10
-z ,c i "TOttO . k cottw<;*w CAPITULO 10 Existencialismo, alienação, pós-modernismo: movimentos culturais como veículos de mudança nos padrões do cotidiano

Agnes Heller. A condição Política Pós Moderna..pdf

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Agnes Heller. A condição Política Pós Moderna..pdf

-z,c

i

"TOttO

. k cottw<;*w

CAPITULO 10 Existencialismo, alienação,pós-modernismo: movimentosculturais como veículos demudança nos padrõesdo cotidiano

Page 2: Agnes Heller. A condição Política Pós Moderna..pdf

O termo "cultura", ou "civilização", foi inventado no Ocidente co-mo uma proposição universal entre muitas. Contudo, em compara-ção com outras proposições universais, como "ciência" ou "liberda-de", a proposição universal chamada "cultura" sempre teve umaconotação pluralista. Discutia-se ciência ou liberdade, por exemplo,e não "ciência ocidental" e "liberdade ocidental", porque a compre-

f ensão geral era que essas boas coisas eram unas e indivisíveis. Poroutro lado, discutia-se "cultura ocidental", porque sempre se supôsque havia muitas outras culturas junto com a ocidental, inferiores ousuperiores a ela, ou simplesmente diferentes dela. Independente deserem essas culturas consideradas inferiores ou superiores, as rela-

< coes entre culturas sempre foram temporalizadas, assim como histo-ricizadas. As culturas seguem-se umas às outras, por exemplo, e nãohá como voltar a uma anterior a não ser através de uma viagem nos-tálgica aberta apenas ao indivíduo. Nessa compreensão, as culturaseram encaradas como universos fechados que ou permaneciam fe-chados ou, se eventualmente se abriam, julgava-se que haviam perdi-do seus traços distintivos e estavam assim vulneráveis à subversão

4 pela última cultura, quer dizer, a ocidental. Essa visão de culturasH "E ' "estranhas" coincidia estruturalmente com as divisões culturais den-

o-

193

Page 3: Agnes Heller. A condição Política Pós Moderna..pdf

A C O N D I Ç Ã O P O L Í T I C A P Ô S - M O D E R N A

tro de determinados países no período inicial do capitalismo. As for-mas de vida aristocrática, grande e pequeno-burguesa e camponesaeram estritamente distintas umas das outras. O debate sobre inferio-ridade cultural versus superioridade cultural se dava incessantemen-te, sendo os debatedores a aristocracia, a fidalguia (na Inglaterra) e aburguesia.

A cultura de classe no século dezenove era mais que uma figurade retórica. O famoso ditado de Disraeli falava em duas nações quenem sequer se falavam. Os primeiros movimentos operários, os sin-dicatos e depois os partidos, advogando explicitamente ou não acriação de uma cultura especial da classe operária, ainda assim con-tribuíram todos para o surgimento dessa cultura. As culturas de clas-se, em geral, eram quase hermeticamente lacradas, com os indiví-duos apenas de vez em quando podendo cruzar as fronteiras entreelas. Henry James, por exemplo, foi um grande cronista das imensasdificuldades encontradas mesmo por pessoas de imensa riqueza as-sim que se aventuravam a transpor as barreiras culturais que as se-paravam das "famílias antigas".

A modernajdiyisãc^do trabalho, com sua ca2addad_e_de_estratifí-car a sociedade segundo linhas funcionais, começou a romper a estri-ta segregação das culturas de classe já no fim do século dezenove.Intelectuais independentes, artistas em particular, foram os primeiros"grupos dissidentes". Os artistas criaram a "Boémia", com um gostocultural específico, uma forma de vida só deles, que não era nemaristocrática, nem burguesa, nem aliás operária, mas simplesmentediferente. A cultura da "Boémia" foi aos poucos rompendo o hermé-tico cercado de várias culturas em escala global, em virtude do fatode que os "boémios" de um país tomavam regularmente empresta-dos materiais, elementos, temas e motivos artísticos dos chamadosestranhos de outros países. Os ilhéus de Gauguin não mais se asse-melham ao "nobre selvagem"; são semelhantes a nós, com uma certadiferença.

Contudo só depois da Segunda Guerra Mundial a erosão darede de culturas de classe tornou-se visível, e o relativismo cultural

194

E X I S T E N C I A L I S M O , A L I E N A Ç Ã O , P Ó S - M O D E R N l S M O

inequivocamente ganhou impulso. Formas de vida e padrões cultu-rais podiam agora ser escolhidos em toda liberdade, sobretudo pelanova geração, e hábitos culturais antes exclusivamente ligados a clas-ses começaram então a ficar ao alcance de todos. Além disso, nessaépoca, também vemos "outras culturas" começarem prodigamente atomar emprestados padrões de comportamento, hábitos etc. demodas ocidentais. Claro, tais fatos paralelos conspícuos pedem umaexplicação multicasual. Já falamos do surgimento da divisão funcio-nal do trabalho como um fator neste caso. Fatores como o nasci-mento da produção de massa, o surgimento dos meios de comunica-ção de massa, a descolonização e a redução das horas de trabalhonos centros da Europa ocidental e setentrional podem ser meneio- lnados.

Em vez de nos concentrarmos nas causas, porém, gostaríamos dediscutir brevemente o que se poderia chamar de instituições de^ signi-ficado imaginárias (tomando emprestada a expressão de CorneliusCastoriadis). Em nossa opinião, criaram-se novos significados imagi-nários de estilos de vida em três ondas distintas após a SegundaGuerra Mundial. Ignoraremos deliberadamente as tendências teóri-cas (por exemplo, o estruturalismo) que influenciaram profunda-mente nossa visão do mundo. Em vez disso, focalizaremos aquelasvisões de mundo e filosofias trazidas por movimentos culturais. Poisfoi nos próprios movimentos que se mudaram padrões de vida e quese começou lentamente a criar um novo grupo de culturas no coti-diano. Desnecessário dizer que não chegamos ao fim dessa tendên-cia, mas estamos suficientemente no meio dela para poder ver asprincipais tendências de seu desenrolar.

Em geral, cada nova geração de jovens tomou a iniciativa dageração anterior, desde a época da Revolução Francesa. Contudo osdistintos padrões de ação, aspiração e imaginação entre a juventudepós-Segunda Guerra Mundial têm sido bastante diferentes dos degerações passadas. Mais precisamente, os padrões têm-se tornadocada vez mais diferentes de geração para geração. Embora intelec-tuais, filósofos, sociólogos, escritores e pintores tenham tido sua par-

195

Page 4: Agnes Heller. A condição Política Pós Moderna..pdf

A C O N D I Ç Ã O P O L Í T I C A P Ô S - M O D E R N A E X I S T E N C I A L I S M O , A L I E N A Ç Ã O , PÔS-M O D E R N IS M O

«

M

te no lançamento desses movimentos e na articulação de suas aspira-ções, a juventude à qual eles se dirigem e a aspiração e autopercep-ção a que dão voz são largamente diferentes do grupo burguês dissi-dente inicial, a "Boémia". Os movimentos pós-Segunda Guerra Mun-dial não requentaram os velhos clichés sobre a vida estética; suasexcentricidades não eram estéticas, mas existenciais. Eles se encara-vam em ainda menor medida como a corte de uma nova elite políti-ca. Tendo ou não orientação política, esses movimentos não estavamenvolvidos em tentativas de trocar elites.* Numa scicjeda.de cada vez mais caracterizada pela djyisão fun-cional dojtrabalho, o termo "jovem" torna-se equivalente a "pré-funcional". Em outras palavras, todos ainda não absorvidos poruma função dentro da divisão do trabalho são jovens. Movimentosde jovens começam a atrair e envolver a juventude de diferentesambientes sociais, independente de se a função posterior deles deve

, ser de trabalhador académico ou social, trabalhador autónomo ouindustrial etc. A tendência do "poder de absorção" social dos movi-

i mentos a ampliar-se é claramente evidente. A tendência cultural"punk" é um forte caso em questão.

"s Contudo a existência pr^funcjonal é ao mesmo tempo existên-cia pré-estratificacional. Como tal, permite o desenvolvimento deformas de vida que não mais têm as características de culturas declasse. O desempenho funcional institucionalizado não mais bastapara pré-formar estilos de vida, como faziam outrora "ser burguês"ou "ser operário". Por isso as pessoas não mais podem livrar-se dosvestígios de uma determinada "cultura jovem" assim que se instalamnuma função social. Certos elementos de sua cultura jovem conti-nuarão a moldar seus estilos de vida como adultos. É fácil verificarque é de fato assim. A transição de culturas de classe tradicionaispara a cultura moderna daria origem ao mais violento conflito gera-cional que homens e mulheres modernos já conheceram, e esse pro-cesso dramático repete-se onde quer que ainda haja culturas de clas-se tradicionais. Contudo, como pais e mães modernos foram elespróprios moldados por um movimento moderno, o conflito geracio-

nal entre eles e os filhos será relativamente brando, mesmo que desa-provem valores e estilos de vida uns dos outros. O abrandamento doconflito de geração é apenas um sinal entre muitos outros das mu-danças estruturais em que se embutem novos movimentos culturais.

Três gerações consecutivas surgiram desde a SegundajGuerraMundial: a geração existencialista, a geração da alienação e a gera-ção pós-moderna, para usar os termos com que elas próprias se des-crevem. Os movimentos culturais modernos vieram em ondas, e issose deu pelo simples motivo de que cada nova geração tinha de "che-gar à maioridade", no sentido de criar uma nova "instituição imagi-nária", antes de pegar a tocha da geração anterior. A primeira ondacomeçou sua carreira imediatamente depois da guerra e atingiu ozénite no início da década de cinquenta. A segunda onda foi lançadapelos acontecimentos de meados da década de sessenta e chegou aopico em 1968, mas continuou a expandir-se até meados dos anossetenta. O terceiro movimento surgiu nos anos oitenta e ainda nãochegou ao zénite. O segundo movimento surgiu do primeiro, e o ter-ceiro do segundo, no sentido de continuação e também no de rever-ter os sinais do anterior. Reagindo uma à outra, cada onda continuaa pluralizacão do universo cultural na modernidade e também a des-truição das culturas de classe. Além disso, cada onda dá um novoestímulo à mudança estrutural nos relacionamentos intergeracionais.A última não é inteiramente independente da primeira, pois a mu-dança estrutural nos relacionamentos intergeracionais é mais outropadrão do cotidiano que indica o relativismo cultural.

"Onda" e "geração" são termos mais precisos que "movimento".Embora ondas consistam de movimentos culturais e sociais, algunsmovimentos continuam por gerações em linha direta, em vez de apa-recerem em ondas; o feminismo é um exemplo ótimo. No pico dasondas, os movimentos que são "companheiros de viagem" da ten-dência principal tendem, em regra, a fundir-se com a última, só paradepois desligar-se, numa parada intermediária. Além disso, umaonda é mais ampla que a soma total de movimentos que surgem comela e se fundem uns nos outros em seus picos. Em regra, os movi-

<*.

rO

196 197

Page 5: Agnes Heller. A condição Política Pós Moderna..pdf

A C O N D I Ç Ã O P O L Í T I C A P Ô S - M O D E R N A

mentos enfrentam resistência, provocam contramovimentos, mas mes-mo os próprios contramovimentos mostram as características das on-das que os trouxeram à superfície. E, o que talvez seja mais interes-sante, mesmo as pessoas, as formas de ação social e as instituições queaparentemente nada têm a ver com as "ondas" ainda têm alguma coi-sa em comum com elas. Pois também participam das mudanças na"instituição imaginária" das quais a onda é uma expressão. Talvezpareça exagero associar a Guerra das Falklands e seu modus operandiao pós-modernismo. E no entanto a guerra — o comportamento dosfuzileiros, os comunicados de imprensa e coisas assim — pareceu umacitação direta da Primeira Guerra Mundial. Era como se os partici-pantes citassem deliberadamente o famoso filme de Renoir, A grandeilusão, quando imitavam os valentes e cavalheirescos oficiais travandoduelos de honra na era da moderna tecnologia.

A geração existencialista ío\ primeira e mais estreita. A rapidezcom que a mensagem de Sartre, embora não necessariamente suafilosofia, se apoderou da mente dos jovens na Europa ocidental, eem certa medida da Europa central e meridional, não foi em si intei-ramente sem precedentes. O movimento romântico se espalhou coma mesma rapidez, mais de um século antes. O que foi sem preceden-tes, porém, foi o caráter do movimento, ou seja, a circunstância, sóem retrospecto compreendida, de que a onda existencialista foi a pri-meira numa série de fenómenos impressionantes da história ociden-tal na segunda metade do século vinte. O caráter sem precedentes domovimento deveu-se a seu cenário histórico. Esse movimento, comoo romantismo, pareceu a princípio uma revolta da subjetividade con-tra a ossificação de formas de vida burguesas, contra as restriçõesnormativas enraizadas naquele estilo de vida. A rebelião da subjetivi-dade teve implicação política, mas não mais explícita do que nosmovimentos românticos anteriores. Antes de seu surgimento, porém,houvera a cataclísmica experiência do totalitarismo, que fez da expe-riência de vida de contingência, tão típica da modernidade, tambémuma experiência de liberdade pessoal. Contudo a liberdade da pes-soa existente, contingente, não mais bastava em sua condição de a

198

E X I S T E N C I A L I S M O , A L I E N A Ç Ã O , P Ó S - M O D E R N I S M O

noção de liberdade. A liberdade tinha de ser politizada. A isso deve-mos acrescentar a culpa da colonização e a experiência da descoloni-zação. Nessa experiência, a politização da liberdade e a relativizaçãoda cultura (ocidental e burguesa) se combinaram. Tudo isso varreu aEuropa numa série de práticas culturais. "Chocar o burguês" é pre-cisamente o gesto que torna homens e mulheres em revolta depen-dentes do burguês. Mas na onda existencialista esse famoso épaternão mais estava presente. O que importava agora era fazer tudo ànossa maneira, praticar nossa liberdade. Rapazes e moças, embriaga-dos pela atmosfera de possibilidades ilimitadas, começaram a dançarexistencialmente, amar existencialmente, falar existencialmente etc.Em outras palavras, estavam decididos a ser livres.

^3, A geração da alienação, que atingiu o pico em 1968, foi ao mes-mo tempo uma continuação e uma inversão da primeira onda. Suaexperiência formativa não foi a guerra, mas a prosperidade económi-ca do pós-guerra e o consequente alargamento das possibilidades so-ciais. Sua experiência, além disso, não foi a aurora, mas o crepúsculoda subjetividade e da liberdade. Enquanto a geração existencialista,apesar de ter descoberto a alienação, a falta de vida das instituiçõesmodernas e a falta de sentido da contingência, fora uma estirpe maisou menos otimista, a geração da alienação começou em desespero.Precisamente porque essa geração levou a sério a ideologia da abun-dância, rebelou-se contra a complacência do progresso e afluênciaindustriais, além de reclamar para si o sentido e o significado davida. A liberdade continuou sendo o valor principal, porém, e aocontrário da geração existencialista, a da alienação permaneceucomprometida com o coletivismo. A busca da liberdade era umameta comum.

Embora sendo um afloramento de desespero, a geração da alie-nação se tornou afirmativa em virtude do processo em que diferentesmovimentos se fundiram no pico da onda. Nessa fusão literalmentenada ficou como antes. Um movimento reivindicava a ampliação daexperiência humana a áreas tabu (e promoveu o "radical" culto dasdrogas, causando indizível dano); outro, famílias maiores; ainda

199

Page 6: Agnes Heller. A condição Política Pós Moderna..pdf

A C O N D I Ç Ã O P O L Í T I C A P Ó S - M O D E R N A E X I S T E N C I A L I S M O , A L I E N A Ç Ã O . PÔS-M ODE R WS MO

35 7.I1S.

outros defendiam a volta da simplicidade da vida rural; e outros ain-da apoiavam a liberação sexual ou gay. Alguns movimentos levanta-ram objetivos políticos concretos, enquanto outros se envolviam emteatro experimental, happenings, educação permissiva ou a defesa doslogan "Pequeno é belo". É praticamente impossível relacionar todasas questões e práticas nas quais a segunda onda do movimento cul-tural abriu trilhas na percepção e autoperpcepção da moderna civili-zação.

>- Como teoria social, o pós^modejrnisrno_nasceu em 1968. Numamaneira de dizer, o pós-modernismo foi criação da geração da alie-nação, desiludida com sua própria percepção do mundo. Pode-seafirmar que a derrota de 1968 foi o motivo dessa desilusão (se houvetal derrota, o que continua sendo uma questão em aberto). Contudopode-se também afirmar que o pós-modernismo já aparecera nosprimórdios mesmo dos movimentos de 1968, sobretudo na França, eque portanto deve simplesmente ser encarado como a continuaçãodo anterior. Mas, o que quer que tenha acontecido no panoramateórico, os próprios movimentos pareceram sumir. Os mesmíssimosteóricos que continuavam a retransmitir a mensagem da geração daalienação faziam discursos sobre a derrota final dos movimentossociais. Enquanto isso, ocorria mais uma coisa. Enquanto os sinaisexternos dos movimentos desapareciam, havia ainda um movimento;ou melhor, vários, mas eram invisíveis, por serem essencialmente psi-cológicos e interpessoais. Esses movimentos foram saturando cadavez mais as relações humanas com sua mensagem, em tal medidaque alteraram o tecido social do qual haviam surgido.

O pós-modernismo como movimento cultural (não ideologia,teoria ou programa) tem uma mensagem bastante simples: vale tudo.Não é um slogan de rebelião, nem é o pós-modernismo de fato rebel-de. No que se refere à vida diária, os homens e mulheres modernospodem ou devem rebelar-se contra muitas e várias coisas e padrõesde vida, e o pós-modernismo, na verdade, permite todo tipo de rebe-lião. "Vale tudo" pode ser lido da seguinte maneira: Você pode serebelar contra qualquer coisa que queira, mas me deixe a mim me

200

rebelar contra a coisa determinada que eu quero. Ou, alternativa-mente, não me deixe rebelar-me contra nada, porque eu me sintocompletamente à vontade.

Para muitos, esse ilimitado pluralismo é o sinal do conservado-rismo: não haverá questões cruciais, focais, que exigem rebelião? Eno entanto a verdade é que o pós-modernismo não é conservador,nem revolucionário, nem progressista. Não é nem uma onda de cres-cente esperança, nem uma maré de profundo desespero. É um movi-mento cultural que torna irrelevantes esses tipos de distinção. Poisconservador, rebelde, revolucionário ou progressista, todos podemfazer parte desse movimento. Isso não se dá por ser o pós-modernis-mo apolítico, mas antes porque não defende qualquer tipo de políti-ca particular. O relativismo cultural, que iniciou sua rebelião contraa fossilização das culturas de classe e também contra a leonizaçãoetnocêntrica da "verdade única", o que significa dizer a herança oci-dental, venceu. Na verdade, venceu de maneira tão completa que seacha agora em posição de poder entrincheirar-se. Aqueles que estãoagora se entrincheirando são os membros da mais nova geração queaprenderam suas lições e tiraram suas próprias conclusões. O pós-modernismo é uma onda dentro da qual todos os tipos de movimen-tos, artísticos, políticos e culturais, são possíveis. Já tivemos váriosmovimentos no vinhos em folha. Houve movimentos centrados nasaúde, antitabagismo, forma física, medicina alternativa, corrida demaratona e jogging. Vem-se desenvolvendo um movimento de con-tra-revolução sexual. Tivemos e ainda temos movimentos de paz ouantinucleares. Os movimentos ecológicos acham-se em pleno flores-cimento. Testemunhamos a expansão de movimentos feministas, omovimento pela reforma educacional, e muito mais. As revistas demoda são talvez os melhores indicadores do caráter pluralista dopós-modernismo. A "moda" como tal não mais existe, ou mais pre-cisamente tudo está, ou muitas coisas estão, na moda ao mesmotempo. Não mais temos "bom gosto" ou "mau gosto". (Claro, aindapodemos nos referir a ter ou não ter gosto no sentido de poder dis-tinguir o melhor e o pior dentro do mesmo género.)

201

Page 7: Agnes Heller. A condição Política Pós Moderna..pdf

A C O N D I Ç Ã O P O L Í T I C A P Ó S - M O D E R N A E X I S T E N C I A L I S M O , A L I E N A Ç Ã O , P Ô S - M O D E R N IS MO

l

Se o pós-modernismo, pois, vai ser absorvido por nossa culturacomo um todo, chegaremos ao fim da transformação que começoucom a geração existencialista após a Segunda Guerra Mundial. Nãose trata de uma profecia sobre o fim dos movimentos, antes pelocontrário. O que esta declaração prevê é uma situação em que ocor-rerão transformações culturais concretas na medida em que sejamrealizadas por um ou outro movimento; contudo os próprios movi-mentos não ocorrerão em ondas geracionais. Finalmente, não serão"movimentos de jovens"; serão não apenas transclasses, mas tam-bém transgeracionais.

À guisa de introdução à breve história das três gerações que cria-ram nossas atuais "instituições de significado imaginárias", aponta-mos dois fatos decisivos. Declaramos que cada onda continua a plu-ralização do universo cultural na modernidade e a destruição de cul-turas ligadas a classes. Acrescentamos que cada onda deu um novoestímulo à mudança estrutural nas relações intergeracionais. Retor-naremos agora em certo detalhe a essas questões fundamentais.

x O que as três ondas de movimentos culturais conseguiram atéagora e o que se pode esperar que aconteça no futuro próximo serãodiscutidos em alguma extensão. A transformação é desigual, pois opresente de um país é o futuro de outro. Nenhum fator pode expli-car todas as diferenças de rapidez e caráter das transformações. Emquestões de transformações culturais, tradições de diferentes prove-niências aceleram ou desaceleram o processo. Por exemplo, formasde vida burguesas tradicionais estão mais entrincheiradas na Ale-manha que na Escandinávia. Contudo, mesmo onde as transforma-ções são mais espetaculares, longe estão da conclusão. As culturas declasse ainda estão muito em evidência. Os sentimentos de superiori-dade europeus não se evaporaram, e ainda existem sérias formas deconflito geracional. O resultado é portanto mais uma tendência queum fait accompli. Uma tendência é uma possibilidade, e esta nãopode bem ser considerada uma "realidade". Mas também podemosconcordar com Aristóteles que possibilidade tem lugar mais alto querealidade, que poesia é mais verdade que história. A possibilidade

aqui mencionada implica uma pequena dose de poesia, mas se baseiana extrapolação de traços sócio-econômicos contemporâneos desco-bertos, discutidos e corroborados com dados empíricos por sociólo-gos como Touraine, Offe e Dahrendorf.

A morte das culturas ligadas a classes pode_ser_expjicada_emJer-mos de aumento no consumismo. Antes os estilos de vida burguês eproletário centravam-se no desempenho do trabalho. Contudo, noque hoje se chama de "sociedade pós-industrial", o centro de ativi-dades cruciais da vida tornou-se o tempo do lazer. Como observourecentemente Dahrendorf, não mais que vinte e cinco por cento dapopulação do Mercado Comum Europeu executam trabalho social-mente necessário, o que significa ter um emprego ou ser dono de umnegócio. Além disso, o desempenho na função não mais proporcionaa "matéria" suficiente de que se constitui um estilo de vida. Em rela-ção à atividade de vida como um todo, o desempenho da função podeser visto como bastante contingente e portanto dificilmente a peçacentral de identificação cultural. Ao contrário, é o nível de consumo(a quantidade de dinheiro gasta no consumo) que sejtorna a fonte deidentificação cultural^A identificação cultural é portanto uma questãomais quantitativa que qualificativa. Era profunda convicção da gera-ção da alienação que o rigo de consumo preferido fora socialmentegeneralizado sob o impacto da manipulação de gostos e desejos pelosmeios de comunicação de massa. Em termos desse conceito, todosforam manipulados para gostar, ficar satisfeitos e ter uma necessidadedo "mesmo", independente de se "o mesmo" se referia a objetos, pro-dutos, formas de arte, práticas ou qualquer coisa.

Embora o crescimento do consumismo desse uma abrupta para-da com o advento de crises e depressões económicas, e embora a"sociedade afluente" mostrasse ser bem menos afluente do que pre-sumira antes a "geração da alienação", os próprios padrões que de-ram origem ao "paradigma da manipulação" não desapareceram.Mas o resultado da manipulação geral não mais assume uma previ-são tão sombria quanto nas previsões anteriores. Como tantas vezesacontece, a própria previsão mudou o curso do previsto. Parece um

202 203

Page 8: Agnes Heller. A condição Política Pós Moderna..pdf

A C O N D I Ç Ã O P O L Í T I C A PÔS-MODERNA E X I S T E N C I A L I S M O , A L I E N A Ç Ã O , PÓ S-M OD E R N l S M O

m

exagero, mas na verdade não é, dizer que a onda da geração da alie-nação foi, também nesse aspecto, a precursora da geração pôs-mo^derna. O espectro da "sociedade de massa", em que todos gostam damesma coisa, lêem a mesma coisa, praticam a mesma coisa, foi umbreve intertnezzo na Europa e na América do Norte. O que surgiu defato não foi a estandardização e unificação do consumo, mas antes aenorme pluralização de gostos, práticas, prazeres e necessidades. Aquantidade de dinheiro disponível para gastar continua a dividirhomens e mulheres, mas o mesmo acontece com as espécies e tiposde gosto, prazer, práticas que eles buscam. Em vez de tornar-se oGrande Manipulador, os meios de comunicação se tornaram maisum catálogo de gostos altamente individualizados. E, o que é maisimportante, os diferentes padrões de consumo foram embutidosnuma variedade de estilos de vida, "a cada um segundo sua preferên-

_cia", e, claro, nos meios; existentes_£ara satLsfezer essa preferênaa._Neste ponto, temos de retornar ao problema geral do relativis-

mo cultural. Padrões de cultura não ocidentais foram descobertospela "Boémia"; o gosto dos boémios era literalmente exótico. Hoje,culturas "estranhas" estão presentes em cada um e todos os níveis davida diária. Incrustaram-se em nossas práticas culturais; foram assi-miladas e tornaram-se "lugares-comuns", por assim dizer — dos res-taurantes chineses aos vestidos indianos, dos penteados afro aosromances latino-americanos. Por mais estranho que pareça associarcozinha chinesa, penteados afro, chá de ervas e filmes de sexo com ageração da alienação, continua sendo verdade que foi essa geraçãoque introduziu a parafernália de novidades exóticas no menu de nos-sa vida diária, em que cada gosto encontra o que o satisfaça. Masum menu variado não aumenta um estilo de vida. Em vez disso,algumas práticas, gostos e preferências constituem padrões. Podemosfacilmente identificar vários desses padrões em que "isso combinacom aquilo" mas não com aquilo outro.

Contudo um problema apresenta-se em relação a essa infinitavariedade, essa pluralização de estilos de vida, essa morte das cultu-ras de classe autocomplacentes e etnocêntricas. Hannah Arendt e

204

outros acentuaram que as classes sociais são necessárias para a con-dução de políticas racionais. As classes podem dar origem a institui-ções (organizações políticas que representam seus interesses). Osgovernos representativos surgem da sociedade de classes. Se as clas-ses estão em extinção, se as culturas estão se tornando pluralizadasnum grau de total particularização, ainda é possível um processo dedecisão com sentido, racional? Só as empresas são organizadas se-gundo funções, e as empresas não representam os interesses de esti-los de vida como um todo, mas antes os interesses de funções parti-culares. Assim, as sociedades baseadas em processos de decisãoempresariais podem ser facilmente descritas como "sociedades demassa", apesar da pluralização cultural. A "geração da alienação"defendeu a "política de bases", uma espécie de política que faz partede comunidades e estilos de vida em todos os níveis de estratificaçãosocial. Continua incerto neste estágio se a relativização e pluraliza-ção políticas levarão à morte da formulação política racional ou se,ao contrário, serão o prelúdio de forma ou formas mais democráti-cas e mais racionais de ação política, uma combinação do sistemaparlamentar com um tipo de democracia direta. Neste ponto, nãotemos dados suficientes para extrapolação.

Voltemo-nos agora para as relações intergeracionais. Todas astrês ondas de movimentos foram executadas pela geração mais jo-vem. Contudo, o termo "jovem" exige esclarecimento. Numa socie-dade funcional, "jovens" são os homens e mulheres (e não só meni-nos e meninas) que não exercem uma "função" que os prenda numestrato ou outro dentro da divisão social do trabalho. Assim, os estu-dantes são jovens mesmo quando têm trinta anos, o que significava"meia-idade" na geração de nossos avós. Precisamente devido a essaconotação funcional, evitaremos a seguir a distinção entre "jovem" e"velho". (De qualquer modo, os velhos ou "cidadãos idosos" já nãotêm emprego. São, em outras palavras, os "pós-funcionais".)

As atuais mudanças no relacionamento das gerações pré-funcio-nais e funcionais são tão óbvias que podemos vê-las por sinais intei-ramente externos. Nas culturas ligadas a classes, os jovens se esfor-

205

Page 9: Agnes Heller. A condição Política Pós Moderna..pdf

T—seU

I!

f1! SÍ! l

A C O N D I Ç Ã O P O L Í T I C A P Ô S - M O D E R N A

cavam por parecer mais velhos do que eram. Após a Segunda GuerraMundial, porém, o padrão foi-se transformando aos poucos até,finalmente, inverter-se de todo. Os mental e fisicamente adultos hojefazem às vezes esforços desesperados para parecer jovens e se com-portam de acordo. "Parecer"jem diferentes sentidos sociais. Parecermais velho do que se é denota a aspiração de ser tratado como umadulto responsável, como alguém que já se assentou ou pelo menosestá pronto para assentar-se. Parecer mais jovem do que se é denotaa aspiração de ser tratado como alguém ainda aberto a toda opção,ainda não "burocrata", ainda não fossilizado em sua função. Nopico das ondas geracionais, tornou-se prática comum membros da"geração funcional" buscarem o favor dos filhos para ser encaradoscomo "jovens honorários". O termo e as práticas de "meia-idade"foram inventados no mundo da divisão funcional do trabalho; e pro-dução exclusiva da sociedade funcional. Numa cultura de classe, sejaburguesa, operária ou fidalga, ser de meia-idade proporciona a al-guém uma dignidade representativa do adulto completo. É qua adul-to, como alguém ainda física e mentalmente capaz, mas já repositó-rio de grande experiência, que nos tornamos uma persona numadeterminada cultura. Homens em crise de meia-idade desejam serimaturos e ainda não assentados, calvos adolescentes em busca deidentidade.

A divisão funcional do trabalho é acompanhada por uma combi-nação muito complexa e ambivalente. O exercício de uma funçãoexige identificação, sobretudo nos negócios e nas instituições públi-cas. Quanto mais forte a identificação com o exercício da função,maior a tentação da pessoa de tornar-se um chato autocomplacenteou um burocrata arrogante. Quem exerce uma função é quase inevi-tavelmente levado a barrar a entrada aos jovens, porque representamconcorrência. A autocomplacência ligada à função muitas vezes na-da mais é que um encobrimento psicológico do medo da concorrên-cia. Segue-se disso que pais desse tipo não têm grande conflito comseus filhos, como aconteceu tipicamente no dramático período deconflito geracional, mas antes com os filhos dos outros. Parecer jo-

206

E X I S T E N C I A L I S M O , A L I E N A Ç Ã O , P Ô S - M O D E R N l S M O

vem tem portanto uma dupla função: ajuda os adultos a serem"aceitos" pelos jovens no meio deles e empresta-lhes peso na concor-rência com os filhos dos outros. É precisamente esse conflito quenormalmente se resolve na "crise da meia-idade", quando a pessoade meia-idade renuncia à concorrência e endossa o traje do jovem. Omundo após a Segunda Guerra Mundial não é mais edipiano. Queoutros tipos de neurose vai desenvolver, já é outra questão. A tese donarcisismo de Lasch é uma tentativa importante de explorar nossasnovas doenças.

Façamos uma observação final sobre as três ondas de movimen-to cultural após a Segunda Guerra Mundial. Em todos os altos e bai-xos de suas continuidades e descontinuidades, uma característicapermaneceu estável. Os movimentos feministas constituíram umagrande tendência em todas três, e essa é uma tendência que, apesarde alguns reveses menores, mudou totalmente a cultura moderna. Ofeminismo foi, e continuou sendo, a maior e mais decisiva revoluçãosocial da modernidade. Ao^contrário da reYoluçãojqlítica,^ umarevolução social não explode: ocorre. Uma revolução social é sempretambém uma revolução cultural. A relativização das culturas e asincursões feitas por culturas "estranhas" na cultura ocidental foramrepetidas vezes mencionadas acima. A revolução feminista não éapenas uma contribuição a essa enorme mudança, mas a únicaimportante. Pois a cultura feminina, até então marginalizada e nãoreconhecida, está agora bem encaminhada para articular uma decla-ração de princípios final em seu próprio nome, reclamar sua metadeda cultura tradicional da humanidade. A revolução feminista não éapenas um fenómeno novo da cultura ocidental, é um divisor deáguas em todas as culturas até agora existentes.

A revolução feminista não poderia ser provocada só pela novaforma de divisão do trabalho. As instituições democráticas, os valo-res-idéias de liberdade, igualdade e direitos tiveram de estar presen-tes na "instituição de significado imaginário" global para que osmovimentos feministas, realizadores da revolução, ocorressem. Poisantes as mulheres, como os homens, podiam ser incorporadas na

207

Page 10: Agnes Heller. A condição Política Pós Moderna..pdf

A C O N D I Ç Ã O P O L Í T I C A P Ó S - M O D E R N A

divisão funcional do trabalho, mas também podiam continuar sujei-tas à dominação do homem. Sem uma divisão funcional do trabalho,porém, o objetivo da revolução feminista teria continuado inatingidopelo mais simples dos motivos: as mulheres não teriam conquistadoa oportunidade de ganhar seu sustento, de adquirir a precondiçãomínima de uma vida independente.

Por que é uma crença tão disseminada que os "movimentos de-sapareceram", que os últimos quarenta anos foram um período emque "nada aconteceu"? Talvez porque estamos demasiado acostu-mados à história como história política. E no entanto a história é,primeiro e acima de tudo, social e cultural; é a história da vida diáriade homens e mulheres. Posta sob cerrado escrutínio, a história reve-lará mudanças que incluem uma revolução social. As três ondas demovimento cultural acima analisadas eram as principais despenseirasdessa transformação. Não alteraram o navio, mas mudaram o ocea-no onde navega o navio.

os<=»!•2-1•«Z

208