia instantânea,umamulhertambémvulgaremboraatraente,outramulher num sóbrio vestido preto, provavelmente a governanta, e umhomem alto num paletó detweed, com um rosto inteligente e capaz, queestavaobviamenteemcomandodasituação.

—Dr. Giles— disse o policial—, o Inspetor Japp da Scotland Yard eseusamigos.

O médico cumprimentou-nos e nos apresentou a Mr. e Mrs. Parker.Subimos com ele ao segundo andar, enquanto Pollard, obedecendo a umsinaldeJapp,permaneceudeguardaembaixo.Atravessamosumcorredorechegamosaoquartodomorto,Aportaarrombadacontinuavanochão.

Entramos.Ocadáveraindapermanecianoassoalho.Mr.Protheroeforaumhomemdemeia-idadecomocabelodastêmporas jágrisalhoebarba.Jappajoelhou-sejuntoaocorpo.

—Porquenãoodeixaramcomoestava?—eleresmungou.Omédicoencolheuosombros.—Julgamosqueelehouvessesesuicidado.—Hum...—fezJapp.—Abalapenetrouportrásdaorelhaesquerda.— Exatamente — disse o médico. — É impossível que ele tenha

disparado a arma. Não conseguiria torcer a mão direita para colocar aarmaemtalângulo.Éumaimpossibilidadefísica.

—Mas o senhor encontrou a arma em suamão, não foi? E onde estáela?

Omédicoindicouamesa.—Mas os seus dedos não estavam fechados em torno da coronha. A

mãoestavaaberta.— Então a arma foi colocada ali mais tarde, é claro — disse Japp

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examinando-a. — Só um cartucho foi disparado. Vamos procurarimpressõesdigitaismasprovavelmentesó

encontraremosassuas,Dr.Giles.Háquantotempoeleestámorto?— Morreu durante a noite. Não posso precisar a hora como alguns

dessesfabulososlegistasdashistóriasdemistério,masacreditoqueestejamortoháumasdozehoras,maisoumenos.

Até então Poirot permanecera silencioso a meu lado, observando otrabalho de Japp. Umas duas vezes dera uma leve fungadela, como se ocheiro do ambiente o intrigasse. Eu o imitei, mas não consegui percebernada de anormal, o ar estava fresco e isento de odores. Mesmo assimPoirotcontinuouafungarcomoseseuolfatomaisaguçadopercebessealgoquemeescapava.

Quando Japp se afastou, Poirot ajoelhou-se junto ao cadáver. Não seinteressou pelo ferimento e pensei por um instante que estivesseexaminando os dedos da mão direita, mas logo vi que seu interesse sedirigia a um lenço en iadonamanga do casaco. A inal Poirot levantou-se,masseusolhosconti-nuarampresosaolençocomoseestivesseintrigado.

Japp o chamou para ajudar a erguer a porta. Aproveitando aoportunidade abaixei-me, e tirando o lenço da manga do cadáver,examinei-o com cuidado. Era um lenço simples de cambraia branca, semnenhumamanchaoumarcadequalquerespécie.Torneiacolocaro. lençonolugar,sacudindoacabeçaeadmitindominhaperplexidade.

Meus companheiros haviam levantado a porta, e procuravama chave,semresultados.

— Isso fecha a questão— disse Japp.— A janela esta trancada pordentro.Oassassinodevelersaídopelaporta,elevadoachave.Certamentejulgou que todos pensariam que Protheroe havia trancado a porta e sesuicidado,enemnotariamaausênciadachave.Nãoconcorda,M.Poirot?

—Concordo,masteriasidomaissimplesemaisconvincenteempurrara chave de volta por baixo da porta. Assim pensariam que ela caíra dafechaduraquandoaportaforaarrombada.

—É verdade,mas nem todos têm as suas ideias brilhantes. O senhorteria sido o terror da lei se houvesse se dedicado ao crime, M. Poirot.Algumoutrodetalhelhechamouaatenção?

Poirot,comumarindeciso,correuoolharpeloquartoecomentoucompoucaconvicção:—Estecavalheirofumavamuito,não?

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—É,deveterfumadounsvintecigarrosnanoitepassada—disseJapp,examinandoointeriordalareiraetransferindologoapóssuaatençãoparao cinzeiro.—São todosdamesmamarca, e fumadospelamesmapessoa.Nãonoslevarãoanada,M.Poirot.

—Nãoinsinueitalcoisa—murmuroumeuamigo.— Ei, o que é isso?— disse Japp indicando um pequeno objeto que

brilhavanochãojuntoaomorto.—Éumaabotoaduraquebrada!Aquempertencerá? Dr. Giles, icaria agradecido se descesse e chamasse agovernanta.

— Que faremos com os Parker? Ele está ansioso para partir, temnegóciosaresolveremLondres.

— Imagino, mas terão que passar sem eles. Do modo como osacontecimentos se encaminham, ele terá problemas urgentes a resolveraqui também. Diga à governanta para subir e não deixe os Parkerescaparem.Algumdosocupantesdacasaentrounessequartodemanhã?

Omédicorefletiuporunsinstantes.—Não.FicaramnocorredorenquantoPollardeeuentramos.—Temcerteza?—Absoluta.Omédicodesceu.— Sujeito capaz, esse— disse Japp com aprovação. Bem, gostaria de

saberquematirounessecamarada.Pelojeitofoiumdostrêsocupantesdacasa.Agovernantanãodevetersido,elateveoitoanosparamatá-lo,seoquisesse fazer. E quem serão esses Parker? Têm um aspecto poucorespeitável.

Miss Clegg entrou no quarto nessemomento. Era umamulhermagra,com cabelos grisalhos reunidos num penteado severo, e parecia calma econtrolada,comumardee iciênciaqueinspiravarespeito.Emrespostaàsperguntas de Japp, explicou que estava na casa há quatorze anos. Mr.Protheroeforaumpatrãogenerosoedelicado.SóconheceraocasalParkertrêsdiasatrásquandohaviamchegado inesperadamente.Nasuaopinião,opatrãonãoosconvidaraenãoparecerasatisfeitoaovê-los.AabotoaduraqueJapplhemostraranãopertenceraaele,tinhaabsolutacerteza.Quantoà pistola, o patrão possuíra uma semelhante. Ela só a vira uma vez já hámuitotempo,enãopodiaa irmarquefosseamesma.Nãoouviránenhumtiro durante o noite, o que não era de admirar, pois a casa era muito

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grande e o seu quarto e os aposentos do casal Parker icavam na outraextremidade.NãosabiaaquehorasMr.Protheroeforaparaoquarto,eleaindaestavaacordadoquandoela se recolhera, àsnovee trinta.Nãoerahábito dele deitar-se cedo. Costumava icar acordado até de madrugada,lendoefumando.Eraumfumanteinveterado.

A essa altura, Poirot fez-lhe uma pergunta:— Seu patrão costumavadormircomasjanelasabertas•oufechadas?

MissCleggrefletiuummomento.—Ficavamhabitualmenteabertas,pelomenosapartedecima.—Masestãofechadasagora.Temalgumaexplicaçãoparaofato?—Não,amenosqueeletenhasentidoalgumacorrentedear.Japp fez-lhe mais algumas perguntas e deu-lhe permissão para se

retirar.EmseguidainterrogouocasalParker,umdecadavez.Mrs.Parkerestava nervosa, e derramou algumas lágrimas, enquanto o maridomostrou-se loquaz e agressivo. Negou que a abotoadura fosse sua, mascomo a esposa já a houvesse reconhecido, essa negativa só piorou suasituação.ComoeletambémnegaraterestadonoquartodeProtheroe.Jappjulgouterprovassuficientesparapedirsuaprisão.

DeixandoPollarddeguarda, Jappdirigiu-seaocentropara telefonaràsededaScotlandYard,enquantoPoiroteeudirigimo-nosàhospedaria.

—Vocêestátãoquieto!—disseeu.—Ocasonãoointeressa?—Aucontraire,interessa-memuitíssimo.Masaindaestounoescuro.—Omotivodocrimemeescapa,mastenhocertezadequeesseParker

éummauelemento—disseeu.—Asprovascircunstanciaiscontraelesãofortes,sófaltaomotivo.

—Nãonotounadadeanormal,nenhumdetalheemqueJappnãotenhareparado?

Olheiparaele,curioso.—Oqueestáescondendo,Poirot?—Oquehaviadentrodamangadomorto?—Ah,olenço!—Exatamente,olenço.—Osmarinheiroséquecostumamandarcomolençodentrodamanga

docasaco.—Umaobservaçãoatilada,Hastings,masnãofoiaquemeocorreu.

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—Hámaisalgumdetalhequeoestejaintrigando?—Há,sim.Ficopensandonocheirodaquelescigarros.—Masnãosenticheiroalgum!—exclameisurpreso.—Nemeu,cherami.OlheiparaPoirotsemsaberseeleestavabrincando.Massuaexpressão

eraperfeitamentesériaefranziaatesta.O inquérito judicial realizou-se dois dias depois. Nesse ínterim novas

provas haviam surgido. Um vagabundo confessou ter pulado o muro damansãoparadormirnovelhobarracode ferramentasdo jardim, como jáeraseuhábito,edeclarouterouvidoumadiscussãoacirradaporvoltademeia-noite no quarto domorto, entre dois homens. Um deles exigia umaquantiaemdinheiro,eooutrorecusava-se, revoltado.Escondidoatrásdeumarbusto,elevirabemosdoisvultosatravésdajanela.Umeleconheceubem, fora o dono da casa, Mr. Protheroe, e o segundo ele identi icoucategoricamentecomosendoMr.Parker.

Ficou claro que os Parker tinham vindo a Market Basing para fazerchantagemcomProtheroe.Descobriu-sequeoverdadeironomedomortoera Wendover, um ex-tenente da marinha envolvido na explosão docruzadorMerrythought em 1910. Provavelmente Parker, ciente da culpade Wendover, havia descoberto seu paradeiro e exigido dinheiro paramanter-se calado. O outro recusara-se a pagar, e durante a discussãoapanhara seu revólver, e Parker tentando tomar-lhe a arma, devia tê-lomortoeposteriormentetentadodaraocrimeaaparênciadesuicídio.

Parker foi preso para aguardar julgamento. Na saída do inquérito,Poirotbalançouacabeça:—Devetersidoassim—elemurmurouparasimesmo.—É,devetersidoassim.Precisoagircomrapidez.

Dirigiu-se à agência do correio e mandou um bilhete pormensageiroespecial. Não vi a quem estava endereçado. Voltamos à hospedaria ondepassáramosum imde semana tãoagradável,masPoirot estava inquieto,andandodeumladoparaoutroeolhandopelajanela.

— Estou esperando uma pessoa — ele explicou. — Será que meenganei?Não,aívemela.

Parameuespanto,daliaumminutoMissCleggentrou,menoscalmadoqueavirapelaúltimavez,eofegando,comosetivessecorrido.VimedonoolharquedirigiuaPoirot.

— Sente-se,mademoiselle — disse ele com brandura. — Eu estava

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certo,não?Porrespostaelaestourouemlágrimas.—Porquefezaquilo?—perguntouPoirot.—Porquê?— Eu o amava tanto — ela soluçou. — Fui para a sua casa menina

ainda.Ah,tenhapenademim.— Farei o que puder. Mas entenda que não posso permitir que um

homeminocentesejaenforcado,mesmosetratandodeumvelhaco.Ela ergueua cabeçaedissebaixo:—Talvezeu tambémnãopudesse,

a inal. Faça o que tem que ser feito — e levantando-se saiu quasecorrendo.

—Elaomatou?—pergunteiperplexo.Poirotsorriuesacudiuacabeçanumanegativa.—Ele se suicidou.Lembra-sedequeusavao lençonamangadireita?

Esse detalhemostrou-me que era canhoto. Commedo da desonra ele sematoudepoisdadiscussão comParker.QuandoMissCleggveio chamá-lode manhã, encontrou-o morto, e encheu-se de uma fúria insana, pois oconhecia desde criança, como acabou de nos dizer. Os Parker o haviamimpelido ao suicídio, e eram assassinos a seus olhos. Subitamente ela viuuma oportunidade de fazê-los pagar pelamorte que haviam causado. Sóelasabiaqueseupatrãoeracanhoto.Mudouorevólverparaamãodireita,fechou a janela, deixouno chão a abotoaduraque apanharano andar debaixo,esaiu,fechandoaportaetirandoachave.

—Poirot,vocêémagní ico!—exclameinumarroubodeentusiasmo.—Deduziutudoissodeumlenço!

—Edaausênciadefumaçadecigarro.Seajanelativessesidofechadaà noite, com todos aqueles tocos de cigarro, o quarto deveria estarimpregnadodocheiroenjoativodecigarrosapagados.Masaocontrário,oarestavafresco,dondededuziqueasjanelassódeviamtersidofechadashápoucotempo,eissomeforneceuumalinhaderaciocíniointeressante.Oassassino não teria nenhummotivo para fechar a janela. Seria vantajosoparaeledeixá-laaberta,paraquerestasseapossibilidadedelaterservidocomo meio de fuga, caso a hipótese de suicídio não fosse aceita. Odepoimento do vagabundo con irmou minhas suspeitas. Ele não teriaouvidoaconversaseajanelaestivessefechada.

—Esplêndido!—disseeuentusiasmado.—Eagora,quetalumchá?— Você é mesmo inglês— disse Poirot com um suspiro.— Acredita

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quesejapossívelconseguirumcálicedelicorporaqui?

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ACasadeMarimbondos

JohnHarrison, de pé no terraço de sua casa, olhava o jardim.Homemalto, de rosto magro e macilento, tinha geralmente uma expressãotaciturna, mas quando seus traços severos suavizavam-se num sorriso,comoagora,eramuitoatraente.

Gostavaimensamentedeseujardim,tãobelonesseanoitecercálidodeagosto: As rosas trepadeiras ainda loresciam e as ervilhas de cheiroperfumavamoar.

Um rangido familiar fê-lo virar subitamente a cabeça. Quem abrira oportãodo jardim?Uma igura janotaaproximou-sepelaaleia,eorostodeJohnHarrisonassumiuumaexpressãodecompletasurpresa.

—Masémaravilhoso!—exclamou.—MonsieurPoirot!Era realmente o grande Hercule Poirot, famoso nomundo inteiro por

suasfaçanhascomodetetive.—Eumesmo!Lembra-sedeter-meconvidadoparaaparecer,seacaso

viesseaestapartedomundo?Tomeisuaspalavrasaopéda letra,eaquiestou.

—Emedáimensoprazer—disseHarrisoncordialmente.—Sente-se.Quer beber alguma coisa? — e num gesto hospitaleiro indicou-lhe abandejadebebidasnamesadavaranda.

—Obrigado—dissePoirotsentando-senumacadeiradevime.—Tempor acaso um licor? Não? Não faz mal. Só um copo de soda pura, semuísque, por favor — e quando o companheiro lhe estendeu o copoacrescentouaborrecido:—Ah,meuspobresbigodesperderamaforma.Éessecalor!

—Eoqueotrazaesserecantotãosossegado?—perguntouHarrisonsentando-seaseulado.—Prazer?

—Não,monami,trabalho.—Trabalho?Nestelugarretirado?Poirot,comafisionomiagrave,balançouacabeçanumaaquiescência.— Sim, meu amigo, nem todos os crimes são cometidos no meio das

multidões,sabia?

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Ooutroriu.— Meu comentário foi mesmo imbecil. Mas qual o crime que está

investigandoporaqui,senãosouindiscreto.—Não,nãoé—respondeuPoirot.—Naverdade icosatisfeitocoma

suapergunta.Harrisonoolhoucomcuriosidadesentindonasmaneirasdoamigouma

nuançadiferente.Odetetiveoencarava,eseuolhareratãoestranhoqueficoudesnorteado.Afinal,disse:

—Masnãoouvifalaremnenhumcrime.—Não,vocênãopodeterouvidomesmo—dissePoirot.—Quemfoiassassinado?—Atéagora,ninguém.—Oquê?— Foi por isso que não soube de nada. Estou investigando um crime

queaindanãofoicometido—disseodetetive.—Masissonãofazsentido.— Ao contrário, é muito melhor investigar um crime antes de ser

cometidodoquedepois.Talvezsejapossívelatéimpedi-lo.Harrisonoencarou.—Nãoestáfalandosério,M.Poirot.—Estou,sim,emuitosério.— Acredita mesmo que alguém está planejando um crime? Que

absurdo!HerculePoirotignorouaexclamação.—Amenosquenóspossamosimpedi-lo.É,monami,éissomesmo.—Nós?—Precisodesuacooperação.Poirotlançou-lheumolharpenetranteemaisumavezHarrisonsentiu-

sepresodeumaindefinívelinquietação.—Vimatéaquiporque...bem...gostodosenhor,MonsieurHarrison—e

num tom completamente diferente, acrescentou: — Já reparou naquelacasademarimbondos?Deviadestruí-la.

À súbita mudança de assunto Harrison franziu a testa. Seguiu aindicaçãodePoirotedisse,numavozquerevelavaasuaperplexidade:

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— Para falar a verdade, é o que ia fazer, ou melhor, o que o jovemLangton vai fazer. Lembra-se de Claude Langton? Estava naquele jantarem que o conheci. Virá aqui daqui a pouco para acabar com osmarimbondos.Considera-seumespecialistanamatéria.

—Ah!—fezPoirot.—Equemétodovaiusar?—Gasolina.Vaiaplicá-lacomasuaseringadejardim.Édeumtamanho

maisadequadodoqueaminha.—Nãoháoutrométodocomcianetodepotássio?—perguntouPoirot.Surpreso, Harrison respondeu:— Há, sim, mas cianeto de potássio é

umasubstânciavenenosa,éumperigotê-laemcasa.Poirotbalançouacabeçaconcordando.— Sim, é um venenomortal— esperou umminuto e repetiu:— um

venenomortal.—Muitoútilsealguémquiserselivrardasogra,não?—disseHarrison

dandoumarisada.MasHerculePoirotpermaneceusério.—TemcertezadequeécomgasolinaqueMonsieurLangtonpretende

destruiraquelacasademarimbondos?—Tenho,sim.Porquê?—Tenhominhasdúvidas.Estivena farmáciadeBarchesterestatarde

eprecisei assinaro registrode substâncias venenosas, devidoaumadascomprasque iz.AassinaturaanterioreradeClaudeLangton.Eleadquiriucianetodepotássio.

HarrisonolhouparaPoirot.—Éesquisito. Langtondisse-meoutrodiaquenemsonharia emusar

isso.Emsuaopiniãoavendanãodeviasequerserpermitida.Fitando as roseiras Poirot perguntou numa voz pausada:— Gosta de

Langton?Ooutroteveumsobressalto.Aperguntaopegaradesprevenido.—Eu...bem...naturalmente.Gostodele,sim.—Tinhaminhasdúvidassobreoassunto—dissePoirotcalmamente,e

comoocompanheiro icouemsilêncio,acrescentou:—Eseráqueelegostadevocê?

— Onde pretende chegar,Monsieur Poirot? Não consigo descobrir oquetememmente.

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— Vou ser franco. Está noivo,Monsieur Harrison. Conheço bem MissMollyDeane.Éuma lindamoça, encantadora.Masantesde ser suanoivaestevecomprometidacomClaudeLangton.Elaodeixouporsuacausa.

Harrisonaquiesceubalançandoacabeça.—Não seiquais foramosmotivosquea levarama isso,maseladeve

ter tido suas razões. E digo-lhe uma coisa: é provável que Langton nãotenhaesquecido,nemperdoado.

-— Está enganado, M. Poirot. Juro que está enganado. Langton temespírito esportivo, enfrentou os fatos como um homem. Tem sidosurpreendentementedecente,tentandoseramigoomáximopossível.

—Enãoachaissoestranho?Usouotermo“surpreendentemente”masnãoparecesurpreendido.

—Oquequerdizercomisso,M.Poirot?—Querodizerqueumhomempodedissimular seuódioaté chegaro

momentopropício—ehaviaumanuançanovanavozdePoirot.—Ódio?—Harrisonsacudiuacabeçaeriu.— Os ingleses são uns tolos — disse Poirot. — Julgam que podem

tapear qualquer um, sem serem tapeados. Nunca pensam mal de seuscamaradas. São todos uns caras decentes, de espírito esportivo! E porseremcorajosos,mastolos,algumasvezesmorremsemnecessidade.

—Vocêestátentandomeprevenir...—disseHarrisonbaixo.—Agoraestou começando a compreender. Está me prevenindo contra ClaudeLangton.Veioatéaquiparamedaraviso...

Poirotbalançouacabeçanumaaquiescênciamuda.Harrison levantou-se de supetão: — Mas o senhor está maluco, M. Poirot! Isto aqui é aInglaterra,coisascomoessasnão

acontecem por aqui. Pretendentes desprezados não andam por aíapunhalando nem envenenando ninguém. Está enganado a respeito deLaugton,eleéincapazdematarumamosca.

— Não estou preocupado com as moscas — retrucou Poirot comsuavidade.—EemboradigaqueLaugtoné incapazdematarumadelas,ele está se preparando nomomento para chacinar algumas centenas demarimbondos.

Harrisonnãorespondeu logo.Odetetivezinho levantou-se,andouatéoamigoecolocouamãoemseuombro.Estavatãoagitado,quepraticamentesacudiuohomemaltoaodizer:

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—Acorde, meu amigo, antes que seja tarde. Olhe só, não está vendojuntoàquelaárvorenaribanceiraoenxamedemarimbondosretornandotranquilamenteaolar,no imdodia?Daquiaumahoraserãodestruídos,enem sabem. Não têm quem os avise. Não conhecem nenhum HerculePoirot .Monsieur Harrison, estou aqui pro issionalmente. Lido comassassinatos, antes e depois de terem sido cometidos. A que horas chegaMr.Langtonparaderrubaracasademarimbondos?

—Langtonnunca...—Aquehoras?—Àsnove.Masestáenganado.Langtonnunca...— Esses ingleses! — exclamou Poirot furioso. Pegou o chapéu e a

bengala e dirigiu-se para o jardim,mas antes virou a cabeça e disse:—Não vou mais discutir com você. Já estou perdendo a paciência. Masvoltareiàsnovehoras,entendeu?

Harrisonabriuabocaparafalar,masPoirotointerrompeu:— Sei o que vai dizer: Langton nunca... etc. e tal. Nunca mesmo! De

qualquer maneira voltarei às nove horas. Vai ser divertido apreciar adestruiçãodacasademarimbon-dos,outroesporteessencialmenteinglês!

Semesperar resposta, ele atravessouo jardimrapidamentee saiu.Aochegar à estrada, diminuiu o passo, e seu rosto perdeu a animaçãoassumindo uma expressão grave e preocupada. Tirou o relógio do bolso.Marcavaoitohorasedezminutos.

—Faltaquaseumahoraainda—elemurmurou.—Talvezeudevesseteresperado.

Parou, quase a ponto de voltar. Um vago pressentimento o assaltara.Entretanto

controlou-se, e com passo decidido dirigiu-se à vila. Mas ainda estavainquieto e umas duas vezes sacudiu a cabeça como alguém não de todosatisfeito.

Faltavamalgunsminutosparaasnovequandoele retornouao jardim.Eraumanoiteclara,parada,nenhumaaragemlevesacudiaa folhagem.Aquietude era mesmo um tanto sinistra, como a calmaria que precede atempestade.

Poirot apressou os passos, sentindo-se subitamente inseguro ealarmado,semsaberoquetemia.Naquele instante,ClaudeLangtonabriuoportãodojardim.AoverPoirotteveumsobressalto.

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—Oh...Boa-noite.—Boa-noite,MonsieurLangton.Chegoucedo.Langtonoencarou.—Nãoseidoqueestáfalando.—Játirouacasademarimbondos?—Parafalaraverdade,não.— Então nãomatou osmarimbondos?— perguntou Poirot.— O que

estevefazendo,então?— Só bati um papo com o velho Harrison. Preciso ir agora,M. Poirot.

Nãosabiaquevinhaaestasbandas.—Estouaquiatrabalho,sabe.—Ah!Bem,osenhorencontraráHarrisonnoterraço.Sintonãopoder

ficar—disseesaiuapressado.Poirot seguiu como olhar o jovemnervoso. Era umbonito rapaz,mas

faltavaenergiaàsuaboca.— Então encontrarei Harrison no terraço... — murmurou Poirot. —

Tenho minhas dúvidas — e apressando o passo atravessou o jardimrapidamente.

Harrisonestavasentadoaoladodamesa,numacompletaimobilidade,enãovirouacabeçaquandoPoirotseaproximou.

—Monami,vocêestábem?—perguntouansiosoodetetive.Apósumsilêncioprolongado,Harrison respondeunumavozestranha,

longínqua:—Oquedisse?—Vocêestábem?—Seestoubem?Estoubem,sim.Eporquenãohaveriadeestar?—Entãonãolhefezmal?Ótimo!—Fezmal?Oquê?—Obicarbonatodesódio.Harrisonlevantou-sederepente.—Bicarbonatodesódio?Dequeestáfalando?— Lamento muito — desculpou-se Poirot —, mas era necessário.

Coloqueiobicarbonatoemseubolso.—Colocoubicarbonatoemmeubolso?Paraque,comtodososdiabos?Harrisonolhava ixamenteparaele.Poirotrespondeunumtomcalmoe

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impessoal,comosedirigisseaumacriança:—Sabe,naminhaprofissão,notratocomoscriminosos,aprendimuitascoisasúteiseinteressantes.Ajudeicertavezumbatedordecarteiras,paravariareleestavainocentedoqueoacusavam,egrato,elepagou-medaúnicaformaaseualcance:ensinou-meuns truques do seu o ício. Assim hoje posso tirar um objeto de um bolsosem que seu dono o perceba: coloco a mão em seu ombro, distraio suaatenção,epronto.Foidestamaneiraqueretireialgodobolsodoseupaletóedeixeiobicarbonatoemseulugar.

—Sabe—prosseguiuPoirotcomoseexpusesseumalongínquateoria—, se alguém pretende colocar veneno num copo, com um gesto rápido,sem que o percebam, deve tê-lo ao alcance da mão, no bolso direito dopaletó—edemonstrandosuatese,retiroudobolsoalgunsfragmentosdeum cristal leitoso.— É extremamente perigoso carregar esta substân-ciasolta,assim—acrescentou.

Comtodaacalma,semseapressar,retiroudooutrobolsoumvidrodeboca larga, destampou-o, colocou os cristais em seu interior, e o encheucom.aáguaqueestavasobreamesa.Tornouatampá-locuidadosamenteeo agitou até que os cristais se dissolvessem. Harrison o observavafascinado.

Quando a solução estava pronta, Poirot se dirigiu à árvore ao lado doterraço, destampou o vidro, virou a cabeça para o lado e derramou asolução dentro da casa dos marimbondos. Recuou alguns passos e icouobservando o resultado. Alguns insetos que entravam, estremeceramligeiramentee icaram inertes, enquantooutros saíamdoninhopara cairlogo adiante. Poirot olhou o espetáculo por alguns instantes, balançou acabeçaevoltouàvaranda.

—Éumamorterápida,muitorápidamesmo—disseele.Harrisonrecobrouavoz:—Oquevocêsabe?Poirotoencarou.— Disse-lhe que vi a assinatura de Claude Langton naquele registro,

mas não lhe disse que o encontrei logo depois. Contou-me ter compradocianeto de potássio a seu pedido, para acabar com uns marimbondos.Acheiofatoestranho,meuamigo,poismelembreidaquele jantaremquevocê defendeu os méritos da gasolina, considerando perigoso edesnecessárioousodecianetoparaessefim.

—Prossiga.

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— Eu havia visto Claude Langton na companhia de Molly Deane,quando se julgavama salvodeolhares indiscretos.Não sei osmotivosdabriga que a jogaram em seus braços, mas percebi que estavam sendosuperadoseMissDeanevoltariaaoantigoamor.

—Prossiga.—Eusabiademaisumdetalhe:estavaemHarleyStreetoutrodiaeo

vi saindo do consultório de um médico conhecido. Sei qual é suaespecialidade, e li a con irmação em seu rosto. Só vi essa expressãoduasvezes em minha vida, mas é inconfundível. Seu rosto era o de umcondenadoàmorte,nãoéverdade?

—Temrazão,elemedeudoismesesdevida.—Vocênãomeviu,meuamigo,poistinhacoisasmaissériasapensar.

Li outro sentimento em seu rosto, o mesmo sentimento de que lhe faleiessa tarde. Vi ódio, meu amigo. Você não tentava dissimulá-lo porquepensavaqueninguémoestavaobservando.

—Prossiga—disseHarrison.—Nãotenhomuitomaisadizer.Vindoaqui,viacidentalmenteonome

de Langton no registro de venenos, falei com ele e vim lhe procurar.Preparei toda a sorte de armadilhas para você. Negou ter pedido aLangtonparacomprarcianeto,oumelhor,mostrou-sesurpresoanteofato.A princípiominha presença o incomodou,mas logo concluiu que poderiame usar. Encorajou asminhas suspeitas, e disse-me para voltar às. nove,quando acreditou que tudo estaria acabado, pois Langton viria às oito emeia.

—Sevocênãotivesseaparecido...Porqueveio?Poirotlevantou-se.—Assassinatoéomeutrabalho.—Assassinato?Refere-seasuicídio,não?—Não—avozdePoiroterasecaecortante—,falodeassassinato.Sua

morteseriarápidae fácil,masLangtonmorreriadeuma formaatroz.Elecompra o veneno, vem visitá-lo e estão a sós quando você morresubitamente. Descobrem cianeto em seu copo e Claude Langton éenforcado.Foiesseoseuplano.

Harrisondeixouescaparumgemido.—Porqueveio?...Porqueveio?—Háoutrarazãoalémdaquejáexpus:gostodevocê.Ouça,monami,

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vaimorrereperderamoçaqueama.Masvocênãoéumassassino.Agora,diga-me,estásatisfeitooupesarosoporeutervindo?

Houve um momento de silêncio. Harrison ergueu o rosto. Havia neleuma nova dignidade, a expressão de um homem que conquistara seusdemôniosinteriores.EstendeuamãoaPoirot.

—GraçasaDeusvocêveio!—eleexclamou.—GraçasaDeus!

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ADamaemApuros

Há algum tempo Poirot demonstrava uma insatisfação e umdesassossego crescentes. Ultimamente não aparecera nenhum casointeressante, nada em que o meu amigo pudesse exercitar sua menteaguçadaeseusconsideráveispoderesdededução.Nestamanhãelejogouo jornal ao chão com um impaciente“Tchach!”, sua exclamação favorita,igualzinhaaumespirrodeumgato.

— Eles têmmedo demim, Hastings! Os criminosos da Inglaterra têmmedo de mim! Quando o gato está presente os camundongos nãoaparecempararoubarqueijo.

—Amaioriadelesnemsabedesuaexistência—retruqueirindo.Poirotmeolhoucomumardereprovação.Emsuaimaginaçãoomundo

inteiro sópensava e falava emHerculePoirot. Era certo que izera nomeemLondres,masnãoacreditavaquesuaexistênciaprovocasseoterrornomundodocrime.

— E aquele roubo de joias à luz do dia, em Bond Street, na semanapassada?—perguntei.

— Um golpe bem dado — disse ele com aprovação. — Maspas deinesse, seulmente de l’audace! Um homem com uma pesada bengalaestilhaçaavitrinadeumajoalheria,eapanhaumlotedepedraspreciosas.É agarrado por um grupo de cidadãos respeitáveis e preso em lagrantecomasjoiasemseupoder.Nadelegaciadescobremqueasjoiassãofalsas,ele passou as verdadeiras a um cúmplice, um dos tais “cidadãosrespeitáveis”.Épreso,masquando forsolto teráumabela fortunazinhaasuaespera.É,nadamalplanejado,maseufariamelhor.Hastings,algumasvezes lamento que meus padrões éticos sejam tão rigorosos. Seriadivertidotrabalharcontraalei,paravariar.

— Ora, Poirot, anime-se. Sabe que é o maior dentro da suaespecialidade.

—Masoqueexistenomomentodentrodaminhaespecialidade?Pegueiojornal.—UminglêsémisteriosamenteassassinadonaHolanda...

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—Sempredizem isso, atédescobriremque comeupeixeenlatado, e amorteéperfeitamenteexplicável.

—Bem,seprefereresmungar...—Tiens!—dissePoirot junto à janela.—Lá embaixona calçada está

umadamamisteriosaenvoltaemespessosvéus, igualzinhoaosromances.Ela subiu nossos degraus, e está tocando a campainha. Talvez seja umapossibilidade interessante. Quando é jovem e atraente, uma mulher sóescondeorostopormotivosmuitosérios.

Um minuto mais tarde, a nossa visitante entrou. Como dissera Poirotseu rosto estava encobertoporumvéu espesso. Foi impossível distinguirseustraçosatéqueergueuovéunegroderendaespanhola.AintuiçãodePoirotforaacertada:erabelíssima,comcabeloslouroseolhosazuis-claros.Pelo vestido sóbrio mas dispendioso deduzi que pertencia a uma classesocialelevada.

—MonsieurPoirot—disseamoçanumavozdoceemusical—,estouemapuros.Nãosei sepoderámeajudar,masouvicontar taismaravilhasdesuahabilidade,queemúltimorecurso,venholhepediroimpossível.

—Oimpossívelsempremeatrai—dissePoirot.—Prossiga,porfavor,mademoiselle.

Nossalindavisitantehesitou.— Seja absolutamente franca — acrescentou Poirot. — Não esconda

nenhumdetalhe.—Con iarei no senhor—exclamouamoça.— Já ouviu falar emLady

MillicentCastleVaughan?Omeuinteressecresceu.Poucosdiasatrásforaanunciadoonoivadode

LadyMillicentcomo jovemDuquedeSouthshire.Elaeraaquinta ilhadeumnobre irlandês arruinado e oDuque de Southshire umdosmelhorespartidosdaInglaterra.

— Eu souLadyMillicent—continuouamoça.—Talvez tenham lidoanotícia de meu noivado. Eu devia estar felicíssima, mas estou numasituaçãohorrível.Escreviumacariaquandotinhadezesseisanos.sintoatévergonha de lhe contar... E agora esse sujeito vil, de mau caráter,Lavington,ele...

—AcartafoiparaesseMr.Lavington?—Não!Paraele,não!Escreviaumrapazaquemeramuitoafeiçoada.

Elemorreunaguerra.

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—Compreendo—dissePoirotcombrandura.—Foiumatolice,umaindiscriçãominha,masnadaalémdisso,acredite,

M.Poirot.Masháfrasesnessacartaquepodemserinterpretadasdeoutramaneira...

—Euentendo,eagoraMr.Lavingtonestádepossedessacarta?—Estáeamenosquelhedêumaquantiaexorbitanteemdinheiro,que

nãotenhopossibilidadesdeobter,ameaçaentregá-laaoduque.— Que baixeza, sujeito nojento! — exclamei. — Desculpe-me,Lady

Millicent.—Nãoseriamaisprudenteconfessartudoaseufuturomarido?—Nãoouso,M. Poirot.Oduque temum temperamento apaixonado, é

descon iado e ciumento, e acreditará no pior. Seria o mesmo quedesmancharnossonoivado.

—Quesituação!—exclamouPoirotcomumacaretaexpressiva.—Eoquedesejademim,LadyMillicent?

—EupoderiapediraMr.Lavingtonparaoprocurar,dizendo-lhequeosenhortemplenospoderespararesolverocaso.Talvezpossareduzirsuasexigências.

—Quantoelequer?—Vintemillibras.Eunãoconseguirianemmil.— Talvezmilady pudesse conseguir um empréstimo, devido ao seu

próximo casamento, mas certamente não obteria nem a metade dessaquantia.Alémdissoessachantagemérepugnante.Ehbien,HerculePoirotderrotaráosseusinimigos!QueesseMr,Lavingtonmeprocure!Julgaqueeletraráacarta?

Amoçasacudiuacabeça.—Não,eleémuitocauteloso.—Temcertezadequeeleatem?—Mostrou-meacartaquandofuiasuacasa.—Estevenacasadele?Foiumaimprudência,milady.— Acha? Estava tão desesperada! Julguei que as minhas súplicas o

comovessem.—Oh, là, là!SujeitoscomoLavingtonnãosecomovemcomsúplicas.Ao

contrário, deve ter icado satisfeito ao certi icar-se da importância queatribuiaodocumento.Ondemoraessedistintocavalheiro?

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—EmWimbledon, suapropriedade chama-seBuonaVista. Estive lá ànoite—Poirotdeixouescaparumgemido—,ameacei-ocomapolícia,eeleriu,umrisodesagradávelezombeteiro.“Àvontade,querida LadyMillicent,façacomoquiser”,elemedisse.

—Nãoémesmoumcasoparaapolícia—murmurouPoirot.—“Masnãocreioqueseja.tãotola”,eleacrescentou,“veja,nestacaixa

de laca chinesa, aqui está sua carta”. Ele desdobrou a folha para que apudesseverbem.Tenteiagarrá-la,maselefoimaisrápido.Comumsorrisomalévolo ele tornou a guardá-la na caixa de laca: “Aqui ela icará emsegurança, num esconderijo engenhoso que nunca o encontrará!” Olheiparao cofredeparede,mas ele sacudiu a cabeça e riu. “Tenhoumcofremuitosuperioraesse!”,disseele.Quehomemodioso!Podemeajudar,M.Poirot?

—TenhaconfiançanopapaiPoirot.Dareiumjeito.Essas palavras tranquilizadoras eram, sem dúvida, muito bonitas,

pensei enquanto Poirot acompanhava nossa bela cliente à saída, mas naminha opinião, ele encontrara um osso duro de roer. Disse-o a Poirotquandoelevoltou.Concordou,apreensivo.

— É, a solução não é evidente. Esse Mr. Lavington está literalmentedando as cartas, no momento. Ainda não vejo como iremos baldar seusintentos.

Naquela tarderecebemosavisitadeMr.Lavington. LadyMillicent comtodarazãoodescreveracomoumhomemodioso.Chegueiasentircócegasno pé direito no ímpeto contido de chutá-lo escadas abaixo. Provocador,agressivo, zombou das tímidas propostas de Poirot,mostrando-se senhorda situação. Não posso elogiar a atuação de meu amigo, Poirot pareciaabatidoedesencorajado.

— Bem, cavalheiros, assim não chegaremos a um acordo — disseLavington pegando o chapéu. — Eis minha última proposta: Farei umabatimentoemdeferênciaaoencantodeLadyMillicent.Dezoitomil libras.Vou a Paris hoje, tenho negócios a resolver. Voltarei na terça-feira. Se odinheironãoestiveremminhasmãosatéterçaànoite,enviareiacartaaoduque. Não me venha com essa conversa de queLady Millicent. nãoconseguirá arranjar o dinheiro. Se ela usar os argumentos certos, tenhocertezadequemuitosdeseusamigosestarãoprontosa lheconcederumempréstimo...

O sangue subiu-me ao rosto, e dei um passo em sua direção, mas

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Lavingtonvirou-seedesceuasescadas.—MeuDeus!—exclamei.—Precisamos fazeralgumacoisa.Essasua

apatiamepreocupa,Poirot.— Você tem um coração de ouro, meu amigo, mas suas células

cinzentas não estão à altura. Não pretendia impressionar Mr. Lavingtoncomatitudesenérgicas.Quantomaisfracoelemejulgar,melhor.

—Porquê?— Não é curioso que eu tenha expressado o desejo de trabalhar do

outroladodalei,poucoantesdachegadadeLadyMillicent?— Vai revistar a sua casa enquanto ele está fora? — eu prendi a

respiração.— Por vezes os seus processos mentais são surpreendentemente

rápidos,Hastings.—Eseelelevouacarta?Poirotsacudiuacabeça.—Émuitopoucoprovável.Ele temevidentementeumesconderijoem

casaqueconsideraperfeito.—Quandonósrealizaremosessa...façanha?—Amanhãànoite.Sairemosdaquiàsonzehoras.Na hora marcada, eu estava a postos, com um terno e um chapéu

escuros.Poirotsorriu.—Está vestido a caráter, não?— comentou.—Vamos pegar ometrô

paraWimbledon.—Easferramentasparaforçaraporta?—MeucaroHastings,HerculePoirotnãoadotamétodostãoprimitivos!Calei-me,melindrado,masminhacuriosidadenãodiminuiu.Eraexatamentemeia-noitequandochegamosaojardimdeBuonaVista.

Acasaestavaescurae silenciosa.Poirotdirigiu-sesemhesitaraumadasjanelas dos fundos, abriu a veneziana com toda a facilidade e, com umgesto,convidou-meaentrar.

—Comosoubequeesta janela estavaaberta?—sussurrei espantadodiantedeumatãoassombrosaintuição.

—Porqueeumesmoserreiotrincohojedemanhã.—Oquê?

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—Foimuitosimples.Apresentei-mesobumnome ictícioemostreiumdos cartões do inspetor Japp. A Scotland Yard me enviara para instalartrincos à prova de roubos, a pedido de Mr. Lavington. A governantarecebeu-mecomentusiasmo.Nessesúltimosdiasacasafoiassaltadaduasvezes, sem que desaparecesse, entretanto, nenhum objeto de valor. Pelojeito,outrosclientesdeMr.Lavingtontiveramideiassemelhantesàs

nossas,Hastings.Corritodasasjanelas,pre-pareiestaaqui,eproibioscriadosdetocá-lasatéamanhã,poisestavameletrificadas.

—Poirot,vocêémesmogenial!—Mon ami, foi muito simples. E agora, ao trabalho. Os empregados

dormemnosótão.Nãocorreremosoriscodeosacordar.—Sabeondeestáocofredeparede?—Cofre?Bobagem,nãohánadanocofre!Mr.Lavingtonéumhomem

inteligente,deveterconcebidoumesconderijomuitomaisinexpugnáveldoqueumcofre,oprimeirolugarqueocorreriaaqualquerum.

Passamos uma revistaminuciosa na casa inteira,mas várias horas debusca emnada resultaram.Vi sinais de irritação acumulando-se no rostodePoirot:

—Ah,sapristi,HerculePoirotnãoseráderrotado!Nunca!Vamosfazerumapausapara re letir, vamos raciocinar. Enfin, vamosempregarnossascélulascinzentas!

Ficou silencioso alguns minutos até que a familiar luzinha verdeacendeu-seemsuaspupilas.

—Souumimbecil!Acozinha!—Acozinha?Impossível!Eoscriados?—Exatamenteoquediriamnoventaenovepessoasemcem!Por isso

mesmo,acozinhaéo lugar ideal,atulhadadeobjetosfamiliares.Enavant,paraacozinha!

Cético eu o segui e iquei observando enquanto ele remexia sacos depão,destampavapanelaseenfiavaacabeçadentrodoforno.Afinal,cansei-meevolteiaosalão.Estavaconvencidodequeali,esóaliencontraríamosoque procurávamos. Fiz nova e meticulosa busca até perceber que eramquatroequinze.Odiaseaproximava.Volteiàcozinha.

Parameuespanto,encontreiPoirotdentrododepósitodecarvão,comoternoclarocompletamentearruinado.Elefezumacareta.

—Écontratodososmeusinstintosmacularminhaelegância,maserao

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jeito,meuamigo.—AcreditaqueLavingtonescondeuacaixaembaixodocarvão?—Seolhassecomatenção,veriaqueomeuobjetivonãoéocarvão.Só então percebi umas toras de madeira empilhadas sobre uma

prateleiraportrásdodepósito.Poirot,comgestoságeis,asremoviaumaauma.Subitamentedeixouescaparumaexclamação.

—Dê-meseucanivete,Hastings.Obedeci. Ele o inseriu numa fenda da madeira, e a tora abriu-se

repentinamente ao meio. No interior oco, via-se uma caixa de laca commotivoschineses.

—Bravos!—exclameientusiasmado.— Fale mais baixo, Hastings, não faça tanto barulho. Vamos embora

antesqueodiaamanheça.Colocandoacaixanobolso,elepulouparaforadodepósitoelimpou-se

opossível.Deixamosa casapelomesmocaminhoporondeentráramos,ecomeçamosaandaremdireçãoaLondres.

—Masqueesconderijomaluco!—protestei.—Esehouvessemusadoatora?

— Em pleno verão, Hastings? E aquela tora estava bem embaixo dapilha. Constituía um engenhoso esconderijo, sem dúvida. Ah, aí vem umtáxi. Vamos para casa e para um sono reparador, depois de um bombanho!

Apósaquelanoitedeaventuras,dormiaté tarde.Poucoantesdauma,dirigi-meàsaladeestaretiveasurpresadeencontrarPoirot,comacaixadelacasobreamesaaseulado,calmamenteentretidonaleituradacartacomprometedora.

Sorriu-meafetuosamenteedisse:—LadyMillicent tinha razão, o duque nunca perdoaria esta carta. Ela

contémasexpressõesdeafetomaisextravagantesquejávi.—Ora, Poirot!—protestei aborrecido.—Naminha opinião você não

deviaterlidoacarta.Issosimplesmentenãosefaz!—Eu,HerculePoirot,faço—retrucouimperturbávelomeuamigo.—Eoutracoisa—acrescentei—,nãocreioqueusarumcartãoo icial

deJappestejadentrodasregrasdojogo.—Nãoestouenvolvidonumjogo,Hastings.Estouresolvendoumcaso.

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Encolhiosombros.Pontosdevistanãosediscutem.— Há alguém subindo as escadas, deve serLady Millicent — disse

Poirot.Nossabelaclienteentrou.Suaexpressãodeansiedadetransformou-se

emalegriaaoveracartaeacaixadelacanasmãosdePoirot.—Mr.Poirot!Quemaravilha!Comoconseguiu?— Por métodos repreensíveis,milady. Mas Mr. Lavington não

apresentaráqueixa.Estaésuacarta,não?Amoçacorreuosolhospelafolha.—É elamesmo. Comopoderei lhe agradecer?O senhor é umhomem

maravilhoso!Ondeestavaescondidaacaixa?Poirotlhecontounossasaventuras.— Que dedução inteligente! — disse ela estendendo a mão para a

caixinhadelaca.—Vouguardá-lacomorecordação.—Milady, gostaria de que me permitisse conservá-la, também como

recordação.—Mandar-lhe-ei uma recordaçãomuito superior a esta,M. Poirot.No

diadomeucasamentoveráquenãosouingrata.— O prazer de lhe prestar um favor me é mais precioso do que um

cheque.Permita-meconservaracaixa.— Oh, não, M. Poirot, tenho que icar com ela! — exclamou a moça.

aindarisonha.Elaestendeuamão,masPoirotfoimaisrápido.Suamãofechou-sesobre

acaixa.—Não—suavozmodificara-se.—Oquesignificaisso?—elanãosorriamais.—Pelomenospermita-meconservaroseuconteúdo.Comovê,ofundo

dessa gavetinha é falso. Em cima estava a carta comprometedora, eembaixo...

Numgestorápidoeleestendeuamão.Emsuapalmarefulgiamquatroenormesbrilhanteslapidadoseduasbelíssimaspérolas.

—Creioque sãoas joias roubadasemBondStreet,hápoucosdias—murmurouPoirot.—Jappnosdirá.

Paraminhasurpresa,aportadoquartodePoirotabriu-seeoinspetorapareceu.

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— Um velho amigo seu — disse Poirot com uma mesura aLadyMillicent.

—Comtodososdiabos,meapanharam!—exclamouamoçanumtomcompletamentediferente.—Seuvelhodemônio!—elaolhouparaPoirotcomadmiraçãonãoisentadeafeto.

—Bem,Gertie,minhaquerida—disseJapp—,destavezvocêperdeu.Nãopensava em revê-la tão cedo!Apanhamos o seu cúmplice também, ofalsoLavington,queaquiesteveontem.Overdadeiro,vulgoCrocker,vulgoReed,foimortonaHolanda.Aliásgostariadesaberqualocomponentedobandoqueen iouumafacanele.Pensaramqueaspedrasestavamemseupoder,nãofoi?Eleostraiu,eescondeuamercadoriaemsuaprópriacasa.Depois que os seus amigos não conseguiram encontrar a caixa, vocêrecorreuaM.Poirot,queaachou,comumasorteestupenda.

— Você gosta muito de falar, não é? — disse a ex- Lady Millicent. —Fique quietinho que eu vou bem comportadinha. Você não poderá dizerquenãosouumaperfeitadama.Tchauparavocês!

—Ossapatosdelanãocombinavam—dissePoirotenquantoeuestavapordemaisestupefatoparafalar.—Observeioscostumesdeseupaís,seiqueumaverdadeiradama,quetenhaberçoésempreexigenteemrelaçãoa calçado. Pode trajar umvestidomodesto,mas os sapatos serão semprede qualidade superior. Ora. esta Lady Millicent usava um vestido caro eelegante, e sapatos baratos! A verdadeira Lady Millicent não mora emLondres, e era pouco provável que você ou eu a conhecêssemos, e estamoçatemumasemelhançasuper icialcomela.Alémdossapatosquelogodespertaramminhaatenção,suahistóriaeseusvéuseramexcessivamentemelodramáticos, não concorda? O bando conhecia a caixa de laca com afalsa carta comprometedora,mas escondê-la na tora demadeira foi ideiaexclusivadeLavington!

Emeuamigoacrescentoucomumardesatisfação:— Espero que não torne a ferir meus sentimentos dizendo que as

classes criminosas nem sabemdeminha existência, Hastings.Ma foi, elasatérecorremamimquandonãoconseguemseusobjetivos!

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ProblemaaBordo

— Coronel Clapperton! — e o General Forbes acrescentou àexclamaçãoumafungadeladedesprezo.

Miss EllieHenderson inclinou-se para ele comumbrilho divertido emseusolhosescuros.Oventobrincavacomseuscabelosprateados.

—Mas ele tem um ar tãomarcial!— disse ela commalícia, tentandoconteroscabelosrebeldes.

—Marcial?—protestouoGeneralForbesdandoumviolentopuxãoemseusprópriosbigodesenquantosuasbochechasficavamescarlates.

— Ele comandou a Guarda Real, não foi? — acrescentou MissHendersonnumtoquefinalàprovocação.

—GuardaReal?Queabsurdo!Umsujeitoquesaiudoteatroderevista!Alistou-se durante a guerra e mandaram-no para a França, e ele icouinventariando latas de presuntada até que os boches deixaram cair umabomba lápela cozinha.Ele acordouna Inglaterra comum ferimentozinhonobraço,nohospitaldeLadyCarrington.

—Entãoforassimqueseconheceram...—Exatamente.ElebancouoheróiferidopoisLadyCarringtonpodiaser

uma tola, mas tinha montanhas de dinheiro. O velho Carrington foifabricante de armamentos, e ela enviuvara há seis meses quando essesujeitoapassounaconversa.Foielaquemlhearranjouumcargoqualquerno Ministério da Guerra. Hum! Coronel Clapperton, pois sim! — e oGeneralfungounovamente.

— Então antes da guerra ele era do teatro de revista...—murmurouMiss Henderson tentando fazer uma síntese entre a imagem do distintooficialeadeumcomediantevulgardizendopiadasdeduplosentido.

— Exatamente, foi o velho Bassington-French quemme contou, e suafontede informações foiovelhoBadgeCotteril,queporsuavezsoubedahistóriaporSnooksParker.

— Então não pode mesmo restar dúvida alguma! — a irmou MissHendersoncategórica.

Umlevesorrisopassoupelorostodohomembaixinhosentadoao lado

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deles.MissHenderson,muitoobservadora,notouosorrisoprovocadoporsuaironia,ironiaestaqueoGeneralforaincapazdeperceber.

O General, alheio a tudo isso, consultou o relógio, levantou-se edeclarou:—Está na hora dosmeus exercícios, preciso conservar-me emforma—edirigiu-separaoconvés.

MissHenderson virou-se para o homenzinho do sorriso, numdiscretoconviteaumaconversa.

— Ele tem um bocado de energia, não é mesmo? — disse ocompanheiro.

— Costuma dar exatamente quarenta e oito voltas ao convés! E quevelho fofoqueiro!Aindadizemqueasmulheres équegostamde falardavidaalheia...

—Quefalsidade!—Os franceses sãomuitogalantes—disseMissHenderson sorrindo.

Eraquaseumapergunta.Ohomenzinhorespondeuprontamente.—Soubelga,madame.—Ah,belga...—HerculePoirot,àssuasordens.Onomelheerafamiliar.Ondeoouvira?—Estágostandodaviagem,M.Poirot?—Paraser franco,não.Foiuma tolicedaminhaparte ter-medeixado

persuadir.Eudetesto lamer,suaságuasnão icamparadasnemumúnicominuto.

—Nomomentoestábemcalmo.Poirotadmitiuofatodemávontade.—Nomomento,está,esintovidanova,torneiameinteressarpeloque

mecerca.Porexemplo,pelasuahabilidadeemlidarcomoGeneralForbes.—Refere-sea...—MissHendersonhesitou.— Seus métodos de desenterrar aquelas informações picantes foram

admiráveis.MissHendersonriuseminibição.— Calculei que o velho pularia à menção da Guarda Real! — ela

inclinou-separaelee con idenciou-lhe:—Confessoqueadoromexericos,

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quantomaispicantes,melhor!Poirot itou pensativo à silhueta esbelta, bem conservada, os

penetrantes olhos escuros, e os cabelos grisalhos daquela mulher dequarentaecincoanosquenãosepreocupavaemesconderaidade.

Derepente,Ellieexclamou:—Agoramelembro!Osenhornãoéograndedetetive?—Émuitaamabilidadesua,mademoiselle—respondeuPoirotcomuma

mesura.— Que emocionante! Está investigando algum caso misterioso? Será

quetemosumcriminosoentrenós,ouestareisendoindiscreta?— Não, nem um pouco. Sinto desapontá-la, mas estou aqui para me

divertir,comotodososoutros.Ele fezestadeclaraçãonumavoztãodesanimadaqueMissHenderson

soltouumagargalhada.— Bem, o senhor poderá obter algum alívio dando uma volta por

Alexandria.JáestevenoEgito?—Não,mademoiselle.InesperadamenteMissHendersonlevantou-se.—AchoquevouimitaroGeneral—elaanunciou.Poirot ergueu-se polidamente. Com um rápido cumprimento, ela saiu

paraoconvés.Levemente intrigado, Poirot dirigiu-se à porta e espiou o tombadilho.

Encostadoàamurada,MissHendersonconversavacomumhomemaltodeaspectomarcial.

Os lábios de Poirot contraíram-se num leve sorriso. Recuoudiplomaticamentecomouma tartarugarecolhendo-sea seucasco.Osalãoestava vazio. Uma situação transitória, conjeturou Poirot acertadamente,poisdaliainstantesMrs.Clapperton,comosimaculadoscabelosplatinadosprotegidosporumaredeea silhuetaconservadapormassagensedietasnum elegante costume esporte, apareceu na porta do bar. Tinha o. arsegurode alguémque semprepudera oferecer o lancemais alto por umobjetodesejado.

—John...?—disseela.—Ah,bomdia,M.Poirot.ViuJohnporacaso?—Eleestánoconvésdeestibordo,madame.Desejaqueeu...?Elaodetevecomumgesto.

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—Vouesperaraqui—eela sentou-sea seu ladocomaposedeumarainha. A distância, ela aparentara uns vinte e oito anos, mas de perto,apesar da maquilagem perfeita e das sobrancelhas impecáveis, dir-se-iatercinquentaecinco.emvezdosseusverdadeirosquarentaenoveanos.Seusolhosazuis-claros,depupilasdiminutas,eramdurosesecos.

—Sentiasuafaltanojantardeontem—disseela.—Masomarestavaumpoucoagitado,nãoémesmo?

—Précisément—Poirotconcordouplenamente.— Eu nunca enjoo, felizmente — disse Mrs. Clapperton. — Digo

felizmenteporque se enjoassepoderia atémorrei, comessemeu coraçãofraco.

—Sofredocoração,madame?—Sofro.Precisotomaromáximocuidado.Todososespecialistasdizem

que não posso me cansar. — E Mrs. Clapperton começou a discorrer,deliciada, sobre o fascinante tema de sua saúde precária. — John,pobrezinho,estásemprefazendoopossívelparaimpedirqueeumecanse.Vivomuitointensamente,sabe,M.Poirot.

—Façoideia,madame.— Ele está sempre me aconselhando: “Tente ser menos vibrante,

Adeline”.Masnãoconsigo.Avidaéparaservivida.nãoconcorda?Quandoeramocinha, durante a guerra, trabalhei até quase a exaustão completa.Ouviufalaremmeuhospital?Naturalmentetinhaenfermeiraseauxiliares,masquemdirigiatudoeraeu—eeladeuumsuspiro.

— Sua vitalidade é admirável, .madame — disse Poirot cortesmentemassemmuitaconvicção.

Mrs.Clappertonsoltouumarisadajuvenil.—Todosme acham tão jovem! E nunca tento negarmeus quarenta e

trêsanos—prosseguiuelacomfalsacandura.—Muitosachamdi ícildeacreditar. “Você tem tanta vida, Adeline”, elesme dizem,Mas se não nosesforçarmosparaviver,oqueacontecerá,M.Poirot?

—Morreremos—retrucouodetetive.Mrs. Clapperton franziu a testa, a resposta não lhe agradara. O

homenzinhoestátentandoserengraçado,elapensou.— Preciso encontrar John — ela declarou levantando-se e deixando

cairabolsa,queseabriuespalhandooseuconteúdo.Poirot,galantemente,acorreuemauxílio.Daliapouco,batons,estojosdepó,cigarreira,isqueiro

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e outras miudezas haviam sido devolvidos à dona. Mrs. Clappertonagradeceu-lheeducadamenteeseguiuparaoconvés.

—John!—eraumaordem.O Coronel Clapperton, entretido em animada conversa com Miss

Henderson, virou-se e atendeu prontamente ao chamado da esposa.Debruçou-sesobreelaematitudeprotetora.Aespreguiçadeiraestavaembom lugar? Não seria melhor...? Atencioso, cortês, era o protótipo domaridodedicado.

Miss Ellie Henderson contemplou o horizonte como se este adesagradasseprofundamente.

Empé,naportadosalão,Poirotobservava.Umavoz roucaepoderosa comentouemsuas costas:—Seeu fosseo

marido daquela mulher, cortava-lhe o pescoço! — era um senhorvenerandoconhecidopelaturmamaisjovemcomo“omaisvelhoplantadordechádomundo”.—Ei,rapaz!Traga-meumadosedeuísque—pediuovelho.

Poirot abaixou-se para apanhar umpedaço de papel que sobrara dospertences de Mrs. Clapperton. Era parte de uma receita contendodigitalina.Odetetivecolocou-anobolsoparadevolvê-lamaistarde.

— Aquela mulher é uma megera. Faz-me lembrar uma outra queconheciemPoonaem1887—disseovelho.

—Alguémcortou-lheopescoço?—perguntouPoirot.Ocompanheirosacudiuacabeça,pesaroso.—Encheu tanto a paciência domarido, que ele acaboumorrendo em

menosdeumano.Clappertondeviaseimpor,darmenostrelaàmulher!—Elacontrolaodinheiro—explicouPoirotmuitosério.Ovelhodeuumagostosarisada.—Osenhordefiniumuitobemoproblema!Duas mocinhas irromperam sala a dentro, com a impulsividade da

juventude, uma sardenta de cabelos ruivos e a outra de rosto redondo elindacabeleiraescura.

— Serviço de Salvamento! — anunciou Kitty Mooney. — Pam e euvamossalvaroCoronelClapperton.

—Dasgarrasdaesposa—concluiuPamelaCregan.—Eleéumamor...

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—Eelaésimplesmentehorrorosa,nãoodeixafazernada!—Equandoeleselivradela,EllieHendersonoagarra.—Elaéboazinha,mastãovelha...Elas saíram apressadas, anunciando entre risadinhas: — Serviço de

Salvamento...Serviçode...À noite as moças demonstraram ter irmes propósitos de salvar o

CoronelClapperton.PamCregan,coma impunidadedeseusdezoitoanos,murmurouaoouvidodePoirot:

— Observe só, M. Poirot. Vamos pegá-lo bem no nariz dela e levá-loparaumpasseioaoluar.

OCoronelestavadizendo:—AdmitoqueumRollsRoycenãoébarato,masécarroparaumavidainteira.Omeu...

— O carro deminha esposa, John — corrigiu a voz cortante de Mrs.Clapperton.

Ele não se deu por achado. Aparentemente já se acostumara àsindelicadezasdela,ouentão...

Ou então...? Poirot formulou algumas respostas mentais àquelapergunta.

— Certamente, querida, oseu carro— Clapperton fez umamesura àesposaeterminouafraseiniciadacomperfeitacompostura.

Voilà ce qu’on appelle le pukka sahib, pensouPoirot.Masna opiniãodoGeneralForbeselenãoéumcavalheiro.Ocasomeintriga.

Alguém sugeriu uma partida de bridge. Mrs. Clapperton, o GeneralForbeseumcasaldenarizesaquilinosacolheramaideiacomentusiasmo.MissHendersonpediulicençaesedirigiuaoconvés.

—Eseumarido?—perguntouoGeneralhesitante.— John não joga. É uma das suas manias irritantes — disse Mrs.

Clappertonarrumandosuascartas.Pam e Kitty cercaram o Coronel, e cada uma apoderou-se de um dos

braçosdooficial.—Osenhor temquevirconosco—dissePam.—Vamosvera luano

convéssuperior.— Não faça uma tolice destas, John. Vai apanhar um resfriado —

interveioMrs.Clapperton.—Conosconãoháperigo—disseKitty.—Somosmuitoesquentadas!

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Ele as acompanhou rindo. Ao chegar sua vez Mrs. Clapperton dissesecamente:—Eupasso.

Poirotsaiuparaoconvés.Encostadaàamurada,MissHendersonvirou-se esperançosa quando ele se aproximou, e seu rosto anuviou-se.Trocaramalgumasfrasesamáveiseeleficouemsilêncio.

—Oqueopreocupa?—elaperguntou.— As de iciências do meu inglês. Ao declarar: “John não joga” Mrs.

Clappertonestavaacasoquerendodizerqueocoronelnãosabejogar?—Certamente ela considera o fato uma afronta pessoal— disse Ellie

emtomseco.—Elefoiumtoloemdesposá-la.Na escuridão Poirot sorriu.—Não acha possível que o deles seja um

bomcasamento?—elearriscou.—Comumamulherdaquelas?Poirotencolheuosombros.—Muitasmegerastêmmaridosdevotados;

é um dos enigmas da natureza. A senhorita precisa admitir que nada doqueeladizoufazpareceirritá-lo.

Miss Henderson procurava uma resposta quando a voz de Mrs.Clappertonecoouatravésdajaneladosalão;

— Não, não estou com vontade de jogar outra partida, está muitoabafadoaqui.Vouapanharumpoucodearnoconvéssuperior.

— Boa-noite. Eu vou dormir — disse Miss Henderson e retirou-seabruptamente.

Poirotdirigiu-separaosalãodeestar.Aúnicamesaocupadaeraadocoronel com as duas moças. Ele as entretinha com alguns truques debaralho, e observando a destreza comque elemanejava as cartas, Poirotlembrou-sedashistóriasdogeneralsobreoteatrodevariedades.

—Vejoqueapesardenãojogarbridge,gostadebaralho—comentouodetetive.

— Tenhominhas razões para não jogar— disse Clapperton com umsorrisoencantador.—Voulhemostrar.Vamosjogarumapartida—eeledeuascartascomrapidez.

— Que tal? — disse ele quando os companheiros arrumaram suascartas, e deu uma risada ante a expressão estupefata do rosto de Kitty.Colocousuascartasnamesaeosoutrosoimitaram.Kittytinhaasequênciacompletadepaus,M.Poirotadecopas,Pamadeouroseelepróprioadeespadas.

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—Estãovendosó?—disseocoronel.—Émelhormanter-meafastadodas mesas de jogo. Meus parceiros podem implicar com a minha sorteexcessiva!

Kittynãoseconformava.—Comoconseguiufazerumacoisadestas?Eunãopercebinada!—Asmãosforammaisrápidasqueosolhos—sentenciouPoirot.Os olhos do coronelmudaram de expressão, como se percebesse que

havia,poralgunsmomentos,desafiveladoamáscara.Poirot sorriu. O prestidigitador, escondido sob o disfarce do perfeito

cavalheiro,aparecera.NamadrugadaseguinteonavioatracouemAlexandria.QuandoPoirot

subiu para o café, encontrou as duas moças prontas para desembarcar,conversandocomoCoronelClapperton.

—Vamos logo—disseKittyafobada.—Os funcionáriosdaalfândegavãodesceragora.Osenhorviráconosco,não?Nãovainosdeixariràterrasozinhas,vai?Pensenascoisasterríveisquepodemnosacontecer...

—Nãodevemmesmodescersozinhas—concordouocoronelsorrindo—,masachoqueminhaesposanãoestácomdisposiçãodepassear.

— Que pena! — disse Pam. — Mas ela terá um dia inteirinho paradescansar...

O Coronel Clapperton hesitou. Evidentemente seu desejo de dar umaescapadelaerabemforte.ViuPoirot.

—Olá,M.Poirot,vaidesembarcar?—Não,pensoquenão—respondeuPoirot.—Eu...voufalarcomAdeline—decidiu-seocoronel.— Vamos também — disse Pam piscando um olho para Poirot. —

Talvezpossamospersuadi-laavir—acrescentoumuitoséria.Ocoronelgostoudasugestão.Suaexpressãoeradealívio.— Venham, então, todos — ele disse jovialmente e dirigiu-se para o

convésB.Poirot,cujocamarote icavabememfrenteaodocoronel,seguiu-opor

puracuriosidade.Ooficialbateunaportacomumpoucodenervosismo.—Adeline,querida,estáacordada?AvozsonolentadeMrs.Clappertonrespondeuládedentro.—Diabos,

oqueé?

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—Soueu,John.Queriràterra?—Demaneira alguma— a voz era estridente e categórica.—Dormi

muitomal.Voupassarodiadeitada.Paminterveioprontamente:—Quepena,Mrs.Clapperton!Gostaríamos

tantodequenosacompanhasse!Temcertezadequenãoestádisposta?— Certeza absoluta — a voz de Mrs. Clapperton soou ainda mais

estridente.Ocoronelviravaamaçanetasemresultado—O que é, John? Tranquei a porta, não quero ser incomodada pelos

camareiros.—Desculpe,querida.Sóqueriameuscigarros.— Vai ter que passar sem eles— retorquiuMrs. Clapperton.—Não

voumelevantar.Válogoembora,John,deixe-meempaz.— Pois não, querida, pois não— o coronel afastou-se de braços com

PameKitty.— Vamos logo. Felizmente seu chapéu está na cabeça. Nossa! E o

passaporte?—disseumadasmoças.— Para falar a verdade, está em meu bolso... — começou a dizer o

coronel.Kittyapertouoseubraço.—Quemaravilha!Vamosembora!Encostadoàamurada,Poirotobservouo triodescerasescadasparao

cais.Alguémsoltouumaexclamaçãoaseulado,elevirou-seeviucomMissHendersonolhandonamesmadireção.

—Entãoelesvãoàterra—disseela.—Easenhoritanãovaiimitá-los?Ela trazia um chapéu de abas largas e uma bolsa elegante, próprios

para um passeio. Entretanto, após uma ligeira hesitação, ela sacudiu acabeça.

—Não,nãovoudescer.Tenhoalgumascartasparaescrever—disseeretirou-se.

Comarespiraçãoofegante,aoterminarsuaquadragésimaoitavavolta,oGeneralForbesjuntou-seaPoirot.

—Ha!—exclamouaoverocoronelnacompanhiadasduasmocinhas.—Quemalandro!Então as coisas estãonesseponto, hem?Eonde está a

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infelizconsorte?PoirotexplicouqueMrs.Clapppretendiapassarodiadescansando.—

Nãoacredito!—eovelhomilitarpiscouumolho.—Daquiapoucoelavaiaparecer e se omiserável não estiver por aqui, vai haver uma encrencadosdiabos!

Mas os prognósticos do general não se realizaram. Mrs. Clapp nãocompareceu ao almoço, e não havia se levantado ainda quando o coronelretornouàsquatrodatarde.

Poirot, em seu camarote, ouviu as tímidas batidas na porta em frente.Asbatidasserepetiram,alguémgirourepetidamenteamaçaneta,ea inalouviu a voz do coronel chamando o camareiro:—Ei, venha cá. Ninguémresponde,vocêtemumachave?

Poirotergueu-serapidamentedeseubelicheesaiuparaocorredor.A notícia espalhou-se como fogo em capim seco pelo navio. Os

passageirosouviram, incrédulosehorrorizados,queMrs.Clapperton foraencontrada morta em seu beliche com uma adaga nativa en iada nocoração.Umcolardecontasmarronsforaachadonochãodocamarote.Osrumores multiplicaram-se. Todos os vendedores de quinquilharias quehaviam subido a bordo naquele dia foram detidos e interrogados.Desaparecera uma grande quantia em dinheiro de uma gaveta docamarote!Haviamrecuperadoasnotas!Nãohaviamrecuperadoasnotas!Joias valiosíssimas haviam sido roubadas! Que joias, que nada! Umcamareiroforapresoeconfessaraocrime!

—M.Poirot,ondeestáaverdade?—perguntouMissEllieHenderson.Seurostoestavapálidoeangustiado.

—Minhacarasenhorita,comovousaber?—Osenhorsabe,sim—disseMissHenderson.Era quase meia-noite. A maioria dos passageiros havia-se recolhido.

MissHendersonconduziuPoirotparaduascadeirasnoconvés.—Conte-meagora—elaordenou.Poirotafitou,pensativo.—Esteéumcasointeressante—disseele.—Roubarammesmojoiasvaliosas?Poirotsacudiuacabeça.— Não, não roubaram joia alguma. Mas algumas notas que estavam

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numagavetadesapareceram.— Nunca mais me sentirei segura num navio — disse ela com um

estremecimento. — Há alguma pista indicando qual daqueles vigaristasmorenosamatou?

—Não—disseHerculePoirot.—Ocasoémuitoestranho.—Quepretendedizercomisso?—Elliefoiincisiva.— Eh bien, vamos aos fatos. Quando encontraram o corpo de Mrs.

Clapperton ela estava morta há pelo menos umas cinco horas.Desapareceraalgumdinheiro.Nochãodocamarote,umcolardecontas.Aporta trancada, sem a chave. A janela, ouça bem, janela e não escotilha,dandoparaoconvés,aberta.

—Edaí?—perguntouelaimpaciente.— Não acha curioso um assassinato cometido nessas circunstâncias?

Lembre-se de que os vendedores de cartões-postais, os cambistas e oscamelôs que têm permissão para subir a bordo são bem conhecidos dapolícia.

—Emesmoassim,oscamareiros trancamasportasdoscamarotes—retrucouEllie.

— É verdade, para impedir a possibilidade de algum pequeno furto.Masumassassinatoécoisadiferente.

—Ondequerchegar,M.Poirot?—avozdelatraíanervosismo.—Estoupensandonaportatrancada.MissHendersonrefletiu.—Nadavejodeestranhonisso.Oassassinosaiupelaporta,trancou-ae

levou a chave para retardar a descoberta do crime, uma providênciainteligente,poissódescobriramocorpoàsquatrodatarde.

—Não,não,mademoiselle.Nãoestápercebendoaondequerochegar.Oquemepreocupanãoécomoelesaiu,mascomoeleentrou.

—Pelajanela,naturalmente.—C’estpossible.Maselaébemestreita,ehásempregentepasseando

peloconvés.— Então ele entrou pela porta, ora — disse Miss Henderson já

impaciente.— Masmademoiselle se esquece de que Mrs. Clapperton trancou a

portapordentroantesdocoronelsairdonavio.Eletentouabriraportae

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vimosqueestavatrancada.— Bobagem, provavelmente emperrou, ou ele não virou direito a

maçaneta.—Nãoestamosnosbaseando sónaspalavrasdele.NósouvimosMrs.

Clappertondizerquetrancaraaportaachave.—Nós?—MissMooney,MissCregan,ocoroneleeu.Ellie Henderson bateu com a ponta do sapato elegante no chão. Ficou

calada algum tempo, e então disse com ligeira irritação:—Bem, e o quededuz daí? Mrs. Clapperton pode muito bem ter destrancado a portadepois.

— Exatamente, exatamente — e Poirot voltou para ela o rostosorridente.— E veja a que isto nos leva:Mrs. Clapperton abriu a porta edeixouoassassinoentrar. Achaprovávelqueelatenhaabertoaportaaumcamelôqualquer?

Ellie protestou: — Talvez ela não soubesse quem era. O criminosobateu,elalevantou-seeabriuaporta,eleforçouaentradaeamatou.

Poirotsacudiuacabeçanumanegativa.— Au contraire, ela estava paci icamente deitada quando a

apunhalaram.MissHendersonoencarou:—Oquededuzdisso?—elaperguntouabruptamente.Odetetivesorriu.—Bem,fica-nosaimpressãodequeelaconheciabem

estapessoaquebateuemsuaporta...— Está querendo dizer queo assassino é um passageiro do navio? —

disseMissHendersoncomalgumarispidez.—Éoqueparece—respondeuPoirotbalançandoacabeça.—Eoassassinotentoudespistar-noscomocolar?—Exatamente.—Elevouodinheirocomomesmopropósito?—Issomesmo.Depois de alguns momentos de silêncio, Miss Henderson disse

pausadamente:— No meu conceito Mrs. Clapperton era uma mulher muito

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desagradável,enãocreioquealgumpassageirosimpatizassecomela.Masissonãoémotivosuficienteparamatarninguém.

—Talvezomaridotivesseumbommotivo—dissePoirot.—Osenhornãoacredita...—elacalou-se.—Naopiniãogeraldospassageiros,oCoronelClapperton teria todaa

razão “se lhe cortasseopescoço”. Senãomeengano, foi a expressãoqueouvi.

EllieHendersonolhavaparaele,àespera.—Masdevoconfessar—prosseguiuPoirot—quenãonoteinenhum

sinal de exasperação por parte do coronel, e o que é ainda maisimportante, ele temumálibi.Passouodia inteirona companhiadasduasmoças, e quando voltou para o navio às quatro, Mrs. Clapperton estavamortaháváriashoras.

Apósoutrominutodesilêncio,EllieHendersondissebaixinho:—Masosenhoraindapensa...numpassageirodonavio?

Poirotcurvouacabeça.Ellie Henderson soltou uma súbita gargalhada, desa iadora e

impudente. — Será di ícil provar sua teoria, M. Poirot. Há muitospassageirosabordo.

O detetive fez-lhe uma mesura: — Plagiando Sherlock Holmes, direi:“Tenhomeusmétodos,Watson.”

Na noite seguinte, na mesa do jantar, cada passageiro encontrou umbilhetepedindo seu comparecimentoauma reuniãono salãoprincipal àsoito e trinta. Quando o grupo estava completo o capitão subiu naplataformadaorquestraedirigiu-lhesapalavra.

— Senhoras e senhores, todos tomaram conhecimento da tragédia deontem.Tenhocertezadequedesejamcooperarparaqueoculpadodessemonstruosocrimeseja levadoàJustiça—oo icialhesitouepigarreou:—AbordoviajaM.HerculePoirot,provavelmenteconhecidodetodosgraçasasuaamplaexperiênciaemtais...assuntos.Esperoqueouçamcomatençãoassuaspalavras.

Neste instante, o Coronel Clapperton, que não subira para o jantar,entrou e sentou-se ao lado do General Forbes. Muito abatido, pareciacurvado sobo pesodeuma grande tristeza, e não tinha absolutamente oaspecto de um homem aliviado. Ou era um ótimo ator, ou nutrira umagenuínaafeiçãoporsuadesagradávelesposa.

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O capitão cedeu o lugar ao detetive. Poirot tinha uma aparência umtanto ridícula ao cumprimentar a plateia: —Mesdames, messieurs —começou—,émuitaindulgênciadesuaparteouviremoquetenhoadizer.M.lecaptaine falou-lhes sobreaminhaexperiêncianesses assuntos.Essaexperiência me sugeriu uma pequena ideia, que poderá nos levar àverdade—ele fez um sinal e um camareiro adiantou-se comumvolumeinforme,envoltonumlençol.

— Talvez se surpreendam, e me considerem um excêntrico, talvezmesmo um louco—preveniu-os Poirot.—Entretanto, asseguro-lhes quehámétodoemminhaloucura,comocostumamdizernaInglaterra.

Seu olhar cruzou-se com o de Miss Henderson e ele começou adesembrulharovolume.

— Tenho aqui,mesdames emessieurs, uma importante testemunha doassassinatodeMrs.Clapperton.

Com um gesto rápido ele retirou o lençol revelando um boneco demadeira quase do tamanho de um homem adulto, vestido num terno develudocomgoladerenda.

— Arthur— disse Poirot num inglês autêntico com um leve sotaquecockney—,vocêpodemecontaralgumacoisaarespeitodamortedeMrs.Clapperton?

O pescoço do boneco oscilou, seumaxilar demadeira abriu-se e umavoz estridente e aguda de mulher disse: — O que é, John? Tranquei aporta,nãoqueroserincomodadapeloscamareiros...

Ouviu-se um grito abafado, uma cadeira caiu ao chão, um homemlevantou-se, cambaleando, com a mão no pescoço, tentando falar,tentando... Subitamente seus joelhos dobraram-se e ele estatelou-se nochão.

EraoCoronelClapperton.Poiroteomédicodebordoergueram-seaoladodocorpo.—Tudoacabado,infelizmente.Coração—disseomédico,sucinto.Poirot balançou a cabeça. — Foi o choque de ter sido descoberto—

disseele e virou-separaoGeneralForbes:—O senhor, general, deu-meuma indicação valiosa quando mencionou o teatro de variedades. Fiqueipensando, até que me ocorreu uma ideia: imaginemos que Clappertonfosseumventríloquoantesda guerra. Seria entãoperfeitamentepossívelque três pessoas ouvissem a voz de Mrs. Clapperton de dentro do

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camarotequandoelajáestavamorta...A seu ladoEllieHendersonvoltoupara ele os olhos escuros cheiosde

sofrimento: — O senhor sabia que o coração dele era fraco? — elaperguntou.

—Adivinhei...Mrs.Clappertonqueixou-sedede iciência cardíaca,masdeduzi que era do tipo demulher que adora queixar-se da saúde. Acheiumareceita rasgadacomumadosemuito fortededigitalina,umremédioparao coração. .Masdigitalinadilata aspupilas, e as deMrs. Clappertoneramnormais.Masquandoobserveiosolhosdele,descobriimediatamentequeareceitalhepertencia.

Ellie falou, e suavozeraummurmúrio:—Entãoo senhor sabia... queistopoderiaacabar...assim?

— Foi o melhor que poderia ter acontecido a ele, não acha,mademoiselle?—eleperguntoucombrandura.

Os olhos dela encheram-se de lágrimas. — O senhor sabia... sabia otempo todo... que eu gostava dele... Mas não foi por mim que a matou...Foram aquelas moças... a juventude delas... que o izeram sentir suaescravidão. Ele queria libertar-se antes que fosse tarde... Sim, foi o queaconteceu...Comoosenhoradivinhouqueeleamatara?

— O autocontrole dele era perfeito demais — disse Poirot comsimplicidade. — Por mais exasperante que fosse a conduta da esposa,nuncaoafetava.Podiaseruma indicaçãodequeseacostumaraao fato,enão se irritavamais, ou então...Ehbien, concluí pelaúltima alternativa... Eeuestavacerto.Nanoiteantesdocrimeele ingiurevelarsemquerersuashabilidades de prestidigitador. Mas um homem como Clapperton nuncaage irre letidamente, deveria haver uma razão para esse procedimento.Enquanto as pessoas julgassem que ele fora um mágico, não pensariamquepudesseserumventríloquo.

—Eavozqueouvimos?AvozdeMrs.Clapperton?—Umadascamareirastemumavozsemelhanteàdela.Convenci-aase

esconderatrásdopalcoeadizeraquelafrase.—Foiumtruquecruel!—exclamouEllie.—Nãoaprovoassassinatos—disseHerculePoirot.

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QueBonitoéoseuJardim?

Apósempilharacorrespondênciametodicamente,HerculePoirotpegou

oenvelopedecima,examinouoenvelopeporalgumtempo,eoabriucomo auxílio de um cortador de papéis que guardava sobre a mesa do caféexpressamenteparaesse im.Extraiuumsegundoenvelope fechadocomlacre vermelho e marcado “Particular e Con idencial”, e ergueu assobrancelhas: —Patience! Chegaremos lá! — murmurou tornando-se aservir do cortador. A inal, desta vez obteve uma carta escrita numacaligra iatrêmulaeangulosa,comváriaspalavrassublinhadascomtraçosfortes.

Hercule Poirot iniciou a leitura. “Con idencial”, avisava de saída amissivista.Seguia-seseuendereço:ORoseiral,Charman’sGreen,Bucks,eadata,vinteeumdeabril.

“CaroM.Poirot,Uma velha e querida amiga, sabendo as a lições e as tristezas por que

tenho passado nos últimos tempos, recomendou-me o senhor. Ela nãoconhece,entretanto,osfatosqueprovocaramessessentimentos.Tenhosido

muitoreservada,poisoassuntoéestritamentecon idencial.Minhaamigatranquilizou-me quanto à sua discrição. Não desejo envolver-me com apolícia,mesmoqueminhas suspeitas tenham fundamento. Esta soluçãonãomeagrada.

Épossível,entretanto,queeuestejainteiramenteenganada.Ultimamente,devidoàinsôniaepornãoteraindamerecuperadodeumadoençagravequemeacometeunoúltimoinverno,nãomejulgocomalucideznecessáriaparainvestigar o caso sozinha. Faltam-me meios e capacidade. Por outro lado,devo insistir que se trata de um assunto de família, muito delicado, e porvárias razões é meu desejo abafar o caso. Uma vez de posse dos fatos,desejaria resolveroproblemasozinha.Espero ter sido su icientementeclaranesseponto.Casoestejadispostoaencarregar-sedainvestigação,escrevaaoendereçoacima.

Atenciosamente,

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AmeliaBarrowby.”Com a testa levemente franzida Poirot tornou a ler a carta. A inal,

deixando-adelado,prosseguiucomoexamedacorrespondência.Precisamente às dez horas entrou na sala onde Miss Lemon, sua

secretária particular, esperava suas instruções diárias. Miss Lemon eraumamulherdequarentaeoitoanos,tãopoucoatraentequantoumlotedeossos unidos ao acaso. Sua paixão pela ordem quase se igualava à dePoirot, e embora fosse capaz de ter ideias próprias, só empregava afaculdadederaciocínioselheordenassem.

Poirotentregou-lheacorrespondênciamatutina.—Mademoiselle, tenha a bondade de responder negativamente, nos

termosadequadosacadacaso,atodasessascartas.MissLemonpassouumavistarápidapeloloteemarcoucadacartacom

umsinalmisteriosodeseucódigoparticular:“respostaadocicada”,“ácida”,“mel puro”, “bem azeda”, e assim por diante. Concluída essa tarefa elaesperounovasinstruções.

Poirot passou-lhe a carta de Amelia Barrowby. Ela a retirou doenvelopeduplo,leu-aeolhouindecisaparaopatrão.

—Eesta,M.Poirot?—perguntoucomolápisapostos.—Gostariadeouvirsuaopinião,MissLemon.Franzindo a testa, a secretária largou o lápis e releu a missiva. A

correspondênciasóinteressavaaMissLemondentrodoslimitesrígidosdesuas atribuiçõespro issionais. Cabia-lhedar-lhe a resposta adequada, e oseuteoremocionalnãoátocava.

Muitoraramenteseupatrãoapelavaparaasuaintuição,eMissLemonsempre sentia um ligeiro aborrecimento nesses casos. Preferia ser amáquina perfeita, total e gloriosamente desinteressada dos problemasemotivos dos seres humanos. A verdadeira paixão de sua vida era oaperfeiçoamento de um sistema de arquivos que colocaria todos os jáexistentesnochinelo.Ànoiteseussonhoserampovoadospormiraculososarquivos. Entretanto Miss Lemon possuía bastante sensibilidade quantoaosproblemashumanos,comoPoirotjádescobrira.

—Oqueacha?—eleperguntou.MissLemonexaminavaoenvelopeduplo.—Foi escrita por uma velhinhamuito preocupada, e tão discreta que

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nãonosrevelounada.—Issomechamoutambémaatenção—disseHerculePoirot.Esperançosa, ela retomou o bloco de taquigra ia. Desta vez Poirot a

satisfez: — Escreva-lhe que terei muito prazer em visitá-la quando lheaprouver,amenosqueprefiraviraqui.Escrevaamão,nãoamáquina.

—Sim,M.Poirot.Odetetiveentregou-lheoutrosenvelopes.—Estassãocontas.AsmãoseficientesdeMissLemonclassificaram-nasrapidamente.—Pagaremostodas,menosestasduas.—Porquê?Háalgumerronelas?— Não, mas são de lojas onde abrimos contas recentemente. Dá má

impressão saldar os débitos com muita presteza logo de início. Poderãopensarqueestamosquerendoimpressioná-losporquesomosnarealidademauspagadores.

— Ah! — fez Poirot. — Curvo-me diante do seu conhecimento dasexcentricidadesdoscomerciantesingleses.

—Hápoucacoisa sobreelesqueeudesconheça—disseMissLemoncarrancuda.

A carta paraMissAmeliaBarrowby seguiu pelo correio seguinte,mas

nãoobteveresposta.Talvezavelhasenhorahouvessedeslindadosozinhaoseuenigma,pensou

Hercule Poirot, estranhando entretanto não ter recebido uma cartadelicadacomunicando-lhenãomaisprecisardeseusserviços.

Na semana seguinte, após receber suas instruções matinais, MissLemondisse-lhe:—NãoadmiraqueMissBarrowbynãotenharespondidosuacarta,elamorreu.

— Ah, então morreu? — disse Poirot lentamente. Parecia mais umarespostadoqueumapergunta.

A secretária retirouum recortede jornal de suabolsa.—Vi isto aquiduranteaviagemdometrôerasgueiopedaço.

Poirot notou com aprovação que, emboraMiss Lemon usasse o termo“rasguei”,havianarealidaderecortadocuidadosamenteoanúnciofúnebredoMorningPost.Orecortedizia:

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“Amelia Jane Barrowby—morta subitamente aos setenta e três anosdeidade,nodiavinteeseisdemarço,noRoseiral,emCharman’sGreen.Afamíliapedequenãosejamenviadasflores.”

—“Subitamente...”—murmurouPoirotedeuumaordemincisivaàsuasecretária:—Vouditarumacarta,MissLemon.

Ela pegou rapidamente o bloco e começou a anotar, enquanto suamente divagava sobre as complexidades dos sistemas de arquivos: “CaraMissBarrowby,

Não tendo ainda recebido sua resposta, irei visitá-la na próxima sexta-

feira, quando outros assuntos me levam a Charman’s Green. Poderemosassimdiscutirmaisamplamenteoproblemamencionadoemsuacarta.

Atenciosamente,...”— Passe à máquina e coloque-a logo no correio. Assim estará em

Charman’sGreenhojeànoite.Na manhã seguinte Poirot recebeu pelo segundo correio uma carta

tarjadadenegro:“Carosenhor.Em resposta à sua carta, devo-lhe informar que minha tia, Amelia

Barrowby,faleceunodiavinteeseis,eportantooassuntoquemencionanãotemmaisrelevância.

Atenciosamente,MaryDelafontaine.”Poirotsorriu.—Nãotemmaisrelevância,hem?Issoéoqueveremos.Enavant,para

Charman’sGreen.O Roseiral era um nome bem adequado àquela propriedade, pensou

Poirot, e não era sempre que os títulos correspondiam à realidade. Odetetive, no portão do jardim, olhou com aprovação os canteiros loridoscommargaridas, as primeiras tulipas e jacintos azuis. As viçosas roseirasprometiam uma bela colheita nosmeses seguintes. Conchas demarcavamparcialmenteumcanteironumtoqueromântico.

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—Comoémesmoaqueleversinhoqueascrianças inglesascostumamcantar?—murmurou.Poirotedissebaixinho:

MistressMary,quitecontraryHowdoesyourgardengrow?Withcockleshells,andsilverbells,Andprettymaidsallinarow*.*“Senhorita,tãocatita,Quelindoéoseujardim!ComseixosebrancasconchasEraparigassemfim...”E aí vem pelo menos uma bela rapariga para fazer jus ao cenário,

pensouodetetive.Aportada frente seabriueumabonita criadinha,de toucae avental,

examinava com um ar descon iado o estrangeiro de fartos bigodes quefalavasozinhonojardim.Amo-cinhatinhalindosolhosazuis-clarosefacesrosadas.

Poirot retirou o chapéu cortesmente e perguntou:— Pardon, é aqui acasadeMissAmeliaBarrowby?

Acriadinhaprendeuarespiraçãoearregalouosolhos:—Oh,osenhoraindanãosabe?Elamorreu,derepente,naterça-feiraànoite.

Ela hesitava, dividida entre dois fortes instintos: sua descon iançanatural pelos estrangeiros e o prazer próprio de sua classe de discorrersobrecasosdemorteedoença.

— Mas eu não sabia! — mentiu Poirot. — Tinha uma entrevistamarcadacomessasenhorahoje.Talvezeupossafalarcomaoutrasenhoradacasa.

Acriadinhaficouindecisa.—Comapatroa?Bem,eunãoseiseelaoreceberá.—Elamereceberá,sim—afirmouPoirotentregando-lheumcartão.Seu tomautoritário produziu resultados.A criadinhade faces rosadas

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recuoue,deixandoPoirotnasaladeestaràdireitadovestíbulo,retirou-secomocartãoparachamarapatroa.

HerculePoirotcorreuosolhospelasala.Adecoraçãoeraconvencional,com papel de parede creme, estampados discretos, almofadas e cortinasrosas e grande número de bibelôs de porcelana. Nenhum detalhe noambienterevelavaumapersonalidademarcante.

SubitamentePoirot,muitosensível,sentiuqueeraobservado.Voltou-see viu uma moça pálida, de cabelos negros e olhos descon iados, em péjunto à porta envidraçada que dava para o jardim. Cumprimentou-a comumacenoeelaperguntousempreâmbulos:—Oqueveiofazeraqui?

Poirotnãorespondeu.Limitou-seaerguerassobrancelhas.—Nãoéumadvogado,é?—o inglêsdelaeracorreto,masninguéma

tomariaporumainglesa.—Porqueeudeveriaserumadvogado,mademoiselle?Amoçaoencaroucarrancuda.—Penseiquefosse.Penseiquetivessevindoparadizer-mequeelanão

sabiaoqueestavafazendo,queeuain luencieiindevidamente.Masnãoéverdade! Ela queria deixar o dinheiro paramim, e ele serámeu. Precisoarranjarumadvogado,odinheiroémeu!Eladeixouescrito,eassimserá.—Seu aspecto não era atraente, como queixo erguido numdesa io e osolhosbrilhantes.

Aportaseabriueumamulheraltaentrou.—Katrina!A moça recuou, ruborizou-se, e murmurando algumas palavras saiu

pelaportaenvidraçada.Poirotvirou-separaarecém-chegadaquecontrolaratãoeficientemente

asituaçãocomumaúnicapalavra.Suavozrevelaraautoridade,desprezoeuma disfarçada ironia. O detetive percebeu imediatamente que estavadiantedadonadacasa,MaryDelafontaine.

—ÉM.Poirot?Osenhornãodeveterrecebidominhacarta,não?—EstiveforadeLondresnosúltimosdias.—Ah, isto explica tudo. SouMary Delafontaine, e este émeumarido.

MissBarrowbyeraminhatia.Mr. Delafontaine entrara tão silenciosamente que. ele nem percebera

suachegada.Eraumhomemalto,grisalho,deaspectoindeciso.Acariciava

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o próprio queixo num tique nervoso, lançando frequentes olhares àesposa.Obviamenteesperavaqueelatomassetodasasiniciativas.

— Sinto tê-la incomodado nessa situação penosa — disse HerculePoirot.

—Não foi sua culpa— disseMrs. Delafontaine.—Minha tiamorreuterça-feiraànoite,deumaformainesperada.

—Completamente inesperada—reforçouMr.Delafontaine.—Foiumgrande golpe para nós — ele observava a porta envidraçada por ondesaíraamoçaestrangeira.

— Aceitem minhas desculpas — disse Poirot dando um passo emdireçãoaporta.

—Ummomento—interveioMr.Delafontaine.—Osenhortinha...umaentrevistamarcadacomatiaAmelia?

—Parfaitement.—Talvez se nos disser do que se trata, possamos ajudá-lo— disse a

mulher.—Oassuntoeracon idencial—retorquiuPoiroteacrescentou:—Sou

umdetetive.Mr.Delafontainederrubouumapastoradeporcelanaquesegurava.A

esposa perguntou com uma expressão intrigada: — Um detetive? E osenhortinhaumaentrevistamarcadacomtitia?Quecoisaestranha!—elaoolhavaadmirada.—Podenosadiantarmaisalgumdetalhe,M.Poirot?É...tãofantástico!

Poirot icouemsilêncioporalgunsinstantes.A inaldisseescolhendoaspalavrascomcuidado:

—Nãoseibemaindaoquedevofazer,madame.—Olhe aqui, ela nãomencionou russos, por acaso?— perguntouMr.

Delafontaine.—Russos?—Sim,russos,bolchevistas,comunistas,coisasassim...—Nãosejatolo,Henry!—disseaesposa.Mr.Delafontainecorou.—Desculpe,desculpe,foisóumaideia...Mary Delafontaine encarou francamente Poirot. Seus olhos eram

intensamenteazuis,dacordemiosótis.—Gostariadequepudessenosdar

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alguns esclarecimentos. Tenho uma razão bem forte para lhe fazer essepedido.

—Cuidado,minhavelha,podenãosernada!—disseMr.Delafontainealarmado.

Suaesposafuzilou-ocomumolhar.—Oquenosdiz,M.Poirot?LentaegravementePoirotsacudiuacabeça,comvisívelpesar.— Receio não poder dizer nada no momento, madame — e fazendo

uma mesura, pegou o chapéu e dirigiu-se para a entrada. MaryDelafontaineacompanhou-o.Naportaelevoltou-separaela:

—Asenhoratemmuitoamorpeloseujardim,não,madame?—Eu?Éverdade,entretenho-memuitocomajardinagem.— Je vous faits mes compliments — disse Poirot e despedindo-se

atravessou o jardim. Ao fechar o portão percebeu um rosto pálido que oobservava de uma janela do sobrado. Na calçada em frente, um homemereto,depassomarcial,andavadeumladoparaooutro.

HerculePoirotbalançouacabeça.— Definitivement, nessa toca há coelho! — disse ele. Tomando uma

decisãodirigiu-seaocorreiomaispróximoondedeudoistelefonemas.EmseguidaandouatéadelegaciadepolíciadeCharman’sGreeneperguntoupeloInspetorSims.

Oinspetoreraumhomemaltoevigoroso,muitocordial.—ÉM.Poirot? Foi o quepensei.Acabode receberum telefonemado

chefe a seu respeito. Disse-me que o esperasse. Venha para o meuescritório.

FechandoaportaoinspetorofereceuumacadeiraaPoirot.Acomodou-senasuaedirigiuumolharinterrogativoaovisitante.

—Oquedespertou suas suspeitas,M.Poirot?Vemnos ver a respeitodesse caso doRoseiral quase antesmesmoque tivéssemos certeza de setratardeumcrime.

PoirotestendeuacartadeMissBarrowbyaoinspetor.— Muito interessante — disse o policial ao terminar a leitura. — O

problemaéqueela foimuitovaga.Setivessesidomaisexplícitanosseriadegrandeajudaagora.

—Outalveznossaintervençãonemfossenecessária.

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—Oquequerdizer?—Queelaaindapoderiaestarviva.—Suassuspeitasvãobemlonge,não?Enãomeatreveacontradizê-lo.—Inspetor,dê-meosfatos.Nãoseidenada.—Aí vai; a velha senhora começou a passarmal depois do jantar de

terça-feira. Os sintomas eram alarmantes: convulsões, espasmos e tudo omais. Chamaram logo o médico, mas quando ele chegou a velhinha jáestava morta. A família pensou num ataque, mas o médico não estavatranquilo. Embromou, desconversou, e terminou dizendo-lhes que nãopoderiaassinarocerti icadodeóbito. Istoé tudoqueosparentessabem;estão aguardando o resultado da autópsia. Mas omédico nos comunicouimediatamente suas suspeitas e auxiliou o médico legista. O laudo écategórico.Avelhamorreuenvenenadacomumafortedosedeestricnina.

—Ah!—É, assassinato. O problema équem a envenenou?Amorte deve ter

ocorridopoucotempodepoisdaingestãodadroga!Primeiropensamosnojantar, mas já abandonamos a ideia. Miss Barrowby, e Mr. e Mrs.Delafontainetomaramumasopadeaspargosservidanaprópriamesa,deuma sopeira. Em seguida um pastelão de peixe e uma torta de maçã. Amoçadeorigem russa, que eraumaespéciede enfermeirada velha, nãocomiajuntocomafamília.Jantavadepoissozinha.Háumaempregada,maserasuanoitedefolga.Eladeixouasopanapanela,opastelãonofornoeatorta jápronta.Todos comeramamesma coisa.Alémdissonão creioquealguémengolisseestricninaempómisturadaàcomida,adrogaéamargacomofel.Segundoomédico,épossíveldetectaroseugostonumasoluçãodeumparamil.

—Enocafé?—Nocaféseriamaisprovável,masavelhanuncatomavacafé.— Estou vendo o problema. Aparentemente é uma di iculdade

intransponível,não?Oqueelabebeunarefeição?—Água.—Enigmainteressante,nãoacha?Avelhasenhoratinhadinheiro?—Deviaestarnumaboasituação,masaindanãoconhecemosdetalhes.

JáosDelafontaineestãonumasituaçãoprecária.Avelhacontribuíaparaamanutençãodacasa.

Poirotdeuumlevesorriso.

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—Entãosuspeitadocasal,não?Domaridooudamulher?— Não disse que suspeitava deles, mas são os únicos parentes

próximos e sem dúvida herdam uma bela quantia com a morte dela. Econhecemosbemanaturezahumana!

—É,muitopoucoatraente,àsvezes.Avelhinhanãocomeunembebeumaisnada?

—Bem,parasermosexatos...— Ah,voilà! Tive a intuição de que estava escondendo alguma coisa!

Sopa,pastelão,torta,desbêtises!Vamosaoqueimporta.— Não posso assegurar nada. Mas a velha costumava tomar um

preparadoantesdarefeição.Nãoerapílula,nemcomprimido,masaquelascápsulas preparadas na farmácia contendo algum pó inofensivo parafacilitaradigestão.

—Excelente!Nadamaisfácildoqueencherumadelascomestricninaecolocarentreasoutras.Avelha senhoraa tomaria comumgoled’águaenãosentiriagostoalgum.

—Temrazão.Oproblemaéquefoiamoçaquemlhedeuacápsula.—Amoçarussa?— Essa mesma. Katrina Rieger. Era uma espécie de acompanhante e

enfermeira improvisada. Miss Barrowby a tiranizava. Vá buscar isso, vábuscar aquilo, esfregue minhas costas, prepare meu remédio, vá àfarmácia,eassimpordiante.Sabecomosãoessasvelhas,nãotêmintençãodeseremcruéis,massãoverdadeirasfeitorasdeescravos!

Poirotsorriu.—Nãoconsigovê-lacomoassassina—prosseguiuo InspetorSims.—

Porqueamoçairia envenená-la? Com a morte de Miss Barrowby ela perdeu o

emprego, e não será fácil conseguir outro, pois não é formada nem temqualificaçõesespeciais.

—Masoutraspessoasdacasapodiamteracessoàcaixadecápsulas—sugeriuPoirot.

— Estamos investigando essa possibilidade, discretamente. E ondeesteveguardadooremédiodepoisqueareceitafoiaviadapelaúltimavez?Obteremosarespostacompaciênciaetrabalhoderotina.AmanhãmesmotenhoumencontrocomoadvogadodeMissBarrowbyecomogerentedoseubanco.Hámuitoaindaporfazer.

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Poirotlevantou-se.—Peço-lheumobséquio,InspetorSims.Gostariadequemedesseuma

palavrinhasesurgiremnovidades.Eisonúmerodomeutelefone.— Ora, com certeza, M. Poirot. Duas cabeças pensam melhor do que

uma. Além disso o caso também é seu. Foi a si que Miss Barrowbyrecorreu.

—Obrigado,inspetor—Poirotapertou-lheamãoedespediu-se.Nodiaseguinteàtarde,odetetiverecebeuumtelefonema:—ÉM.Poirot?Aqui éo InspetorSims.Os fatos estão começandoa se

definir.—Éverdade?Oqueaconteceu?— Em primeiro lugar, uma bomba: Miss Barrowby deixou uma

pequena quantia para a sobrinha, e o restante de . todo o seu dinheiropáraKatrina,emreconhecimentoàsuabondadeededicação.Éoquerezaotestamento,eistoalteratudo.

Umaimagemocorreu instantaneamenteaPoirot:umrostoobstinadoeseu protesto veemente. “O dinheiro é meu. Ela deixou escrito, e assimserá!” A herança não surpreenderia Katrina, ela tivera ciência dotestamento.

— Em segundo lugar — prosseguiu o inspetor —, só Katrina tocounaquelascápsulas.

—Temcerteza?—Aprópriamoçaadmiteofato.Oquepensadisso?—Extremamenteinteressante.—Sónosfaltaumacoisa:sabercomoelaobteveaestricnina.Nãodeve

serdifícildescobrir.—Masatéagoranãoconseguiu,nãofoi?—Malcomecei.Oinquéritofoihojedemanhã.—Qualoresultado?—Foiadiadoporumasemana.—EajovemKatrina?—Voudetê-laporsuspeita.Nãoquerocorrerriscos.Elapodeterneste

paísalgumamigometidoaengraçadinhoquetentetirá-ladaqui.—Não,nãoacreditoqueelatenhaamigos.

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—Porquedizisto,M.Poirot?—Ésóumaimpressão.Hámaisalgumacoisa?—Nadademuita relevância.MissBarrowbyparece ter feito algumas

transações más com seus títulos ultimamente. Deve ter perdido umaquantiarazoável.Sãoumasoperaçõesmeioconfusas,masemnadaafetamonossoproblema.

—Bem,muitoobrigado.Foimuitaamabilidadesuatelefonar-me.—Deformaalguma.Cumprooqueprometo,ealémdissoviqueestava

realmente interessado. Talvez aindanospossadar uma ajudazinha antesdocasoterminar.

— Isto me daria um enorme prazer. Seria de grande utilidade se eupudesseencontrarumamigodeKatrina.

— Pensei tê-lo ouvido dizer que ela não tinha amigos — retrucou oinspetor,surpreso.

—Euestavaerrado—disseHerculePoirot.—Elatempelomenosum.— E desligou antes que o Inspetor Sims pudesse fazer mais qualquerpergunta.

Coma isionomiagrave,voltouàsalaondeMissLemonbatiaàmáquina.Àaproximaçãodopatrãoelalevantouasmãosdotecladoeficouàespera.

—Queroqueasenhoritauseasuaimaginação—dissePoirot.MissLemoncolocouasmãosnocolocomumarresignado.Gostavade

bater àmáquina, de pagar contas, arquivar papéis emarcar entrevistas.Masusaraimaginaçãoparacolocar-seemsituaçõeshipotéticasera,nasuaopinião,umatarefamuitoaborrecida.

—Asenhoritaéumamoçarussa—principiouPoirot.—Certo—disseMissLemonparecendomaisinglesadoquenunca.—Estásóesemamigosnessepaís.Temrazõesfortesparanãodesejar

retornar à Rússia. Está empregada como acompanhante de uma velhasenhora.Asenhoritaéhumildee

estoica.— Certo — disse Miss Lemon obedientemente, mas não conseguiu

imaginar-senumaposiçãohumildediantedevelhaalguma.—Estavelhasenhoraseafeiçoaàsenhoritaeresolvedeixar-lheoseu

dinheiro,elhefaladeseutestamento.MissLemonrepetiu:—Certo.

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— Então a velhinha descobre alguma coisa que a preocupa muito.Talvez seja ama questão de dinheiro, alguma desonestidade sua. Talvezseja algoaindamais grave, comoumremédio comumgostoestranho, oualguma comida que lhe faça mal. De qualquer forma, ela começa asuspeitar da senhorita e escreve para um conhecido detetive, oumelhor,paraomais famosodetodos,eu!Elaestáaminhaespera,eascoisasvãoicar pretas, comodizemaqui. É preciso agir rapidamente. E então, antesqueograndedetetivechegue,avelhinhamorre,eodinheiroéseu.Quetal,achaverossímilestahistória?

— Plenamente — disse Miss Lemon. — Isto é, tratando-se de umarussa. Eu pessoalmente nunca aceitaria um emprego de acompanhante.Gosto de tarefas bem de inidas. Além disso nunca sonharia em matarninguém!

Poirotdeuumsuspiro.—Que faltame fazomeuamigoHastings!Ele tinha tanta imaginação,

um espírito tão romântico. Tirava sempre conclusões erradas, é verdade,masaténissomeajudava.

Miss Lemon icou em silêncio. Já ouvira falarmuitas vezes no CapitãoHastings, e o assunto não a interessava. Olhou esperançosa para amáquinaasuafrente.

—Entãoachourazoávelessahipótese?—Eosenhor,nãoacha?—Receioquesim—suspirouPoirot.OtelefonetocoueMissLemonlevantou-separaatendê-lonaoutrasala.

Voltoudaliaumminuto:—ÉoInspetorSimsoutravez.Poirotapressou-seaatender.—Alô,alô,oquedisse?Simsrepetiuafrase:— Encontramos estricnina no quarto damoça, escondida embaixo do

colchão. O sargento acaba de chegar com a polícia. É a prova de quenecessitávamos.

—Sim,éaprovadequenecessitávamos—avozdePoirotmodi icara-se,tornara-sesubitamenteconfiante.

HerculePoirotsentou-seemsuaescrivaninhaecomeçouaarrumarosobjetosmecanicamente.Falavasozinho:—Haviaqualquercoisaerrada,eusenti. Não, eu não senti, eu devo ter visto.En avant células cinzentas!

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Esforcem-se, vamos, re litam. Estava tudo em ordem? A moça... suapreocupaçãocomodinheiro...Mme.Delafontaine...seumarido...suaimbecilmençãoderussos,maseleéumimbecil...asala...ojardim...Ah!Ojardim!

Eleergueuacabeça,uma luzverdebrilhavaemseusolhos.Levantou-senumpuloedirigiu-seàsalacontígua.

—MissLemon,querterabondadedeinterromperoseutrabalhoemeacompanharnumainvestigação?

—Umainvestigação,M.Poirot?Receionãotermuitojeitoparaisso...Poirotainterrompeu.— A senhorita disse outro dia que conhecia bem os comerciantes

ingleses.—Econheço!—afirmouMissLemon.—Entãonãoháproblema.Asenhoritadeverá iraCharman’sGreene

descobrirumacertapeixaria.—Umapeixaria?—perguntouMissLemonsurpreendida.— Precisamente. A peixaria onde a família do Roseiral comprava

peixes.Quandoaencontrar,queroquefaçaessaperguntaaopeixeiro—ePoirotlheentregouumpedaçodepapel.

MissLemonleuobilhetecominteresse,balançouacabeçaemsinaldeaquiescênciaefechouatampadamáquina.

—IremosjuntosaCharman’sGreen—disseodetetive.—Asenhoritairáàpeixariaeeuàdelegaciadepolícia.LevaremossóumameiahoradeBakerStreetparachegarlá,

NadelegaciaoInspetorSimsmostrousurpresaaovê-lo:—Ora,comoérápido,M.Poirot.Nãofaznemumahoraquelhetelefonei.

— Tenho um pedido a fazer. Gostaria de ver a moça Katrina. Qual émesmoonometododela?

—KatrinaRieger.Bem,nãotenhonenhumaobjeção.Amoça estava mais pálida e taciturna do que nunca. Poirot falou-lhe

combrandura:—Mademoiselle, quero que acredite que não sou seu inimigo. Quero

quemedigaaverdade.Elaassumiuumaexpressãodedesafio.—Maseudisseaverdade.Eudisseaverdadeatodomundo.Seavelha

senhora foi envenenada,não fui euquemaenvenenou.Estãoenganados,

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querem impedir que eu receba meu dinheiro — falava com aspereza.Pareciaummiserávelratinhoencurralado,pensouPoirot.

—Fale-mesobreascápsulasdedigestivo,mademoiselle.Ninguémmaisasmanuseou?

—Eu jádissequenão,nãodisse?Foramaviadasna farmácianaquelamesmatarde.Euas trouxeemminhabolsa,poucoantesdo jantar.AbriacaixaedeiumadelasaMissBarrowbycomumcopod’água.

—Ninguémmaistocounelas?—Não.Oratinhopodiaestarencurralado,maseracorajoso!— E Miss Barrowby não comeu nada no jantar além da sopa, do

pastelãoedatorta?—Não—umnãosemesperanças,umolharangustiadoquenãovialuz

empartealguma.Poirotcolocouamãonoombrodela.— Tenha coragem,mademoiselle. Ainda poderá obter a liberdade e o

dinheiro,eumavidatranquila.Elaoolhoucomdesconfiança.Quandoelesaiu,Simslhedisse:— Não entendi bem as suas palavras ao telefone, algo a respeito da

moçaterumamigo.—Elatemumamigo:eu!—dissePoirotedeixouadelegaciaantesque

oinspetorpudesseserecuperardasurpresa.Nosalãodechá,MissLemonfoidiretoaoassunto:— O nome do peixeiro é Rudge, M. Poirot. O senhor estava

absolutamente certo, foi uma dúzia e meia, anotei tudo aqui — e elaestendeu-lheumafolhadeseubloco.

—Há-ha!—fezPoiroteseusolhosbrilharamdesatisfação.Caía a tarde quando Hercule Poirot chegou ao Roseiral. Mary

Delafontaine,entretidaemseujardim,surpreendeu-seaovê-lo.—Estádevolta,M.Poirot?— Sim, eu voltei — o detetive fez uma pausa e acrescentou: — A

primeiravezqueestiveaquilembrei-medaquelesversinhos:

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Senhorita,tãocatita,Quelindoéoseujardim!ComseixosebrancasconchasEraparigassemfim.—Sóqueas conchasnão sãobrancas,nãoé,madame?Estas conchas

sãodeostras—ePoirotapontouumdedoacusador.Mary Delafontaine prendeu a respiração e icou imóvel. Só os seus

olhosinterrogaramodetetive.Elebalançouacabeça.—Mais,oui,eusei!Aempregadadeixouo jantarpronto,écerto.Elae

Katrinapodemjuraràvontadequefoitudooquecomeram,masasenhoraeseumaridosabemquease-nhoracomprouumadúziaemeiadeostras,um agradinho especial para la bonne tante. É tão fácil colocar estricninanumadelas.Umaostraengole-sedeumavezsó,commeça!Massobramasconchas.Nãopodecolocá-lasna latado lixo,poisaempregadaasveria.Eentão a senhora resolveu demarcar um canteiro com elas, mas erampoucas, não foram su icientes para toda a volta. O efeito é desagradável,quebrou a simetria do seu encantador jardim. Essas poucas conchas sãoumdetalhepoucoharmonioso,chamaram-meaatençãologoqueasvi.

—Osenhordeveteradivinhadopelas informaçõesdacartadelanão?Eusabiaqueelalhehaviaescrito,masnãosabiaoquê.

Poirotmostrou-seevasivo:—Deduziqueeraumproblemade família.Se o caso fosse comKatrina não haveria necessidade de discrição e nemrazãoparaabafaraquestão.CreioqueasenhoraouoseumaridojogaramcomostítulosdeMissBarrowby,asuarevelia,paraobter lucros,atéqueeladescobriu.

MaryDelafontainefezumsinaldeaquiescência.—Háanosvínhamosfazendoisso,ganhandoumpoucoaqui,umpouco

ali.Nuncapenseiqueelafosseespertaobastanteparanotar.Entãosoubeque ela chamara um detetive, e que pretendia deixar o dinheiro paraKatrina,aquelacriaturazinhamiserável.

—Eassimescondeuaestricninanoquartodela,não?Asenhoralivravaa si e a seumaridodas consequênciasde suasaçõese faziaumacriançainocentepagarpeloassassinato.Nãosentiupiedade,madame?

MaryDelafontaineencolheuosombros.SeusolhosazuiscomomiosótisencararamPoirot.Ele lembrou-seda impecável performance delanaquele

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primeiro encontro, e dos movimentos desajeitados do marido. Era umamulherbemacimadamédia,masdesumana.

Eladisse:—Piedade?Poraquelamiserável ratinha intrigante?—seutomsócontinhadesprezo..

HerculePoirotescolheuaspalavrasdevagar:— Creio que a senhora só teve afeição por duas coisas em sua vida.

Umadelaséseumarido.Oslábiosdelatremeram.— E a outra é seu jardim — e Poirot correu os olhos em torno,

parecendopedirdesculpaspeloqueiriafazer.

FIM

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1-Bebidafeitacomuísque,brandy,águaquente,açúcaretemperos.(NT)

2-Ônibusabertos,comunsnaépocadapublicaçãodolivro(1925).(NT)