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  AGENTE INFILTRADO: REFLEXOS PENAIS E PROCESSUAIS Damásio de Jesus Fábio Ramazzini Bechara Abril/2005 I – Colocação do problema A Lei n. 9.034/95, denominada Lei do Crime Organizado, prevê em seu art. 2.º, V, a possibilidade de infiltração de agente nas organizações criminosas mediante pr év ia e circun st anciada autoriz ão judicial. Essa inov ão , introduzida em 2000, suscita alguns relevantes questionamentos. O primeiro refere-se à auto-aplicação da norma, o segundo, à responsabilidade penal do agente infiltrado, e o terceiro, ao valor da prova provocada. II – Aplicação da norma Apesar da redação lacunosa da lei que introduziu a figura do agente infiltrado, não há necessidade de regulamentação dela por meio de outra espécie normativa. A principal exigência para sua aplicação, que constitui o standard mínimo pa ra o de fe rimen to da med ida, está ex pr es sa ment e reconhecida. Assim, há as exigências de se tratar de associação criminosa e de decisão jud icial fun dam ent ada. Não se fez qualquer alusão qua nto ao proc ed imen to ou ao praz o da medida. É po ss ív el , contud o, af ir mar a intencionalidade dessa omissão legislativa, uma vez que a determinação do prazo deve se orientar pela necessidade do caso concreto e pelo bom senso e responsabilidade do juiz. Por outro lado, a iniciativa de provocação é do Ministério Público e da autoridade policial. Por se tratar de uma providência indiscutivelmente de caráter cautelar, o pedido deve ser autuado em apartado, mantido o absoluto e irrestrito sigilo ao longo da infiltração. É razoável admitir, ainda, que essas omissões legais possam ser perfeitamente supridas por meio do emprego da analogia da Lei n. 9.296/96, que regulamenta o procedimento das interceptações telefônicas. É fundamental salientar que a adoção desse mecanismo de investigação, tratando-se de crime organizado, implica o cumprimento pelas autoridades brasileiras do compromisso internacional assumido por ocasião da assinatura da Conven çã o da s Naçõ es Unidas co ntra a Criminalidade Organi za da Transnacional, denominada Convenção de Palermo, já devidamente ratificada por meio do Decreto n. 5015/2004. III – Responsabilidade penal do agente infiltrado A conduta do agente infiltrado pode se manifestar de diversas formas na org ani zaç ão criminosa. Ele pode sim plesmente ter o papel de informan te, transmitindo as informações das quais tem conhecimento para a autoridade que investiga a associação criminosa, de modo a possibilitar o

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 AGENTE INFILTRADO: REFLEXOS PENAIS E PROCESSUAIS

Damásio de Jesus

Fábio Ramazzini BecharaAbril/2005

I – Colocação do problema

A Lei n. 9.034/95, denominada Lei do Crime Organizado, prevê em seu art.2.º, V, a possibilidade de infiltração de agente nas organizações criminosasmediante prévia e circunstanciada autorização judicial. Essa inovação,introduzida em 2000, suscita alguns relevantes questionamentos. O primeirorefere-se à auto-aplicação da norma, o segundo, à responsabilidade penal doagente infiltrado, e o terceiro, ao valor da prova provocada.

II – Aplicação da norma

Apesar da redação lacunosa da lei que introduziu a figura do agenteinfiltrado, não há necessidade de regulamentação dela por meio de outraespécie normativa. A principal exigência para sua aplicação, que constitui ostandard mínimo para o deferimento da medida, está expressamentereconhecida. Assim, há as exigências de se tratar de associação criminosa ede decisão judicial fundamentada. Não se fez qualquer alusão quanto aoprocedimento ou ao prazo da medida. É possível, contudo, afirmar aintencionalidade dessa omissão legislativa, uma vez que a determinação do

prazo deve se orientar pela necessidade do caso concreto e pelo bom senso eresponsabilidade do juiz. Por outro lado, a iniciativa de provocação é doMinistério Público e da autoridade policial. Por se tratar de uma providênciaindiscutivelmente de caráter cautelar, o pedido deve ser autuado em apartado,mantido o absoluto e irrestrito sigilo ao longo da infiltração. É razoável admitir,ainda, que essas omissões legais possam ser perfeitamente supridas por meiodo emprego da analogia da Lei n. 9.296/96, que regulamenta o procedimentodas interceptações telefônicas.

É fundamental salientar que a adoção desse mecanismo de investigação,tratando-se de crime organizado, implica o cumprimento pelas autoridadesbrasileiras do compromisso internacional assumido por ocasião da assinaturada Convenção das Nações Unidas contra a Criminalidade OrganizadaTransnacional, denominada Convenção de Palermo, já devidamente ratificadapor meio do Decreto n. 5015/2004.

III – Responsabilidade penal do agente infiltrado

A conduta do agente infiltrado pode se manifestar de diversas formas naorganização criminosa. Ele pode simplesmente ter o papel de informante,transmitindo as informações das quais tem conhecimento para a autoridade

que investiga a associação criminosa, de modo a possibilitar o

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desmantelamento da organização ou a identificação e punição de seusintegrantes.

Por outro lado, caso o agente infiltrado provoque a ação ou omissão de umaou mais pessoas que integram a organização criminosa, induzindo e

interferindo diretamente no ânimo decisivo delas, a hipótese, nesse caso, seriade flagrante preparado ou delito provocado, e o agente infiltrado seriaresponsabilizado penalmente pelo abuso cometido, mas ninguém responderiapela infração penal pretendida. Aqui é manifesta a conduta determinante doagente para a prática do crime.

Poderia ocorrer igualmente uma terceira situação, em que o agente infiltradoatuasse conjuntamente com um ou mais integrantes da organização numadeterminada empreitada criminosa. Da mesma forma, se o agente ingressanuma organização criminosa a qual já vinha praticando determinado tipo dedelito, antes da sua entrada, sua intervenção não significa a criação indutora da

vontade do sujeito provocado, que já preexistia, de sorte que a atuação doagente visa simplesmente facilitar o cometimento do delito, não induzir a suaprática. Nesse caso, verifica-se a anterioridade da ação criminosa em relação àintervenção do agente. Trata-se de hipótese clássica de concurso de agentes,seja por participação ou co-autoria. O agente infiltrado não responderia pelocrime cometido.

Discute-se, entretanto, qual seria a natureza jurídica da exclusão daresponsabilidade penal do agente infiltrado. É possível identificar as seguintessoluções:

1.ª) trata-se de uma causa de exclusão de culpabilidade, por inexigibilidadede conduta diversa. Isso porque, se o agente infiltrado tivesse decidido nãoparticipar da empreitada criminosa, poderia ter comprometido a finalidadeperseguida com a infiltração, ou seja, não havia alternativa senão a prática docrime;

2.ª) escusa absolutória: o agente infiltrado age acobertado por uma escusaabsolutória, na medida em que, por razões de política criminal, não é razoávelnem lógico admitir a sua responsabilidade penal. A importância da sua atuaçãoestá diretamente associada à impunidade do delito perseguido;

3.ª) trata-se de causa excludente da ilicitude, uma vez que o agenteinfiltrado atua no estrito cumprimento do dever legal;

4.ª) atipicidade penal da conduta do agente infiltrado. Essa atipicidade,todavia, poderia decorrer de duas linhas de raciocínio distintas. A atipicidadepoderia derivar da ausência de dolo por parte do agente infiltrado, uma vez queele não age com a intenção de praticar o crime, mas visando auxiliar ainvestigação e a punição do integrante ou dos integrantes da organizaçãocriminosa. Faltaria, assim, imputação subjetiva. De outro lado, a atipicidadepoderia derivar da ausência de imputação objetiva, porque a conduta do agente

infiltrado consistiu numa atividade de risco juridicamente permitida, portanto,sem relevância penal.

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Seja lá qual for a interpretação que se faça em relação à natureza jurídicada isenção da responsabilidade penal do agente infiltrado, para que essaefetivamente se ultime, devem concorrer algumas exigências: a) a atuação doagente infiltrado precisa ser judicialmente autorizada; b) a atuação do agente

infiltrado o qual comete a infração penal deve ser uma conseqüêncianecessária e indispensável para o desenvolvimento da investigação, além deser proporcional à finalidade perseguida, de modo a evitar ou coibir abusos ouexcessos; c) o agente infiltrado não pode induzir ou instigar os membros daorganização criminosa a cometer o crime, o que configuraria um delitoprovocado, o qual, devido à sua impossibilidade de consumação, é impunetanto em relação ao sujeito provocado como ao provocador. O provocador poderia responder pelo crime de abuso de autoridade.

IV – Valor da prova provocada

A medida do agente infiltrado constitui uma diligência de naturezainstrutória, que tem como finalidade a obtenção de informações para suautilização como prova em vista de uma sentença condenatória, mostrando-serestritiva a direitos fundamentais, tanto que necessária a autorização judicial.Os direitos fundamentais os quais sofrem restrição a partir da infiltração doagente são: a) direito à autodeterminação informativa, que consiste no direitode saber quem, como e quando se tem informação de si mesmo, ou seja, de seeleger livremente o destinatário da conversa na esfera privada; b) direito àintimidade em sentido amplo e em sentido estrito, assim compreendidas asesferas privada e íntima.

A princípio, segundo a concepção doutrinariamente aceita em relação àprova ilícita, a prova produzida a partir da infiltração do agente seria ilícita,porque incide sobre direitos fundamentais. É evidente que essa conclusão édemasiadamente formalista e inflexível, na medida em que desconsidera ascaracterísticas da sociedade atual, pós-industrial, a qual tem como um dosprincipais efeitos o fenômeno da criminalidade organizada. Não foi sem razãoque o legislador introduziu a figura do agente infiltrado na Lei do CrimeOrganizado, justamente por partir do pressuposto que, em certos casos, éindispensável socorrer-se de recursos extraordinários de investigação, osquais, por sua vez, são mais restritivos a direitos fundamentais. A questão

reside exatamente em definir os limites dessa restrição, a fim de evitar oesvaziamento dos direitos fundamentais a pretexto da necessidade de sesalvaguardar a eficiência na persecução.

Assim, considerando os diversos tipos de comportamento que o agenteinfiltrado pode ter em uma organização criminosa, é possível concluir que aprova somente poderá ser considerada ilícita nos casos nos quais o agenteinduz o sujeito provocado a praticar a infração penal, ou seja, quando o seduzenganosamente para o cometimento do delito. A violação de direitosfundamentais nesse caso não constitui restrição legítima como antes afirmado,mas implica, sim, total esvaziamento do seu conteúdo essencial, mostrando-se

absolutamente desproporcional e igualmente intolerável qualquer aceitação.

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Nos demais casos, a prova provocada é perfeitamente válida, já que não severifica nenhum comportamento decisivo ou determinante do agente emrelação à vontade do integrante ou dos integrantes do grupo criminoso.

V – Conclusão

O tratamento penal e processual da atuação do agente infiltrado demandapor parte do intérprete uma leitura mais adequada de determinados institutosdogmáticos, justamente com o propósito de promover uma maior aproximaçãoconceitual, tendo em conta o fenômeno da criminalidade organizada. 

 __________________________________ Como citar este artigo:JESUS, Damásio de; BECHARA, Fábio Ramazzini. Agente infiltrado: reflexos

penais e processuais. São Paulo: Complexo Jurídico Damásio de Jesus, mar.2005. Disponível em:<www.damasio.com.br/novo/html/frame_artigos.htm>.

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