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ÁGORA TEATRO

coordenação:Celso Frateschi

Marlene SalgadoRoberto Lage

Sylvia Moreira

ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

organização: Celso Frateschicoordenação editorial: Marlene Salgado

tratamento de textos e revisão: Confraria de Textosprojeto gráfico: Pedro Becker

editoração eletrônica: Werner Schulzimpressão: Cromosete Gráfica e Editora

1ª edição – 2006

todos os direitos desta edição reservados ao Ágora CDT

Rua Rui Barbosa, 672 - Bela Vista - São Paulo - CEP 01326-010telefone: (11) 3284 0290

fax: (11) 3141 2772e-mail: [email protected]

www.agorateatro.com.br

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Ágora l iv re dramaturg ias / [organização Celso Frateschi] . — São Paulo : Ágora Teatro, 2006.

Vár ios autores .

1 . Crít ica teatral 2 . Dramaturg ia 3 . Teatro brasi le iro - Histór ia e cr í t ica I . Frateschi ,Celso.

06-6059 CDD-809.2

Índices par a catálogo sistemát ico:

1. Peças teatrais : Histór ia e cr í t ica 809.22. Teatro : Histór ia e cr í t ica 809.2

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SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO – Celso Frateschi 7

EU NÃO SOU CACHORRO! – Fernando Bonassi 11

PAI – Izaías Almada 23

SÓ MAIS UM INSTANTE – Marta Góes 43

SOBRE A ARTE DE CORTAR BIFES – Hugo Possolo 95

A CABEÇA – Alcides Nogueira 115

ILMO. “SENHOR” – Naum Alves de Souza 129

E ÉRAMOS TODOS THUNDERBIRDS – Mário Bortolotto 145

COR DE CHÁ – Noemi Marinho 193

O MUNDO É UM MOINHO – Fauzi Arap 205

NOVAS DIRETRIZES EM TEMPOS DE PAZ – Bosco Brasil 289

ATO SEM HISTÓRIA – Luís Alberto de Abreu 321

O CÉU DA PÁTRIA – Jandira Martini e Marcos Caruso 333

a ordem de apresentação dos textos corresponde ao cronograma de realização do projeto Ágora Livre Dramaturgias, realizado em 2001

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APRESENTAÇÃO

Em meados do século passado, Friedrich Dürrenmatt formulou

durante uma palestra a seguinte questão: “Poderá o mundo de hoje ser

reproduzido pelo teatro?” Bertolt Brecht interessou-se pelo debate e

escreveu um pequeno artigo sobre o tema – afinal, essa questão estava na

origem e na meta do teatro épico que professava. Segundo Brecht, “para o

homem do século XX, o valor das perguntas residia nas respostas, uma vez

que se interessava por situações que poderia enfrentar ativamente. Que,

numa época cuja ciência de tal forma consegue modificar a natureza que o

mundo nos parece já habitável, o homem não pode ser apresentado como

vítima, como objeto passivo de um ambiente desconhecido, imutável”.

Contudo, registrava o espanto: “a natureza da sociedade humana - em con-

traposição à natureza em geral – ainda não esclareceu a possibilidade de

um aniquilamento total do planeta, que ainda mal conseguimos tornar

habitável.”

Mais de meio século depois, acreditamos que a pergunta de Dürrenmatt

ganha cada vez mais pertinência, neste período, em que os avanços tecno-

lógicos se aceleraram e influíram de maneira decisiva na produção artísti-

ca, principalmente em sua reprodutibilidade nas formas dramáticas de

expressão. Com as novas tecnologias, resta algum sentido para a arte

teatral? O teatro ainda tem alguma contribuição a dar, como construção e

expressão específica de prazer e conhecimento? Certamente, o lugar que

ocupou ao longo de sua história foi pelo menos em grande parte tomado

por outras formas de expressão, principalmente a partir do final do século

XIX. Todavia, no início do século XXI, se faz mais teatro do que nunca.

Nós, do Ágora Teatro, estamos ocupados em entender e praticar um

teatro que fale ao contemporâneo. Realizamos montagens, estudos e semi-

nários para desenvolver a linguagem teatral no que a distingue das demais

artes. Nosso primeiro seminário, Odisséia do Teatro Brasileiro, apontou a

necessidade do aprofundamento da discussão sobre a dramaturgia con-

temporânea. A história do teatro moderno brasileiro é bastante acidentada.

Quando, nos anos 1950 e 60, começava a se estruturar um pensamento

teatral consistente (que, de um lado, refletia numa dramaturgia ainda

incipiente, mas, de outro, revelava características do modo brasileiro de ser

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e de se relacionar), fomos atropelados pelos 20 anos de ditadura que se

seguiram ao golpe militar de 1964. Nesse período, a ação truculenta da cen-

sura, se não chegou a criar um vazio absoluto de pensamento, limitou-o a

uma ação de resistência. Foi nesse processo que se implantaram, com

enorme sucesso, os meios de comunicação de massa, processo que acom-

panhou e incorporou as inovações tecnológicas e hoje se configura irrever-

sível. Com o fim da ditadura, nosso teatro revelou que talvez sua ferida

mais profunda tenha sido na nossa dramaturgia. A construção coletiva de

um pensamento teatral cedeu lugar a tentativas dispersas de nossos dra-

maturgos, que pouco dialogam entre si por meio de seu trabalho. Prevalece

a sensação de vitória cultural dos militares e de seus sucessores, que ainda

nos mantêm num nocaute técnico, do qual não sabemos bem como acor-

dar. Algo desesperadamente, tentamos reagir e nos manter acordados, mas

sem conseguir pensar direito nem construir qualquer estratégia.

Esta publicação é o registro de uma tentativa de aproximação do pro-

blema ainda não claramente formulado: quais são as amarras que hoje

impedem nossa dramaturgia de içar velas? Procuramos contribuir para a

discussão dessa questão.

Nos últimos anos, percebemos um aumento significativo de autores

novos, cuja produção convive com a de dramaturgos que estão na ativa

desde os tempos da ditadura. É uma produção de qualidade, mas não se

caracteriza como um movimento. São processos criativos diferentes entre

si e não se vinculam a preceitos estéticos comuns. Os autores seguem tra-

jetórias próprias e independentes. Ao Ágora Teatro interessa entender como

esses artistas traduzem o homem contemporâneo em suas peças e, ao

mesmo tempo, como se relacionam com algumas questões que nos coloca

a tradição teatral.

Convidamos 13 autores contemporâneos, visando abranger várias for-

mas, estilos e abordagens dramatúrgicas, e propusemos que respon-

dessem, através de pequenas peças, algumas questões já levantadas pela

história do teatro e que, segundo entendemos, ainda dialogam com o

nosso contemporâneo. Fernando Bonassi, Izaías Almada, Marta Góes,

Hugo Possolo, Alcides Nogueira, Naum Alves de Souza, Mário Bortolotto,

Noemi Marinho, Fauzi Arap, Bosco Brasil, Luís Alberto de Abreu e Jandira

Martini e Marcos Caruso escreveram suas peças motivados pelas seguintes

provocações:

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• Poderá o mundo de hoje ser reproduzido no teatro?

• Escreva sobre sua aldeia e falará do Universo.

• Podemos ainda falar em dramaturgia nacional?

• Permanece no teatro de hoje algum resquício do sagrado?

• O dramaturgo é um pensador?

• Seu personagem está no palco ou na platéia?

Durante os meses de setembro a novembro de 2001, essas peças foram

montadas, apresentadas e discutidas com o público, tendo como debatedo-

res Silvana Garcia, Chico de Assis, Fauzi Arap, Luís Alberto de Abreu, Ai-

mar Labaki, Jefferson Del Rios, Sebastião Milaré, Francisco Medeiros,

Gianni Ratto e Ilka Marinho Zanotto.

O resultado desse projeto foi extremamente rico, principalmente pela

qualidade dos textos apresentados. Alguns deles seguiram vida própria,

com muito sucesso junto ao público e à crítica. Com a colaboração de to-

dos os envolvidos, temos a satisfação de publicar esse conjunto de textos,

certos de estarmos contribuindo para o desenvolvimento de nossa drama-

turgia, além de proporcionar aos leitores o prazer que só o teatro pode nos

proporcionar.

Celso Frateschi

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EU NÃO SOU CACHORRO!

dramaturgo: Fernando Bonassi

debatedora: Silvana Garcia

MONTAGEM

direção: Elias Andreato

interpretação: Celso Frateschi

cenário e figurino: Sylvia Moreira

luz: Elias Andreato

trilha sonora: Aline Meyer

direção técnica: Rodrigo Guimarães

fotos: Jade Stickel

produção executiva: Jerusa Franco

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EU NÃO SOU CACHORRO!Fernando Bonassi

PERSONAGEM

UM ATOR

ADEREÇOS (sugeridos)

Casa de cachorro acorrentada ao pé (calçado com coturno militar) do

Ator. Uma tigela plástica para comida e outra de água. Panos, ossos resseca-

dos, jornais velhos.

CENA ÚNICA

No centro de atenção, uma casa de cachorro. Ao terceiro sinal, o Ator sai

de dentro dela. Ele tem um pé – que calça coturno militar – acorrentado a um

dos pilares da pequena casa.

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ATOR

Eu não sou um cachorro. Isso não.

Mas... supondo, apenas por especulação – a pura especulação mesmo –,

que eu fosse um cachorro... bem, então eu teria nascido numa ninhada

úmida e pegajosa. Seria expelido com meia dúzia de irmãos. Rolaria num

cobertor posto especialmente para a ocasião de a minha mãe parir. Seria

um cobertor novo, recobrindo uma caixa de papelão onde ainda poderia

farejar o perfume do sabão em pó. Haveria jornais do dia cuidadosamente

espalhados por baixo de tudo.

Jornais do dia nos protegem da frieza desses tempos...

Poderia estar cercado por pessoas tensas e preocupadas. Humanos

cheios de afeto e habilidades científicas. Se, numa desventura, minha mãe

não desse conta de sua tarefa biológica, eles bem poderiam, mesmo que

com algum nojo, meter as mãos entre as suas pernas e me trazer, num pu-

xão, para esta vida.

Só que eu não sou cachorro.

Trata-se de especular...

Se fosse um cachorro, deveria considerar muita sorte ser desmamado e

logo escolhido por alguma menina mimada, que fizesse de mim o que bem

entendesse. Este não é um mundo onde espécies inferiores possam dar-se

ao luxo de sobreviver entre os maiorais sem que sejam pisoteadas, transfor-

madas em sabão ou mandadas para a África da Morte ou a América Latri-

na. Mas, de todo modo, não sou de permitir que garotas mimadas façam de

mim o que entendem ser o melhor, no fundo, para elas mesmas. Ainda

mais em questões tão íntimas como a separação entre cães, quero dizer,

entre “mães” e filhos.

Não, cachorro, não.

Supondo, no entanto, que essa suposta sorte não me tivesse acontecido,

que a minha melhor chance não se tivesse me apresentado, que nenhuma

garota mimada surgisse para me esmagar contra os seus peitinhos, então,

nesse caso, muito cedo teria de revirar algumas latas de lixo. É disso que é

feita a vida desses animais infelizes. Eles não se incomodam com pernas de

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faisão cobertas de vermes, camarões passados, ossos limbosos, a História,

invertebrados de qualquer espécie, juízes de direito, cerveja choca ou água

parada. Servem-se de suas guloseimas imorais na frente de todo mundo.

Os mendigos os invejam...

Tais seres podem mesmo, se e quando necessário, ingerir fezes.

Ora, além dos problemas de saúde inerentes a quem se dá a certas liber-

dades com a higiene do que leva à boca, como um moto-contínuo de mer-

da, há que se considerar os aspectos evolutivos desse tipo de atitude. Eu

pergunto: quantos séculos de civilização não nos foram necessários para

separarmos a boca do cu, dando a cada um a função específica que têm ho-

je?! Trata-se de mais uma dessas dúvidas que justamente provam a minha

humanidade...

Por exemplo: o que um cachorro pensa de um lençol limpo?

Não sei. Não sou um cachorro.

Eu mesmo não abro mão de lençóis limpos, com aquele perfume ine-

briante do sabão em pó esmagado a ferro.

Há equilíbrio entre os meus sentidos e sei muito bem onde meto o meu...

(cheira prolongadamente o ar)

E, de mais a mais, meu nariz não funciona. Todos sabemos, hoje, a im-

portância que a troca de cheiros tem para os cachorros. Por qual outro mo-

tivo, então, dedicam-se a esfregar-se e lambiscarem-se as partes traseiras

tão despojados de malícia que chega a dar inveja a todas as armadilhas

mentais que utilizamos?

Sociabilidade, compromissos, negociações, pactos, contratos... temo

que a confiança tenha algo a ver com gostar do fedorzinho destas ou da-

quelas bochechinhas molegatas encravadas de um rubicó em forma de ro-

sácea enlameada...

Não posso negar que há tramas sociais complexas em gestos vulgares,

trocas de bactérias e fluidos.

Mas, de todo modo, não sou cachorro.

Não... se eu fosse um vira-lata de lixo desses, então teria estampada no

rosto a desolação trágica e a indiferença características desse modo de vida

que em nada combina comigo.

Quando lamentamos nossa própria natureza, o fazemos num nível mais

elevado: estabelecemos relações de causa e efeito na linha do tempo. Pro-

duzimos... conhecimento.

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Se estamos infelizes, criamos confusões; se criamos confusões, partimos

para a guerra; se partimos para a guerra, temos milhões de mortos; se te-

mos milhões de mortos, outros milhões podem morrer de moléstias infec-

ciosas galopantes.

A penicilina, por exemplo, foi inventada para transformar os mortos

duma guerra em aleijados doutra.

Isto poderia ser um outro espetáculo; mas também é uma prova: eu não

sou cachorro.

Se eu fosse um cachorro, nem controlaria minha morte.

Além de dormir, comer, cagar, mijar, foder rapidamente e aos pulinhos,

poderia, no máximo, roer a corda e ser atropelado. Estou convencido de

que a caminhada vagarosa e às cegas por auto-estradas muito rápidas é a

única forma de suicídio que os danados conhecem. Em algum lugar de suas

cabecinhas cheias de ossos, eles sabem que aqueles monstros de lata que

vêm de lá, ao chocarem-se com seus corpos, o fazem como se acertassem

um saco de batatas inglesas úmidas. Questão de comportamento reflexo.

Se me comportasse assim, no máximo, ficaria exposto à visitação das

moscas a céu aberto.

Uma vergonha.

Mas eu não faço parte dessa elite de cachorros suicidas, capazes de lan-

çar gerações e mais gerações na pista de lixo asfaltada com gosma verme-

lha da História, apenas pra que tenham um equipamento que, uma vez

acionado, faz vibrar uma certa nota arrepiante no cóccix de quem o possui

num bolso mais atrás.

Não.

Se eu fosse um cachorro suicida, só teria esses asfaltos quentes onde cair

morto. Nem uma lápide que me lembrasse de que o melhor de pisar na gra-

ma é quando sabemos que há alguém lá embaixo... Como um cemitério ju-

daico proibido.

Questão de comportamento reflexo.

No último fim, duraria apenas o tempo da minha mancha de sangue

gosmenta e o sol e a evaporação e pronto.

Sem rituais.

Uma obscenidade.

(cheira prolongadamente o ar)

Um nada obscuro como um buraco de nariz.

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Se eu fosse um cachorro e estivesse sonolento, deitaria em qualquer lu-

gar. Meu quarto, do tamanho da cidade...

Estaria submetido apenas a certos ciclos da natureza: cem sóis, uma en-

xurrada, uma eleição de presidente, os fundos de uma churrascaria, uma

desavença, um governo de intelectuais privatistas e balas perdidas.

O que vem de baixo não me atinge na cabeça de cima, que é a mais im-

portante.

Ela me faz o que sou.

Não um cachorro.

Que sejamos 65% água deveria nos ensinar alguma coisa...

Se eu me conheço bem, se sei que não sou cachorro, é porque certamen-

te eu seria capaz de atitudes de péssimo feitio, se o fosse: saltaria cercas, pu-

laria muros, me meteria em buracos e tarefas sórdidas, enfrentaria feras

ainda mais insanas do que eu, tudo por uma bocetinha no cio.

Mas eu não sou um cachorro e não é do meu feitio perseguir bocetinhas

no cio pela ruas ou casas de família.

A isto chamamos... cultura.

Se eu fosse um cachorro, poderia vir a morder a mão que me acaricia.

Já está provado que cérebros, quanto menores, mais entusiasticamente pul-

sam. Quando se encontram em caixas cranianas reduzidas, o espaço de

transição entre o que é a mera projeção de seus encagaçamentos e o que de

fato se dá no mundo dos negócios praticamente inexiste. Assim se criam,

solidificam-se mitos, financiam-se campanhas de saúde pública e pagam-

se esses constantes convites que os artistas recebem para explicar o inexpli-

cável em outra língua, em que são ainda menos fluentes que na sua própria,

de origem.

(cheira prolongadamente o ar)

Puxa! Isso é quase outro espetáculo!

Em suma: perde-se a paciência com facilidade, fica-se rabugento com a

polícia, engole-se qualquer coisa, quebram-se copos de cristal, fazem-se ju-

ras de amor desesperado, leva-se desaforo para casa e fica-se constante-

mente inseguro.

Mas eu não sou de tratar mal quem me trata bem e eu não sou um ca-

chorro com o terror constante de perder as poucas migalhas que lhe jogam.

Gente! É muito pouco! É ou não é?!

(cantando) Migalhas, migalhas, migalhas jogadas por mãos carinhosas...

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A memória de um cachorro, que não é a de um elefante, consegue reter

pouco mais que um instante. Um instante de satisfação por mil anos de

memória fraca. A idéia de que tudo pode acabar já, agora, neste exato ins-

tante, assola os pobres coitados. Haja osso, haja dente, haja músculo...

(cantando) Migalhas, migalhas, migalhas jogadas por mãos carinhosas...

Se eu fosse um cachorro, não usaria roupas. E eu tenho roupas que fa-

zem milagres por mim. Uma calça negra, uma camisa branca, um chapéu

de bico chato, alguns fru-frus nas mangas, uma joelheira, um anel de osso,

uma corrente de prata, uma roupa de baixo em forma de V da vitória e

muito mais, para o meu conforto e exposição.

Por exemplo: sempre que vou seduzir uma prostituta, para que me

preste seus serviços com descontos e faça coisas que, digamos, estejam fo-

ra de seu menu básico, ou quando, ainda por exemplo, reúno toda a mi-

nha coragem profissional para finalmente não mijar nas calças ao pedir

um verdadeiro, polpudo e justo aumento de salário, uso meu coturno 74.

Meu coturno 74 impõe respeito em qualquer situação. Tem classe e fir-

meza entrelaçados como um economista bem fornido na Escola de Chi-

ca Bom e um general de saco roxo que compra radares como quem vai à

Disneylândia.

Obviamente, nada de ruim pode me acontecer quando eu o utilizo. Ca-

minho, digno, sobre os dois calçados rijos, certo de que a dignidade de

meus passos se transfere, ato contínuo, às minhas atitudes e palavras.

Esses meus panos malcosturados estão constantemente dizendo coisas

a meu respeito... posso combinar feito um bombeiro sueco ao lado de um

hidrante niquelado.

Os cachorros andam nus em pêlo...

Por essas e outras, não sou um cachorro.

Se eu fosse um cachorro, não teria direito a voto. Não elegeria meus re-

presentantes. Não poderia controlar meus valores na rédea curta, com es-

sas correntes feitas de lingüiça fresca, que são ainda mais fáceis de quebrar

quando se amarra o bicho com elas. No máximo, torceria por alguém que

tivesse compromissos com a proteção das criaturas irracionais.

Há gente assim, tidas como as melhores cabeças de cima do vasto pai-

nel de nossa sabedoria...

Mas nem eu tenho compromisso com criaturas irracionais, nem sou ca-

chorro.

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Se eu fosse cachorro, não trabalharia. O trabalho não dignifica o cachorro,

como dignifica o homem.

Aliás, o humilha...

Um cachorro sem trabalho está no seu elemento e eu, sem trabalho... bem,

não poderia fazer crediário; não constituiria uma família dos infernos; não

compraria um carro pra me esmagar num poste, nem pílulas de erguer cara-

lho; não usaria cotonetes hidrofilizados; não teria uma pistola desse tamanho

pra me defender de todos os que querem apenas se defender. Não poderia ti-

rar documentos militares de trânsito, ter títulos acadêmicos nem bolsas de

estudos.

Mas eu também não sou um cachorro vagabundo, ainda que não tenha ou

não saiba exatamente o que fazer, uma vez ou outra.

Questão de hábito, no meu caso.

Se eu fosse um cachorro, só teria meu rabo para expressar os meus senti-

mentos. Sentimentos exigem enorme sutileza para sua expressão e eu tenho

uma infinidade de recursos para me expressar. Há tantas partes moles e tantas

conexões possíveis entre elas. São necessários centenas de metros por segundo

de impulsos elétricos e mais de umas dezenas de músculos para fazer um reles

sorriso amarelo.

Cinco sentidos, 65% de água.

Também por isso, eu não sou um cachorro.

Se eu fosse cachorro, coçaria o pescoço com os pés.

Pés pelas mãos, se é que vocês me entendem.

Um cachorro também não é um macaco, mas este, sem dúvida, seria um

outro espetáculo... eu, pelo menos, nem sou um cachorro.

Porque se o fosse, não veria com precisão os eventos da tv. Ou melhor, ve-

ria muito mais além deles. Dizem que os cachorros são capazes de perceber os

mecanismos por trás das coisas, de forma que, ao verem televisão, podem ape-

nas apreciar a dança caótica dos elétrons que são disparados ao longo do tubo,

até a tela. Quando conseguem enxergar mais que essa dança maluca, vêem a

ausência de cor.

Estaria eu condenado ao preto e branco do fundo dos meus olhos? Teria al-

guma chance de ver de uma outra maneira as eternas mesmas coisas, de forma

que os outros ligassem tanto para mim, que simplesmente me esquecessem?

Nada de cores, de luzes, de comprimentos de onda... é como querer

fazer do Brasil um país sem guerra e, para isso, é necessário mais que o

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aperfeiçoamento da raça amulatada... seria preciso murchar o pneu da

crueldade com a agulha da devoção... mas isso é mais um segmento de

um determinado tipo de teatro alemão, logo: um outro espetáculo.

Minha vida é feita de cor e eu, por saber e, eventualmente, querer, que

todas as cores recebam o mesmo tratamento no arco-íris, por uma simples

questão de consciência, não sou cachorro.

Se eu fosse um cachorro, necessariamente me angustiaria com meus

semelhantes, procurando neles e em mim sinais de... uma certa... “fero-

cidade defensiva”. É o que podemos observar em praças púbicas, onde

senhoras levam seus poodles molegatos para masturbar-lhes a clitônia e

o tênis.

Mas eu não sou cachorro e posso me dar meus próprios prazeres.

Tenho a liberdade de ir e vir. O que, se fosse mais pensado, seria ainda

menos excitante.

Numa situação canina, minha atividade física seria reduzida a apanhar

um pedaço de madeira arremessado a distância, o qual deveria abocanhar

e levar a seu lugar de origem. Que alguém jogue algo inexpressivo num lu-

gar distante e que outro, menos esperto, se encarregue de ir buscar... a isso

chamamos entendimento.

Sísifo, o eterno retorno, a idéia de que devemos deixar o bolo crescer

pra só depois repartir... enfim: muitos espetáculos num só...

Mas eu não sou cachorro.

Se eu fosse cachorro, não teria direito à justiça e nós sabemos o quanto

o direito civiliza o homem e o quanto a justa reparação dos danos e perdas

adensa nossa nacionalidade e o respeito às instituições.

(cantando) Pátria amada, salve, salve-se!

Não. Eu não sou cachorro.

Eu sei que a pátria congrega diversas expressões da mesma coisa, de

forma que se há uma guerra, todos devem ir para defender os demais

iguais de tudo o que é diferente. Os cachorros, por sua vez, são vistos em

terras de ninguém e são capazes de cruzar campos de batalha com o

maior descaramento. Tudo por uma lingüiça frita numa trincheira, de lá

ou de cá. Tanto faz.

Tanto é que os soviéticos condicionavam vira-latas da Baviera para que

carregassem minas anti-tanque e se aproximassem furtivamente dos ar-

mamentos fascistas, mandando tudo pelos ares. Claro que eles não sabiam

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disso. Um cachorro é capaz de carregar sua morte presa às costas e cumprir

diligentemente seu destino ideológico.

Eu não sou cachorro.

Mas, se fosse, estaria em mim toda a capacidade de reparação.

Não teria culpa nem desculpa.

Do mesmo modo, se fosse um cachorro, estaria ainda mais à mercê de

Deus. Não teria que fazer valer a minha fé, nem faria trabalhos.

Estaria, sem saber, destinado ao Paraíso.

Mas eu não sou cachorro e conquisto o que quer que seja com meus pró-

prios méritos. Ainda que seja um lugar no maldito paraíso dos homens. Aliás,

com licença: eu mereço. Aliás, como qualquer tolo, ou homicida, ou escritor,

ou ator, ou madame de recados que pega putos no meio das pernas frias.

Se eu fosse um cachorro, eu abanaria meu rabo para algum sacana me jo-

gar um pedaço de carne engordurada no chão. Eu poderia saltar para pegá-la

da ponta de seus dedos, se fosse o caso...

Nós apreciamos manifestações de generosidade semelhantes.

Claro que eu teria medo de ter a mão auto-abocanhada por mim mesmo.

A fome cega qualquer um e faz do cachorro esse animal servil que é.

Se eu fosse cachorro, comeria também, se assim a providência provesse,

rações balanceadas: legumes ressecados, carne de carneiro morto e aquele pó

salgado com aspecto de fezes secas que têm esses tais produtos com que só

mesmo um cachorro pode matar sua fome.

Não sou cachorro.

Se eu fosse um cachorro, teria apenas uma coleira me prendendo às coisas

de interesse do meu dono. Sonhar não ter escapatória. Usufruir dos meandros

da prisão. Enriquecer à custa da miséria alheia, imaginando que é possível go-

zar sozinho no eterno da felicidade...

Seu eu fosse um cachorro e me conhecesse bem como me conheço, mal

posso imaginar o que faria ou não faria pela simples oportunidade de dormir

sobre uma pilha de jornais. O calor úmido e pegajoso dos papéis cheios de

urina, numa caixa... lembranças antigas... minha mãezinha me cagando com

meus irmãos... esse frio...

Não, cachorro, não... porque, se o fosse, não teria tempo. Não entenderia

os relógios.

Poderia me contentar com o que consigo, como se fosse um pernil bem

temperado numa lata de lixo coberta de vômito.

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(pausa)

(cheira prolongadamente o ar)

Um nada obscuro como um buraco de nariz.

Mas não...

Tudo isso não passa de especulação, a pura especulação mesmo... eu sei

muito bem a diferença entre um homem e um cachorro. Ainda bem que eu

não sou um cachorro. Cachorro, não. É sério. Eu não sou um cachorro. Ah,

não... isso não. Não sou, não é mesmo?

O Ator volta para a casa do cachorro.

Ouve-se uma canção do grupo e período conhecidos como “Bossa Nova”.

FIM

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ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS22

FERNANDO BONASSI

nasceu em São Paulo, em 1962. É roteirista de cinema e TV, dramaturgo, ci-

neasta e escritor de diversas obras, entre elas Um Céu de Estrelas (Siciliano);

Subúrbio, Crimes Conjugais e 100 Histórias Colhidas na Rua (Scritta); O

Amor é Uma Dor Feliz (Moderna); Uma Carta Para Deus e Vida da Gente

(Formato); O Céu e o Fundo do Mar (Geração Editorial); 100 Coisas (An-

gra); Declaração Universal do Moleque Invocado (Cosac & Naify) e São Pau-

lo/Brasil (Dimensão), ambos finalistas do Prêmio Jabuti nos seus anos de

lançamento. Em 2003 é publicada a novela Prova Contrária e em 2005 o ro-

mance O Menino que se Trancou na Geladeira, ambos pela Editora Objeti-

va. É co-roteirista de filmes como Os Matadores (de Beto Brant); Através da

Janela (de Tata Amaral); Castelo Rá Tim Bum (de Cao Hamburguer); Ca-

randiru (de Hector Babenco – Prêmio TAM do Cinema Brasileiro para o

melhor roteiro adaptado de 2003); Garotas do ABC (de Carlos Reichen-

bach), Cazuza (de Sandra Werneck – Prêmio TAM do Cinema Brasileiro

para o melhor roteiro adaptado de 2004). No teatro, destacam-se as mon-

tagens de Preso Entre Ferragens (dirigida por Eliana Fonseca); Apocalipse

1,11 (em colaboração com o Teatro da Vertigem); Três Cigarros e a Última

Lasanha (com Renato Borghi e direção de Débora Dubois); Souvenirs (di-

rigida por Márcio Aurélio); Arena Conta Danton (com a Cia. Livre de Tea-

tro) e a encenação do fragmento Estilhaços de São Paulo, no espetáculo Me-

galopolis (do Theater der Klaenge – Sttutgart, Alemanha). Possui diversos

prêmios como roteirista no Brasil e no exterior, além de obras literárias

adaptadas para o cinema e textos em antologias na França, Estados Unidos

e Alemanha. O romance Subúrbio teve os direitos comprados pelo Deuts-

ches Schauspielhaus de Hamburgo. A adaptação teatral estreou no dia 04

de abril de 1998. Nesse mesmo ano, foi vencedor da bolsa do Kunstlerpro-

gramm do DAAD – Deutscher Akademischer Austauschdienst. Desde 1997

é colunista do jornal Folha de São Paulo.

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PAI

dramaturgo: Izaías Almada

debatedor: Chico de Assis

MONTAGEM

direção: Roberto Lage

elenco: Selma Pelizzon e Vanessa Bruno

cenário e figurino: Daniela Carmona

luz: Roberto Lage

música original: Júlia Grassetti

direção técnica: Rodrigo Guimarães

produção executiva: Nádia De Lion

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24 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

PAIIzaías Almada

Sala de um apartamento de classe média. Decoração simples: um sofá de

dois lugares, uma poltrona, uma mesinha de centro, um abajur de pé, um tele-

fone sem fio, um porta-retratos e outros adereços de uma sala de visitas.

O telefone da sala toca algumas vezes. Mariana, 52, entra apressada e

atende. Veste-se com alguma elegância, usa pouca pintura e tem gestos recata-

dos. Uma mulher que não gosta de chamar a atenção sobre si.

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Page 25: Agora Livre Dramaturgias Miolo

25

MARIANA (enquanto caminha)

Já vai, já vai... (atende e fala ainda de pé) Alô... Bom dia!... É ela mesma...

Olha, se for para pedir algum tipo de auxílio... Não? Então, tá bem... Exato,

Mariana Toledo de Alfieri... Como?... Sou viúva, sou... Meu marido... Isso,

Jorge Alfieri... Há mais de vinte anos... Se eu vejo televisão?... Claro, vejo tele-

visão, leio os jornais, não todos os dias, mas leio... O senhor é de algum insti-

tuto de pesquisa?... Não... Hum, hum... Se eu ouvi falar do...? Sim... Sim...

Também li nos jornais... (senta-se, denotando uma ligeira alteração na voz)

Claro, claro, um cemitério clandestino... Aqui para os lados de Perus?... Des-

culpe, mas quem é que está falando? Homero... da Comissão... de Direitos Hu-

manos... Secretaria de Justiça... Ah, pois não, seu Homero... É verdade, eu te-

nho acompanhado essa questão do cemitério clandestino... Das ossadas des-

cobertas... Certo... Os senhores querem falar comigo?... Pessoalmente? Algum

motivo especial?... Se eu lembro a data do meu casamento?... (desconfiada)

Olha, isso não é trote, é?... Tá bem, tá bem, o senhor compreende... a pergun-

ta me pareceu... Se o senhor pode dizer uma data? Claro, claro... hum, hum...

13 de julho de 1968... É isso mesmo, mas...? Encontraram uma aliança numa

das covas... com o meu nome inscrito e a data de 13 de julho?...

A mão de Mariana que segura o telefone, ligeiramente trêmula, vai caindo

lentamente sobre o colo até as pernas. Ela fica absorta, distante e, sem perceber,

repõe o telefone no gancho. Pega um porta-retratos que está sobre a mesinha da

sala e contempla por instantes a fotografia do marido.

MARIANA (emocionada)

Santo Deus... Não acredito... Isso não pode ser verdade... Assim, sem mais

nem menos, depois de tantos anos, meu querido? Estou tremendo... As mãos

frias... Será você mesmo? E voltar assim, dessa maneira? Não, não, não... Não

foi isso que nós combinamos, lembra-se?... Você ficou de mandar um aviso

antes... Um recado... Deve haver algum engano... (o telefone recomeça a tocar;

Mariana olha para o telefone, em dúvida; repõe o porta-retratos na mesinha; por

fim, atende) Alô... Sim... O senhor me desculpe, sr. Homero... Claro, claro...

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26 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

Estou bem, sim... Estou bem... Eu entendo... Não se preocupe... Foi a emo-

ção... Querem que eu ajude na identificação?... Mas... não são apenas uns os-

sos?... Como é que eu?... Ah, sim, a aliança, é verdade... Tá bem... Então o se-

nhor me deixa o seu telefone e eu ligo marcando o dia... Amanhã?... Já?!!...

Amanhã seria um bom dia? Acho que não estou preparada... Eu sei, eu sei, não

se preocupe, pode ficar descansado... (anotando) Pode dizer... 33...um, um,

dois, zero, zero... Ligo sim, pode ficar tranqüilo... Obrigada... Bom dia.

Mariana desliga o telefone. Está interiormente agitada. Olha para a fotografia.

MARIANA

Ah, Jorge, Jorge! Por essa eu não esperava, juro!... Assim não, meu queri-

do... O coração quase me sai pela boca! (põe a cabeça entre as mãos) Será mes-

mo verdade, meu Deus? E essa aliança... O aviso... Seria esse o aviso? Depois

de todos esses anos? Eu não queria que fosse assim... Eu não queria que fosse

assim... E ainda me pedirem para ir ver os ossos?

Júlia, 23, aparece na sala de shortinho e camiseta. Ágil, às vezes arrogante,

não esconde um jeito de ser rebelde.

JÚLIA

Falando sozinha outra vez, mãe? Qualquer dia ainda vão internar a

senhora...

Mariana procura dissimular a emoção que sente.

MARIANA

Quem é que vai me internar, menina?... Não diga bobagens... Só se for vo-

cê... Isso lá são horas de levantar?... Esqueceu que hoje é o dia do casamento

da Amelinha?

JÚLIA

Eu já tinha me esquecido da merda desse casamento...

MARIANA

Olha essa boca...

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Page 27: Agora Livre Dramaturgias Miolo

27

JÚLIA

Aposto que a Amelinha vai casar virgem...

MARIANA

E daí, qual é o problema?... Você está é com inveja...

JÚLIA (rindo)

Inveja? Eu?!! De me casar com um gerente de banco? Inveja do quê?!...

MARIANA

O que é que tem o moço ser bancário? Uma profissão como outra qual-

quer... E ele nem está assim tão mal de vida quanto você pensa... Que roupa

você vai usar na igreja?...

JÚLIA

Que tal ir com aquele jeans rasgado na bunda, só para encher o saco da

sua família, hem?... Nunca fui com os cornos da Amelinha, nem daquele

pai dela...

MARIANA

Não diga tanta besteira, minha filha...

JÚLIA

Besteira, é? Quando a gente tava na maior merda a sua irmã e o besta do

marido dela nunca nos ajudaram...

MARIANA

Você não esquece isso, hem? Já não vale a pena tocar nesse assunto... E

depois a Amelinha não tem culpa de ter os pais que tem...

JÚLIA

E além de não ajudar, o cafajeste ainda andou te dando umas cantadas...

Pensa que eu não sei?... Sem-vergonha...

MARIANA

A minha irmã também não tem culpa de ter casado com aquele imbecil...

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28 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

JÚLIA

Eu também não tenho culpa de ter um pai que sumiu...

MARIANA (reage com violência)

Não fale assim do seu pai!!...

JÚLIA (espantada)

Eu não estou falando mal do meu pai, dona Mariana, fique calma. Não co-

meça a agredir... Eu só quis dizer que a sua irmã e o maridinho dela não pre-

cisavam arranjar tantas desculpas pra não terem sido solidários com a gente...

(pequena pausa) Eu não entendi essa sua reação agora!... (fica olhando para

Mariana, desconfiada) Acho que a senhora tá mesmo ficando pinel... Fica con-

versando com quem aqui na sala? Com as paredes?

MARIANA (encabulada)

Comigo mesma e... (indica a fotografia) Às vezes aqui com o seu pai...

JÚLIA

Não acredito... É caso pra internação mesmo... Depois de tantos anos...

MARIANA (interrompe)

É isso mesmo... com o seu pai... Qual é o problema? Ele sempre esteve pre-

sente nesta casa...

JÚLIA

Pára com isso, mãe. Já não basta fazer há tanto tempo o número da viúva

incompreendida e agora ainda vai dar uma de espírita?

MARIANA

Veja lá como é que fala... Que história é essa agora de viúva incompreen-

dida?... (Mariana torna a pegar o porta-retratos e mostra a fotografia para a fi-

lha) Você... Você é que nunca teve coragem de encarar a situação...

JÚLIA (num início de irritação)

Qual situação? Qual situação? Não começa, mãe... Nós já discutimos de-

mais sobre isso...

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29

MARIANA (emocionada)

Viúva incompreendida!... Você fala como se soubesse das coisas... Fala

como se vivesse dentro de mim... como se soubesse alguma coisa da vida... Vai

procurar um emprego... Metidinha é o que você é... (brava) Você não tem a

menor idéia do que está falando, menina!...

JÚLIA

Viu? Depois diz que sou eu que implico... Que começo as discussões... Fiz

uma brincadeira e a senhora já vem atropelando...

MARIANA

Brincadeira?!!... Eu conheço essas suas brincadeiras...

Júlia retira o porta-retratos da mão da mãe e torna a colocá-lo sobre a

mesinha.

JÚLIA

Nós temos um trato, dona Mariana, ou a senhora já se esqueceu?

MARIANA

Não, não me esqueci...

JÚLIA

Então não vamos começar mais uma discussão estúpida...

MARIANA

Pois eu vou romper o trato... Agora... Queira você ou não...

JÚLIA

Sabe das conseqüências...

Mariana olha a filha por instantes.

MARIANA

Não acredito que você vá sair de casa por causa disto... Nunca acreditei...

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30 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

JÚLIA

Não tenha tanta certeza assim... E se eu não estiver disposta a falar do meu

pai?

MARIANA

Vamos falar, sim... Agora... Você tem que encarar essa realidade, Júlia...

Não adianta fingir que o problema não existe...

JÚLIA (mais irritada)

Não enche o saco... Isso é problema meu... Eu escolho o dia pra encarar a

realidade, tá?... (faz menção de sair) Eu não devia ter posto os pés nesta sala...

MARIANA

Acabei de receber um telefonema...

JÚLIA

E daí?

MARIANA

Um tal de Sr. Homero da Comissão de Direitos Humanos...

Júlia faz um gesto para a mãe como que a dizer: e eu com isto?.

MARIANA

Acharam um cemitério clandestino na periferia da cidade... Tudo indica

que um dos corpos... uma das ossadas...

JÚLIA (tensa e em voz alta)

Não quero falar disso... Será que eu falo chinês?

MARIANA

Você... já ouviu sobre o cemitério?

JÚLIA (irritada)

Não quero falar desse assunto, porra!

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Page 31: Agora Livre Dramaturgias Miolo

31

MARIANA

É preciso, filha... É o seu pai...

JÚLIA (gritando)

O meu pai o quê?!! O meu pai não morreu!... Pra que falar de cemitério

clandestino?

MARIANA

Encontraram uma aliança... Uma aliança com o meu nome e a data do

nosso casamento...

JÚLIA

Você está rompendo o nosso acordo, eu avisei... Você me deu a sua pa-

lavra... Você jurou sobre a Bíblia... Eu não quero falar do meu pai... E

depois, que besteira é essa de cemitério clandestino?... Ele não morreu, qual

é?... Ele não morreu... (tenta ir em direção à porta e é contida pela mãe)...

Quero ir embora... Dá licença?... Me deixa ir embora... Não é o meu pai...

Não é o meu pai... Ele nos abandonou por uns tempos... Não foi o que a se-

nhora sempre disse?

MARIANA

Ele não faria isso...

JÚLIA

Como é que agora você pode ter essa certeza?

MARIANA

Você era a filha que ele sempre quis ter... Ele não te abandonaria...

JÚLIA (já meio histérica)

Chega!... Você está falando dele, você está falando dele! Você quebrou a

promessa... (chora abraçada à mãe; os sentimentos confusos) Eu queria conhe-

cer o meu pai... Eu queria ter conhecido o meu pai...

Mãe e filha vão se deixando ajoelhar pelo peso dos próprios corpos e da dor

momentânea que sentem.

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32 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

MARIANA

Eu também ainda não havia perdido a esperança, filha... Não havia...

JÚLIA

Depois de todos esses anos, mãe? Eu não acredito... Alguém está querendo

fazer uma maldade com a gente...

MARIANA

Não, filha, não... (põe a mão sobre o peito) Estou sentindo aqui dentro de

mim...

JÚLIA

Essa aliança?... Pode ser uma coincidência...

MARIANA

O homem disse o dia, o mês e o ano... (Mariana levanta-se e vai ajudando

a filha a levantar-se também) Fiquei de telefonar amanhã... Vamos ter que ir

até onde estão os ossos... Eu prometi...

JÚLIA

Para quê?!...

MARIANA

As famílias têm que ajudar na identificação...

JÚLIA (com alguma aflição)

Eu... Mas... Como é que eu posso ajudar nessas coisas?... Eu... Eu não vou

ter coragem...

MARIANA

Precisamos dar-lhe um enterro digno...

JÚLIA

Vamos ter que fazer um enterro?

Júlia olha para Mariana, que confirma com a cabeça. Em seguida, pega o

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Page 33: Agora Livre Dramaturgias Miolo

33

porta-retratos, olha para a fotografia por instantes, beija-a e a recoloca sobre a

mesinha. Tenta se recompor.

JÚLIA

Então é assim a vida?

MARIANA

Assim como, minha querida?

JÚLIA (ainda nervosa)

Assim... Sei lá... Assim!, merda... Um belo dia nos tiram o pai com vida

e vinte anos depois nos devolvem uma aliança e alguns ossos embrulhadi-

nhos em papel para presente e dizem: “desculpem, mas ainda bem que en-

contramos alguns desses desaparecidos... Olha, que bom... Vão poder dar-

lhes sepultura”...

MARIANA

É exatamente isso que vai acontecer, Júlia... Ou você esperava que fosse

de outra maneira? Quem é que nos dias de hoje vai se preocupar com uns

desgraçados que pensaram que poderiam mudar o Brasil?

JÚLIA

Eu... Eu me preocupo. Eu!... É o meu pai, porra, o sangue dele corre aqui

nestas veias... A senhora entende isso, mãe? Hem? Já pensou nisso? Sou a

única pessoa que carrega o sangue dele... Aqui, nestas veias... A única... A

senhora é capaz de entender isso? Alguém é capaz de entender isso? En-

quanto eu viver ele continua vivo em mim... Quem é que o matou? Hem?

Onde estão os filhos da puta que mataram o meu pai? Eu queria encontrar

um deles, um só que fosse... Encarar o desgraçado de frente... Olho no

olho... Fazer um corte na mão e deixar o sangue escorrer... e dizer: olha

aqui, seu filha da puta... Isso é sangue do meu pai, do meu pai, seu corno...

Ele continua vivo e muito vivo...

MARIANA

Júlia... Júlia, minha filha!...

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34 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

JÚLIA

Gostaria muito de saber por que fazem desaparecer um homem só por ele

ter uma maneira diferente de pensar. E os que deram sumiço nele?... Onde é

que andam? Os que mandaram torturar e matar? O que é que eles consegui-

ram com isso? Conseguiram mudar o país? Melhoraram o Brasil, por acaso?

Se eles acham que conseguiram mudar alguma coisa, então o Brasil de trin-

ta anos atrás devia ser bem melhor, porque este de agora é uma merda... Ou

não é?

MARIANA

Júlia!!! Eu não sabia que você se preocupava com essas questões...

JÚLIA

Claro que me preocupo, mãe! A senhora é que nunca se deu uma oportu-

nidade para me conhecer melhor...

MARIANA

Não me dei uma oportunidade?... Quantas vezes eu tentei ter conversas as-

sim com você, minha filha! Abrir o meu coração... Falar do seu pai, das idéias

que ele tinha, das coisas em que ele acreditava...

JÚLIA

Mas sempre com pedras na mão, com resposta pronta pra tudo... Sempre

querendo ter a última palavra... Me agredindo, como acabou de fazer ainda

agora... Me tratando como se eu tivesse cinco anos de idade... Eu já deixei de

ser criança há alguns anos, mãe, e se quer saber... Nunca me acostumei à idéia

de não ter conhecido meu pai... Nunca...

MARIANA

E só agora você vem me dizer isso?

JÚLIA

Se você não estivesse o tempo todo preocupada só com o seu próprio so-

frimento, já teria percebido isso... Quantas vezes eu tive que dissimular e até

mentir por causa disso...

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MARIANA

Mentir?!...

JÚLIA

É, mentir... Quantas vezes eu disse, com o coração apertado, que o meu

pai tinha morrido só para não ser olhada com aquela falsa piedade com que

algumas pessoas olham pra nós nessas situações... No curso primário...

Lembra-se das minhas crises de choro na escola primária?... Eu via os pais

irem buscar as outras crianças e ficava esperando que um dia o meu pai

aparecesse na porta da escola também, me beijasse e abraçasse, me pusesse

no colo, como os outros faziam... Mas ele nunca aparecia. Você dizia que

ele estava vivo... Mas lá, no meio das outras crianças, eu tinha vergonha de

não ter o meu pai... Eu dizia que ele tinha morrido numa viagem... E a cul-

pa era sua...

MARIANA

Minha?!!

JÚLIA

Sua!, sim, senhora... De quem mais seria? Sempre me escondendo a

verdade... Sempre evitando dizer que ele tinha ido embora para sempre,

que tivesse morrido... “Não chore, filhinha, o papai foi fazer uma longa

viagem, mas qualquer hora dessas ele volta pra casa e vai lhe trazer uma

linda boneca...” Uma longa viagem! Parece que essa longa viagem chegou

ao fim...

MARIANA

E o que é que você queria que eu dissesse?... Como é que eu podia dei-

xar de dizer essas coisas, se eu não sabia o que tinha acontecido... Descon-

fiava da morte dele, é verdade, mas não tinha a certeza. Eu não queria acei-

tar ou descobrir que isso podia ter acontecido... Falavam de pessoas que

morriam na tortura...

JÚLIA

É engraçado, mãe... Sabia? Você me enganou, você mentiu durante

anos da minha infância... Mas sabe que com as suas mentiras você acabou

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36 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

impedindo que ele morresse para mim durante todos esses anos?... (com

um sorriso nervoso) Eu até te agradeceria por isso... Mas, e agora?...

MARIANA

Naquela situação eu me agarrei à menor das esperanças, Júlia... Quan-

tas e quantas noites acordei com o ruído da porta do elevador... À espera

de ouvir alguns toques na porta... Quantas vezes esperei por um recado, um

aviso!... As tardes solitárias no Ibirapuera, com a esperança de que ele apa-

recesse de repente... Correndo o risco de ser assaltada ou levando cantadas

de desocupados... Eu desejava do mais fundo do meu coração que o seu pai

estivesse vivo, vivo, entendeu? Eu precisava acreditar que isso era verdade!

Eu me agarrava a essa única e abençoada esperança, Júlia! Tinha que ser as-

sim para eu não enlouquecer... Eu não podia admitir a morte do homem

que eu amava... (com a voz cansada) Carreguei essa esperança comigo to-

dos esses anos, cada hora, cada minuto... Era a minha maneira de torná-lo

vivo... O meu jeito de sobreviver...

JÚLIA

É por isso! Taí... Coisa de quem foi perdendo o juízo... Foi essa sua espe-

rança estúpida de que ele ainda pudesse estar vivo que confundiu muito as

coisas aqui em casa. Isso sempre me fez muita confusão na cabeça...

MARIANA

E que mal pode existir no fato de eu ter desejado todo esse tempo que ele

estivesse vivo? Me responda... Qual o pecado de tentar fazer com que você

acreditasse nisso também?

JÚLIA

O que sempre me revoltou, mãe, foi a sua obsessão...Ver uma pessoa como

a senhora se dividir entre um sofrimento estéril e uma esperança quase doen-

tia, à espera de um milagre, ou de um fantasma que entrasse por aquela por-

ta adentro...

MARIANA (num grande desabafo)

De um jeito ou de outro, ele voltou... ou não voltou? É, ele voltou... E nin-

guém, ninguém, ouviu?, vai fazer o meu coração esquecê-lo...

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Faz-se novamente um instante de silêncio. Mariana e filha se entreolham.

JÚLIA

É verdade que o pai foi o único homem na sua vida?

MARIANA

Sempre fui mulher de um homem só...

JÚLIA

Que pena! Isso já não se usa, ó... Faz tempo...

MARIANA

Que bobagem! Por que é que todo jovem sempre pensa que é moderno

nas suas atitudes?... O amor não é coisa que entre ou saia de moda... Nem se

mede pelo número de parceiros na cama, ouviu?...

JÚLIA

Tá bem, não precisa agredir... Com quantos anos ele estaria agora?

MARIANA

O Jorge era oito anos mais velho que eu, portanto, faria sessenta anos...

JÚLIA

Juro, mãe, não sei se vou ter coragem... Olhar alguns ossos e pensar que é

tudo o que restou do meu pai...

MARIANA

Vai, Júlia, você vai ter coragem sim. Eu preciso de toda a coragem que vo-

cê puder juntar... Eu não quero ir sozinha...

JÚLIA

O que é que eu vou dizer para ele? Eu nem o conheci...

MARIANA

Oh, minha querida, você não tem que dizer nada...

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38 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

JÚLIA

Será que ele vai me achar bonita?

MARIANA

Você está falando sério?

JÚLIA

Vou vestir a minha melhor roupa...

MARIANA

O jeans rasgado na bunda? (as duas riem)

JÚLIA

Como é que ele era?... Pode falar... Agora eu quero que você fale...

Júlia acaricia os cabelos de Mariana e faz com que ela se sente no sofá.

JÚLIA

Em que é que o papai acreditava?

MARIANA

Ele... Bom, ele acreditava num mundo mais justo, na igualdade entre os

homens...

JÚLIA

Um sonhador, um Dom Quixote?

MARIANA

Talvez, mas tinha os pés no chão. Enfrentava as situações mais difíceis com

ironia e bom humor... Era meio ranzinza, é verdade... Exigente... A disciplina

tinha que estar acima de tudo... Meio machista, como quase todos os comu-

nistas que eu conheci...

JÚLIA

Sonhador, chato e machista...

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Page 39: Agora Livre Dramaturgias Miolo

39

MARIANA

Era duro quando precisava... Lá isso era... Mas tratava com muito carinho

as pessoas de quem gostava...

JÚLIA

Você acha que ele vai gostar de mim?

MARIANA

Enquanto viveu, deu provas disso o tempo inteiro... Sofria com a vida

clandestina que era obrigado a levar... A última vez que esteve com você ficou

horas brincando, te paparicando... Era mais criança do que você...

JÚLIA

Do que é que ele gostava?

MARIANA

Do que é que ele gostava?... Hum, depende... De uma boa macarronada

com frutos do mar... De uma caipirinha de vez em quando... Filmes do Felli-

ni... Sei lá... De rock’n’roll, dá para acreditar? Rock’n’roll! Daquele rock pesa-

do dos anos 50... Gostava de ópera também...

JÚLIA

Ópera? Música mais chata...

MARIANA

Olha quem diz... Quantas e quantas vezes você dormiu embalada por

uma, minha filha!!... (em tom de lembrança) A sua preferida era do Pucci-

ni... Lembro-me perfeitamente... Ele andava com você pela casa... E ia can-

tando bem baixinho para não acordá-la... (canta) “Nessun dorma, nessun

dorma...”

Nesse momento, deve entrar a ária na interpretação de Andréa Boccelli em

bg, subindo à medida que for chegando o final da peça.

JÚLIA

Então é por isso que eu não consigo gostar de ópera...

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40 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

MARIANA

Sabe qual era um dos sonhos dele?

JÚLIA

Qual?

MARIANA

Ele gostaria que nós três conhecêssemos a Itália, vivia falando em ir

visitar a cidadezinha onde nasceu o seu avô, perto de Nápoles... Já não

me lembro o nome... Queria que fôssemos lá botar umas flores no túmu-

lo da avó e do avô, que tinha o seu mesmo nome... Júlia... Júlia e Gior-

gio Alfieri!

JÚLIA

Nós ainda podemos fazer isso por ele... Não podemos?

MARIANA

Quem sabe? Ele também queria conhecer Cuba... Nem uma coisa, nem

outra, coitado... Nunca saiu do Brasil...

JÚLIA

E se nós o enterrássemos lá?

MARIANA

Não sei se permitiriam uma coisa dessas... Mas é uma idéia... (enxuga os

olhos) Vamos, vá se aprontar, senão chegamos atrasadas ao religioso...

JÚLIA

Fale um pouco mais... Fale mais um pouco do meu pai... Ele tinha os

olhos claros como os meus?

MARIANA (sorri)

Os olhos dele eram mais bonitos...

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A música vai cobrindo as duas ou três últimas falas das duas mulheres

enquanto a luz cai sobre elas. À esquerda da cena, uma inscrição aparece len-

tamente numa bandeira que se desenrola: “aos que lutaram por um Brasil

mais digno, a nossa gratidão”.

Ouve-se ainda um pouco de Puccini. A luz volta sobre as atrizes para os agra-

decimentos.

FIM

Izaías Almada

julho/2001

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42 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

IZAÍAS ALMADA

faz o curso de interpretação teatral do Teatro Universitário de Minas Gerais

(1961/1962); estuda por dois anos na Escola de Arte Dramática de São Paulo

(1963/1964); atua na peça Arena Conta Zumbi, de A. Boal e G. Guarnieri

(1965); atua na peça O Inspetor Geral, de Gogol, encenação de A. Boal (1966);

atua em Cândido, de Voltaire, no Studio São Pedro, encenação de Miriam Mu-

niz (1971); com Paulo Autran, participa das montagens de Cosi e Si Vi Pari, de

Pirandello, direção de Flávio Rangel e Les Femmes Savantes, de Molière, dire-

ção de Silney Siqueira e atua, ainda, no musical O Homem de La Mancha, de

Dale Wassermann, com encenação de Flávio Rangel (1971/1972); participa da

montagem de Cemitério de Automóveis de Arrabal, em Lisboa, com encenação

de Victor Garcia (1973); trabalha como criador e realizador de filmes publici-

tários (1975/1990); publica os romances A Metade Arrancada de Mim (1989 –

Prêmio APCA de Revelação Literária) e O Medo por Trás das Janelas (1991);

publica o romance Florão da América (1994); ganha o Prêmio Vladimir Her-

zog de Jornalismo com a peça Uma Questão de Imagem (1995), encenada em

2001; lança o livro de contos Memórias Emotivas (1996); é co-autor da peça

Lembrar É Resistir, encenada no antigo DEOPS de São Paulo (1999/2000); es-

creve a peça Pai, apresentada no projeto Ágora Livre Dramaturgias do Ágora

Teatro, em São Paulo e lança o livro de contos eróticos O Vidente da Rua 46

(2001); publica o livro Teatro de Arena: Uma Estética de Resistência, auto-bio-

grafia de memórias sobre o Teatro de Arena de São Paulo (2004).

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SÓ MAIS UM INSTANTE

dramaturga: Marta Góes

debatedor: Fauzi Arap

MONTAGEM

direção: Aline Meyer e Juca Rodrigues

elenco: Carlos Baldim, Thais Aguiar e

Vany Alves

cenário e figurino: Leopoldo Pacheco

trilha sonora: Tunica Teixeira

luz: Juca Rodrigues e

Rodrigo Guimarães

produção executiva: Aline Meyer

Só Mais Um Instante é uma versão do texto Quem Conta!, escrito em agosto de 2001

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44 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

SÓ MAIS UM INSTANTEMarta Góes

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CENA 1

o presente

Atrás de uma mesa tosca, Lena arranja cuidadosamente flores num vaso.

Escolhe no maço sobre a mesa cada flor, corta calculadamente as hastes com

tesoura de jardineiro e vai espetando no vaso. Cantarola.

Cao entra correndo pelo lado oposto e perde o impulso subitamente, ao vê-

la. Hesita, recua, faz meia volta e sai pelo mesmo lugar por onde entrou.

CENA 2

10 anos antes

Isa entra, com os sapatos na mão, fecha cuidadosamente a porta e cruza a

sala na ponta dos pés. Pára ao ver Cao.

ISA

Ah, Cao, ainda bem que você está acordado. Eu precisava falar com

alguém, eu não ia conseguir dormir sem contar pra alguém. Cao, você

nem sabe com quem eu estava até agora, você nem sabe quem veio me

trazer em casa. Eu estou namorando o Alexandre, Cao. O Alexandre me

ama, está apaixonado por mim. Escutou o que eu falei? Cao, você está

passando mal?

CAO

Péssimo, Isa, péssimo. A sala está rondando, a cadeira está rodando...

Manda parar, Isa, por favor, manda parar.

ISA

Você está bêbado, Cao. O que foi que você tomou?

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46 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

CAO

Tudo, Isa, tudo. A gente foi no Samambar, eu tomei cerveja. Depois a

gente foi na festa daquela garota, tinha champagne. Aí, depois, a gente

começou a tomar vodka. Isa, acho que eu não vou agüentar. Acho que eu

vou morrer.

ISA

Você vomitou?

CAO

Vomitei, na festa.

ISA

Ai, que horror! Alguém viu?

CAO

Todo mundo viu. Na frente de todo mundo. A mãe da Ângela viu. Ai,

pelo amor de deus, Isa: eu quero esquecer...

ISA

Você vai ter que enfiar o dedo na garganta e vomitar mais, Cao, pra is-

so passar mais depressa. Eu tenho prática, pode confiar. Senão, pode demo-

rar horas e horas. Senão, a mamãe vai acordar e vai te encontrar aqui.

CAO

Não, pelo amor de deus! Dedo na garganta, não. É muito ruim, Isa, é

muito ruim.

ISA

É ruim, mas passa logo, Cao. Enfia o dedo na garganta e acaba com is-

so de uma vez, vai. Aí, você vai dormir em paz. Amanhã é domingo, você

pode dormir até tarde.

CAO

A mãe da Ângela vai ligar prá mamãe. Ela vai contar tudo.

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ISA

Ah, vai, ô, se vai. O único jeito é contar você mesmo. Conta tudo. Não

é nenhum crime. Assim, se a mãe da Ângela ligar, a mamãe já sabe tudo.

CAO

Você acha que eu posso contar tudo prá mamãe?

ISA

Claro que pode. A mamãe não é nenhuma idiota.

CAO

Mas não foi só cerveja e champagne e vodka.

ISA

Não foi só cerveja, champagne e vodka?

CAO

Não. A gente estava queimando fumo no banheiro.

ISA

Queimando fumo no banheiro? E você ainda vomitou?

CAO

Eu vomitei. Aí, ela foi olhar no banheiro e descobriu.

ISA

Puta que o pariu! Agora só falta você ser viado e traficante de drogas.

CAO

Não, Isa, juro que não.

ISA

Você tem que contar prá mamãe antes que a mãe da Ângela conte.

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48 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

CENA 3

manhã seguinte; cozinha

Isa entra a tempo de ouvir Cao dizer a Lena:

CAO

Ela falou: você sabia que eu conheci você desse tamanhinho, mas você

não sabia é que eu conheci sua mãe desse tamanhinho, também. Nós duas

fomos colegas de classe.

LENA

Ela adora contar isso.

CAO

Toda vez que ela me vê, ela conta. Aí, eu tirei ela pra dançar, ela adorou.

LENA

Você tirou a Olga pra dançar o quê?

CAO

Roque, mãe. Eu não sei dançar outra coisa.

LENA

E ela dançou?

CAO

Claro, mãe. Por quê? É tão esquisito assim? (imita a amiga da mãe dan-

çando, antiquada; canta: pata pata?; Lena morre de rir)

LENA

Pára com isso, Cao, vai entornar tudo. Foi bom ontem, Isa?

ISA

Foi ótimo, mãe. (Lena liga a batedeira e vira de costas para Cao) Que his-

tória é essa que você está contando pra mamãe, Cao?

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CAO

O resto eu vou falar depois, depois.

ISA

Eu acho melhor você falar de uma vez, antes que...

CAO

Não enche, Isa. Eu sei a hora.

LENA

(desligando a batedeira) A Olga era chiquérrima. Desde o jardim de in-

fância. Nós morríamos de inveja dela, porque ela tinha uma lancheira toda

de estrelas e porque ela levava guaraná de lanche. Na adolescência, a gente

ia muito pra fazenda dela. Depois, ficamos anos sem nos ver. Mas, quando

seu pai morreu, ela me mandou um cartãozinho muito carinhoso. Ela é

meio chata, às vezes, mas é uma pessoa boa.

Liga a batedeira, vira de costas, continua falando e os dois saem.

CENA 4

na varanda

ISA

Volta lá já e fala com ela. Conta tudo pra ela. Pelo menos, ela já não vai ter

que engolir tudo o que a Olga vai meter nos ouvidos dela. Porque tudo o que

a Olga deve estar querendo, a essa altura, é que alguém -que não seja a filha

dela – seja o culpado por essa encrenca toda. Volta lá já e fala com ela!

CAO

Não posso, Isa. Não, eu não agüento.

ISA

Sabendo por você, a mamãe vai ficar em pânico, mas pelo menos não

vai ter que fazer aquele número da mãe em pânico para impressionar a

outra, entende? Ela vai se atracar com você, vai perguntar “onde foi que eu

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50 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

errei?” Vai fazer tudo. Mas você vai explicar que você não é um viciado em

drogas, eu vou dizer que eu também experimentei, que não vai acontecer

mais nada. E não vai acontecer mais nada mesmo, está entendendo?

CAO

(emburrado) Tô entendendo, tô entendendo.

ISA

Então vai falar com ela agora.

Som de telefone. Duas vezes. Lena atendeu lá dentro.

ISA

Olhaí. Tá vendo? Não falei? Você é um idiota, Cao, eu estou com ódio

de você. Ódio.

CAO

Chega, Isa! Você quer que eu faça o quê? Que eu me suicide? Já fiz a caga-

da. Está feita. Eu já estou me sentindo o cara mais delinqüente do mundo, o ca-

ra mais cagão do mundo, se te consola. Mas o que que eu posso fazer, porra?

ISA

Podia ter falado.

CAO

Não podia. Eu não sei, eu não consigo.

LENA

(off) Antonio Carlos! Faz favor de vir aqui, Antonio Carlos!

Lena aparece na porta. Cao entra, a porta se fecha. A luz cai.

CENA 5

LENA

(para Isa) Ele fez tudo, exatamente tudo o que me deixa desesperada.

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Tive que ouvir da Olga aquele velho show de como é que se educam os fi-

lhos, que ela adora fazer pra cima de mim. "Onde é que eles estão estudan-

do, Leninha? No Colégio Equipe? Mas não é um caos? Ouvi dizer que não

dão o menor limite... A gente prefere uma linha mais tradicional" "A Isa

volta de táxi? Ah, não, lá em casa, eu e o Zeca fazemos questão de pegar na

festa. Pode ser a hora que for, mas a gente vai buscar". Aí, eu fico me achan-

do um lixo, um horror de mãe. Ela faz o maior show pra cima de mim, me

dá conselhos, num tom meio piedoso, detestável, porque ela acha que é as-

sim que se fala com viúva. E já estou até vendo a cena do Nelson, que é "bo-

níssimo" pra nós e só quer ouvir boas notícias: primeiros lugares, notas

sensacionais. Se ele souber disso, eu mato o Cao.

CENA 6

CAO

Falar com a mamãe é a coisa que eu acho mais difícil no mundo, Isa. Vo-

cê não entende?

ISA

Não. Não entendo. O que é que ela pode fazer? Te bater? Te matar?

CAO

Não, Isa. Ela pode ficar triste. É isso que ela pode fazer. E isso é a coisa

que eu tenho mais medo no mundo: ver a minha mãe triste.

ISA

Mas, Cao, todas as mães ficam tristes alguma hora. Não existe um ser

humano que fique alegre 24 horas por dia. Como é que...?

CAO

Mas as outras mães, Isa, elas têm tristezas pequenas, entende? Elas ficam

tristes porque a torradeira quebrou, porque o cara não veio consertar a pia,

porque a festa foi ruim, e a mamãe...

ISA

E a mamãe o quê?

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52 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

CAO

A mamãe, ela lembra do dia em que o papai morreu, Isa.

ISA

(doce) Ela lembra, é claro que ela lembra. Que nem você, que nem eu,

Cao. Mas não é mais igual ao dia em que ele morreu, Cao. Aquilo já pas-

sou, ela já criou um calo, entende? Ela tocou a vida dela, a gente, a nossa. A

gente tem uma vida. Pode não ser a perfeição, mas cada família tem lá os

seus bodes, mesmo quem tem pai.

CAO

Eu fico desarvorado, se a mamãe não está bem. Eu passei a vida checando

se a mamãe estava bem. A voz da mamãe, a cara da mamãe de manhã. Quan-

do ela sorri e eu vejo que está tudo normal, ah!, que alívio. Aí, eu relaxo e co-

meço o meu dia. Se a voz está estranha, a cara ruim, eu entro em pânico.

ISA

Mas, Cao, é impossível fazer isso que você queria: ficar permanente-

mente feliz...

CAO

Eu sei que é loucura, Isa. Claro que é loucura. Ninguém pode ficar feliz

o tempo inteiro. E até, depois que ela me explica: "ah, foi aquele seu Heral-

do, do Itaú, que devolveu um cheque meu", ou então: "você acredita que

aquela maldita ignição quebrou outra vez?" Depois que ela me explica on-

de que tá pegando, eu fico aliviado. Mas aquele instante em que eu olho

para a mamãe é crucial. Pra mim, a hora que eu olho para ela pode ser, ou-

tra vez, a hora em que ela contou pra gente que o papai tinha morrido. A

gente chegando da escola, a casa cheia, aquelas pessoas olhando esquisito

prá gente, a gente procurando a mamãe, tentando entender, a mamãe de

costas, naquela janela que dá pro quintal dos fundos. E de repente ela se vi-

rou para para nós e o rosto dela estava daquele jeito, daquele jeito que eu

tenho pavor de ver outra vez. Não era mais a mãe que eu tinha quando eu

saí de manhã prá escola. Ela abaixou pra nos abraçar, ela apertou forte, eu

não entendia o que ela dizia. Papai não vai mais voltar. Mas, pra mim, a

única coisa que eu pensava era: será que mamãe vai ficar assim prá sempre?

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Será que ela nunca mais vai ser daquele outro jeito, do jeito que ela era até

hoje de manhã?

CENA 7

Lena pendura roupas no varal. Acha, secando, um sutiã de renda preta.

Examina-o demoradamente. Isa entra, procurando alguma coisa entre as

roupas penduradas. Acha o sutiã de renda na mão de Lena. Fica meio des-

concertada.

LENA

(largando o sutiã) Vai sair?

ISA

Vou.

LENA

Vai na casa da Cam?

ISA

Talvez. Não sei ainda.

LENA

Tem festa ou...

ISA

Não. Vou sair com uns amigos.

LENA

Seus amigos da escola?

ISA

Não, uns amigos novos.

LENA

Ah. O que é que eles fazem?

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54 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

ISA

Eles fazem artes plásticas.

LENA

Ah, que legal! Na Escola de Belas Artes?

ISA

Não, não. Eles já se formaram.

LENA

Ah! São artistas!

ISA

É. Já são artistas.

LENA

Alguém conhecido?

ISA

Ainda não.

LENA

Traz eles aqui um dia, pra eu conhecer.

ISA

Eu estava pensando mesmo em trazer. Eu não sabia se... Eu pensei que...

LENA

Você pensou que...?

ISA

Tem um deles, em especial, que eu queria que você conhecesse, mãe,

porque a gente está namorando.

LENA

Ah, é? Você está contente?

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ISA

Muito, mãe. Eu estou muito apaixonada.

LENA

Filha...

ISA

Eu não sei se você vai achar muito boa idéia, sabe, mãe?

LENA

Eu não vou achar boa idéia?

ISA

Ele é separado, mãe.

LENA

Ele é separado?

ISA

É.

LENA

Quantos anos ele tem, filha?

ISA

Ele tem 32, mãe.

LENA

32, filhinha!? Mas você só tem 18!

ISA

E ele tem um filho.

LENA

(sentando) Meu deus, Maria Luisa, eu nem acredito no que eu estou ou-

vindo. Você está namorando o pai de um filho?

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56 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

ISA

Estou, mãe.

LENA

Mas não é nada assim muito sério, é?

ISA

Bom, mãe, eu estou apaixonada por ele. Isso é sério, não?

LENA

Um homem separado, Isa, com filho? Não podia ser nada mais simples,

não?

ISA

Mãe, não é uma falha de caráter ter um filho, é?

LENA

Não começa, Maria Luísa, não começa a me tratar desse jeito. Como se eu

fosse uma carola, uma idiota. Eu estou surpresa, tenho direito de ficar. Eu fico

preocupada, eu fico confusa. Você é uma garota, devia namorar os garotos da

sua idade e não um senhor de 32 anos. Não é legal, não é saudável, entende? Eu

não vou aceitar esse namoro. Você está proibida de namorar esse sujeito.

Cao sai de repente de trás de um varal, assoviando, para disfarçar que ou-

viu a conversa.

ISA

(irritada) O que é, Cao, está procurando alguma coisa?

CAO

Nossa! Que que deu na boneca? Tá nervosa! (sai)

Silêncio pesado entre as duas.

ISA

Saudável, pra você, é o quê, mãe? É namorar uns pirralhos, dar uns

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amassos nas festinhas e telefonar pras amigas no dia seguinte, pra contar?

Eu já passei dessa idade, você não notou?

LENA

Eu notei, sim. Eu não sou tão idiota quanto você pensa. Eu sei que você

dorme com seus namorados, se é isso que você quer me dizer.

ISA

Não, não era isso que eu queria dizer.

LENA

Bom, de todo modo, você deu um jeito de eu saber, esquecendo suas

pílulas no meu banheiro, jogando teste de gravidez no lixo do seu banheiro.

ISA

Você preferia não saber, né, mãe? Não saber e não contar. Que nem você

faz.

LENA

Posso saber de quê que você está falando?

ISA

Estou falando que você também sai, de vez em quando, e chega de

madrugada, mas é segredo. Todo mundo finge que não viu.

LENA

Eu não tenho que dar satisfação da minha vida pra uma pirralha desres-

peitosa. Você às vezes é ruim comigo, Isa. Me espanta ver a raiva de mim

que de vez em quando você bota pra fora.

ISA

É porque você é tão fechada e dá tão pouca brecha pra falar de mim ou

pra falar de você, que eu só boto pra fora na hora que explode.

LENA

Eu tenho as minhas dificuldades, como todo mundo, Maria Luísa. Só

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58 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

que eu não fico falando nelas porque eu acho que a vida de vocês já foi bem

difícil, pra ainda ter que agüentar mãe lamurienta. (sai)

ISA

(com pena) Mãe...

CENA 8

casa

Cao entra, Lena está esperando ansiosamente.

LENA

Como foi, filho?

CAO

Oitentinha, mãe.

LENA

Como assim, oitentinha?

CAO

Pelo gabarito do cursinho, eu acertei oitenta por cento das questões.

LENA

E quanto precisa pra entrar?

CAO

Ah, vai depender da nota de corte. Se for igual ao ano passado, com

setenta, eu já estou dentro.

LENA

Mas então foi ótimo! Que bom, filho! Parabéns.

ISA

(entrando) Foi boa a prova?

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LENA

Ele acertou oitenta por cento, Isa!

ISA

Nossa, Cao! Oitenta por cento no vestibular da GV? Você é um caso

raríssimo.

LENA

Eu estou achando que logo logo nós vamos ter um calouro em casa...

CAO

Me aguardem.

Lena sai.

ISA

Cao, pára. Pára com isso. Você sabe que foi uma merda, que a prova foi

dificílima, que você não acertou quase nada.

CAO

Imagina, Isa. Tá Louca? Quem te falou? Como é que você sabe?

ISA

Eu encontrei aqueles seus dois amigos cdf no metrô. Eles estavam sain-

do da prova, conferindo gabarito. Eles estavam arrasados, Cao, e eles são

dois maníacos. Se matam de estudar desde que aprenderam a andar. Pára

de criar essa expectativa. Vai ficar mais difícil ainda, depois.

CAO

Isa, eu sou uma merda, mesmo.

ISA

Bom, Cao, qualquer pessoa que precise ser o maior espetáculo da terra

24 horas por dia acaba se sentindo uma merda, mesmo.

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CAO

Nossa, Isa, eu vou ter que contar prá mamãe que eu vou dançar. É me-

lhor contar antes, não é? Preparar terreno.

ISA

E por que é que você não aproveita e conta pra você mesmo que você

odeia administração de empresas, que não tem nada a ver com você?

CAO

Como assim, nada a ver comigo?

ISA

Tem a ver, Cao? Estou dizendo algum absurdo?

CAO

Não sei por que eu não poderia estudar administração.

ISA

Você não acha estranho, Cao? Você gosta é de trabalhar com imagem,

você gosta de cinema. Vive enfiado em mostra de cinema, em vez de ir ao

cursinho.

CAO

Eu...!?

ISA

Cao, pelo amor de deus: comigo você não tem que fazer o bonzinho, né?

Por que é que você não assume o que você gosta?

CAO

Cinema é uma aventura, Lena. Eu preciso de uma carreira segura.

ISA

Quer parar de ser babaca, Cao? Você parece que tem 80 anos. Me recu-

so a continuar essa conversa.

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CENA 9

Lena está na sala. Cao entra.

CAO

Mãe?

LENA

Hmm?

CAO

Mãe, eu preciso te falar uma coisa.

LENA

Hmm.

CAO

Mãe, eu acho que...

LENA

Acha que...?

CAO

Eu acho que eu entrei.

LENA

Você acha que você entrou na faculdade? É isso que você está me contando?

CAO

É. Não. Calma, mãe, deixa eu explicar.

LENA

Explica de uma vez, eu estou ficando nervosa. Entrou ou não entrou?

CAO

Entrei, mãe.

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62 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

LENA

Entrou, meu filho! Você vai estudar na GV, igual a seu pai, igual a seus tios!

CAO

Não, mãe, não. Não foi na GV.

LENA

Ah, não? Foi onde, então?

CAO

Foi num curso técnico de contabilidade na Fundação Armando Álvares

Penteado.

CENA 10

ISA

Mãe, eu tenho uma coisa importante pra falar com você. Pra falar com vocês

dois.

LENA

Ai, meu deus, coisa importante da Isa é um perigo. Fala logo.

CAO

Que coisa?

ISA

Mãe, Cao, sabe... o Alê... Eu e o Alê, a gente vai casar.

LENA

Casar?

ISA

Mais ou menos. Não casar no papel, dar festa, essas coisas. Mas a gente está

pensando em morar juntos.

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LENA

Mas, Isa, vocês se conheceram ontem! Não pode ir decidindo as coisas

assim, tão depressa.

ISA

Ontem, mãe? Já faz seis meses!

LENA

Seis meses não é nada. (um fio de voz) Onde, minha filha?

ISA

No começo, até a gente arranjar uma grana pra procurar uma casa legal, no

apartamento dele, mesmo.

LENA

Você vai se mudar prá casa do Alê, filha?

ISA

Eu vou, mãe.

LENA

E você está pensando em se mudar quando?

ISA

Bom, mãe, na verdade... amanhã.

LENA

Ai, Isa, pelo amor de deus, Isa, não faz assim desse jeito, Isa. Eu preciso de

um tempo pra me acostumar com a idéia, eu fico tão insegura... O que é que o

seu pai ia dizer de uma coisa dessas, Isa? A filhinha linda dele morando num

apartamento infecto da praça da República, com um artista plástico desco-

nhecido.

ISA

Falando assim, parece uma tragédia, mesmo.

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64 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

LENA

Mas, filha, não é verdade o que eu estou dizendo?

ISA

Pra mim, mãe, a história é assim: a filhinha linda dele fez 19 anos e foi morar

com o cara por quem ela se apaixonou. O cara também está apaixonado e quer

loucamente dormir e acordar com ela todos os dias. Não é uma coisa boa da

vida, isso?

CENA 11

a mudança de Isa; um caos de roupas, caixas abertas, malas

Isa joga fora um monte de pastas de papel.

ISA

Quer ficar com esses discos de vinil? Não vou poder levar e os armários

daqui já estão entulhados de coisas que não vão caber lá.

CAO

(pegando a pilha) Deixa eu olhar.

ISA

Não. A condição é levar o pacote fechado. Você depois olha um por um e

joga tudo fora, se quiser. Agora, tem que tirar daqui.

CAO

Fechado. (sai com a pilha de discos)

Isa arrasta umas caixas, vê alguma coisa que lhe chama a atenção. Tira uma

fita de vídeo e fica olhando.

CAO

(entrando) E isso, é o quê?

ISA

Aniversário de 7 anos.

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CAO

(avançando e tomando da mão dela) Deixa eu ver? Deixa eu ver?

ISA

Não, Cao, se eu for parar para olhar álbum de foto, eu não vou acabar isso

nunca e eu quero acabar antes de a mamãe chegar. Evita ela se emocionar.

CAO

Evita você ver ela se emocionar.

ISA

Pode ser. O Alê vai passar às cinco e meia, com uma kombi que o tio dele

emprestou. Em duas viagens, dá pra levar tudo.

CAO

Você, espertalhona, se mudou primeiro. Agora eu fiquei por último. Vou ser

o último a sair e vou ter que deixar a mamãe sozinha.

ISA

Até parece que você está pronto para sair de casa. Ainda vai demorar anos,

Cao. Pra que se preocupar desde já?

CAO

Já estou até vendo a cena que a mamãe vai fazer na minha saída. Conheço a

mamãe. (abre um álbum de fotos e fica vendo, enquanto Isa arruma) Foi a sua

festa de Branca de Neve. Olha a Belzinha de fada! Olha o Miguel de He Man!

ISA

Cao, pelo amor de deus, vai ver foto agora!? Em vez de me ajudar, você fica

vendo foto.

CAO

Só um pouquinho, só um pouquinho. Olha a dona Geni, quando ela se

mudou pra casa do lado. E o Giancarlo, da vila, Isa. Olha a mamãe com o bolo.

A mamãe acendendo as velas. Olha: o papai.

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66 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

Isa larga as caixas e senta ao lado de Cao.

ISA

Olha o papai, Cao, que contente que ele estava.

CAO

Olha a mamãe...

ISA

Que linda, ela...

CAO

Que novinhos. Que idade eles tinham nesse dia?

ISA

No dia em que eu fiz sete anos? A mamãe tinha vinte e oito. O papai tinha 31.

CAO

Eu tinha cinco.

ISA

E nós só íamos viver todos juntos mais um ano. Mas a gente nem sabia.

CAO

Ainda bem.

Luz cai. Fica só a luz do vídeo nos rostos deles e o som da festa de aniversário.

Lena entra. Cao quer fechar o álbum. Isa o impede.

ISA

Vem ver, mãe, a minha festa de 7 anos.

Os três parados diante do vídeo e o som distante da festa.

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Page 67: Agora Livre Dramaturgias Miolo

67

CENA 12

memória de Isa e Cao

O álbum agora é um livrinho.

LENA

Olha que livrinho lindinho que a mamãe arranjou pra contar pra vocês.

ISA

(meio que arrancando das mãos da mãe) Deixa eu ver! Deixa.. Ah, já sei. É

aquela história da florzinha, da abelhinha, do golfinho e do homem gorducho

que põe o pinto na barriga da mulher dele!

LENA

(desconcertada) Ah, você já conhece o livrinho?

ISA

Ih, mãe, faz tempo. Tem na casa de todas as minhas amigas.

LENA

(aliviadíssima) Ah, então você já sabe a história!

CAO

Mas eu não sei. Homem gorducho que põe o pinto na barriga da mulher

dele?

LENA

Ah, você não leu, Cao?

CAO

Não, não li. Quero ver, quero ver!

LENA

Pois então, Cao. Olha só que bonita que a natureza é. Quando uma florzi-

nha está madura, ela...

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Page 68: Agora Livre Dramaturgias Miolo

68 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

ISA

Mais pra frente, mãe. Mais pra frente!

LENA

Calma, Isa! Espera. Você já sabe, mas seu irmão, não. Deixa eu contar com

calma.

CAO

(ávido) Então conta com calma.

LENA

Pois então, a flor tem uma sementinha que as abelhinhas...

CAO

Não, mãe. Eu quero ver o homem gorducho que põe o pinto na...

LENA

(histérica) Já vai, já vai, espera um pouquinho!

Cao avança e vira as páginas.

CAO

Olha, tá aqui o homem, mãe. Por que ele está sem calça?

LENA

O homem é diferente da florzinha e da abelhinha.

ISA

Ah, é!? Não acredito. Conta, mãe!

LENA

O homem e a mulher, quando eles querem fazer um bebezinho, eles têm

uma sementinha também. Ele, dentro dessas bolinhas aqui, a mulher, dentro da

barriga. Então, quando eles querem ter um bebezinho, a sementinha dele tem

que encontrar a sementinha dela.

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Page 69: Agora Livre Dramaturgias Miolo

69

CAO

Mãe, isso tá parecendo mais uma plantação.

LENA

Não é. Você vai ver. A mulher tem um buraquinho, olha só no desenho o

buraquinho.

CAO

Mãe! Cê tá por fora, hein? Esse buraquinho aí é a boceta!

LENA

Cao! Precisa falar assim, desse jeito tão feio? O nome desse buraquinho é

vagina. E o homem põe o pênis.

CAO

Pênis, mãe?! (ele e Isa seguram o riso)

LENA

Ok. Pode chamar de pinto, se você quiser. O homem põe o pinto...

CAO

No umbigo dela!

LENA

Não, meu filho. No umbigo, não. Na vagina.

CAO

Ih, mãe, isso tá ficando com uma cara de trepada...

LENA

Cao! (fecha o livro) Ah, desisto. É impossível falar com essas crianças. Eu

tento, mas é impossível!

CENA 13

quarto de Cao; noite

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70 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

ISA

O Alê vai morar em Barcelona, Cao. Ele arrumou uma bolsa lá, pra passar

um ano estudando, e eu vou com ele.

CAO

Você vai morar em Barcelona, Isa? Mas como é que você vai viver em

Barcelona? Você não tem dinheiro.

ISA

O Alê tem um pouco, pra começar. Depois, eu vou me descolar por lá.

CAO

Mas você não vai falar com a mamãe hoje, vai?

ISA

Não sei, ainda não decidi. Estou pensando qual é o melhor momento. Talvez

seja melhor esperar um pouco mais, pra quando eu souber mais detalhes, pra

ela ficar mais tranqüila.

CAO

Ela vai achar um absurdo você largar a faculdade.

ISA

Já sei, já sei, já estou até vendo ela falar.

CAO

Mas você acha mesmo uma boa pra você? Largar tudo, só pra ir atrás do

Alê?

ISA

Como assim, só pra ir atrás do Alê? Eu amo o Alê. A vida sem ele não tem a

menor graça, pra mim.

CAO

Bom, só me avisa o dia que você for falar, por que eu não quero estarem casa.

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71

ISA

Não quer estar em casa por quê? O que é que você tem com isso?

CAO

Não gosto dessas situações. Fico nervoso.

ISA

Você, nervoso? Imagina eu.

CAO

Isa, que dia você vai?

ISA

(hesita) Semana que vem.

CAO

Isa! Você é louca? (Isa vai saindo) Você vai matar a mamãe do coração!

Odeio a Isa.

CENA 14

sala de Lena

Os dois lêem em silêncio. Cao espreita Lena.

LENA

Sabe, Cao? Quando a Isa saiu, eu fiz um drama, achei que era uma tragédia,

mas outro dia eu percebi que eu estou suportando muito bem. E até, sem morar

junto, estou me entendendo muito melhor com a Isa.

CAO

Olha só: tá vendo? A gente acostuma com tudo.

LENA

Estava pensando até em alugar uma casa na praia, esse verão, em vez de ir

viajar com a Elza. Custa quase a mesma coisa e a gente ia poder passar um

tempo gostoso juntos. O que você acha?

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72 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

CAO

Casa na praia? Onde?

LENA

No Sahy. Tem uma pra alugar, do lado da casa do Nelson.

CAO

Ah, é?

LENA

Só que tem que tem que dar a resposta amanhã, por que tem mais alguém

interessado. Você não acha que a Isa ia gostar?

CAO

É. Acho que ia.

LENA

Sabe o quê? Acho que eu vou ligar pro Nelson e pedir pra ela reservar a casa

pra mim.

CAO

Não, mãe, espera. Fala com a Isa, primeiro.Vê se ela já não tem algum plano

para o verão.

LENA

Será que ela tem, Cao? Ela te falou alguma coisa?

CAO

Não, nada. Só que... Sei lá. Pergunta pra ela. (sai apressado; deixa Lena com a

pulga atrás da orelha)

CENA 15

Isa entra, Cao e Lena estão acabando de jantar.

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Page 73: Agora Livre Dramaturgias Miolo

73

LENA

Isa, meu bem! Eu estava precisando falar com você.

ISA

Ah, é? O quê?

LENA

Eu estou tramando umas coisas aqui, pro verão.

CAO

Dá licença, mãe, dá licença, Isa. Marquei de estudar na casa de um amigo.

(chispa para fora de cena)

ISA

Mãe, tenho que te falar uma coisa.

LENA

Uma coisa? O quê, Isa? Você não está grávida, está?

ISA

Mãe, o Alê ganhou uma bolsa pra estudar em Barcelona.

LENA

Uma bolsa pra Barcelona? Que maravilha!

ISA

Então, mãe. Eu acho que eu vou com ele.

Lena senta devagarzinho. Luz cai.

CENA 16

um ano depois; sala de Lena

CAO

(entrando) Hmmm... que cheiro bom de jantar!

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74 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

LENA

(indo beijá-lo) Fiz empadão. Muito trânsito?

CAO

Médio. Algum recado?

LENA

O Álvaro ligou, radiante. Entrou na Eca.

CAO

O Álvaro entrou na Eca? Cinema na Eca?

LENA

Ele não me falou se era cinema. Só falou que era na Eca.

CAO

Desgraçado! Fez a maior onda, falou que não tinha a menor chance. Entrou.

O Pedro entrou, o Chico. Acho que só eu não entrei na Eca!

LENA

Ligou também o tio Nelson. Pediu pra você ligar quando chegar. Eu acho

que ele tem uma notícia boa de trabalho pra te dar.

CAO

A Isa?

LENA

Ligou depois do almoço. Arranjou bolsa, inscrição, tudo. Até creche para

Marina. Eu estou tão em paz. Saber que a minha filha está estudando fora, e não

perdendo o tempo dela com um sujeito complicado...

CAO

Mãe, ela gosta dele, mãe. É o pai da filha dela!

LENA

Eu sei, meu filho. Mas ela tem 21 anos. Eu gostaria que ela cuidasse um

pouquinho do futuro dela, também, não?

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Page 75: Agora Livre Dramaturgias Miolo

75

CAO

Tudo bem com ela?

LENA

Me pareceu que sim. Está gostando do trabalho, achou a creche simpática.

Diz que a Marina deu uma choradinha, mas logo acostumou.

CAO

Figuraça.

LENA

Cao, última vez, prometo: você não vai mesmo ligar pro tio Nelson?

CAO

Porra, mãe! Você é minha mãe ou mãe do tio Nelson?

LENA

Sabe o que é, filho? Eu fico aflita. Eu acho que pode parecer descaso, e ele

presta tanta atenção em você, tem tanto interesse... Ele ficou anos esperando

você ir trabalhar com ele. Ficou radiante o dia que você aceitou o lugar que ele

te ofereceu. E às vezes você é tão... frio, tão... Não trata o seu futuro assim, a pon-

tapés, Cao.

CAO

Ok, mãe. Fica tranqüila, fica. Eu vou cuidar direitinho do tio Nelson. Eu só

não quero que ele ache que eu sou aquela fantasia dele a meu respeito: um

menino muito bom, que ele ajudou a criar, pagou os cursos de línguas, a viagem

à Europa, e que é perfeito pra ajudar ele no escritório. Você entende, mãe?

LENA

Mas é ruim ser alguém perfeito pra ajudar ele no escritório? Isso não te dá

um lugar que um monte de rapazes gostariam de ter?

CAO

Não sei, mãe. Eu ainda não sei direito. E cada vez mais parece que eu não

vou ter o direito de escolher.

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76 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

LENA

Ninguém está te obrigando a nada, Cao. Se não é isso que você quer, é só...

CAO

Mãe, que tal se a gente jantasse?

CENA 17

música: There's a kind of rush

Lena, arrumadíssima, se olha no espelho. Tira um estojinho da bolsa, inspe-

ciona rigorosamente os olhos e a boca e retoca o batom. Guarda o estojo e vai sain-

do. Entra Cao, vindo da rua.

CAO

Hmm! Que linda!

LENA

(sem graça) Você acha?

CAO

(avaliando aprovadoramente) Lindona. Vai prá balada?

LENA

Tenho um jantar. Um jantar com o pessoal do...

Toca o interfone. Cao atende.

CAO

Ela já vai. (desligando) Mãe, tem um tal de Eugênio pedindo pra você descer.

LENA

(sem graça) Ah! o Eugênio. Deixa eu ir, que já estamos em cima da hora.

Tchau, meu filho.

CAO

Tchau, mãe. Divirta-se.

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77

LENA

(off) Obrigada!

Cao vai espiar pela janela. Fica agradavelmente intrigado.

CENA 18

LENA

Cao, eu encontrei uma pessoa.

CAO

Pessoa ou homem? Esse negócio de “conheci uma pessoa”é coisa de homos-

sexual.

LENA

Um homem, Cao. O que mais haveria de ser?

CAO

Mãe, você está namorando! Ela está namorando! Tenho que ligar pra Isa, já,

imediatamente.

LENA

Não, calma, Cao. Espera.

CAO

Quem é, mãe?

LENA

Ah, não sei se você vai lembrar dele. Ele era amigo do seu tio, ia pra fazenda

da Maria Augusta, há muitos anos, mas, naquela época, ele era casado com a

Miriam.

CAO

Como é que ele chama?

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Page 78: Agora Livre Dramaturgias Miolo

78 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

LENA

Eugênio.

CAO

Eugênio... Eugênio. Não estou lembrando. Pera aí, mãe, não é o Eugênio?

Não é o Eugênio que você namorou?

LENA

É ele mesmo. Então.

CAO

Ué, mãe, mas você namorou ele há anos, ele sumiu, nunca mais deu as caras,

achei que tinha dançado totalmente.

LENA

Naquela época, não deu certo.

CAO

Por que não deu certo?

LENA

Era complicado pra mim, Cao. Era tanto conflito. Eu pensava no seu pai e...

CAO

Pensava no papai e...

LENA

Eu achava que a presença de um homem junto de mim marcava demais

a ausência de seu pai junto de vocês. Eu me sentia mal, me sentia culpada.

CAO

Como se, ficando bem quietinha, a gente nem fosse reparar que ele estava

faltando, né, mãe?

LENA

É,meu filho.Por mais absurdo que pareça, foi assim que eu vivi durante anos.

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Page 79: Agora Livre Dramaturgias Miolo

79

CAO

Que absurdo, mãe.

LENA

Hoje eu também acho. Mas era complicado pra mim. Seu pai foi meu

primeiro namorado. Eu sentia muita culpa de querer outro homem. Quando

eu percebi que eu ainda era capaz de sentir desejo por alguém, foi uma nova

crise. Até ali, foi como se eu tivesse morrido também. Eu também estava meio

morta, estava triste, mas não tinha conflito. Mas, quando você se apaixona,

sente tesão, não dá pra disfarçar que você está viva, mesmo. Eu não agüenta-

va de culpa. E eu namorava escondido. Me sentia ainda mais culpada e escon-

dia ainda mais.

CAO

Você namorou escondido muitas vezes, mãe?

LENA

Algumas vezes, meu filho.

CAO

Você teve muitos namorados?

LENA

Alguns.

CAO

Quantos?

LENA

Que importa, Cao, que diferença faz isso?

CAO

Mas quanto tempo depois que o papai morreu que você...

LENA

Que eu tive o primeiro namorado?

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Page 80: Agora Livre Dramaturgias Miolo

80 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

CAO

É.

LENA

Dois anos depois.

CAO

Então, quando a gente era pequeno, você tinha namorado?

LENA

Tinha, meu filho. Às vezes, eu tinha.

CAO

Ah, que bom, mãe. (ela ri, aliviada) E quanto tempo faz que você reencon-

trou o Eugênio?

LENA

Ah, foi na praia, na Bahia.

CAO

Na Bahia?

LENA

Isso. Isso mesmo.

CAO

Mas, mãe, você foi à Bahia há seis meses!

LENA

Faz tudo isso? Meu deus!

CAO

Faz seis meses que você está namorando e não contou pra gente?

LENA

Eu sei que vocês devem estar me achando ridícula, mas...

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Page 81: Agora Livre Dramaturgias Miolo

81

CAO

Estou te achando ridícula, sim. Namorar escondido dos filhos. Mãe, não

me conformo. Ridículo!

CENA 19

casa de Lena

CAO

Mas o que foi que ela falou, mãe?

LENA

Ela falou que eles vão se separar, que estão se separando, e ela vai voltar para

o Brasil com a Marina, na semana que vem. Mas ela chorava tanto, Cao, ela

chorava tanto, que até eu entender o que estava acontecendo... Fiquei até

aliviada quando ela disse o que era. Pensei que um deles tinha sofrido um aci-

dente, ou ... ou que alguém tinha morrido.

CAO

Ela explicou por que? Contou alguma coisa?

LENA

Ela disse que o Alê se apaixonou por outra mulher.

CAO

Filho-da-puta!

LENA

Eu também fiquei com muita raiva. Mas não quero pensar assim. Essas

coisas acontecem. Podia ter sido ela a se apaixonar por outro. É da vida.

CAO

Mas logo agora, que eles têm a Marina. Não podia ser antes? Encana que tem

que ser pai, que não pode nem esperar a Isa se formar, e, depois que a filha nasce,

ele se apaixona por outra?

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82 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

LENA

Ai, minha filha querida, em outro país, passando por isso. Eu queria pegar

um avião agora e ir lá botar ela no colo, fazer uma canja, sei lá.

CAO

Por que você não vai?

LENA

Eu ofereci, mas ela me pediu pelo amor de deus pra não fazer isso, que ia ser

insuportável alguém no meio daquele clima horroroso de separação e que na

semana que vem ela já vai estar aqui.

CAO

Ela vai ficar aqui com você?

LENA

Ah, claro, meu filho. Onde é que ela ia se meter, sozinha, com um bebê,

assim, de repente?

CENA 20

Cao e Isa; na sala de Lena, acolchoado com brinquedinhos de bebê, no chão, um

voador; um carrinho de bengalinha

CAO

Marina estranhou muito?

ISA

Nunca mais dormiu uma noite inteira. Acorda pelo menos três vezes,

chorando.As crianças percebem. Ela percebeu que eu não estava bem, primeiro.

Depois percebeu a falta do Alê, que nos últimos dias ele quase não apareceu em

casa, e depois a mudança, a despedida no aeroporto, outras pessoas, outra casa...

O mundo dela virou de pernas pro ar. Tadinha. Não está entendendo nada.

CAO

E você?

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Page 83: Agora Livre Dramaturgias Miolo

83

ISA

Bom, eu estou dormindo, o que já é uma grande conquista. Dr. Navarro

me deu uma receita de dormonid, eu tomo meio e caio dura. A mamãe

socorre a Marina, quando ela chora. Aí, dormindo, eu já me sinto melhor fisi-

camente, fico mais legal com a Marina e ela se acalma um pouco. Eu estava

uma morta-viva. Exausta.

CAO

Faz tempo, Isa? Quando foi que ele...?

ISA

Bom, a decisão mesmo, a conversa final, foi na semana passada. No dia que

eu liguei prá mamãe. Mas a história vinha se arrastando há meses.

CAO

Ele te falou ou você descobriu?

ISA

Primeiro, eu tive uma intuição. Mas eu não podia afirmar que era alguma

coisa, mesmo, ou se era a minha insegurança. Um dia eu fui retirar um livro na

biblioteca e vi o Alê conversando com uma moça. Não estava agarrando ela, não

estava beijando, nada. Só conversando. Mas ele estava numa felicidade tão

grande, que me chocou. A felicidade do Alê conversando com aquela moça foi

um soco no meu peito. Porque me caiu a ficha de que há muito tempo ele não

sorria mais pra mim daquela maneira.

CAO

Mas podia ser uma má impressão, uma encanação.

ISA

Podia. Mas eu não queria perguntar pra ele, me expor no papel da mulher inse-

gura, entende? Se a coisa está frágil, o cara ainda fica se sentindo mais sufocado.

CAO

É. E, sei lá, todo casal tem suas crises. Podia ser apenas um momento.

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Page 84: Agora Livre Dramaturgias Miolo

84 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

ISA

Eu me dizia isso a toda hora: é uma fantasia, uma bobagem, isso já vai passar e

eu vou encontrar de novo aquele canal com o Alê. Eu, o Alê e a Marina, a nossa

casa, a nossa vida. Eu fiquei meses nessa dúvida. Às vezes, parecia bem, às vezes,

parecia péssimo. Eu perguntava pra ele se estava tudo certo, ele dizia que estava só

meio cansado, muito assoberbado, que nas férias... Mas, aí, um dia, vi o Alê beijan-

do a Jean, ela chama Jean, dentro do nosso carro, no estacionamento da faculdade.

CAO

Merda, Isa.

ISA

Merda, uma merda. Pensei que eu ia morrer.

CAO

E ele? Ele falou o quê?

ISA

Nada. Eu esperei ele em casa, acordada, até as 2 da manhã, aquela noite, pra per-

guntar pra ele: Alê, o que é que está acontecendo? Ele chegou, rodou a chave na

porta, virou direto pro quarto e nem foi falar comigo. Se enfiou na cama. Quando

eu desisti de esperar e entrei no quarto, ele estava dormindo, coberto até as orelhas.

E foi assim no dia seguinte, e no seguinte, até que eu tive um ataque histérico, que-

brei uma sopeira linda que a gente tinha comprado em Nova York.

CAO

Aí ele falou...

ISA

É. Médio. Ele falou que não sabia se era o fim ou se era passageiro, que ainda

gostava de mim, mas que não era feliz mais, há algum tempo, desde que a

Marina nasceu, que estava numa puta crise.

CAO

Pode ser que seja isso, mesmo, Isa. Uma puta crise. Ou então ele não queria

mais, mas não teve coragem de te falar uma coisa que ia te ferir tanto.

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Page 85: Agora Livre Dramaturgias Miolo

85

ISA

Ele não teve, mesmo, nenhuma coragem. Preferiu que eu descobrisse, que eu

tivesse esperança, que eu perdesse a esperança, que eu entrasse em desespero e,

finalmente, sozinha, assumisse a responsabilidade de dizer: Alê, eu quero me

separar. Gozado, se era pra não me ferir, ele escolheu o modo mais torturante.

CAO

Eu sei perfeitamente do que você está falando, Isa. Mas agora me fala: o que

é que eu posso fazer pra você já, hoje, imediatamente? Isa, eu não agüento ver

você sofrer desse jeito. Eu queria poder te proteger, Isa. Você me protegeu tanto,

na vida.

ISA

Não fiz nada, Cao.

CAO

Só de você estar lá, o tempo todo, decidida, fazendo o que tinha vontade,

sem ficar com medo da mamãe, sem ficar com medo de ninguém, isso pra mim

já foi uma enormidade. Eu achava você muito mais forte que a mamãe, juro.

ISA

Pra você ver como eu também sou fraca. Toda aquela pose, aquela coragem

era só com a mamãe. Com o Alê, eu fui de uma passividade que eu não acredi-

to. Eu fui atrás dele, fazendo tudo o que ele queria. Não me impus, não dis-

cordei, mesmo quando lá por dentro eu discordava... Eu pareço forte, Cao. Mas

eu descobri que eu não sou.

CAO

Espera até a semana que vem, pra você ver...Você vai levantar, Isa. Escuta o

que eu estou te falando.Você é linda, um mulherão. Os caras vão se jogar na sua

frente.

ISA

Irmão é bom porque é realista. Não é nem um pouco parcial.

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86 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

CENA 21

Isa e Cao na mesa do café

ISA

Você vai chegar pra ele e vai dizer: "Tio Nelson, preciso conversar com você.

Eu adoro você, mas eu não gosto do que eu faço aqui, do meu trabalho, e eu

quero experimentar outra coisa. Eu não sou casado, não tenho filho, posso pas-

sar uns tempo sem ganhar muito. Quero me dar essa chance, tenho certeza que

você vai entender."

CAO

Tenho certeza que você não vai entender, você quer dizer, não?

ISA

Ah, Cao, mas você não fala isso pra ele, claro que não. Você dá uma chance

pra ele ter um mínimo de cumplicidade com você.

CAO

Mas ele não vai entender, Isa, vai ficar puto. Escuta o que eu estou te dizen-

do.Vai falar: "Porra, por que é que não falou logo? Investi um dinheirão no cara,

viagens, treinamento, o diabo, e agora ele vem me falar: ah, eu não estava

gostando, tio."

ISA

Mas é a verdade, Cao. Você não está gostando! Como é que você quer que

ele descubra, se você não contar a ele?

CAO

Mas eu acabei de ganhar um aumento, Isa.

ISA

E daí? Vai passar o resto da vida infeliz, porque ganhou um aumento? Agora

ele vai poder pegar esse dinheiro e pagar a alguém que goste desse trabalho,

entende?

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87

CAO

(pausa) E também eu nem sei se vai rolar esse negócio de produtora com o

Álvaro e o Pedro. Eu não sei se eu tenho o menor jeito pra cinema. Às vezes, eu

acho que eu inventei essa história.

ISA

Não muda nada.Você não sabe ainda se quer trabalhar com cinema.Você já

sabe que você não gosta de ser administrador de empresa. Uma coisa não muda

a outra.

CAO

(sem a menor convicção) É. Não muda.

CENA 22

noite

Isa está na sala. Cao entra.

CAO

Oi.

ISA

Oi. (observa-o cruzar a sala em direção a seu quarto)

ISA

Ei!

CAO

Hmm?

ISA

Você não vai me contar?

CAO

Contar o quê?

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88 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

ISA

(indignada) Contar o quê!?

CAO

Não tenho nada pra contar.

ISA

Ah, é? Me pendura o dia todo na maior curiosidade, me envolve no seu proble-

ma, me pergunta o que é que eu acho e depois fica lacônico, como se eu estivesse

invadindo a sua privacidade? Vai se foder, Cao. E não me enche mais o saco!

CAO

Desculpa, Isa. Você tem razão. Mas não aconteceu nada, mesmo. Eu não

falei. O tio Nelson foi viajar.

ISA

Foi viajar, mas volta. Ou não?

CAO

Volta. Mas o problema é que... Eu não estou conseguindo tomar essa

decisão, mesmo. Desencana, tá?

CENA 23

Cao entra. Lena está na sala.

CAO

Ela já foi?

LENA

Foi. Hoje à tarde, a kombi levou tudo. Era tão pouca coisa. Praticamente a

roupa. Isa vai ter que montar tudo do zero.

CAO

Ela não quis mesmo esperar.

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Page 89: Agora Livre Dramaturgias Miolo

89

LENA

Você conhece a Isa. Uma impaciência, uma urgência. Fica parecendo que

morar na casa da mãe uns meses era um sacrifício insuportável...

CAO

Não, mãe, não é isso. Você sabe.

LENA

Eu sei que não é, mas é uma pressa de sair que magoa. Eu sei que ela precisa

ter a casa dela, que a Marina precisa ter a casa dela, mas, meu deus, aqui tam-

bém é um pouco a casa dela, não?

CAO

(abraçando Lena) Claro que é, mãe. Não encana, vai.

LENA

Você também está se sentindo sufocado aqui?

CAO

Você quer saber se eu tenho planos de me mudar?

LENA

Quero. Porque você também tem direito de tomar seu rumo. Só queria que

me avisasse com um tempinho, pra eu me acostumar com a idéia.

CAO

Fica tranqüila, mãe. (derrotado) Eu costumo demorar muito pra tomar

coragem...

luz indica passagem de tempo

CAO

(recordando) Naquele dia, eu ainda acreditava que era possível adiar

infinitamente todas as decisões. Eu tinha todo o tempo do mundo, e meus

sonhos podiam esperar. Logo logo eu ia aprender que é a vida quem estabelece

os prazos e que nós não somos os donos do tempo.

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90 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

CENA 24

o presente

Atriz que faz Lena e Atriz arruma as flores, como na cena 1. Ator que faz Cao

e Ator chega correndo.

CAO

(off) Corta! Corta!

Entrando com figurino de diretor. Toda a sua atitude indica que ele não é mais

um menino medroso.

CAO

Vem cá, Rosa, vamos rever a cena.

ATRIZ

Não era isso? Eu achei tão legal dessa vez...

CAO

Foi legal, mas não foi isso que eu pedi, não é isso que o roteiro pede, entende?

O que eu preciso é o seguinte: uma mulher completamente zen. Daqui a pouco,

vai chegar a filha, vai chegar a neta, que ela adora, vai chegar o filho, que está no

trabalho. Tem um empadão no forno e eles vão almoçar juntos. Depois que

tudo se acalmar, ela também vai sair com o namorado e mais um casal de ami-

gos. Vão a um concerto e depois vão jantar. A vida ficou boa de novo e ela está

celebrando tudo isso, em cada uma daquelas flores, você me entende?

ATRIZ

Entendo.

CAO

Então, dá um tempo, dá uma relaxada, depois a gente retoma a seqüência.

(no walk talk) Rogério, segura o Murilo, que eu quero falar com ele antes de

refazer a cena.

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91

ROGÉRIO

(off, no walk talk) Cao, você não vai fazer ele repetir tudo, pelo amor de deus.

CAO

Vou fazer ele repetir quantas vezes for preciso para ficar bom. Um pedido

normal dos diretores normais.

ROGÉRIO

Ele tá ficando inseguro.

CAO

Ela vai ter que encarar a insegurança dele. Se ele quer fazer o papel, o míni-

mo que se espera é que ele dê conta da insegurança dele, certo? Eu tenho que

dar conta de o filme passar o que tem que passar. Bota ele na linha.

ROGÉRIO

Yes, sir!

CAO

Murilo? Está me ouvindo bem? Hmm. Murilo, seguinte: essa cena é difí-

cil pra caralho. E tem que ficar evidente na interpretação que ela é difícil

pra caralho. Nesses poucos segundos que você vai estar em cena, você vai

ter que romper essa película fina que separa a rotina e a tragédia, você vai

ter que rasgar a sua própria casca, sair daquele lugar onde você se escondeu

a vida inteira, me entende? O Cao nunca disse as verdades que poderiam

frustrar a mãe. Ele sempre encontrou um disfarce, um escape, um subter-

fúgio. Agora, ele não tem saída. É com ele mesmo, é terrível, e ele não tem

mais nenhuma ajuda, você está me entendendo? Você entende tudo o que

está na cabeça dele nesse momento? (ouve) Então, quer tentar de novo?

Então, vamos lá.

CENA 25

rua

Cao vem andando com a raquete no ombro. Som de freada, batida de carro.

Luzes de carro de emergência girando. Vozes de transeuntes, entrecortadas.

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92 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

VOZ 1

O caminhão perdeu o freio lá em cima e veio arrastando tudo.

VOZ 2

Ela tentou jogar o carro, mas não deu tempo.

VOZ 3

Meu deus! Olha o que virou esse carro!

Cao digita nervosamente um celular.

CAO

(respirando fundo) Mãe, você precisa de alguma coisa? Tá bom, tá bom. A

Isa por acaso já chegou? (desliga, disca outra vez) Dona Geni, é o Cao. Eu já sei,

dona Geni. Eu estou na rua, no lugar do acidente, eu já sei. Era a Isa, dona Geni.

A Marina está na creche. Não, dona Geni, eu consigo chegar em casa, não pre-

cisa me buscar. Mas, pelo amor de deus, dona Geni, fica na porta e não deixa

ninguém tocar a campainha, não deixa ninguém falar com a minha mãe até eu

chegar aí, a senhora está me entendendo? Pelo amor de deus, dona Geni, não

deixa ninguém contar pra minha mãe. (desliga) Deixa, que quem vai contar

sou eu.

Luz cai.

CENA 26

presente

Lena arrumando as flores concentradamente, como na cena 1. Entra Cao, com

a bolsa de tênis, silenciosamente, a contempla por alguns segundos.

CAO

Mãe?

LENA

Filho, vai tomar uma chuveirada, sua irmã já vai chegar.

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Page 93: Agora Livre Dramaturgias Miolo

93

Ele fica imóvel, olhando. Lena olha para ele, estranhando.

Luz em Isa, com o vestido da cena 1, sorridente, feliz.

ISA

Cao?

CAO

Que estranho, Isa, querida. Eu finalmente entendi como eu tenho força. E

você não está mais aqui pra me ver. Você ia ficar orgulhosa de mim, Isa.

ISA

Cao, você não vai contar...?

CAO

Só mais um pouquinho, Isa. Deixa ela aproveitar só mais um pouquinho.

Uns segundos. (respira fundo, avança) Mãe, segura em mim. Segura com força

em mim.

Isa sorri para eles e cruza o palco com os sapatos na mão, pisando na

pontinha dos pés, até desaparecer. A luz cai.

Marta Góes

março de 2002

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94 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

MARTA GÓES

jornalista e escritora. No teatro, destacam-se os trabalhos: Turistas e Refugiados,

dramaturgia para criação coletiva, direção de Renata Melo (2004); Só Mais um

Instante, direção de Elias Andreato (2002); Um Porto para Elizabeth Bishop, com

Regina Braga, direção de José Possi Neto (2001); A Safe Harbor for Elizabeth

Bishop, com Amy Irving, New York Stage and Film Festival (2004), com estréia

prevista em 2006 no Teatro Primary Stages, Nova York; A Moça que Falou Assim,

direção de Maria Lúcia Pereira (1997); Prepare seus Pés para o Verão, com

Marisa Orth e Grace Gianoukas, Teatro Off (1987). Para a televisão, escreveu

Marinalva, episódio para a série Retrato de Mulher, TV Globo (1994); É Proibido

Voar e Pequenas Autoridades, episódios para a série Joana, SBT (1986-1985);

Filhos, Melhor Não Tê-los, episódio para a série Malu Mulher, TV Globo (1982).

Traduziu Jantar entre Amigos, de Donald Margulies (2003); À Margem da Vida,

de Tennessee Williams (1998); Our Town, de Thornton Wilder (1996); As

Avestruzes, de Micheline Bourday (1979). No jornalismo, trabalhou no Jornal da

Tarde, como editora do Caderno Variedades (2001 a 2002); revista Isto É, como

editora de Comportamento (1977 a 2000), repórter de Artes e Espetáculo e críti-

ca teatral (1982 a 1985); revista Claudia, redatora-chefe (1994 a1997); O Estado

de S.Paulo, editora do Caderno 2 e crítica teatral (1988 a 1993); revista Veja, sub-

editora de Geral (1985 a 1986); Última Hora, repórter e crítica teatral (1972 a

1975); fez entrevistas para o livro Por uma Razão de Viver (Ed. Record, 1985),

biografia do jornalista e empresário Samuel Wainer. É autora do livro A Menina

que se Apaixonava (Companhia das Letrinhas, 2003).

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SOBRE A ARTE DE CORTAR BIFES

dramaturgo: Hugo Possolo

debatedor: Luís Alberto de Abreu

MONTAGEM

direção: Jairo Matos

elenco: Ana Paula Aquino,

Edson Montenegro,

Javert Monteiro e Ricardo Rathsam

cenário e adereços: Delermi Produções Artísticas

figurinos: Cris Bonna

trilha sonora: Claudinei Brandão

edição de trilha sonora: Sérvulo Augusto

luz: Marcos Loureiro

produção executiva: Cris Bonna e Elza Santos

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96 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

SOBRE A ARTE DE CORTAR BIFESHugo Possolo

Sentir é pensar sem ter idéias.

Fernando Pessoa

PERSONAGEM

AÇOUGUEIRO 1

AÇOUGUEIRO 2

AÇOUGUEIRO 3

TÁLIA

CENÁRIO

Sala de um frigorífico. Uma imensa mesa sobre a qual os personagens cor-

tam bifes com grandes facões e cutelos. O ambiente é tétrico. Ganchos por

todos os lados. Carnes penduradas.

Uma porta. Uma lata de lixo grande.

ATO ÚNICO, NU E CRU

Os três Açougueiros estão cortando carne, em silêncio. Ouvem-se apenas as

pancadas de seus cutelos sobre a carne e a mesa. Entra Tália.

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Page 97: Agora Livre Dramaturgias Miolo

97

TÁLIA

Dionísio deixou recado para você ligar depois.

AÇOUGUEIRO 2

Depois, quando?

TÁLIA

De noite. Quando vocês tiverem terminado.

AÇOUGUEIRO 1

Parece que não vai terminar nunca.

TÁLIA

Parece mesmo. Mas não deixa de ligar...

AÇOUGUEIRO 2

Claro que não.

Tália sai. Voltam a cortar com os cutelos, pouco depois, se entreolham.

AÇOUGUEIRO 1

Acho que só vim parar aqui por causa da Tália.

AÇOUGUEIRO 2

Mentiroso! Você veio aqui por causa da grana...

AÇOUGUEIRO 1

Será que existe alguma razão para estarmos fazendo isto?

AÇOUGUEIRO 2

Se não fizéssemos, alguém faria.

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98 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

AÇOUGUEIRO 1

Não com tanto prazer.

AÇOUGUEIRO 2

Não seja presunçoso.

AÇOUGUEIRO 1

Realista, meu caro. Realista.

AÇOUGUEIRO 2

Sempre me pergunto como é que vim parar neste negócio?

AÇOUGUEIRO 1

Ofício, meu caro. Ofício.

AÇOUGUEIRO 2

Sei lá, se tenho talento...

AÇOUGUEIRO 1

Vocação, meu caro. Vo-ca-ção.

AÇOUGUEIRO 2

Para cortar bifes?

AÇOUGUEIRO 3

Eu tive vontade. Trabalhava como lixeiro, aqui ao lado. Quando vinha

buscar esta lata, ficava observando os caras que trabalhavam aqui.

Fantasiava na minha cabeça que um dia estaria aqui, cortando bifes de todas

as maneiras. Só não imaginava que faria isto ao lado de idiotas como vocês.

AÇOUGUEIRO 2

Não se abale, você é só mais um.

AÇOUGUEIRO 3

E Tália?

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Page 99: Agora Livre Dramaturgias Miolo

99

AÇOUGUEIRO 1

Nunca vai olhar para nós.

AÇOUGUEIRO 3

Certeza?

AÇOUGUEIRO 1

Esperan...

AÇOUGUEIRO 2

Já sei. (imitando o 1) Esperança, mau caro. Es-pe-ran-ça.

AÇOUGUEIRO 3

Acho que você devia trabalhar como telegrafista. Mania de reduzir

tudo. Até seus bifes são menores...

AÇOUGUEIRO 1

Menores e mais saborosos.

AÇOUGUEIRO 3

Acho que era melhor ter seguido o destino. Continuava a vir aqui só

para pegar o lixo. Seria mais simples.

Voltam a cortar os bifes, em silêncio.

AÇOUGUEIRO 2

Olha só... Segure o bife com dois dedos. (mostra) Assim. Não lembra nada?

AÇOUGUEIRO 3

Só de olhar, me dá tesão.

AÇOUGUEIRO 2

Boceta! O que interessa é a boceta. Só faço isto aqui porque este trabal-

ho me lembra boceta. Boceta é bom. É gostoso. E é sonoro: BOCETA. É boa

até para falar.

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100 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

AÇOUGUEIRO 1

Vocês estão loucos. Tanto tempo aqui, cortando estas carnes, que vocês

perderam a sensibilidade. Comparando bifes com bocetas.

AÇOUGUEIRO 2

Tá certo. (mostrando os bifes) Se eu tivesse este tanto de bocetas...

AÇOUGUEIRO 3

Meu amigo, boceta tem sobrando. Por que você acha que tem tantos

veados no mundo?

AÇOUGUEIRO 2

Para sobrarem mais bocetas para gente!....

AÇOUGUEIRO 1

Prefiro xoxota. Acho mais delicado.

AÇOUGUEIRO 2

Te peguei! Também está aqui por causa de bocetas... Ou melhor, de xo-

xotas.

AÇOUGUEIRO 1

Não. Faço porque me dá prazer.

AÇOUGUEIRO 2

Que babaca! Cortar bifes te dá prazer?

AÇOUGUEIRO 1

É. Eu gosto. E daí?

AÇOUGUEIRO 3

Gosto não se discute.

AÇOUGUEIRO 2

Aí é que está. Eu acho que se discute, sim...

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101

AÇOUGUEIRO 1

Tem gente que prefere xoxota, tem gente gosta de boceta...

AÇOUGUEIRO 2

E tem aqueles que dão o cu.

AÇOUGUEIRO 3

E o que que você têm a ver com isso? O cara tá dando o cu dele, não é o seu.

AÇOUGUEIRO 2

Tá bom! Gosto e cu não se discutem. Mas que caralho leva alguém a

ficar dias e dias cortando bifes?

AÇOUGUEIRO 1

Sabe que eu nunca me perguntei isso?

AÇOUGUEIRO 2

Sério?

AÇOUGUEIRO 1

Meu avô já trabalhava nisso. Ele ensinou meu pai, meu pai me ensi-

nou... Pra falar a verdade, não me importo que seja assim. Faço porque

faço, e pronto. Tenho o que comer, onde morar. Jogo minha bolinha no

fim-de-semana, e beleza. O que mais eu vou querer?

AÇOUGUEIRO 3

Ninguém é obrigado a ter ambições.

AÇOUGUEIRO 1

Mas eu tenho ambições. Quero cortar o bife mais perfeito do mundo.

Um bife com corte desenhado. Um filé sem traços, de tal maneira requin-

tado, como se ali nunca tivesse passado uma mão humana.

AÇOUGUEIRO 2

Um bife dos deuses.

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102 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

AÇOUGUEIRO 1

É. Minha vontade era encher de orgulho meu pai, meu avô, por ter con-

seguido cortar um bife divino, que os homens todos na face da terra ima-

ginassem que foi cortado por Deus.

AÇOUGUEIRO 3

E os homens na face da terra estão lá interessados em bifes? E muito

menos em quem os corta.

AÇOUGUEIRO 1

Ainda tenho a ilusão de que todos possam saber dos bifes que corto.

AÇOUGUEIRO 3

Todos? Cara, ninguém se interessa pelo que fazemos, a não ser nós mesmos.

AÇOUGUEIRO 2

Acho que você está viajando na maionese. Pra que se apurar na técnica

de cortar os bifes? Pra que um bife divino? Olha, eles são tão modificados

até serem servidos, que nem mesmo nós os reconheceríamos no prato.

Quantas vezes, diante do prato, na hora do almoço, você já não ficou em

dúvida sobre quem cortou aquele bife? E acontece assim porque você tra-

balha com isto. É um profissional. Você tem sempre essa preocupação. Tem

gente que come sem nem sequer olhar para a comida. Não está nem aí para

quem preparou a comida. Não vai se preocupar, nem fodendo, com quem

cortou o bife.

AÇOUGUEIRO 1

Tem gente que nem percebe que o bife veio da vaca.

AÇOUGUEIRO 2

E se a gente cortasse um bife humano? Será que alguém perceberia?

AÇOUGUEIRO 1

Ê, sai pra lá! Não olha pra mim, não.

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103

AÇOUGUEIRO 3

Você tá pensando o quê?

AÇOUGUEIRO 2

Não é o mesmo que eu?

AÇOUGUEIRO 3

Não. Acho que não.

AÇOUGUEIRO 1

Tô fora.

AÇOUGUEIRO 2

Não. Não seria nenhum de nós três. Não teria graça.

AÇOUGUEIRO 1

É verdade. Um tem que ser testemunha do outro.

AÇOUGUEIRO 2

Exato. Só isso justificaria a teoria de cada um.

AÇOUGUEIRO 1

E de que adianta saber quem tem razão?

AÇOUGUEIRO 2

Não vai me dizer que estamos aqui há horas discutindo para não que-

rer saber de quem é a razão.

AÇOUGUEIRO 1

Eu é que não quero ficar com a razão. Odeio ficar com a pior parte.

AÇOUGUEIRO 2

Não entendi.

AÇOUGUEIRO 1

A pior parte. Quem fica com a razão fica com a pior parte...

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104 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

AÇOUGUEIRO 2

(para o 3) Acho que ele está se sentindo superior. O fracasso subiu-lhe

à cabeça.

AÇOUGUEIRO 3

Desculpe, mas não estou interessado nisso. Aliás, nem ouço vocês

falarem. Só fico esperando a minha vez de falar.

AÇOUGUEIRO 2

E o que você diria? Qual de nós daria o melhor bife?

AÇOUGUEIRO 1

Eu faria um bife seu. Mas colocaria uma Cibalena em cima.

AÇOUGUEIRO 2

Que porra de Cibalena é essa?

AÇOUGUEIRO 1

Vocês nunca ouviram falar disso?... (para o 2) Sabe o que é Cibalena?

AÇOUGUEIRO 3

Sei. Um comprimido pra dor de cabeça, não é?

AÇOUGUEIRO 1

É. Pois então, rapaz, eu já fiz a experiência. Você deixa uma Cibalena em

cima de um bife... Eu fiz com um bife alto, bem gordo. Você deixa o com-

primido em cima do bife, de um dia pro outro. No dia seguinte, meu velho,

dá nojo. Parece que deram um tiro no bife. Fica um furo no lugar do com-

primido e tudo meio preto, em volta. Tudo podre.

AÇOUGUEIRO 2

Porra, se faz isso no bife, imagina o que não faz no estômago.

AÇOUGUEIRO 1

E pensar que essa porra é feita para curar dor de cabeça...

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105

AÇOUGUEIRO 3

Pode ter certeza que de mim os bifes já sairiam mais podres que essa

merda de Cibalena aí. Puta papo chato! (se afasta dos dois)

AÇOUGUEIRO 2

Fugindo da raia, né? Fique tranqüilo, que, se eu fosse fazer um bife de

carne humana, você estaria no fim da última fila.

AÇOUGUEIRO 1

(para o 2) Se você descarta ele e eu já pulei, só falta você.

AÇOUGUEIRO 2

Tudo bem. Se eu topasse, que tipo de bife você faria? Qual é o seu estilo?

AÇOUGUEIRO 1

Meu estilo? (pensa) Meu estilo?... Meu? Próprio?... Estilo é foda. Bem...

Eu gosto de cortar em fatias finas. Com delicadeza. É melhor para o paladar

de quem vai comer. Os pedaços pequenos podem ser mais fáceis de se des-

mancharem na boca.

AÇOUGUEIRO 2

Mas nem sempre são os mais saborosos.

AÇOUGUEIRO 1

Porra, não tem nada mais saboroso numa picanha do que aquela gor-

durona escorrendo. Aliás, só vou em churrasco porque tem a gordurona.

AÇOUGUEIRO 2

É. Mas você mesmo corta esse bifes secos...

AÇOUGUEIRO 1

Secos, mas altos. Excelentes para jantares finos. Um simples pedaço de

alcatra pode ser servido como molho madeira e champignon, que o idiota

que o devorar vai ter certeza de que estará comendo um filé mignon.

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106 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

AÇOUGUEIRO 2

Gostei! Nosso ofício é criar ilusões.

AÇOUGUEIRO 3

Que papo mais bicha. Para mim, vocês dois não passam de auxiliares de

cozinha se fazendo passar por açougueiros.

AÇOUGUEIRO 1

Quem sabe esse não é o meu sonho de vida?

AÇOUGUEIRO 2

O que é isso, senhor macho man? Então seus bifes são mais saborosos,

mais bonitos, mais interessantes, porque quem faz o corte adora coçar o saco?

AÇOUGUEIRO 1

Ah! É sabor do saco que dá o tempero.

AÇOUGUEIRO 3

Vão se fodê, suas bichinhas. Vocês acham que sensibilidade é ficar

vendo o tempo passar, contemplativos. Meu nego, cada bife que eu corto

é sangue puro. É o meu sangue escorrendo, que vou limpando para ofe-

recer a quem degustar. Caguei pra o que vão pensar sobre quem cortou

esse ou aquele bife. Quero mais é enfiar goela abaixo cada gota de sangue,

cada naco da carne, pra que eles compreendam que existem outras

carnes. Só com o gosto amargo na boca é que esses imbecis vão perceber

que existem outros animais em torno deles. Eles têm que se tocar que

outros animais vivem. Que o mundo não se resume ao que eles pensam

sobre eles mesmos.

AÇOUGUEIRO 1

E depois nós é que somos bichinhas.

AÇOUGUEIRO 2

Você está certo. Com gordura ou sem gordura, frescos, podres, pas-

sados, finos ou grossos, serão sempre bifes. Pedaços mortos de carne.

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107

AÇOUGUEIRO 3

Que bosta! Tu é açougueiro ou filósofo de boteco?

AÇOUGUEIRO 2

A gente corta os bifes porque as pessoas precisam do que comer.

AÇOUGUEIRO 1

As pessoas precisam viver. A carne alimenta. Ela mantém acesa a chama.

Eleva a alma. Isso! Transcendência, meu caro. Transcendência. As pessoas

comem para engrandecer suas almas.

AÇOUGUEIRO 3

Comem pra cagar depois.

AÇOUGUEIRO 2

Nada! É porque as pessoas precisam de bifes no estômago. Se não come,

morre.

AÇOUGUEIRO 1

Sei. E os vegetarianos?

AÇOUGUEIRO 2

Caralho! Nem fala nisso, que me dá nojo! Aquele bando de gente anêmi-

ca se achando superior só porque não se submete ao fato de que os seres

humanos são carnívoros vorazes. Só porque nos satisfazemos em deixar que

um bicho morto termine de apodrecer mergulhado em nossos sucos gástri-

cos. Sim. Porque os vegetarianos não entendem que a nossa natureza dispõe

de mecanismos que rapidamente consomem a carne morta. Ela mesma, a

natureza, sozinha, demora muito mais tempo para fazer a carne sucumbir. E

isso se contarmos com a ajuda de vermes e outras formas de vida inferior,

que lentamente lutam para triunfar.

AÇOUGUEIRO 1

É. Mas não dá pra negar que os vegetarianos têm uma pele ótima.

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108 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

AÇOUGUEIRO 2

Taí! Podíamos pegar um filha-da-puta de um vegetariano e fatiá-lo to-

dinho!

AÇOUGUEIRO 3

Um idiota desses não merece ser cortado por mãos habilidosas.

AÇOUGUEIRO 2

Merece. E digo mais: seria um gesto quase revolucionário. Estaríamos

mostrando ao mundo nossa supremacia: “A Incrível Arte de Cortar Bifes”.

AÇOUGUEIRO 3

Sempre fico em dúvida com o seu entusiasmo. Nunca sei se é porque você

acredita no que faz ou porque gostaria de ser primeira página de jornal.

AÇOUGUEIRO 2

Já que estamos nesta condição, posso falar sem culpa. Faço pelas duas

razões.

AÇOUGUEIRO 3

Honesto, mas não resolve o problema.

AÇOUGUEIRO 2

E quem está querendo ser honesto? Quem é que vai querer resolver

algum tipo de problema? Ser primeira página de jornal e acreditar no que

faço têm o mesmo objetivo: que o mundo saiba do significado de cortar

bifes. É tão simples.

AÇOUGUEIRO 1

Nós cortamos bifes. Só isso. Tem quem os embala. Tem quem os tem-

pera. Tem quem os vende. Nossa função se resume a cortar bifes. De que

adianta ficar horas discutindo o que será feito deles? Tudo bem, a gente

sabe que serão mastigados, digeridos etc. Mas não controlamos isso. O me-

lhor que temos a fazer é aperfeiçoar nossa maneira de cortar bifes. Esse é

ponto. Temos que ser perfeitos no corte.

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109

AÇOUGUEIRO 3

E chegaremos a ser tão prefeitos, que os bifes perderão o sabor!

AÇOUGUEIRO 2

Isso é verdade. De que vale fazer bifes perfeitinhos, redondinhos? Vão

achar que são hambúrgueres.

AÇOUGUEIRO 1

Vai ter gente falando que trabalhamos no McDonald’s.

AÇOUGUEIRO 2

Olha aí, pela primeira vez no dia, estamos concordando. Não queremos

que nossos bifes sejam tratados como meros hambúrgueres do

McDonald’s.

AÇOUGUEIRO 3

Mas temos uma porção de colegas que sonham que seus bifes sejam

confundidos com um "mac"!

AÇOUGUEIRO 2

(ri) Alguns até fazem uns bifinhos bem "mac-bifes"!

AÇOUGUEIRO 3

(ri) E pior é que nem percebem!

AÇOUGUEIRO 1

Sacanagem! Rir de caras assim é chutar cachorro morto.

AÇOUGUEIRO 2

Tem trouxa que enfeita o bife de tal maneira que tem gente que come e

nem percebe que aquilo é um "mac". Um "mac-bife"!

AÇOUGUEIRO 1

Isso tem de montão.

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110 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

AÇOUGUEIRO 1

Isso tem de montão.

AÇOUGUEIRO 2

Tem cara que enfeita a coisa pra ela ser comprada como outra.

AÇOUGUEIRO 3

É pra conseguir ou mesmo garantir o empreguinho no "Mac".

AÇOUGUEIRO 1

E qual é o problema de o cara querer um emprego assim?

AÇOUGUEIRO 2

É. Ele só quer manter sua sobrevivência.

AÇOUGUEIRO 3

Manter a sobrevivência ou garantir o dele?

AÇOUGUEIRO 2

Ainda assim. Você não acha que o cara tem que cortar o bife como qui-

ser? Então, ele não tem a liberdade de querer se garantir?

AÇOUGUEIRO 3

Toda. Que seja feliz. Mas o que me incomoda é a fachada. O puto diz

que faz uma coisa porque no fundo quer fazer outra? E ainda tira espaço de

quem quer fazer só aquilo. Eu gosto de cortar de bifes. Ponto. Se alguém

quiser cortar também, ótimo. Agora, o cara usar o meu ofício para ser va-

lorizado em outro, aí é foda.

AÇOUGUEIRO 2

É foda, não. É falta de caráter.

AÇOUGUEIRO 1

E é preciso ter caráter para cortar bifes?

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111

AÇOUGUEIRO 2

(para o 3) Vai dizer que você nunca cortou o próprio dedo?

AÇOUGUEIRO 1

É capaz até de ter transformado a mãe em bife e nem ter percebido.

AÇOUGUEIRO 3

Se transformou em bife, ainda vá lá! Se justifica. Duro é se jogou no lixo

com as gorduras que vão virar sabão.

AÇOUGUEIRO 2

(ri) Aí é divertido! A mãe virando bolhas! Burf! Burf! Mamãe é bolha de

sabã-ão! Mamãe é bolha de sabã-ão! Mamãe é bolha de sabã-ão!

AÇOUGUEIRO 1

Cada um usa a mãe pro que bem entender.

AÇOUGUEIRO 3

Afinal, a única coisa que você pode dizer que é sua mesmo, de verdade,

é a sua mãe.

Riem juntos. Silenciam. Voltam a cortar carne, fazendo forte ritmo com os

cutelos na mesa. Um tempo depois...

AÇOUGUEIRO 2

O que nos falta é coragem.

AÇOUGUEIRO 1

Pra quê?

AÇOUGUEIRO 2

Pra fazer um bife de carne humana.

AÇOUGUEIRO 1

Competência, meu caro. O que nos falta é competência.

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112 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

Silenciam novamente. Voltam a cortar carne. Um tempo depois...

AÇOUGUEIRO 3

Acho que ainda não temos o que precisamos. Só isso.

AÇOUGUEIRO 2

Não sei... Não sei.

Voltam a cortar carne, com gestos mais rápidos e violentos.

AÇOUGUEIRO 1

Essas conversas me cansam...

AÇOUGUEIRO 2

Sempre achei que aqui era o Olimpo...

AÇOUGUEIRO 3

Demora para descobrir que é o Inferno.

Tália entra na sala. Os três se assustam.

TÁLIA

Eu já estou indo. Vê se não esquece de ligar pro Dionísio?

AÇOUGUEIRO 2

Não, Tália. Não.

TÁLIA

Que jeito mais esquisito de falar “não”... Você não vai ligar pro...

AÇOUGUEIRO 2

Não. Não é isso. Você é que não vai embora.

TÁLIA

Como?

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Page 113: Agora Livre Dramaturgias Miolo

113

AÇOUGUEIRO 3

Acho que já temos o que precisamos...

AÇOUGUEIRO 2

É. Só falta coragem.

Os três seguram Tália suavemente, ameaçando-a com os cutelos. Luz cai

lentamente.

FIM?

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Page 114: Agora Livre Dramaturgias Miolo

114 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

HUGO POSSOLO

Palhaço, dramaturgo, cenógrafo, figurinista, ator e diretor teatral, é fun-

dador do grupo Parlapatões. Participou dos principais festivais brasileiros:

FIAC (SP); FILO (PR); FIT (MG); Porto Alegre em Cena (RS) e Festival de

Curitiba (PR). Suas montagens já estiveram na Espanha, Portugal, E.U.A.,

Escócia, Colômbia e Uruguai. Em dramaturgia destacam-se: Sardanapalo

(1993); Zèrói (1994); U Fabuliô (1996), representante oficial do Brasil, na

Expo 98, em Lisboa; Não Escrevi Isto (1998), Prêmio Shell (melhor

cenografia); Farsa Quixotesca (1999), com a Pia Fraus, Prêmio Panamco

(autor e melhor espetáculo) e APCA (melhor espetáculo); Pantagruel

(2001). Recebeu o Grande Prêmio da Crítica APCA pelo evento Vamos

Comer o Piolin. Em circo, roteirizou e dirigiu Urbes (2003), com Fractons,

e Stapafúrdyo (2006), Circo Roda Brasil. Foi Coordenador Nacional de

Circo da Funarte, Ministério da Cultura (2004/2005).

Em ópera dirigiu A Flauta Mágica (96); Gianni Schicchi (98); Il Campanello

Di Notte (2005), todos sob regência de Abel Rocha e Infidelidade Fracassada

(2005), de Haydn, com regência de Roberto Minczuc.

Trabalhos mais recentes: O Bricabraque (2004), direção e a dramaturgia, e

Prego Na Testa (2005), de Eric Bogosian, direção de Aimar Labaki, indica-

do ao Prêmio Shell (melhor ator).

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A CABEÇA

dramaturgo: Alcides Nogueira

debatedor: Aimar Labaki

MONTAGEM

direção: Márcia Abujamra

elenco: Débora Duboc, Leopoldo Pacheco e

Marcelo Várzea

cenário: Márcia de Barros

figurino: Leopoldo Pacheco e Sylvia Moreira

trilha sonora: Alcides Nogueira

luz: Negra e Pepe

produção executiva: Jerusa Franco

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ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS116

A CABEÇAAlcides Nogueira

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117

CENA 1

RUBRICA

Um espaço qualquer. É o escritório do Dramaturgo. Uma mesa está ali,

com um computador. Uma luminária. Há um velho tapete caucasiano. É

também uma estação de metrô. Uma praça. Há uma janela que dá para o

mundo. Ou o mundo dá para esse espaço. Luz de serviço. O Dramaturgo

olha pela janela. A Personagem está em um canto, olhando. A Rubrica está

sendo uma rubrica. O Dramaturgo vem para sua mesa. Estende as mãos em

silêncio. Olha para os seus dedos.

DRAMATURGO

Como se eu fosse tocar um Prelúdio de Scriabin.

RUBRICA

Ouve-se um Prelúdio de Scriabin, que ecoa por todo o espaço, furioso,

agitado. A luz cai, ficando apenas focos: sobre o Dramaturgo, que digita;

sobre a Rubrica; sobre a Personagem, que se levanta. Cessa o Prelúdio de

Scriabin.

DRAMATURGO

Acabei de chegar do hospital, aonde fui visitar um amigo doente. Ele vai

morrer dentro de poucas horas. O câncer já tomou conta de tudo. Ele foi

tirado da UTI e levado para o quarto. Não vai viver mesmo... A UTI é para

aqueles que têm chance, e o quase-morto não pode ocupar um leito. Abri

a porta do quarto e fiquei parado. Ele me olhou com ódio. Como se eu es-

tivesse tirando a vida dele. Não senti nada. É um amigo muito querido. Um

amigo da adolescência. Mas não senti nada quando ele disparou aquele

ódio contra mim, como uma bala de revólver. Não nos falamos. O que po-

deria ser dito? Ele nem tem mais pulmão, mas deixei um maço de cigarros

na mesinha ao lado da cama e saí.

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ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS118

RUBRICA

O Dramaturgo segue para uma estação de metrô. O trem chega, ele

consegue um lugar e começa a ler. É uma matéria dobre Guy Debord. Cai

toda a luz e entra uma projeção na parede dos fundos.

projeção: A Sociedade do Espetáculo

RUBRICA

Foco sobre o Dramaturgo digitando furiosamente.

PERSONAGEM

“Os arabescos formados no ar por esses insetos, traças, notoriamente

cegos, circulando em torno de uma luz de vela à noite...”

DRAMATURGO

Sidonius Appolinarius...

RUBRICA

O Dramaturgo pára de digitar. Sai de sua mesa, agitado.

DRAMATURGO

Eu não sou bom! Por que eu deveria olhar para ele e chorar? Por que eu

deveria passar as mãos em sua cabeça já sem os cabelos derrubados pela

quimioterapia? Eu não sou um inseto cego e ele não é uma luz. Esse instan-

te... Esse pequeno instante que me paralisa... Quando eu não sei o que fa-

zer com a vida, com a morte, com nada... Quando eu não me entendo e

nem entendo o que existe... Quando eu me reduzo a um fio de metal já to-

mado pelo azinhavre... Quando eu me percebo a criança que gira e gira e

gira, olhando para o céu, e parando subitamente, zonza, sem saber onde es-

tá seu apoio. Eu poderia ter sido um inseto cego, uma traça, e ter ido até

ele... Meu amigo era a vela se apagando, mas eu poderia ter inventado a

luz... somente naquele momento... somente para que eu tocasse sua mão...

e, sem palavra alguma, me despedisse dele.

RUBRICA

O telefone toca. O Dramaturgo atende.

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119

DRAMATURGO

Como? Não, você não pode estar falando sério... Como foi isso? Ele não

tinha força para nada...

PERSONAGEM

Pensei que não conseguiria... Quando a enfermeira passou, eu vi como

ela regulava o oxigênio. Foi difícil, mas estendi o braço e fechei o ar.

RUBRICA

Ouve-se novamente o Prelúdio de Scriabin, muito alto e violento,

enquanto a Personagem se deita sobre o pequeno tapete caucasiano, e o

Dramaturgo se aproxima. A Personagem está de olhos fechados, e o Dra-

maturgo segura as mãos dela. Um longo tempo de espera. Cessa a música.

DRAMATURGO

Por que eu te matei? Não era essa a história.

PERSONAGEM

Obrigado pelos cigarros. Não fumo há quinze dias. Como é que meu

câncer pode sobreviver desse jeito?

RUBRICA

Vou até a Personagem, entrego a ela um cigarro, acendo. A Personagem

dá uma baforada.

PERSONAGEM

Em quê você está pensando?

DRAMATURGO

Não sei...

PERSONAGEM

Mas você é um pensador. Todo dramaturgo é.

DRAMATURGO

Toda pessoa é... E eu não dei essa fala a você.

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ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS120

PERSONAGEM

Deita aqui e fuma comigo.

RUBRICA

O Dramaturgo hesita um pouco. Acaba se deitando ao lado da Persona-

gem. Pega o cigarro dele e dá uma tragada. Ficam lado a lado. Luz cai e en-

tra projeção.

projeção: Desafiar o Mundo

PERSONAGEM

Você sempre pensa nisso?

DRAMATURGO

Estou pensando no artigo sobre Debord, que li depois que saí do hospital.

PERSONAGEM

Enquanto eu estava morrendo...

DRAMATURGO

Por que eu te matei?

PERSONAGEM

Quem faz as perguntas e sonega as respostas é você. Sou só o seu por-

ta-voz. Talvez fosse melhor se interrogar... Interrogar o mundo... Aí pode-

ria desafiá-lo.

DRAMATURGO

Ou entendê-lo...

PERSONAGEM

A sua cabeça. A sua cabeça. A sua cabeça. A sua cabeça. A sua cabeça.

DRAMATURGO

Pára!! Eu sou uma enxaqueca literária!

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121

PERSONAGEM

Eu sonhei... Você sonhou... Tantos sonharam... E, hoje, a sociedade ca-

pitalista está em seu mais alto grau de alienação. A relação do homem com

a vida, e consigo mesmo, foi transformada num espetáculo de imagens.

DRAMATURGO

Não estou pensando mais em Guy Debord!

PERSONAGEM

Sua cabeça virou uma máquina complexa, uma engrenagem perfeita,

que produz pensamentos sem que possa escolher. Você quer ser bom. Você

quer escrever o monólogo final de Sonia, do “Tio Vanya”. Escrever só isso,

o tempo todo o tempo todo o tempo todo... Acreditar na generosidade hu-

mana e em um tempo melhor. Mas você está seco.

RUBRICA

O Dramaturgo levanta-se rapidamente. Encara a Personagem com ódio.

PERSONAGEM

Agora quem está expelindo ódio pelos olhos é você.

DRAMATURGO

E nem preciso de câncer para isso!

RUBRICA

O Dramaturgo volta para sua mesa. A Personagem continua fumando

calmamente. Eu acendo uma lanterna, porque o black-out encerra a cena.

(black-out!)

CENA 2

RUBRICA

Foco somente sobre o Dramaturgo olhando por uma janela.

DRAMATURGO

Conheço aquela praça!

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ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS122

PERSONAGEM

Paris! Você ficava horas nela, em 68. Eu ficava horas nela, em 68. O mundo

era Paris em 68. Talvez o último momento em que o homem conseguiu pensar

a liberdade e só a liberdade, sem nenhum adjetivo. Ou um: a liberdade livre.

RUBRICA

Cai a luz e entra uma projeção.

projeção: A Imaginação no Poder

PERSONAGEM

Como criador, você poderia pleitear qualquer cargo no governo imaginário.

DRAMATURGO

Guardei uma pedra que tirei de uma das barricadas. Uso como peso de pa-

pel.

PERSONAGEM

Romântico idiota!

DRAMATURGO

Você não morreu ainda?

PERSONAGEM

De acordo com a Rubrica

RUBRICA

O Dramaturgo reescreveu a cena e a Personagem não tem mais câncer.

PERSONAGEM

Um alívio! Todas as suas personagens morrem. Cansei disso... Mas entendo.

É a única maneira de você continuar vivo. Um expediente vagabundo que você

criou para se safar.

DRAMATURGO

Ele destilava a maldade...

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Page 123: Agora Livre Dramaturgias Miolo

123

PERSONAGEM

Eu me recuso a ser uma Personagem de Lautréamont!... Prefiro conti-

nuar sendo sua.

DRAMATURGO

Morreu com 24 anos...

PERSONAGEM

De novo a morte...

DRAMATURGO

“Que a minha guerra contra o homem se eternize, já que cada um de

nós reconhece no outro sua própria degradação... já que somos ambos ini-

migos mortais. Quer deva eu conseguir uma vitória desastrosa ou sucum-

bir, o combate será belo; eu, sozinho contra a humanidade.”

PERSONAGEM

Devo aplaudir?

DRAMATURGO

Cultivo a maldade, como ele.

PERSONAGEM

Inventa a maldade. É diferente.

DRAMATURGO

Será?

PERSONAGEM

Entendi o meu papel.

RUBRICA

A Personagem vai até outro ponto, de onde, olhando como se fosse a

estátua da maldade, fala friamente.

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ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS124

PERSONAGEM

“Se a terra tivesse sido recoberta por piolhos, como pelos grãos de areia

à beira-mar, a raça humana seria aniquilada em meio a dores terríveis.

Que espetáculo! E eu, com asas de anjo, imóvel nos ares para contemplá-

lo!”

DRAMATURGO

Entendeu? Somos o resumo desse embate...

PERSONAGEM

Você pode virar o jogo. Eu não.

DRAMATURGO

Eu também não... Penso, logo não existo!... O que eu faria sem você,

por exemplo?

PERSONAGEM

Não poderia inventar um amigo morrendo.

DRAMATURGO

Não saberia o que é a morte. E, não sabendo o que é a morte, não en-

tenderia a vida. Existe um vão em minha cabeça, por onde correm rios fu-

riosos. Tento atravessá-los, mas a água sempre me joga para as margens...

A certeza de que o cais é de pedra e de saudade. Brumas sebastianistas que

me envolvem. Caos feito de lembranças que se apagam. A foto polaroid

que perde a cor aos poucos. Resta um contorno. Já não consigo saber

como eu era e como serei... A criança cruel que cresceu e destilou seus ve-

nenos íntimos. O adolescente enlouquecido que imaginou enfrentar o

mundo, sem saber que armas possuía. O homem que não tem mais a bús-

sola... Restou o mapa do medo. Conheço cada um dos riscados... Decorei

cada um dos limites desse mapa do mundo que invento. Onde me perco,

sem saber mais qual a palavra exata. A palavra é o veneno que tomo dia-

riamente... esperando que o efeito seja devastador. E nunca é! A palavra é

a criança que eu desejo ser, e essa criança foge, assustada, como se eu fos-

se um monstro... Muitas vezes eu sou um monstro... Mas tantas outras eu

sou aquele que colhe o trigo para fazer o antigo pão. Minhas lavouras in-

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Page 125: Agora Livre Dramaturgias Miolo

125

teriores... Não tenho mais arados... Você é o corvo que eu crio, e que dila-

cera minha colheita... E eu sou o meu próprio espantalho!

RUBRICA

O Dramaturgo se abate. A Personagem já sabe o que lhe cabe. A luz cai.

projeção: Potlatch

RUBRICA

Luz muito fraca. O Dramaturgo volta à sua mesa. Começa a digitar.

Lentamente. A Personagem se senta ao pé dele.

DRAMATURGO

Você sabe o que significa?

PERSONAGEM

Não.

DRAMATURGO

Um presente que não pode ser retribuído.

PERSONAGEM

Potlatch.

DRAMATURGO

Um presente raro...

PERSONAGEM

A minha morte! Você deve sobreviver.

DRAMATURGO

Senta aqui!

PERSONAGEM

Na sua mesa? Não!!! Isso é impossível.

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ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS126

DRAMATURGO

Nada é impossível! Não sonhamos todos com isso também? Senta e di-

gita... Você sabe qual é o texto. Não esquece que tem de escrever também a

rubrica. Ou nada acontece...

RUBRICA

A Personagem senta-se à mesa do Dramaturgo. Este se deita sobre o ta-

pete. A Personagem começa a digitar.

DRAMATURGO

Eles me tiraram da UTI porque eu estou ocupando o lugar de alguém

que ainda pode viver... Entendeu?... Ou preciso pensar por você?... Minha

cabeça já não agüenta mais... Por que você está parado aí na porta do quar-

to? Por que não vem até a minha cama e passa a mão na minha cabeça?

Porque eu já perdi os cabelos? Perdi os cabelos mas os pensamentos estão

todos lá dentro... Talvez enrolados como fios... Torcidos... Nós dados como

em um tapete caucasiano... Mas estão lá... E você fica aí, parado... Não, meu

olhar não é de ódio! Não entenda assim... Meu olhar é um silêncio. Qual a

resposta? Você não sabe?... Então, qual a pergunta?... A vida e a arte... Elas

formam o mesmo desenho... O presente que não pode ser retribuído. Es-

tou esperando por ele. Você é o portador. Vem!

RUBRICA

A Personagem sai da mesa. Vai até o Dramaturgo, que está deitado so-

bre o tapete. Passa a mão na cabeça dele. Faz um carinho em seu rosto. Ten-

ta fechar seus olhos.

DRAMATURGO

Não! Eu quero Luz!... Até o final... Luz!

PERSONAGEM

Quando tudo estiver acabado, você perceberá que o presente foi uma

invenção sua. Como eu sou uma invenção sua, não posso mudar as falas,

nem os gestos, nem as intenções... Sua cabeça! Sua cabeça é a caldeira que

move as palavras... Sua cabeça é uma usina... Você entende o mundo...

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127

DRAMATURGO

Algo precisa mudar! Sei disso! Tire o ar, para que os meus pulmões ar-

rebentem de vez!... Mesmo que o preço seja esse, algo precisa mudar!

RUBRICA

A Personagem estende o braço e fecha o oxigênio. Ao som de Scriabin,

black-out e FIM.

projeção: Transformar a Realidade

São Paulo, setembro de 2001

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Page 128: Agora Livre Dramaturgias Miolo

ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS128

ALCIDES NOGUEIRA

nasceu em Botucatu, em 1949. Cursou a Faculdade de Direito do Largo de

São Francisco (USP). Estreou profissionalmente com a A Farsa da Noiva

Bombardeada (direção de Marcio Aurelio), logo proibida pela Ditadura. O

primeiro sucesso nos palcos aconteceu com Lua de Cetim, novamente diri-

gida por Marcio Aurelio, em 1981. Recebeu os principais prêmios do teatro

brasileiro (Molière, Shell, Governador do Estado, APETESP, APCA, Troféu

INACEN), com peças como Feliz Ano Velho (direção de Paulo Betti), Lem-

branças da China (direção de Jorge Takla), Florbela (direção de Cibele For-

jaz), Traças da Paixão, Ópera Joyce, Pólvora e Poesia (direções de Marcio Au-

relio) e Gertrude Stein, Alice Toklas & Pablo Picasso (direção de Antonio

Abujamra e Marcio Aurelio). A Cabeça (direção de Márcia Abujamra),

depois do projeto Ágora Livre Dramaturgias, entrou em carreira.

Para a televisão, além de novelas, escreveu em parceria com Maria Ade-

laide Amaral as minisséries Um Só Coração e JK, ambas para a TV Globo.

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Page 129: Agora Livre Dramaturgias Miolo

ILMO. “SENHOR”

dramaturgo: Naum Alves de Souza

debatedor: Jefferson Del Rios

MONTAGEM

direção: Celso Frateschi

elenco: Antonio Petrin e Valter Breda

cenário e figurino: Sylvia Moreira

trilha sonora: Aline Meyer

luz: Roberto Lage

produção executiva: Aline Meyer

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130 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

ILMO. “SENHOR”Naum Alves de Souza

Luz em parte do palco. Carmelo tem nas mãos um envelope. Começa a

abri-lo, mas pára. Olha longamente para vários lados do apartamento, para

baixo, para cima. Parece estar vendo nada, só pensando.

Luz em outra parte do palco, outro apartamento. Cesário, mais ou menos

da mesma idade de Carmelo, digita um número no telefone.

Carmelo lê o que está escrito no envelope.

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Page 131: Agora Livre Dramaturgias Miolo

131

CARMELO

“Ilmo. Sr.”

Toca o telefone no apartamento de Carmelo. Ele se assusta e quase amas-

sa o envelope. Hesita, mas acaba atendendo.

CARMELO

Quantos? Sessenta, Cesário, o último dos céticos, a velha fortaleza da

Baixada do Glicério já completou sessenta anos.

CESÁRIO

Carmelo, fazer sessenta é diferente de fazer cinqüenta e nove, Carmelo?

CARMELO

Sabe que é? Quando acordei, me olhei no espelho e vi que já estava com

sessenta anos.

CESÁRIO

Acha que vai ter que trocar as lentes dos óculos?

CARMELO

Acho, não, tenho certeza.

CESÁRIO

E os cabelos?

CARMELO

Não contei quantos, mas sei que tem muitos fios brancos novos que eu

nunca tinha visto, juro.

CESÁRIO

E o resto?

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Page 132: Agora Livre Dramaturgias Miolo

132 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

CARMELO

Se é que eu entendi o que você está perguntando, apesar do fios bran-

cos na região, ainda desempenho com dignidade.

CESÁRIO

Outro dia olhei para a minha perna e vi um monte de veias azuis.

CARMELO

Grandes, saltadas?

CESÁRIO

Não. Azuis, fininhas, principalmente na canela, perto do pé. E eu notei

que tem menos pêlo na canela. Já reparou alguma coisa diferente na sua?

CARMELO

Você não me dá parabéns, não me deseja felicidade, muitos anos de

vida, nada disso?

CESÁRIO

É o seu aniversário, se você não falasse ia passar batido.Vamos comemorar?

CARMELO

Precisamos comemorar para você me desejar muitos anos de vida?

CESÁRIO

Não adianta eu desejar. E se eu desejar e a sua vida for longa e uma merda?

CARMELO

Você acha que eu ainda estou bonito?

CESÁRIO

Qual é? Você é homem, Carmelo... Ou será que depois de velho resolveu

mudar de time?

CARMELO

Você não acha que nós dois já estamos velhos para esse tipo de brincadeira?

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Page 133: Agora Livre Dramaturgias Miolo

133

CESÁRIO

Por que você não pinta os cabelos? Hoje em dia...

CARMELO

Você pinta, não engana ninguém.

CESÁRIO

Ninguém percebe.

CARMELO

Ninguém fala na sua frente. Sabe como fica a sua cabeça quando tem

muita luz em cima?

CESÁRIO

Ninguém nunca falou nada.

CARMELO

Dá para ver os fios do transplante, as raízes brancas. E é um vermelhão

esquisito...

CESÁRIO

O rapaz do salão diz que tinge natural, da mesma cor, como eu era

antigamente.

CARMELO

É só bater luz que fica vermelho. Muita tinta. Dizem que derruba cabelo.

CESÁRIO

Vá tomar no seu cu antes que eu me esqueça.

Bate o telefone e fica ruminando, arrancando fios do cabelo e olhando.

Chora. Carmelo ri, desliga e liga de novo para o amigo. Cesário atende.

CARMELO

Cesário...

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Page 134: Agora Livre Dramaturgias Miolo

134 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

CESÁRIO

Ligou para ofender mais?

CARMELO

Amanhã eu vou me internar no Hospital da Beneficência.

CESÁRIO

Que é que você tem, Carmelo?

CARMELO

Nada.

CESÁRIO

Você está escondendo alguma coisa. É grave? Quer que eu passe aí para

ir junto?

CARMELO

Pode deixar que eu vou sozinho.

CESÁRIO

Não sei como você consegue viver sozinho.

CARMELO

Antes só do que mal acompanhado.

CESÁRIO

Está sugerindo alguma coisa? É alguma indireta?

CARMELO

Vou ser operado de varizes. Faz tempo que estou precisando.

CESÁRIO

Se quiser companhia, é só pedir, faço qualquer negócio para sair de

casa.

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Page 135: Agora Livre Dramaturgias Miolo

135

CARMELO

Depois você vai me visitar com a sua sogra.

(Cesário fica em silêncio, atrapalhado)

Cesário?

CESÁRIO

Eu preciso lhe contar uma coisa.

CARMELO

Ué, conta.

CESÁRIO

Você nunca teve vontade de se casar, ter filhos?

CARMELO

Não.

CESÁRIO

Como não?

CARMELO

Não mesmo. Você ia me contar alguma coisa ou está querendo saber da

minha vida, Cesário?

CESÁRIO

A Guiomar continua do mesmo jeito, Carmelo.

CARMELO

Há quanto tempo?

CESÁRIO

Oito anos. Toda vez que eu vou ao hospital o médico sempre diz que

nunca sabe quanto tempo ela ainda vai durar.

CARMELO

O coração...

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136 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

CESÁRIO

O médico diz que nunca viu coração tão forte.

CARMELO

Nenhuma esperança, então?

CESÁRIO

Nenhuma.

CARMELO

Ia ser melhor se descansasse.

CESÁRIO

Isso é coisa que se fale?

CARMELO

Eu falei. E a sua filha?

CESÁRIO

Está no Afeganistão com o marido, ele é engenheiro e arrumou trabalho

numa construtora brasileira. Ela escreveu que só pode sair na rua coberta

com um véu, só pode ver pelos furinhos do pano. Aqueles dois não voltam

mais. Escreveram tudo errado, contaram que as crianças agora falam só

aquela língua, acho que é turco, sei lá...

CARMELO

E a sua sogra, Cesário?

CESÁRIO

(embaraçado) Outra hora eu falo disso com você. Chegou visita.

CARMELO

Como chegou visita se não escutei ninguém tocar a campainha? Que

está acontecendo, Cesário?

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137

CESÁRIO

Nada.

CARMELO

Como assim nada? Depois de velho deu de ficar mentiroso, Cesário?

CESÁRIO

Não sei se eu conto. Tenho medo de você sair por aí contando para todo

mundo. Me promete que vai ouvir tudo sem fazer gozação.

CARMELO

Xiiii. Se não quiser falar, não fale.

CESÁRIO

É que uma noite, ela já tinha ido se deitar... a minha sogra, você

sabe... Pensei que a Dona Zélia estivesse dormindo... sei lá, fazia tempo

que eu...

CARMELO

Não enrola, Cesário.

CESÁRIO

Calma! Pensa que é fácil? Eu pus um filme pornô para assistir.

CARMELO

No televisor da sala?

CESÁRIO

O do meu quarto estava queimado.

CARMELO

E daí?

CESÁRIO

Ela entrou na sala e...

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138 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

CARMELO

Te pegou em flagrante.

CESÁRIO

Mais que isso. (pausa)

CARMELO

Agora, conta.

CESÁRIO

Nem sei como, aconteceu!

CARMELO

Aconteceu?

CESÁRIO

Que é que você acha? Eu estava no maior atraso.

CARMELO

Nunca ouvi uma história dessas. Foi só essa vez?

CESÁRIO

Não.

CARMELO

Não como?

CESÁRIO

Não, a gente continua...

CARMELO

Entendi. E você não fica com problemas?

CESÁRIO

Fico antes e fico depois.

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Page 139: Agora Livre Dramaturgias Miolo

139

CARMELO

Como assim? Explica direito.

CESÁRIO

Explicar o quê? É isso, fico perturbado antes e depois também. Pouca

coisa. Depois, nenhum dos dois toca no assunto, a gente finge que não

aconteceu nada. Na hora, a única coisa ruim é que eu continuo chamando

ela de Dona Zélia.

CARMELO

E ela?

CESÁRIO

Me chama de “meu filho”.

CARMELO

“Meu filho” na cama não dá.

CESÁRIO

Pois é. Daí eu me lembro da minha mãe e você pode imaginar o que

acontece.

CARMELO

Nunca imaginei que a sua sogra ainda...

CESÁRIO

E me deixa num estado de cansaço...

CARMELO

Com aquela cara de beata?

CESÁRIO

Família é uma merda, Carmelo, bem fez você que ficou solteiro. Vou

rezar por você.

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140 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

CARMELO

Sem exagero.

CESÁRIO

Posso ir te visitar com a Dona Zélia?

CARMELO

Sem problemas, eu finjo que não sei de nada, pode ficar tranqüilo. Reze

por mim.

CESÁRIO

Você está com medo, Carmelo. Que foi que aconteceu com o herege ateu?

CARMELO

Não sei se existe alguém que goste de hospital. Preciso de um calmante.

Um abraço, Cesário.

(desliga o telefone; apaga a luz de Cesário)

Eu é que devia rezar, pedir alguma coisa a Deus não é fácil para mim,

nem sei como chegar a Ele.

(procura e acha uma grande Bíblia e começa a folheá-la; pára numa pági-

na e lê)

“Lembre-se do seu Criador nos dias da sua mocidade antes que venham

os maus dias e neles não encontre alegria.”

(ajoelha-se mas sente dor)

Rezar ajoelhado, sem condições. Deus gosta que as pessoas rezem de

joelhos. Quem procura a Deus tem que ficar em posição de sofrimento,

humilhação.

(fecha os olhos e tenta falar com Deus)

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141

Ilustríssimo Senhor...

Não, parece introdução de carta, jeito antigo de sobrescritar envelope...

Na hora de rezar devo dizer Você ou Senhor? Quando escrevo Deus e Senhor,

é sempre com letra maiúscula, o Senhor deve ter notado a vida inteira.

(hesita e desiste)

Amém.

(pára um tempo, folheia a Bíblia e encontra uma flor seca há muitos anos

e uma foto velha da mãe, à qual se dirige)

Mãe, nem pedi nada a Deus e já fui dizendo Amém. Vou tentar de novo.

(fecha os olhos)

“Senhor Deus, me ajude? O Senhor é poderoso e vingador, não é

mesmo? Mas também está escrito que o Senhor é bom e cheio de bondade.

Nunca entendi essas coisas...

(interrompe e abre os olhos)

Mãe, não consigo continuar. Mãe, a senhora e o meu pai estão aonde?

Estão perto de Deus? Dá para ver ou sentir como Ele é? Eu não devia ficar

falando com a senhora, incomodando quem já está descansando. É que

Deus pode interpretar mal minha oração sem fé. Deus não escuta pessoas

sem fé. É o meu caso. Mãe, vou desistir de falar diretamente com Ele. Se for

possível, olha por mim. Se Deus é grande como a senhora dizia, que Ele

cuide de mim.”

Toca o telefone de Carmelo. Acende a luz de Cesário.

CESÁRIO

Carmelo, desculpe incomodar mas eu conversei com a Dona Zélia e ela

mandou eu lhe dizer que você precisa aceitar Cristo.

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142 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

CARMELO

Posso falar com ela, Cesário?

CESÁRIO

Sem condições, ela está vendo o programa do pastor.

CARMELO

Diga a ela o seguinte: que eu não estou preocupado em aceitar Cristo

por uma razão muito simples: eu nunca o rejeitei. Velha safada!

CESÁRIO

Que história é essa de ofender a minha mulher?

CARMELO

Sua mulher está em coma, Cesário!

(bate o telefone e tira-o do gancho, evitando nova chamada; Cesário ainda

fica tentando discar e a luz dele morre; Carmelo reconhece no envelope a letra

do irmão)

Esta carta é do caçulinha. Deve estar querendo dinheiro emprestado, só

pode ser isso. A gente não se fala desde 68, desde aquele Dia das Mães.

(pega de novo o retrato da mãe)

Mãe, eu não agüentei quando ele defendeu o golpe militar. Teve a cora-

gem de dizer que aquilo era a solução para os males do país. A senhora deve

se lembrar porque mandou a gente parar de brigar na sua frente. E justo o

filho dele foi preso e assassinado, sabe Deus por quê, aquele moço não

tinha nada a ver. O pai e a senhora não estavam mais aqui. No enterro do

rapaz só nos olhamos de longe, nenhuma palavra.

(põe de novo o retrato da mãe no meio da Bíblia)

Como será que está esse meu irmão depois de tantos anos sem a gente

se ver? Rompi com todos, um em cada data festiva. Não perdoei ninguém

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143

e acho que também não fui perdoado. Perdão é osso duro de roer.

(lê a carta)

“Estou convidando você para almoçar conosco daqui a dois domingos.

Resolvi reunir todos os irmãos. A gente não pode ficar desse jeito para o

resto da vida. Por favor, venha e traga a mulher, os filhos...”

Eu nunca tive família. Será alguma despedida? Será que ele está doente?

Houve um tempo em que a gente se gostava, sem fazer cobranças. Depois,

cada um foi ficando mais chato que o outro e rolou muita mesquinharia!

(pensa e fecha os olhos, à procura de Deus)

Não consigo encontrá-lo, Senhor Deus.

Ilmo. Sr. do céu e da terra: já vou avisando: eu não vou nesse almoço.

(lê de novo a carta; abre a Bíblia e pega a foto da mãe)

Mãe, a senhora sempre teve mais intimidade com Ele, lá em cima.

Avise Deus. Sabe o almoço?

Eu vou.

FIM

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144 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

NAUM ALVES DE SOUZA

diretor, dramaturgo, cenógrafo, figurinista e artista plástico. Começou profis-

sionalmente no teatro como cenógrafo e figurinista na peça El Grande de Coca-

Cola (1974), dirigida por Luís Sérgio Person. É autor dos premiados No Natal a

Gente Vem Te Buscar (1979); A Aurora da Minha Vida (1981); Um Beijo, um

Abraço, um Aperto de Mão (1984) – textos traduzidos para diversos idiomas,

publicados e encenados internacionalmente. Dirigiu atores como Marieta

Severo, em No Natal a Gente Vem te Busca, A Aurora da Minha Vida, Um Beijo,

um Abraço, um Aperto de Mão e Cenas de Outono, de Yukio Mishima (1987);

Fernanda Montenegro, em Dona Doida, sobre poemas de Adélia Prado (1990)

e Suburbano Coração, de sua autoria; Sérgio Britto e Cleyde Yáconis, em Longa

Jornada de Um Dia Noite Adentro, de Eugene O’Neill (2002). Foi o criador dos

cenários e figurinos da consagrada montagem de Macunaíma, direção de

Antunes Filho (1978), e de Falso Brilhante, show de Elis Regina dirigido por

Myriam Muniz. Em cinema, fez o argumento, roteiro e diálogos de Romance da

Empregada (1986), de Bruno Barreto. Na dança, roteirizou O Grande Circo

Místico, espetáculo com trilha sonora de Chico Buarque e Edu Lobo, dirigido

por Emílio Di Biasi(1983) e criou diversos espetáculos para J. C. Violla, entre os

quais Senhores das Sombras, Valsa para Vinte Veias, Flippersports, Petruchka,

Salão de Baile e Doze Movimentos para um Homem Só. Criou e apresentou no

Teatro Municipal de São Paulo a Ópera do 500, com música de Nelson Ayres e

Rodolfo Stroeter; Os Pescadores de Pérolas, com música de Georges Bizet; King

Arthur, de Henry Purcell; Jenufa, de Leos Janácek; além das versões compactas

para Carmen e Madame Butterfly e da direção cênica de inúmeros Concertos.

Teve a peça Suburbano Coração adaptada para a televisão e integrou a equipe de

escritores que adaptaram diversas obras da literatura brasileira para o programa

Casos Especiais, direção de Guel Arraes, ambos pela Rede Globo. Criou e con-

feccionou os bonecos brasileiros da série Vila Sésamo, assim como inúmeros

outros mostrados em exposições, estando muitos deles em coleções particu-

lares. Em 2005 suas obras completas para o teatro foram publicadas em

Coimbra, Portugal, pela Fundação Cena Lusófona.

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E ÉRAMOS TODOS THUNDERBIRDS

dramaturgo: Mário Bortolotto

debatedor: Sebastião Milaré

MONTAGEM

direção: Mário Bortolotto

elenco: Aline Abovsky, Fernanda D’Umbra,

João Fábio Cabral, Joeli Pimentel,

Mário Bortolotto e Wilton Andrade

cenário e figurino: Cemitério de Automóveis

trilha sonora e luz: Mário Bortolotto

produção executiva: Nádia De Lion

E Éramos Todos Thunderbirds é uma versão do texto Velhas Variações Sobre o Mesmo

Tema, também escrito em 2001

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ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS146

E ÉRAMOS TODOS THUNDERBIRDSMário Bortolotto

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147

E éramos todos invencíveis. Com nossas coleções de figurinhas. O tênis

Kichute. As balas apache e os desenhos do Zé Buscapé. Éramos orgulhosos

de nossas cicatrizes. Da Nádia Lippi. Da Rose di Primo. Do pai bebum. De

nossas bravatas adolescentes. Do Rivelino, do Clodoaldo e do Tostão. A

gente queria era bandido na seleção. A gente queria o troféu abacaxi. A

gente queria Rita Cadilac na televisão. A gente queria panqueca no café da

manhã e vinho Sangue de Boi. Boquete da Lurdinha no Fusquinha. Nosso

ideal de vida era um salão de sinuca. Ninguém queria ser publicitário.

Ninguém queria lavar pratos em Nova York. Ninguém queria comer sashi-

mi nem tomar santo daime. A gente queria era ver a Linda Blair dar um 180

na responsa. Cult, pra gente, era Jane Russel, malandro.

Éramos punheteiros – jamais onanistas. Éramos consumidores de penicili-

na. Amantes de estrias. Nossos troféus eram bandagens amarelas. A gente

ia tirar a Penélope das garras do Tião Gavião.

Éramos iconoclastas. A gente queria pôr no rabo dos Gurus, das socialites

e dos corredores de Fórmula 1. Era um tempo em que o mundo se dividia

em fodões e cusões.

A gente não usava boca de sino. Não dançava em discotecas e nossos

heróis não morriam de overdose. A gente morria da dor de existir.

Éramos todos Mirisolas. Éramos todos Beavis & Butt Head. Éramos amar-

gos, ressentidos e cheios de raiva. Éramos cínicos e orgulhosos. Éramos de

um tempo em que todo mundo queria ser centroavante.

Estamos velhos e nostálgicos. Estamos chapados e nocauteados. Detonados

no sofá encarquilhado. O babaca de branco já contou até 10. Então, foda-

se. Isso a gente ainda pode falar. Baixinho, mas pode. Foda-se.

Mas ainda vamos chutar alguns traseiros.

Éramos o caralho!

Paula, jogada na parede por Zero. No outro lado, Wellington chuta Jacaré e

joga ele contra a parede.

Paula está sentada em um canto do quarto. Zero entra, vindo do banheiro, e vê

Paula. A princípio, ele não fala nada. Senta na cama e fica enxugando o cabelo.

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ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS148

ZERO

Há quanto tempo você tá aí?

PAULA

Você não lembra?

ZERO

Eu lembro de bem pouca coisa.

PAULA

Você não foi gentil.

ZERO

Conta uma novidade.

PAULA

Você é do tipo que bebe demais e esquece tudo.

ZERO

Eu não bebo pra esquecer. Mas tenho que admitir que esqueço de um boca-

do de coisas quando bebo.

PAULA

Você parecia um louco.

ZERO

E agora? Pareço normal?

PAULA

Quase.

ZERO

Ok, tá legal. Eu trouxe você pra cá e não te tratei bem. Grande coisa. Eu não

quero saber quem você é e o que pensa de mim. Coloca uma roupa e cai fora.

Eu tô a fim de ficar sozinho.

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Page 149: Agora Livre Dramaturgias Miolo

149

PAULA

(pausa de incredulidade) Eu moro aqui.

ZERO

(pausa) Ah. Certo. Então eu é que vou.

Zero sai e passa por Jacaré, que está no chão, levando porrada de Wellington.

Aproveita e também dá uns chutes em Jacaré.

Madonna entra no quarto de Paula. Está vestida de maneira extravagante,

com peruca e botas de salto alto.

PAULA

Não é um bom momento.

MADONNA

Você sempre diz isso.

PAULA

Eu tô falando sério.

MADONNA

Você parece meio puta.

PAULA

Eu pareço meio puta? Eu já nasci puta... em todos os sentidos. Que porra de

roupa é essa?

MADONNA

Você gostou? Eu não tô demais?

PAULA

Cê tá parecendo um travesti.

MADONNA

Eu vou fazer uma performance.

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ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS150

PAULA

É? Do que? De Marilyn Manson?

MADONNA

Porra, Paula. É uma performance de alto nível. Intelectual.

PAULA

Tô vendo.

MADONNA

Cadê o seu marido? Eu quase nunca encontro ele aqui.

PAULA

E eu vou lá saber daquele corno? Deve tá por aí, com aqueles amigos inúteis

dele, se entupindo de maconha e assistindo desenho animado.

MADONNA

Por que você trai tanto o coitado, Paula?

PAULA

Eu sou da seguinte opinião. Se o homem tem pau pequeno, tem que ser pelo

menos bom de cama, né, caralho? E, além do mais, eu me fodi, casei errado, sabe

como é?

MADONNA

Como é que eu vou saber? Eu nunca casei.

PAULA

Eu merecia um cara melhor. Podia ser assim, um publicitário, um personal

trainer, um corredor de Fórmula 1. Sei lá, alguém com uma profissão decente,

promissora. Meu marido é um merda dum traficante de maconha, inútil, que

nem consegue traficar porra nenhuma, porque ele e seus amigos inúteis fumam

todo o produto que deviam comercializar. Depois enchem a cara de cerveja

vagabunda e ficam esparramados num sofá nojento, vendo MTV e desenho

animado. Uns bostas sem futuro. A pior escória. Fracassados já no útero mater-

no. Por isso que eu dou mesmo pra todo mundo, inclusive pros amigos dele. E

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151

eu vou te dizer. Nunca conheci sujeitinhos piores. Totalmente desprovidos de

ambição. Dá pra eles uma lata de cerveja e um disco do AC/DC, e pronto. Os

merdas abrem um sorriso majestoso, se refestelam no sofá e ficam se achando

os melhores do mundo. Passam o tempo inteiro falando mal de todos os caras

bem sucedidos e bonitões, porque, como se não bastasse, eles ainda são feios,

mas são feios pra caralho, e ficam lá, lamentando a ausência de clipes de rock na

MTV.Você consegue acreditar numa coisa dessas? Parasitas como esses existem.

MADONNA

Eles parecem superlegais. Onde é que eu posso encontrar esses caras?

Gambá e Zero sentados no sofá em frente à tv.

GAMBÁ

Aí, Zero, tô vivendo a mó expectativa de te contar uma parada aí, mas tô

achando que não vale a pena, porque você não vai acreditar, sacou? Eu tô liga-

do que você é o mó São Tomé, mó maconheiro de pouca fé.

ZERO

Fala de uma vez.

GAMBÁ

Você quer mesmo saber?

ZERO

Porra, Gambá.

GAMBÁ

Seguinte. Tava de rolê, ali na Frei Caneca, quando de repente passa por mim,

na maior languidez, adivinha quem?

ZERO

Quem?

GAMBÁ

Dona Ciccone.

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ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS152

ZERO

Dona Ciccone?

GAMBÁ

É, porra. Cê não tá ligado na Dona Ciccone? Aí, ó. Isso que dá ficar conver-

sando com prego. Vou traduzir pra você, então. Dona Ciccone é nada mais,

nada menos que... que... a Madonna. Sacou? A Madonna passou por mim, na

Frei Caneca.

ZERO

A Madonna?

GAMBÁ

Aí, não falei que tu não ia acreditar? Eu vi ela passando e fui atrás.

ZERO

Ah, não começa com essa merda, Gambá, eu tô precisando da chave do

carro. Passa pra cá.

GAMBÁ

Era a Madonna, Zero. Tô te falando. Era ela. Aí, eu pensei: essa é a minha

chance. É chegada a hora da “revenge”. Vou dar uns tapa nessa vaca. Vou encher

essa vaca de porrada.

ZERO

Tá bom.

GAMBÁ

Tá bom? Tá bom? Te conto uma parada monstro dessa e é isso que você fala

pra mim? Tá bom?

ZERO

Me dá a chave.

GAMBÁ

Eu fui atrás dela. Ela entrou no shopping Artplex.

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153

ZERO

No shopping?

GAMBÁ

É. Artplex. Na porra do shopping. A vaca entrou no shopping. Acho que ela

pensou que ia conseguir me despistar, a vaca.

ZERO

Não era a Madonna. O que a Madonna ia tá fazendo na Frei Caneca?

GAMBÁ

Cê tava lá?

ZERO

Não.

GAMBÁ

Cê tava lá, maluco?

ZERO

Não, porra.

GAMBÁ

Então, cê não tava, que merda cê tá falando?

ZERO

Quem tá falando merda é você. Me dá a chave.

GAMBÁ

Ela tava falando com um cara grande, no final da escada rolante. Um puta

guarda-roupa. Devia ser um segurança dela. Cê tá ligado que a vaca é cheia dos

seguranças, né?

ZERO

Cê tá chapado.

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ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS154

GAMBÁ

Eu falei, vou dar um tempo. Deixa o cara distrair, e eu chego junto. Vou dar

uns tapa nessa vaca.

ZERO

Que merda você andou fumando?

GAMBÁ

Você sabe, ela é um agente infiltrado no coração das mulheres, uma espiã da

CIA, ela veio pra causar tumulto em corações e mentes femininos.

ZERO

Eu não sei porque eu não te dou uma porrada.

GAMBÁ

E aí eu incluo as bichas também, sabe? Elas também ficam gritando:

Madonna, Madonna. Todas umas porras-loucas. Bando de bicha louca do car-

alho.

ZERO

Gambá, cê tá muito doido. Eu já falei pra você parar de usar toda a merda

da droga.A gente tem que comercializar, não consumir. O que foi que eu te falei?

GAMBÁ

Não usa a porra da droga.

ZERO

Não usa a porra da droga. Não usa a porra da droga. Vivo te falando essa

merda. Não usa.

GAMBÁ

No que o cara deu uma distraída, eu chapuletei ela.

ZERO

Você tá me dizendo que cê deu uma porrada na mulher?

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155

GAMBÁ

Na Madonna, cara. Eu dei um tapão na idéia da Madonna. Tu sacou, meu?

Um puta tapão na idéia.

ZERO

Meu, tu é um doido filho-da-puta.

GAMBÁ

Pode crer, sou meio doido, mesmo, mas alguém tinha que ir lá e tomar uma

providência.A gente não pode deixar essa mulher andando por aí, como se não tivesse

aprontado nenhuma. Ela aprontou várias, entendeu? Várias. Porra, Zero, cê tá ligado.

ZERO

Eu preciso da porra da chave do carro.

GAMBÁ

(joga a chave para ele) Porra, tu é o mó incrédulo. (Zero levanta e vai saindo)

Cara, escrevi um negócio muito louco ontem. Da hora. Cê precisava ver.

ZERO

Cadê?

GAMBÁ

O que, maluco?

ZERO

O troço que cê escreveu.

GAMBÁ

Cara, como é que cê tá sabendo?

ZERO

Não foi você que falou?

GAMBÁ

Cara, tu é o mó vidente. Tu saca tudo. Cê é muito louco. Ah, cara. Cê nem sabe.

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ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS156

ZERO

Num sei.

GAMBÁ

Que merda, cara, que merda.

ZERO

Filho-da-puta. Maluco filho-da-puta.

GAMBÁ

Que merda, meu camarada, que merda.

Zero sai fora. Gambá fica sozinho, sentado no sofá.

Wellington e Jacaré

WELLINGTON

Eu já disse pra você não se meter com minha esposa.

JACARÉ

Mas ela me ama.

WELLINGTON

Quem te falou?

JACARÉ

Ela disse. Disse com todas as letras. Eu te amo. Eu te amo muito. Você é o

amor da minha vida. Eu não posso viver sem você.

WELLINGTON

Ela disse isso pra mim.

JACARÉ

Ah, mas deve ter sido há muito tempo, não foi?

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157

WELLINGTON

É. Foi há muito tempo. E daí?

JACARÉ

Pois é. Ela não sente mais nada por você.

WELLINGTON

Quem te falou?

JACARÉ

Ela, Wellington. Ela me falou. Ela falou assim. Eu não sinto mais nada por

aquele porco do Wellington. Mais nada.

WELLINGTON

Ela me chamou de porco?

JACARÉ

Foi. Eu disse a ela que não era certo chamar o marido de porco. Mas ela con-

tinuou falando. Porco. Porco. Porco.

WELLINGTON

E se eu te der um tiro agora? Um tiro na sua cabeça?

JACARÉ

Isso não vai ser bom.

WELLINGTON

É mesmo? E por quê?

JACARÉ

Você vai fazer ela sofrer. Ela não consegue mais viver sem mim. Foi o que ela disse.

Ela vai sofrer muito. Você ama a sua esposa. Você não quer fazer ela sofrer, quer?

WELLINGTON

E se eu der um tiro na minha cabeça?

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ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS158

JACARÉ

Vai ser inútil. Ela não vai nem se importar.

WELLINGTON

Não?

JACARÉ

Claro que não. Ela não gosta mais de você, Wellington. Não sente mais nada

por você.Você sabe, quando uma mulher pára de gostar, ela não dá mais a míni-

ma pro cara. Você sabe como elas conseguem ser frias e insensíveis. Você não

significa mais nada. Tanto faz se você está vivo ou morto. Ela não sente mais

nada. Acabou, acabou.

WELLINGTON

E se eu der um tiro nela?

JACARÉ

Bem, me parece ser a melhor solução.

Jacaré e Gambá chegam na casa de Paula.

JACARÉ

E aí, Paulinha, meu anjo?

PAULA

Você tinha que trazer o maluco junto?

GAMBÁ

Aí, ó. O maluco é eu.

JACARÉ

Ele quis vir. O que eu podia fazer?

PAULA

Você podia ter explicado pra ele a situação.

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Page 159: Agora Livre Dramaturgias Miolo

159

JACARÉ

Que situação?

PAULA

A nossa situação. Que a gente ia fazer algo íntimo.

JACARÉ

Desde quando o que a gente faz é íntimo? Ah, Paula, parou, né?

GAMBÁ

E aí?

PAULA

E aí o que, retardado?

GAMBÁ

Vocês não vão começar?

PAULA

Que merda ele tá pensando?

JACARÉ

Ele só quer bater uma punhetinha enquanto a gente faz.

GAMBÁ

É. Coisa pouca. Não faço questão de participar do bagulho aí, não.

JACARÉ

Cê não vai regular, né, Paula?

PAULA

Eu não vou transar com esse punheteiro olhando.

GAMBÁ

Iiiiih, olha aí, Jacaré. A mulher tá folgando. Não deixa, não. Vai queimar seu

filme na área. Desce a chinela nela.

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ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS160

JACARÉ

Olha, Paula, eu não queria te dizer, tava evitando. Mas agora eu vou falar.

GAMBÁ

Fala pra ela.

PAULA

Falar o quê?

GAMBÁ

Fala pra ela.

JACARÉ

(para Gambá) Você acha que eu devo mesmo?

GAMBÁ

Ela tá precisando ouvir.

PAULA

Fala de uma vez.

JACARÉ

Eu tava relutando.

GAMBÁ

Não reluta, não.

PAULA

Fala de uma vez.

JACARÉ

Você tá ficando... chaaaata.

PAULA

É mesmo?

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161

GAMBÁ

Pra caralho.

PAULA

Só porque eu não quero foder, com esse punheteiro retardado me olhando?

JACARÉ

Entre outras coisas. A rapaziada anda reclamando. Daqui a pouco, ninguém

mais vai querer foder com você.

GAMBÁ

É. Vai secar a fonte aí, maluca.

PAULA

Vem cá, esse punheteiro já comeu alguma mulher na merda de vida dele?

GAMBÁ

Ah, qual é, ô? Tá maluca? Tá me tirando, é? Aí, Jacaré.

JACARÉ

Conta pra ela, Gambá.

GAMBÁ

(para Paula) Você me provocou. Eu não gosto que me provoquem.Você me

provocou. Agora fodeu. Contarei pra vocês, então, um pouco da minha tórrida

vida sexual. Se alguém tiver problemas cardíacos, retire-se do recinto, narrarei

aqui cenas pornô trash hardcore. Comi uma mulher. Comi mesmo. Comi.

Tinha 22 anos. Fui lá, paguei e comi. Na catega. Tava de saco cheio de ser cabaço.

Num agüentava mais de curiosidade pra saber como é que era.

JACARÉ

E como é que foi?

GAMBÁ

Foram os melhores quinze segundos da minha vida. Aí, fiquei mais oito

anos na punheta. Quando eu completei trinta anos, uma doidona fugida do

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ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS162

Pinel tesou na minha fachada.

JACARÉ

Ele até namorou.

GAMBÁ

Pra você ver. Andei de mão dada. (para Paula) Morra de inveja.

PAULA

Noooossa.

GAMBÁ

E saca só o meu itinerário romântico com a mina. Saca só o meu itinerário

romântico. Levei ela no mesmo dia no Play Center, no Hopi Hari e no Beto

Carrero.

PAULA

E ela ainda continuou com você?

GAMBÁ

Não falei que a mulher era doida?

JACARÉ

Era muito amor.

GAMBÁ

Até que um dia aconteceu a grande tragédia.A grande tragédia aconteceu na

minha vida. A mina me trocou. Como é que pode? Ela teve a manha de me tro-

car. Me trocou por um psiquiatra. Um psiquiatra carioca. Aí, não tinha como,

né? Chegava a ser desleal a disputa.

PAULA

E por quê?

GAMBÁ

O psiquiatra carioca, mina. Não tá ligada no psiquiatra carioca? Psiquiatra cari-

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oca é foda. Porra, o filho-da-puta fornecia Prozac de montão pra ela. Quer dizer, ele

satisfazia as necessidades primordiais dela. Ele falava assim: (com sotaque carioca e

imitando o jeito calmo do psiquiatra canastrão) “pra você, todo o Prozac do mundo,

meu amor. Todo o Prozac que você quiser.” Vocês precisavam ver os olhinhos dela

como brilhavam. Não dá pra competir com alguém assim.

PAULA

Sabe, faz tempo que eu quero perguntar uma coisa pra vocês.

JACARÉ

E que porra é?

PAULA

Como é que vocês conseguem?

JACARÉ

O quê?

PAULA

Ser assim...

JACARÉ

Assim?

PAULA

É... assim... tão fodidos, tão inúteis, tão fracassados...

GAMBÁ

Aí, Jacaré. Ela tá falando de nós?

JACARÉ

Parece.

GAMBÁ

Tu tá muita doida, hein, mina? O bagulho que tu fumou era do bom,

hein?

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ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS164

PAULA

Eu não uso drogas.

GAMBÁ

Cê tá chamando o Jacaré e eu de fracassados? A gente é vitorioso pra cara-

lho. Não devia, porque você não merece, mas mesmo assim vou explicar.

Sintoniza no meu raciocínio. Se liga no meu dial. A gente já tá chegando nos

quarenta anos e não conseguiu porra nenhuma na vida. A gente não tem nada.

Não tem imóvel, não tem filho, não tem profissão, não tem um emprego

decente, não tem futuro, nenhuma perspectiva de vida, não plantamos a porra

da árvore, cê tá sacando?

JACARÉ

É. A gente é demais.

GAMBÁ

Tenho a maior admiração por mim mesmo.

JACARÉ

Eu também. Eu sou o cara que mais curte eu.

GAMBÁ

Se liga, mina.A gente vive numa porra duma sociedade que faz um moleque

de 20 anos se sentir um merda se não tiver um carro do ano. A gente é fodão. A

gente já tá nos quarentinha e não tem merda nenhuma.

JACARÉ

Vou te falar, Paula. Além de chata, tu tá ficando burra pra caralho. Vem cá,

Paula, você bebe?

PAULA

Você sabe que não.

GAMBÁ

Nossa, Jacaré. Já tô ficando com vontade de vomitar.

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165

JACARÉ

Tá na hora de começar. Vamo sair daqui, Gambá. Se tem uma coisa que eu

não agüento é mulher burra.

GAMBÁ

Que porra o Wellington viu nessa vaca?

JACARÉ

Ah, ela até que é gostosinha, né, Gambá?

GAMBÁ

É. (olhando a bunda dela) Admirando assim por esse ângulo, até que dá pra

comer. (para Paula) Mas não se entusiasma, não, hein? Não se entusiasma, não,

que cê tá com a bundinha meio caída.

JACARÉ

E o Wellington ainda paga academia pra uma vaca dessa.

GAMBÁ

Meu, fico injuriado.

Os dois saem indignados.

Wellington chega em casa. Paula não dá a mínima pra ele.

WELLINGTON

O que é que eu vivo dizendo pra você?

PAULA

Cê fala um monte de coisa.

WELLINGTON

Mas o que é que eu vivo dizendo pra você? Me diz.

PAULA

Pra eu não ficar dando pra todo mundo?

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ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS166

WELLINGTON

Por quem você me toma? Eu jamais pediria algo assim. Com quem você

pensa que casou? Com um marido ególatra, machista, conservador, do tipo que

quer a mulher apenas para satisfazer o seu banal prazer pessoal? Você acha que

eu seria capaz de privá-la de sua liberdade? Eu seria um sacrílego sem alma se a

obrigasse a tal procedimento retrógrado.

PAULA

Você nunca me pediu isso porque sabe que não adianta nada. Eu dou pra

todo mundo mesmo e quero mais é que você se foda.

WELLINGTON

Já que você não é capaz de constatar minha abnegação, meu jeito moderno

de ser, então pelo menos podia lembrar do que eu vivo pedindo pra você.

PAULA

Eu não consigo lembrar. Eu não costumo prestar muita atenção em você.

WELLINGTON

Não deixa nenhum outro cara usar meu aparelho de barbear.

PAULA

É isso?

WELLINGTON

É isso. Não deixa nenhum outro cara usar meu aparelho de barbear.

Pode usar você, eu não me importo, mas não pode usar meu aparelho de

barbear.

PAULA

Mas ninguém usou o seu aparelho.

WELLINGTON

Você tá querendo me dizer que eu não consigo saber quando um outro cara

usou o meu aparelho de barbear?

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167

PAULA

Como é que eu vou saber que o aparelho é seu?

WELLINGTON

Porque sou o único que deixa aparelhos de barbear aqui. Seus amantes não

costumam deixar aparelhos de barbear aqui em casa.

PAULA

Por que você tem que deixar aparelhos aí?

WELLINGTON

Porque eu moro aqui. Porque essa é a minha casa e porque eu odeio a idéia

de querer fazer a barba e não ter um aparelho à disposição. Além de tudo, o

aparelho me dá uma sensação de intimidade doméstica, se é que você me

entende.

PAULA

Não.

WELLINGTON

Eu me sinto em casa, confortável e totalmente seguro, se eu souber que no

armarinho do banheiro está o meu aparelho de barbear, esperando paciente-

mente que eu o coloque em ação.

PAULA

Então esconde ele.

WELLINGTON

Como é que é?

PAULA

É isso. Esconde o aparelho. Atrás da saboneteira, da pasta de dente, do deso-

dorante, sei lá. Esconde o treco.

WELLINGTON

Eu não vou esconder o meu próprio aparelho de barbear na minha própria

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ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS168

casa, apenas com a finalidade de evitar que um de seus amantes escrotos e anti-

higiênicos venha a usá-lo sem nenhuma consideração ou uma mísera cama-

radagem masculina, que seja.

PAULA

Como você é egoísta. Porco chauvinista. Só interessado nas suas coisinhas.

WELLINGTON

Você acha mesmo?

PAULA

Eu não sei por que eu ainda perco o meu tempo conversando com você. Por

que você não se mata?

WELLINGTON

Eu tenho pensado nisso.

PAULA

Você pensa demais.

Zero está sozinho em casa. Gambá entra.

GAMBÁ

Zero, cê não vai acreditar.

ZERO

O que, maluco?

GAMBÁ

Eu peguei ela.

ZERO

Ela? Pegou quem? Quem é ela?

GAMBÁ

A tal. A bandida. A sacana.

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ZERO

De quem merda cê tá falando?

GAMBÁ

A Madonna. (mostra Madonna, que está amarrada e amordaçada e é con-

duzida por Jacaré)

ZERO

Gambá, seu filho-da-puta, que merda que cê fez?

JACARÉ

Ele pegou a Madonna.

GAMBÁ

Eu peguei ela, cara. A Madonna. A gente vai foder com ela.

ZERO

Porra, que foi que eu te falei?

GAMBÁ e JACARÉ

Não usa a porra da droga.

ZERO

Não usa a porra da droga, não usa a porra da droga.

GAMBÁ

Eu tava doidão, mesmo, e aí eu vi ela dando a mó sopa, a sacana, na maior

impunidade. Aí eu já barbarizei, né, mano? Capotei a vagaba no soco e empa-

cotei. Agora tá aí. Não pode fazer mais mal nenhum pra ninguém.

ZERO

Pra ninguém?

GAMBÁ

É. Pra ninguém. Cê sabe, pro Sean Penn, pro Warren Beatty, pro Guy

Ritchie, essa vaca fodeu todo mundo. Agora, a gente vai pôr no rabo dela.

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ZERO

Ela nem parece a Madonna. Não tem nada a ver com ela.

GAMBÁ

Essa vaca é cheia dos artifícios, dos subterfúgios, ela se disfarça, vive mudan-

do de cara. Esse é o new look dela.

ZERO

Que merda.

GAMBÁ

Quer ver só? (tira a mordaça dela) Vai, mostra pra ele.

MADONNA

Mostrar o que, pelo amor de Deus? (para Zero) Moço, esse maluco tá doidão.

ZERO

E eu num sei?

GAMBÁ

Mostra pra ele.

MADONNA

Mas o que que eu vou mostrar, moço?

GAMBÁ

Mostra que cê é a Madonna.

MADONNA

Mas eu num sou.

GAMBÁ

Como, não é? Como, não é? Tá me tirando de maluco, é? Mostra já.

MADONNA

(para Zero) Moço, fala pra ele parar.

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GAMBÁ

Canta aí.

MADONNA

Cantar, eu? Mas cantar o quê?

GAMBÁ

(fala baixinho) Like a Virgin.

MADONNA

Como?

GAMBÁ

(constrangido quase sem conseguir falar) Like a Virgin.

ZERO

Mas logo essa?

GAMBÁ

Canta aí.

MADONNA

Ah, eu adoro essa música.

JACARÉ

Essa é do caralho.

Zero e Gambá olham perplexos para Jacaré, que cai na real, percebendo a

merda que falou.

ZERO

Canta logo e acaba com isso.

Madonna canta, desafinada pra caralho.

ZERO

Puta que pariu. Mas é horrível. Vai cantar mal assim lá no Raul Gil.

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ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS172

GAMBÁ

Caralho.

JACARÉ

Que bosta, hein? Madonna é o caralho. Ela tá parecendo mais é a Smurfete.

MADONNA

Cês não gostaram? Eu achei que ficou tão bonitinho.

GAMBÁ

Filha-da-puta. Tá desafinando de propósito.

MADONNA

Eu juro que não, moço. Eu não consigo fazer melhor que isso.

ZERO

Vai, Gambá, reconhece que você se enganou e solta a coitadinha.

MADONNA

É, moço, solta eu. Eu tô me mijando de medo do senhor. Meu, cê é muito

louco.

ZERO

Mas o que é que tá acontecendo com você, Gambá?

GAMBÁ

Mas é a Madonna.

ZERO

Claro que é. E eu sou o Chico César.

Gambá e Jacaré ficam olhando de maneira significativa para Zero.

ZERO

Ah, qual é?

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JACARÉ

Não é uma hipótese absurda.

ZERO

Que é que tá acontecendo com vocês?

JACARÉ

Crise de abstinência de videoclipe.

ZERO

Como é que é?

JACARÉ

É. Desde que a MTV parou de exibir videoclipe, vem acontecendo isso com

a gente. Nós não conseguimos mais reconhecer nossos ídolos pop.

GAMBÁ

É.Agora eles só ficam passando aqueles programinhas de namoradinho, um

monte de mulher falando ao mesmo tempo, consultoria sexual. Uma bosta.

Nunca mais vi o clipe do AC/DC.

MADONNA

Ah, mas agora tá muito mais legal.

Os três olham feio pra ela.

MADONNA

Porra, mas eu nem posso ter minha opinião? Eu aprendi com a Marina Per-

son que esse é um direito meu.

ZERO

É mesmo?

MADONNA

É. Nós, Meninas-Veneno, conquistamos esse direito.

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ZERO

Jacaré, coloca a mordaça nela.

Quando Jacaré vai colocar, entra Wellington.

WELLINGTON

Eu não acredito. Vocês pegaram uma das Spice Girls?

MADONNA

Ah, não. Spice Girls, não.

ZERO

Onde é que cê tava, Wellington?

JACARÉ

Onde é que cê acha que ele tava? Numa pornoshop. Ele não sai de lá. Tava

comprando um consolo tamanho XXG.

WELLINGTON

Só se for pra enfiar no seu cu.

ZERO

Porra, Wellington, não é porque sua mulher anda dando pra todo mundo

que você vai ter que apelar.

WELLINGTON

Que história é essa de todo mundo? Ela se apaixona pelos caras. Nunca é só sexo.

ZERO

É. Eu fiquei sabendo que ela se apaixonou por toda a Mancha Verde.

MADONNA

Não brinca. Eu conheço essa aí. É uma lenda viva. Mas vem cá. Por que que

sua mulher te trai tanto?

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WELLINGTON

É porque eu sou muito voraz.

JACARÉ

Voraz, Wellington? Você?

WELLINGTON

Eu quero toda hora. Sou insaciável. Sou igual ao Michael Douglas.

GAMBÁ

É o maior punheteiro, esse aí. Quando não tá no pornoshop, testando

os consolos, fica de plantão no banheiro dos cinema pornô. Dia desses, eu

estava afins de um programa cultural. Aí, então eu fui assistir o Loira Ar-

rombada 5. Uma puta atriz. Grande interpretação. Determinado momen-

to, me senti na necessidade de me dirigir ao Vespasiano. Lá entrando, me

deparei com o Wellington, que tava lá. Ele não viu que era eu e tentou pe-

gar no meu pau, né, maluco?

ZERO

Porra, Wellington.

WELLINGTON

Qual Spice ela é?

JACARÉ

Não faço a menor idéia.

GAMBÁ

É a Madonna, sua anta.

WELLINGTON

A Madonna agora entrou pras Spices?

JACARÉ

Os clipes realmente fazem muita falta.

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ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS176

WELLINGTON

Primeiro, tiraram nossa esperança, vieram e foderam nossas mulheres, tira-

ram qualquer perspectiva de vida, de um emprego decente, de uma vida alvis-

sareira. Agora, eles tiraram nossos videoclipes.

JACARÉ

Corja.

MADONNA

Mas vocês têm que entender que a MTV agora tá com uma proposta edu-

cacional.

ZERO

Como é que é?

MADONNA

É. Além de estar assim, mais auditório, mais show mesmo, com mais parti-

cipação da galera, entendem? Acho que a MTV devia recontratar a Adriane Ga-

listeu e não esquecer de levar o Zé Pedro, é claro. Imprescindível.

ZERO

Jacaré, o que foi que eu falei?

JACARÉ

Porra, Zero, deixa a garota falar. Ela tem direito a se expressar.

WELLINGTON

Ele anda vendo muita MTV.

GAMBÁ

Eu passava tardes inteiras com uma garrafa de Black Jack vendo ininterrup-

tos clipes na MTV. Agora, eu ligo e tá lá o Marcos Mion. É foda.

JACARÉ

A gente tá perdendo o pé da realidade.

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WELLINGTON

Pode crer. Já tem gente confundindo qualquer Spice Bosta com a Madonna.

GAMBÁ

Vai me dizer que você gosta da Madonna?

JACARÉ

Toda bicha gosta. Toda bicha é chegada numa lesbo-feminista.

WELLINGTON

Bicha é o caralho. Sou corno. Mas bicha, não. Além de tudo, a Madonna é a

mó ninfomaníaca.

GAMBÁ

Só porque tu é corno, não precisa ficar pegando no pau dos amigos.

WELLINGTON

Eu tava muito louco.

ZERO

Que é que eu digo pra vocês?

WELLINGTON, GAMBÁ, JACARÉ e MADONNA

Não usa a porra da droga.

Os três olham feio para Madonna.

MADONNA

É que aquela hora ele falou. Aí eu achei que... ah, eu não falo mais nada, deixa.

ZERO

Não usa a porra da droga. Mas ninguém me ouve.

WELLINGTON

(para Gambá) Mas, afinal, o que é você tem contra as bichas? Isso é descri-

minação, hein?

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GAMBÁ

Eu não tenho nada contra as bichas, desde que elas não fiquem pegando no

meu pau.

ZERO

Mas foi só uma vez. Esse fato isolado não transforma o Wellington num vea-

dão sem nenhuma classe.

JACARÉ

Eu ouvi direito?

GAMBÁ

E como é que você chama um puto que fica pegando no pau dos amigos

dentro do banheiro do cinema?

ZERO

Ele tava só experimentando uma nova possibilidade.

WELLINGTON

Eu tava era muito louco.

ZERO

A gente tá um bando de véio saudosista.

JACARÉ

A gente é véio pra cacete. A gente é do tempo que passava clipe na MTV.

MADONNA

Vocês estão sendo atropelados pela modernidade implacável.

Os quatro não ligam a mínima para o comentário dela.

WELLINGTON

Que horas são?

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JACARÉ

Mais de meia-noite. Por quê?

WELLINGTON

Tá na hora do Al Dente.

MADONNA

Você também gosta, Wellington?

WELLINGTON

Sou amarradão. Ontem, passou um clipe do George Michael.

JACARÉ

Quer coisa mais Al Dente?

ZERO

Ok, Gambá, libera a mulher aí, que a gente tem muito o que fazer.

GAMBÁ

Ninguém toca na Madonna. Daqui ela não sai. Ela é minha. Eu a capturei. E

ela vai ter que pagar por tudo.

MADONNA

Ai, moço, que obsessão.

ZERO

Ela não é a Madonna.

JACARÉ

Como é que você pode ter tanta certeza?

ZERO

Bom... a Madonna é mais...

MADONNA

Vê lá o que cê vai dizer. Eu tô num péssimo dia.

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ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS180

ZERO

Mais... baixinha.

MADONNA

Isso é, mesmo.

WELLINGTON

Silêncio, porra.

JACARÉ

Cê vai mesmo ver essa merda?

WELLINGTON

Eu não perco um Al Dente.

ZERO

Wellington, a gente tem que trabalhar. Ei, pera aí, não é o Depeche Mode?

WELLINGTON

Pode crer.

JACARÉ

Eu gostava quando passava Beavis e Butt Head.

GAMBÁ

South Park, maluco.

JACARÉ

Hoje em dia, neguinho se contenta vendo Depeche Mode.

WELLINGTON

Eu vi no site da MTV que vai passar um clipe dos Pet Shop Boys.

ZERO

Cê tá brincando?

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WELLINGTON

Te juro. Não é demais? E vi também que vão gravar um MTV ao vivo da Ive-

te Sangalo.

ZERO

Caralho. Onde é que cê achou a Madonna, Gambá?

GAMBÁ

Ah, eu peguei ela num sarau.

MADONNA

Eu tava fazendo uma performance.

GAMBÁ

Tinha um bando de xarope no lugar.Abri caminho na cabeçada.Acertei uns

quatro clowns e uns cinco multimerda.

ZERO

Como é que você sabia que eles eram multimídia?

GAMBÁ

Eles falaram. Eles diziam. Eles falam pra caralho. Eles têm o maior orgulho

de ser o que eles são. Os caras são os mó prego. Eles falavam assim: “você não

vai passar. Nós somos multimídia. Nós cantamos, dançamos, atuamos, nos bei-

jamos, nos abraçamos, nos amamos, fazemos uh-uh e participamos de reality

show na tv.” Eu não tive dúvida. Desci a porrada.

ZERO

Mas, afinal, era uma performance da Madonna?

MADONNA

Porra nenhuma. Eu tava declamando um poema do Olavo Bilac.

GAMBÁ

Tá vendo só? Eu não disse que a vaca era cheia dos subterfúgios. Olha só a

que ponto ela chegou.

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ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS182

WELLINGTON

Na hora que passar os Pet Shop Boys, eu exijo silencio.

ZERO, JACARÉ, GAMBÁ e MADONNA

Huuuummmmm!!!

JACARÉ

Wellington, eu vou no banheiro. Tô indo, hein?

WELLINGTON

Pega uma cerveja pra mim.

ZERO

Duas.

GAMBÁ

Três.

MADONNA

Quatro.

GAMBÁ, WELLINGTON e ZERO

Êêêêêê.

MADONNA

Mas ele disse que ia ao banheiro.

ZERO

Onde você acha que a gente deixa o nosso frigobar?

WELLINGTON

Não tem coisa melhor.

MADONNA

O quê?

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WELLINGTON

Cagar tomando cerveja.

ZERO

Rapaziada, não é por nada, não, mas a clientela tá esperando.

WELLINGTON

Zero, como é que você se sente comercializando drogas para uma juventu-

de inocente?

ZERO

É um trabalho como qualquer outro.

WELLINGTON

Eu vi uma campanha antidrogas na MTV. Confesso que fiquei muito

tocado. Minha vida mudou. De agora em diante, eu não vendo mais drogas.

ZERO

Era só o que faltava. Esses corno, em vez de passar videoclipe, ficam queren-

do fazer utilidade pública.

JACARÉ

(entrando com algumas cervejas) Eu comi a mulher do Wellington.

GAMBÁ

Comeu mesmo.

ZERO

E o que é que você achou dela?

JACARÉ

Ah, nada de mais.

WELLINGTON

Nada de mais? A gente tá falando da mesma mulher?

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JACARÉ

É um pouco espalhafatosa. É do tipo que solta gritos primais, esmurra sua

cara, dá chave de boceta e o escambau.Aí, quando acaba o negócio todo, ela per-

gunta, fazendo cara de envergonhada: “eu não fiz muito escândalo, fiz?”

ZERO

Caralho. Será que eu já não comi essa vagabunda? Vem cá,Wellington, como

é que é a sua mulher, assim, fisicamente?

WELLINGTON

Excepcional. Ei, Jacaré, você viu a campanha antidrogas da MTV?

JACARÉ

Eu vi. Desde o dia que eu vi aquilo, eu só tô tomando Sukita. Eles são mui-

to persuasivos.

WELLINGTON

Acho importante esse alerta.

ZERO

Wellington, quer parar de viadagem? A gente vende maconha, esse é o nos-

so trabalho.

JACARÉ

A gente nunca consegue vender nada. A gente fuma tudo.

WELLINGTON

Não é mais o meu trabalho. E, no que depender de mim, também não será

mais o de ninguém aqui.

ZERO

Como é que é?

MADONNA

Muito bem. Gostei de ver. O Napão aí é um sujeito decidido.

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GAMBÁ

(para Madonna) Quer calar a boca? Ei, Wellington, eu vou te dar umas por-

rada, pra você parar de ser tão frescão.

JACARÉ

Vai começar o clipe dos Pet Shop Boys (canta um trechinho).

WELLINGTON

Agora eu quero silêncio no recinto.

ZERO

Olha a contradição. Eles fazem campanha antidrogas e passam clipe dos Pet

Shop Boys. (para Jacaré) Jacaré, me ajuda aqui. Gambá, solta essa mulher e vem

me dar uma força.

GAMBÁ

Te contei que eu escrevi um troço muito louco ontem? Cê tá ligado, né?

ZERO

Tô sabendo. Como é que é, rapaziada? A gente vai deixar a clientela na secu-

ra e ficar aqui vendo esses clipes de boiolagem?

WELLINGTON

Zero, me diga uma coisa. Em suas peripécias sexuais, você tem se protegido

de maneira adequada?

ZERO

(para os outros) Que porra ele tá falando?

JACARÉ

Ele tá querendo saber se você usa camisinha quando trepa.

ZERO

Que merda você tem a ver com isso?

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ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS186

WELLINGTON

Eu, como cidadão cônscio do perigo que nossa geração está vivendo,

não só uso como também indago e procuro convencer os que me cercam

da necessidade do uso do preservativo.

ZERO

Caralho!!! Foi a MTV que fez isso com você também?

WELLINGTON

Sou fã da Penélope Nova. Antes dela, eu era apenas um animal sexual.

Agia apenas de acordo com meu instinto. Era selvagem e voraz. Hoje, sou

apenas voraz.

GAMBÁ

Rapaziada, é o seguinte. Eu não sei quanto a vocês, mas eu vou encher o

Wellington de porrada.

Wellington sai de perto de Gambá.

ZERO

Porra. A gente tem que trabalhar.

JACARÉ

Acho que eu vou comer a mulher do Wellington de novo.

WELLINGTON

Vê se não usa o meu aparelho de barbear.

JACARÉ

O que cê tá falando?

WELLINGTON

Você usou, que eu sei. Acho isso uma puta sacanagem. O sujeito co-

mer a mulher do outro e ainda usar o aparelho de barbear do coitado do

corno.

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Page 187: Agora Livre Dramaturgias Miolo

187

ZERO

Isso é desumano, Jacaré.

GAMBÁ

Você fez mesmo isso?

JACARÉ

Ah, qual o problema?

Enquanto eles estão discutindo, Madonna sentou na poltrona em frente à tv e

está com o controle na mão.

ZERO

(gritando) A gente tem que trabalhar.

Madonna muda de canal. Todos olham pra ela.

MADONNA

Às vezes, na vida, a melhor alternativa é mudar de canal. (pausa; todos ficam

olhando) Se necessário for, deve-se tomar até uma atitude ainda mais drástica

como... desligar a tv.

Ela desliga. Silêncio. Alguns segundos.

GAMBÁ

(para Zero) Olha o que eu escrevi ontem. Aí, ó. Lê pra rapaziada.

Compartilha aí minha sabedoria com os demais. (para Madonna) Aí, mina, se

liga aí que é papo cabeça. (para Wellington, que tenta ler o que está escrito no papel

na mão de Zero) Porra, Wellington, sai fora. Deixa o Zero ler o bagulho aí. Não

estrova. (Wellington se afasta um pouco) Vai, Zero, deschava. Deschava.

ZERO

(lendo) “Éramos todos Thunderbirds. Com nossa honestidade vagabunda.

Com nossa santidade amaldiçoada. Com o nosso firme e desprezível propósito

de não chegar a lugar nenhum. Nós, que não acreditamos em nada, com nos-

sos despertadores quebrados, nossas rotas de fuga interdidatas. Nós, que não

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ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS188

queremos ser notícia, nós, que não merecemos crédito e não entramos na cor-

rida dos ratos. Nós, que alimentamos nossas panças precoces e proeminentes.

Vamos queimar em algum sol de alguma praia vagabunda. Nós e nossas ereções

secretas e silenciosas.

Estamos à procura de uma nova identidade.” (silêncio)

GAMBÁ

Demais, hein? E aí, mina? Cê sacou?

MADONNA

Mais ou menos.

GAMBÁ

Do caralho. E aí, rapaziada?

ZERO

Acho que é melhor a gente tomar uma cerveja.

JACARÉ

Pode crer. Depois a gente podia ir todo mundo comer a mulher do

Wellington.

ZERO

É. Pode ser.

WELLINGTON

Eu também?

JACARÉ

Você não, né, Wellington? Deixa de ser depravado. Quer comer a

própria mulher? Coisa mais nojenta.

GAMBÁ

(dando um tapão em Wellington) Seu tarado.

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189

JACARÉ

E a Madonna?

GAMBÁ

Ela não é a Madonna.

JACARÉ

Como é que cê pode ter tanta certeza?

GAMBÁ

Ah. A Madonna é mais...

ZERO

Baixinha.

GAMBÁ

É isso aí. A Madonna é a mó pigméia.

Vão saindo.

JACARÉ

Pode crer. Você comia, Gambá?

GAMBÁ

Quem?

JACARÉ

A Madonna.

GAMBÁ

Ah, sei lá. Acho que eu dava uns tapa naquela boceta.

WELLINGTON

Ela não faz muito o meu tipo, mas, como eu sou muito voraz, acho que até

encarava, é claro que com todos os cuidados necessários. Afinal, a Madonna é uma

mulher muito volúvel, dizem até que ela é promiscua, não sei se vocês sabem.

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ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS190

ZERO

Wellington, cala a boca.

GAMBÁ

Eu vou te dar umas porrada.

Madonna fica sozinha segurando o controle remoto. Liga a tv. Está passan-

do o clipe de Like a Virgin. Ela assiste um pouquinho e até canta timidamente

um trecho. Depois levanta e vai até a porta. Vira-se para a tv. Assiste mais um

pouquinho. Aponta o controle remoto e muda de canal. Está passando o clipe

do Kiss de Rock and Roll All night. Ela sorri e assiste um pouquinho. Depois

se vira e vai embora dançando. Música fica tocando em volume alto.

Mário Bortolotto

manhã de ressaca de cerveja & churrasco (2001)

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MÁRIO BORTOLOTTO

escritor, dramaturgo, diretor de teatro e ator. Nascido em Londrina (PR),

tem dois romances publicados: Bagana na chuva e Mamãe não Voltou do

Supermercado, um livro de poesias (Para os Inocentes que Ficaram em Casa),

um livro de textos de jornal (Gutemberg Blues) e quatro volumes com seus

textos de teatro. Ganhou o Prêmio Shell de Teatro como “melhor autor de

2000” pelo texto Nossa Vida não Vale um Chevrolet, e Prêmio APCA de

2000 pelo “conjunto da obra”. É diretor do Grupo de Teatro Cemitério de

Automóveis.

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COR DE CHÁ

dramaturga: Noemi Marinho

debatedor: Francisco Medeiros

MONTAGEM

direção: Márcia Abujamra

interpretação: Noemi Marinho

cenário e figurino: Leopoldo Pacheco

trilha sonora: Aline Meyer

luz: Augusto Tiburtius

produção executiva: Cris Bonna

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194 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

COR DE CHÁNoemi Marinho

Uma mulher, por volta de seus quarenta anos, urbana, espera em casa e se

prepara enquanto espera.

Urbana põe a mesa para um chá para dois.

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URBANA

(pegando a alça do bule)

Arre! Tem dia que até coisa que não é elétrica me dá choque!

É, tá bom assim. Um chá. Chá é neutro. Café é muito informalzinho. Fica pro-

saico demais aquele negócio que não termina: “aceita um cafezinho?”, “traba-

lho nenhum”, “só se já estiver feito”, “acabei de passar”, “acabei de tomar”, “é só

pôr uma água pra ferver”, “se não for incomodar...”, “eu já ia passar mesmo”. Já

vai me dando vontade de botar umas moedas na mão da criatura que não me

ajuda e despachar ela para um café numa padaria bem longe. Chá é melhor. A

garrafa térmica com água pelando de quente até a boca, o bule, a louça... tudo

à mão. Nenhum trabalho.

Talvez eu não devesse ter posto tudo na mesa com antecedência. Parece que

eu estou recebendo para um chá. E para receber para um chá está muito mi-

xuruca. Garrafa térmica, esses biscoitinhos maizena... Eu vou tirar os biscoitos.

(tira o pratinho de biscoitos e contempla a composição)

Acho que vou tirar também a outra xícara. Essa xícara vazia, sozinha,

ao lado da outra com chá fica uma coisa muito triste. Se fosse um quadro

iria se chamar “A Ausência”. Ou “Tarde de Solidão”. Péssimo, a xícara sai.

(tira a xícara)

Deixo só a minha.

(analisa)

Ficou bom, muito bom. E se fosse um quadro já iria se chamar “Chá”. Não

esconde nem revela nada, só significa. Uma coisa substantiva. Como eu.

Ainda tem tempo. Parece que eu estou aflita, mas não estou, não. Es-

tou respirando, ó! E estou respirando até embaixo que eu não sou besta.

Se ficar respirando só aqui em cima é a maior bandeira de ansiedade.

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196 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

Estou sentindo o diafragma subir e descer, subir e descer. Prefiro essa

barriga dilatada àqueles ombrinhos travados de gente ansiosa. Ansiosa

e desinformada.

Eu falava para soltar aqueles ombros, para não respirar só em cima. Vo-

cê acha que me ouvia? Claro que ninguém acha que alguém fosse me ou-

vir. Eles acham que têm a vida inteira para escangalhar que não tem pro-

blema. Eu tenho pra mim que isso piorou muito com aqueles joguinhos.

Chega a me subir um calafrio quando ouço, em qualquer lugar, criança

gritando “Perdi uma vida! Só tenho mais quatro!”, “Perdi outra vida! Mer-

da! Só tenho mais duas vidas!”. É uma coisa muito edificante mesmo! To-

da aquela educação construtivista, aquela papagaiada de criança “enquan-

to indivíduo”, de “texturas” e a criança se desenvolvendo e sendo avaliada.

E sem a elementar noção de que a vida é uma só!

Se eu lembrar, quando eu morrer, minhas últimas palavras serão: “Mer-

da! Perdi uma vida!”. Fica aquela impressão de que eu saí jogando lá do ou-

tro lado. Tomara que eu me lembre. Se bem que, se eu não sair desta vida

dizendo “Ufa!”, já posso considerar que foi uma saída bem elegante.

Não é verdade que eu fique pensando na morte. Não acho que ela es-

teja tão perto. Nem acredito que esteja tão longe que não possa me ver de

lá. E essa distância respeitosa tem construído uma convivência de boa vi-

zinhança, sem muita intimidade e com bastante cerimônia.

Eu não tenho nem cinqüenta anos e tenho, já há muito tempo, umas coi-

sas de gente velha. Não digo manias que mania é coisa para quem pode

manter ou pra quem mantém quem ature. Coisa de velho que eu digo que

eu tenho é, por exemplo, pensar que secretária durante muito tempo não

era a eletrônica. Secretária era uma escrivaninha. Quantas vezes, quando pe-

quena, eu não ouvi: “pega na secretária”, “guarda na secretária”, “deixa na se-

cretária”. E não eram recados numa memória, eram objetos num móvel. A

secretária ainda existe. Está comigo. Ela fica no escritório e só eu a chamo

de secretária. Mais por teimosia, para não deixar ela se degenerar em escri-

vaninha, mesa de trabalho, mesinha, armário, estante, troço. Traste. Essa vo-

lúpia de quem chega de querer mudar o nome das coisas e das ações eu pos-

so até entender, um pouco. É um modo, um pouco selvagem, de dizer que

aquilo é deles. Não só deles, mas mais deles agora que eles rebatizaram.

Quando a coisa velha ganha com mais cor, com mais brilho, com mais hu-

mor, seu nome novo automaticamente resiste e fica. Geladeira! Geladeira é

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197

ótimo. Muito melhor do que refrigerador. A língua tem que apanhar para

aprender quem é que manda. Manda quem fala, claro. Se bem que ela an-

dou apanhando tanto que nem quem batia estava se entendendo mais.

Quem bate agora, diga-se de passagem, não fala. Ao menos comigo, não fa-

la. É uma coisa absolutamente “tipo-assim”. Esses nossos novos estrangeiros

parece que estão procurando uma palavra para completar um raciocínio.

Completar é exagero – para começar um raciocínio. Mas não estão. Já en-

contraram: “tipo-assim”. E por aí ficam, como se tivessem inventado uma

nova língua do pê. “Eu queria-tipo-assim, comprar-tipo-assim, uma sandá-

lia-tipo-assim ? atenção para a regra: “tipo-assim” vem sempre antes de ver-

bo no infinitivo! ? pra tipo-assim-sair.” Eu fico pensando se ele quer mesmo

que eu entenda ou, como na língua do pê, ele está falando em código justa-

mente para eu não manjar. Mas, considerando que estamos só os dois, eu sei

que ele deve ter intenção de se comunicar. Mais do que isso, ele tem o pro-

pósito de se profissionalizar, já que todos vão tipo-assim-fazer faculdade de

tipo-assim-Comunicações. Não consigo imaginar os jornais, as tevês, as rá-

dios, os teatros... Não consigo. Nem tento.

Eu, por acaso, fiz Comunicações. Mas, no meu tempo... Merda! Falei!

(começa a fazer abdominais)

Vai pagar dez abdominais, burra!

(paga as dez)

Eles podem até me levar para um asilo, eu vou. A barriga pode estar

solta, desarranjada, mas o abdome vai estar definido.

Eu não sei precisar quando, mas o fato é que aconteceu. Na régua do

tempo da história, nasceu um grosso risco vermelho. Depois disso passou

a haver o tempo deles e o meu tempo. Eu sei que não devo falar no meu...

Não falei! Não falei! Mas continuo a imaginar esse traço vermelho. Até

aqui, daqui pra lá.

A primeira vez que um deles me chamou de histérica eu tive gana de

abrir um atlas de anatomia, um livro de história natural, quis dissecar um

cadáver e mostrar onde fica a histeria! Histeria nasce no útero! E eles es-

tiveram lá. Que a única função deste aqui foi salvá-los, foi guardá-los. E

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198 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

que se agora está causando distúrbios é porque alguma merda eles fize-

ram por lá!

Mas eles são eles e eu sou eu.

(bate com os olhos na mesa e avalia)

Estou achando que está faltando xícara. Vou pôr mais uma. Ou duas.

(põe três xícaras)

Eles estão gostando mais de português. Da língua portuguesa. Talvez

seja moda. Já ouvi anúncio de hambúrguer ensinando concordância no-

minal. Caguei.

Ai! Esta merda de garrafa térmica está dando choque, mesmo!

Útero... eles não gostam de pensar nisso – eu também não gostava –, mas

a única coisa que justificou a sua existência foram eles. Para que útero,

ovários, trompas de Falópio, anos de menstruação antes e depois deles?

Parece tão claro, tão cristalino...

(olhando o relógio de pulso)

Será que meu relógio parou? Que coisa mais antiga relógio parar,

relógio atrasar, adiantar... Eles nem imaginam que a gente tinha que

dar corda no relógio todo dia. Relógio bom tinha que ter uma coisa

que eu nunca soube o que era: 17 rubis. Eles hoje têm que ter uma

bateria. Só. São de plástico, de aço e, agora sim, trabalham de graça e

por conta própria.

A Rita Lee é mais velha do que eu. E continua sendo. Todas as outras

que eram mais velhas, hoje, não sei como, são mais novas do que eu. Ba-

teram nos quarenta e não conseguiram ultrapassar. Ficam batendo e vol-

tando. Batendo e voltando. Não passam dos quarenta.

A natureza não dá ponto sem nó. Não foi à toa que ela escolheu a

frente da cabeça para colocar os olhos. Porque assim a gente só vê a pró-

pria imagem por um ato de vontade. Se os olhos não fossem só dois? E

se ficassem, por exemplo, nas mãos? Seríamos todos obrigados a nos ver

o tempo todo e por todos os ângulos. Com o passar dos anos, eu posso

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garantir que isso não seria bom. Eu acho muito mais saudável e ameno

ter uma vaga noção do próprio rosto do que uma memória fiel e cons-

tantemente atualizada. Prefiro o choque esporádico de entrar num da-

queles elevadores com luz fria e branca, que vem de cima distribuindo

sombras, e que reflete no espelho aquela figura assustada e travada que,

há quem acredite, sou eu. Não é só na vida da Blanche du Bois que os es-

pelhos se tornaram menores, as luzes, indiretas, os filtros, difusos. Isso

não é feng shui, não. Automaticamente vai acontecendo. Os próprios

olhos começam a pedir mais distância deles mesmos para poderem se

encarar em um reflexo. É natural.

A imagem que eu tenho de mim mesma ninguém pode dizer que se-

ja uma memória. Auto-imagem nunca foi auto-retrato. É muito mais

uma combinação feliz de fragmentos que me agradam. Ou que me agra-

daram um dia. E essa minha composição cubista só é contrariada nesses

malditos elevadores ou em algum inóspito provador de roupa.

Com a memória também é assim. A memória não trai. Simplesmen-

te a memória nunca teve nenhum compromisso com a realidade. Não se

armazena realidade na memória. Na memória a gente só guarda o que é

capaz de reconhecer. Não posso guardar um diálogo em latim, não pos-

so guardar lances de uma partida de beisebol. A minha memória é um

órgão de digestão de realidades. Uma vez a minha irmã me disse que se

eu resolvesse escrever as minhas memórias seria o primeiro caso de uma

autobiografia não autorizada. Fomos criadas na mesma casa, na mesma

época, pelas mesmas pessoas e não temos nem a mesma história e mui-

to menos a mesma memória do que foram aqueles tempos. Comemos a

mesma comida e o meu sangue e o dela contam duas vidas diversas.

Além de tudo somos mulheres. Homens usam os olhos como arremessa-

dores de setas, têm o olhar focado. Eles olham o centro das coisas. Nós,

não. Nosso olhar é solto. Nossos olhos passeiam por tudo, lambem os

cantinhos, passam sugando impressões. A gente não elimina o que não é

foco, como os homens. Em nós, tudo o que não é foco significa o foco.

Eu sei que sou bem assim e vivo com medo de me perder. O mundo é

cheio de focos que têm que ser bem focadinhos para que ele funcione. Te-

nho medo de perder o tal foco. Tenho medo, às vezes, de nem saber qual

é o tal do foco. É para me ancorar que eu escrevo, eu anoto, eu faço tan-

tas listas, tantos bilhetes. E nunca jogo fora. Quem sabe alguém, algum

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200 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

dia, me peça um comprovante material da minha realidade? E vou ter lá,

bem guardado na secretária, um papelinho velho qualquer provando

que é tudo real.

Não é prático ser mulher. Sei que é necessário, não discuto, é bonito.

E também é tarde demais para trocar um dos dois X que recebi por um

determinante cromossoma Y. Mas prático, definitivamente, não é. Ter que

viver com a minha memória aleatória, com meu olhar sem foco, com

meus alucinógenos hormônios e ter todo ano que fazer declaração para o

imposto de renda? Quem pode acreditar nesse personagem? O leão? A

Receita Federal?

Eu não acredito que eles tenham esse tipo de conflito. Ser homem,

ser mulher... eles são eles! Ser eles é mais que tudo. Tem sido assim e de-

ve ser bom que seja assim. Eles se sabem imortais. Sabem que nós so-

mos os mortais, e que muito provavelmente eles vão ter que nos ver

morrer. Natural que eles tenham que se acreditar imortais para que a

roda gire.

Eu já começo a poder ter medo de ser alcançada por alguma doença

degenerativa. A Terra, que é a Terra, nunca antes hospedou tantos micró-

bios quanto agora. Nem ela se acostumou à idéia de nos carregar por tan-

to tempo. Eu me coloco no lugar dela e fico pensando: “Os que já viveram

não vão mais parar de viver? Vão ficar vivendo mais e mais, cada vez

mais?” Vamos, sim! Ah, dona Terra, aqui na superfície tudo se renova, se

recicla. Não estou falando de papel, de vidro, de latinhas – que isso eu me

cansei de separar para depois saber que eles juntavam tudo de novo e jo-

gavam no lixão. O que se recicla aqui são as relações. Os maridos, as mu-

lheres, as mulheres dos maridos, os maridos das mulheres dos maridos.

Pois eu não tenho um sobrinho que tem irmãs que não são minhas sobri-

nhas e que, por sua vez, têm irmãs que não são nem meias-irmãs do meu

sobrinho? Parece mais uma daquelas charadas “quem sou eu?”, daquelas

bem antigas.

No fundo a gente sabia que esta rede estava se armando. Já saber se é

bom ou se é ruim eu não preciso saber agora. Talvez eu nem vá saber ao

certo. Mas sei que dei minha contribuição involuntária e agora não há

mais nada a fazer. Se bem que a esta altura meus recentes relacionamen-

tos e eu mesma já somos puro reaproveitamento de material orgânico.

Todos já tivemos um casamento aqui, outro ali, um filho aqui, outro lá.

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Não foi a gente que inventou a produção, a reprodução independente?

Esse modelo novo era para ser uma coisa simplesinha e acabou sobrando

mãe, sobrando filho, sobrando pai, sobrando irmão. Tudo assim meio

solto e com um pouquinho de raiva. Raiva de se chamar Brisa do Brasil,

raiva de a filha querer casar virgem e morar em Miami com a família do

pai que nunca deu bola para ela, raiva da mulher do pai que não contava

com uma enteada mais velha do que ela. Raivas variadas.

Essas raivas, pelo menos, nós não vamos mais provocar. São raivas fi-

sicamente improváveis de se repetirem.

Eu não sei o que eles queriam, mas estou certa de que decepcionamos a to-

dos. Com boa intenção? Tenho certeza de que eram as melhores. Eles, por

acaso, nos seguem, nos têm como modelos? Que esperança! Eles nos ne-

gam não com um novo modelo ativo, mas com um traço. Com uma tarja

onde se pode ler bem claro: EXPERIÊNCIA REPROVADA - NÃO RE-

PRODUZIR.

Será que algum de nós entende perfeitamente o que se passa conosco?

Nós deveríamos ser como aqueles macacos da experiência em que todos

tentam resolver um problema e, no instante em que um deles consegue,

automaticamente, todos os outros aprendem a mesma solução.

Nós, humanos maduros, ficamos cada um em sua célula tentando tirar os

véus desse mistério que é o que se passou, o que é o que está se passando.

Eu me pergunto se é assim mesmo. Se, de fato, existe mais alguém emba-

tucado nessas tramas.

Eu fui vivendo e fui tecendo uma trama que eu não via. Nesse tecido,

que eu ainda não vejo, fui puxando um pouco a trama, um pouco a urdi-

dura sem um desenho conhecido para reproduzir. Essa tapeçaria tem pon-

tos irregulares. Regiões de pontos apertados, regiões tão esgarçadas que se

pode ver o outro lado. Tapete e tapeceira são uma e a mesma coisa: eu

mesma, minha vida e minha obra. Não há distância suficiente para poder

contemplar o resultado. Não posso me afastar porque não há mais fio que

nos una e jamais nos reencontraríamos. Eu poderia cometer o erro fatal de

acreditar que qualquer outra tapeçaria fosse a minha, e então a minha ver-

dadeira vida e o meu trabalho em vivê-la estariam perdidos. E talvez eu

nunca viesse a descobrir esse engano.

Passei a vida então apalpando, retorcendo, alisando, querendo adivi-

nhar o sentido do que foi feito. Não o da época em que foi feito. Procuro

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202 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

sentido hoje naquilo que foi feito há tanto tempo com tanta intenção e

que eu não lembro.

Reconheço em mim no mínimo duas: a que preparou este futuro e a

que se intriga com o presente que recebe.

Enquanto eu ainda me encantar com os pontos, enquanto eu ainda sus-

peitar de algum desenho que possa se completar, eu saberei: está confir-

mado, eu estou viva.

E é indispensável estar viva e com boa aparência para poder entrar

em um shopping e numa só manhã poder tocar toda a infinidade de

texturas que existe no meu planeta. E quem sabe, com sorte, pressentir

mais um pequeno trecho de desenho.

Eles, é claro, figuram no meu tapete. Eu não cheguei a desejar arden-

temente ser o grande medalhão central no deles, mas, bem lá dentro, eu

tenho muita vontade de ter um destaque, sei lá. Estar numa cena engra-

çada, ser uma cor que briga, ser uma pincelada de cor de chá num fun-

do escuro. Como eu também tenho vontade de que eles descubram lo-

go que a vida é uma e só uma tapeçaria.

Mas esses são desejos muito secretos. E, como é próprio da natureza

dos desejos nunca se saciarem, não há nada que eu possa fazer.

(som de campainha de telefone; Urbana responde sem usar nenhum

aparelho)

Pronto!

...

Ela não vai subir?

...

Eles estão com pressa, é?

...

É, a esta hora não tem mesmo como parar.

...

Já estou indo.

(som de telefone desligando; Urbana se ajeita, “confere” a ordem da casa,

da mesa)

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203

URBANA

(para a platéia) Eles têm pressa.

(Urbana pega a garrafa térmica e fica com ela junto ao corpo; vai saindo

do palco em direção à saída para a rua)

É a minha carona... a última... É.

B.O. PANO

Noemi Marinho

inverno de 2001

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204 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

NOEMI MARINHO

atriz, dramaturga e diretora teatral. Estão entre suas mais recentes atuações

em teatro, cinema e televisão: Cor de Chá, de sua autoria, direção de Már-

cia Abujamra (2001); Quanto Vale ou é Por Quilo?, de Sergio Bianchi; Caiu

o Ministério, de França Júnior, adaptação de Atílio Bari, direção de Emílio

de Biasi, programa Senta que Lá Vem Comédia, da TV Cultura (2005).

Recebeu os prêmios APCA, categoria atriz revelação (1978), espetáculo O

Segredo do Velho Mundo, direção de Iacov Hillel; e Mambembe, categoria

melhor atriz (1988), espetáculo Risco e Paixão, direção de Francisco Medei-

ros. Dirigiu os espetáculos Apareceu a Margarida, monólogo de Roberto

Athayde (2000); Os Reis do Improviso, comédia musical de Jandira Martini

e Marcos Caruso (1997); Corte Fatal, de Paul Portener, temporada no Au-

ditorium Casino Estoril - Cascais, Portugal (1995), entre outros. Em televi-

são, realizou diversos trabalhos como dramaturga: Seus Olhos, telenovela

em co-autoria com Ecila Pedrosa, direção geral de Henrique Martins, SBT

(2004); os programas semanais de humor Balacobaco, direção de Rodrigo

Riccó, Rede Record (2001), Brava Gente, direção de Roberto Talma, SBT

(1996); Sai de Baixo, direção de Daniel Filho, Rede Globo (1996); Dorothy

Veiga, colaboração nos quadros para Regina Duarte, programa Fantástico,

Rede Globo (1995); Era Uma Vez Zil, adaptação para a televisão de Home-

less, episódio da série Retratos de Mulher, direção de Del Rangel, Rede Glo-

bo (1994); Revistinha, programa juvenil diário, TV Cultura (1989). É auto-

ra de textos teatrais como Almanaque Brasil, cujo espetáculo contou com

sua direção (1993); Solteira, Casada, Viúva, Divorciada, episódio Solteira, di-

reção de Marcelo Saback (1992) e Marcelo Araújo (1995); Homeless, direção

de Francisco Medeiros (1989), vencedora do prêmio Shell de melhor autor

(1991); Fulaninha & Dona Coisa (1988), prêmio APETESP de autor revelação.

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Page 205: Agora Livre Dramaturgias Miolo

O MUNDO É UM MOINHO

dramaturgo: Fauzi Arap

debatedores: Aimar Labaki e Gianni Ratto

LEITURA DRAMÁTICA

direção: Tunica Teixeira

atores convidados: Cristina Rocha, Nelson Baskerville,

Nilton Bicudo, Rita Elmôr e

Valter Portela

trilha sonora: Aline Meyer

luz: Laura Figueredo

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Page 206: Agora Livre Dramaturgias Miolo

206 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

O MUNDO É UM MOINHOum ato de Arap

...o mundo é um moinho

vai triturar teus sonhos tão mesquinhos,

vai reduzir as ilusões a pó.

Cartola

PERSONAGEM

RUBENS velho autor beirando os setenta anos de idade

LUÍS jovem aspirante a ator, recém-formado

VERA atriz batalhadora, do grupo de Luís

LILINHA atriz sonhadora e mística

RODOLFO ator bonitão, também do grupo

CENÁRIOS

Sala do pequeno apartamento de Rubens, no centro velho de São Paulo.

Muitos papéis e pastas espalhados revelam que ali mora um homem só. No

canto direito, o escritório da casa de Vera, onde os atores do grupo se reúnem.

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Page 207: Agora Livre Dramaturgias Miolo

207

CENA 1

LUÍS

(de pé, junto da porta) O senhor não vai me testar?

RUBENS

Não, não precisa. Pode começar amanhã, se puder.

LUÍS

Posso, claro. Se bem que eu achei... Disseram que o senhor queria me co-

nhecer.

RUBENS

Eles entenderam mal. Eu só queria dar uma olhada, ver a cara de quem vai

mexer nos meus papéis. Está muito bem, está tudo bem. Amanhã.

LUÍS

E eu começo por onde?

RUBENS

(impaciente) Qualquer coisa, qualquer coisa está bom. Pergunta lá na Se-

cretaria. Não são eles que vão te pagar?

LUÍS

Mas eles disseram que depende do senhor. Não explicaram nada.

RUBENS

Esse negócio de “memórias” e organizar meus arquivos não passa de pre-

texto! Eles só precisam de uma desculpa pra justificar os gastos comigo! Qual-

quer coisa serve! A verdade é que estão com medo que eu morra e resolveram

me ajudar. São velhos amigos e devem achar que eu não vou durar muito. Que-

ro só ver a cara deles, se demorar mais do que eles pensam.

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Page 208: Agora Livre Dramaturgias Miolo

208 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

LUÍS

O senhor está enganado, ninguém está pensando nisso, de jeito nenhum!

Ninguém falou nada de morte, imagina! O senhor está ótimo, não está? (o ou-

tro não responde) E o interesse existe porque o senhor faz parte da história da

cultura, da cidade, do país. E é pra isso que servem as Secretarias de Cultura!

RUBENS

Papo furado. Eles sabem que essas anotações são pessoais e, mesmo que te-

nham servido pra mim, no passado, não são úteis pra mais ninguém! E eu só

aceitei porque preciso do dinheiro.

LUÍS

Bom, claro. Ninguém trabalha de graça.

RUBENS

Você acha que é trabalho? Deixar alguém vir aqui fuçar meus papéis, você

acha que isso é algum tipo de trabalho?

LUÍS

Bom, quer dizer... O trabalho já está feito.

RUBENS

Responde, o que é que você acha disso?

LUÍS

Não sei. Disso, o quê?

RUBENS

Mesmo que fosse trabalho, disso! Do dinheiro, trabalhar por dinheiro.

LUÍS

Não sei, não tou entendendo. Todo mundo não trabalha por dinheiro?

RUBENS

O que é que você faz na vida? Sua profissão? Qual é?

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Page 209: Agora Livre Dramaturgias Miolo

209

LUÍS

Eu sou ator.

RUBENS

(surpreso) Ator, como? E o que é que você veio fazer aqui?

LUÍS

Por que a surpresa?

RUBENS

Porque, pra mim, ator representa, ensaia e participa de espetáculos. Pelo

menos, no meu tempo, era assim. Você está desempregado?

LUÍS

Não. Quer dizer, eu tenho esse emprego. Seja como for, é um privilégio po-

der estar aqui, com o senhor!

RUBENS

Privilégio, ora! Privilégio por quê? Quantos anos o senhor tem? Eu tenho

certeza de que o senhor não sabe coisa nenhuma sobre nada do que eu fiz!

LUÍS

Como não?

RUBENS

O senhor não era nem nascido quando eu comecei.

LUÍS

Mas o que é que tem? Eu adoro teatro, é tudo que eu mais gosto e eu sei que

o senhor tem muito pra ensinar. É claro que nunca vi um espetáculo seu, mas

eu vi as fotos, li artigos.

RUBENS

Então, não conhece!

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Page 210: Agora Livre Dramaturgias Miolo

210 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

LUÍS

É a primeira vez que eu vou fazer um trabalho assim, mas eu aprendo

rápido.

RUBENS

A primeira vez? Então, também não tem experiência?

LUÍS

Se o senhor me ajudar a levantar o material, eu tenho certeza de dou con-

ta do recado. É claro que eu estou contando com o senhor!

RUBENS

Pode tirar o cavalo da chuva. Contando comigo, por quê? Você está aqui

pra organizar um arquivo, certo? E vai lidar com papéis. Eu espero que o nos-

so convívio seja o mínimo possível. Se você não sabe como fazer, vai ter que

se virar.

LUÍS

Mas por que tudo isso?

RUBENS

Ora, por quê. Eu não quero ser incomodado, eu disse pra eles! E só aceitei

porque me garantiram que eu não teria nem que olhar pra quem viesse aqui.

LUÍS

Mas eu tenho um prazo.

RUBENS

E eu com isso?

LUÍS

O senhor não pode ao menos me dar uma dica?

RUBENS

Dica? Que tipo de dica?

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Page 211: Agora Livre Dramaturgias Miolo

211

LUÍS

Sei lá. Por onde começar?

RUBENS

Eu tenho muita coisa escrita e solta, não vai faltar material! Isto aqui está

um caos, você não está vendo? Começa com qualquer coisa. Aquele monte de

pastas, que tal? Espero que não seja enfadonho, para um candidato a ator. (o

rapaz começa a fuçar) Ah, nessas gavetas, não! Só tem coisa pessoal.

LUÍS

Então, está vendo? É melhor o senhor me mostrar.

RUBENS

Desculpa, mas eu não suporto nem a idéia de ter que olhar pra isso de

novo. Pra mim, é tudo matéria morta. Eu prefiro que você faça como qui-

ser. É só não mexer nas gavetas. É a eles que o senhor vai ter que prestar

contas, não a mim.

LUÍS

(surpreso) O senhor não tem computador, certo?!

RUBENS

E o que é que tem?

LUÍS

Posso levar o material pra digitar?

RUBENS

Digitar? Aqui em baixo tem uma papelaria, que tal xerocar?

LUÍS

E fotos, o senhor tem?

RUBENS

Poucas. Você não vai precisar vir todos os dias, vai?

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Page 212: Agora Livre Dramaturgias Miolo

212 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

LUÍS

Não, acho que não. A que horas é mais confortável pro senhor? Eu vou ten-

tar incomodar o mínimo possível.

RUBENS

Você não acha que, pruma primeira visita, já está bom? Esses papéis não

servem pra nada, não queira se enganar. (aponta os papéis) Eles não têm mais

nada a ver! E eu só aceitei pelo dinheiro, como você. E, por hoje, não quero per-

der mais tempo. Tudo bem. Pelo dinheiro. Uma vez por semana. Tá bem?

CENA 2

RUBENS

Pensei que tivesse desistido. Você sumiu.

LUÍS

Não, de jeito nenhum. Foi uma gripe.

RUBENS

Você não é bom mentiroso.

LUÍS

Imagina! Pra que que eu ia...? (confessa) Foi um teste que eu tive que fazer,

não deu pra avisar. Eu até pensei em ligar, mas não quis incomodar.

RUBENS

Teste? Que tipo de teste?

LUÍS

Comercial.

RUBENS

(com cara de nojo) Comercial? De televisão? E eles pagam por isso?

LUÍS

Quase nada, é um bico. Mas, pra quem vive duro...

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Page 213: Agora Livre Dramaturgias Miolo

213

RUBENS

Bico? Mais um? Hoje em dia, ator só vive de bico?

LUÍS

Acho que a coisa é mais complicada do que no seu tempo. Eu fiz escola de tea-

tro, direitinho, me formei, mas não tem emprego pra todo mundo. Então, a maio-

ria vive de dublagem, dá aula, faz comercial, todo mundo se vira. E o sujeito deixa

um book na agência, na esperança de ser escolhido pra alguma coisa. Se tiver sor-

te, arranja um comercial e sobrevive um pouco melhor, algumas semanas. (pausa)

Por que o senhor não valoriza a pesquisa que vou fazer aqui, com o senhor?

RUBENS

(hesita) Porque é uma mentira, ninguém precisa dela.

LUÍS

Como não? E se o senhor tivesse morrido?

RUBENS

(rápido) Não disse que eles estão esperando que eu morra?

LUÍS

Não é isso, todo mundo morre um dia... E se alguém quisesse estudar sua

obra!?

RUBENS

Você acha que alguém ainda tem tempo pra ler? Com essa correria desata-

da atrás de dinheiro? Inda mais uma pesquisa!? E essa coisa de “obra”, eu não

entendo o que é. (sai para a cozinha)

LUÍS

(enquanto examina o que já digitou, grita) Alguns papéis estão datados e

outros, não.

RUBENS

(responde de fora) O destino deles era a lata de lixo. (volta pra cena) E as

idéias, as boas idéias, independem do contexto histórico. Pra que datar?

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214 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

LUÍS

Mas claro que é importante! As datas situam o leitor.

RUBENS

As melhores idéias vêm sempre do nada, de repente, num raio! O dia e a

hora não têm importância nenhuma. Talvez a única coisa que importe seja a

verdade.

LUÍS

Que verdade?

RUBENS

Verdade. Só existe um tipo de verdade. Quando você se entrega e confia no

outro e fala a verdade. Você, desde que chegou, está tentando me enrolar.

LUÍS

Eu?

RUBENS

O que é que você está querendo?

LUÍS

Nada. Só fazer meu trabalho. Eles querem um depoimento ordenado, que

sirva de base para o livro.

RUBENS

Depoimento, que depoimento? Deixa ver se eu entendi, eles querem publi-

car? Como se fosse um depoimento?

LUÍS

Mas, e se publicarem, que é que tem?

RUBENS

Você não acha que é muita pretensão sua achar que pode escrever minhas

memórias, um ator que nem empregado está? Ora, ora!

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Page 215: Agora Livre Dramaturgias Miolo

215

LUÍS

As memórias são suas, eu não vou ter nada a ver com isso.

RUBENS

Faz tempo que eu perdi a memória. Eu vou telefonar já pro Secretário e sus-

pender esse negócio.

LUÍS

Mas o que é que tem de mais? (hesita) Eu não estava enrolando, eu só esta-

va aguardando o momento certo pra falar. Eles pediram que eu perguntasse se

o senhor não teria interesse em...

RUBENS

Não tenho. Nenhum interesse, em nada. Há muito tempo que eu não

tenho interesse em coisa nenhuma. Mas eu vou ligar já e acabar com essa

palhaçada.

LUÍS

Por favor, não! (pausa) Tudo bem. A idéia foi minha. Eles não tocaram nes-

se assunto, de jeito nenhum. A idéia foi minha!

RUBENS

Eu acho melhor o senhor procurar outro emprego, outro “bico”. Eu não

posso conviver com alguém que mente desse jeito, pra se aproveitar.

LUÍS

Não, por favor! O senhor compreendeu mal. Eu estou encantado com o

que li, e acho um desperdício que as pessoas não possam ter acesso a isso

tudo. (pausa) Eu preciso deste emprego. (pausa) O senhor não acha impor-

tante deixar, quem sabe, uma herança, um testamento?

RUBENS

Eu não entendo sua cara-de-pau. Testamento, por quê? Eu ainda não estou

morto, e nem pretendo morrer tão já. Esse é o ponto: todos me tratam como

se eu já tivesse morrido.

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216 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

LUÍS

Desculpa, eu não quis dizer que...

RUBENS

(enquanto disca) Eu sabia que não ia funcionar. Eu nunca soube conviver

com esse tipo de trabalho corrupto, onde as coisas são acertadas na base do fa-

vor, pra favorecer um amigo. Não podia mesmo dar certo.

LUÍS

Corrupto, por quê?

RUBENS

Tudo o que se faz hoje em dia é em nome do dinheiro ou em nome do pas-

sado. Eu não vejo ninguém fazer nada em nome do futuro. (termina a ligação)

Está ocupado. O que é que eles fazem naquela Secretaria, que não largam do

telefone, o dia inteiro?

LUÍS

Eu já me desculpei, será que é tão difícil entender? Não foi por mal. (o ou-

tro vai e abre a porta) Tudo bem, eu também não vou morrer por causa disso.

O senhor faça como quiser. Desiste, pega todos estes papéis e enfia!

RUBENS

Que bom, desistiu do papel de bonzinho? Já é um começo.

LUÍS

Quem o senhor pensa que é? Eu nunca vi tamanha arrogância. Enfiado

aqui, neste apartamento, trancado e tratando todos e tudo com um mau hu-

mor e uma condescendência, como se fosse o dono da verdade! Tudo tem um

limite. Não me interessa se foram seus amigos que resolveram bancar esse es-

tudo. O senhor deveria agradecer!

RUBENS

Então, estamos conversados. Pode ir, eu não estou interessado na sua

opinião!

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Page 217: Agora Livre Dramaturgias Miolo

217

LUÍS

O senhor pensa que é fácil não ter trabalho e ser obrigado a viver de “bico”?

RUBENS

(irônico) Por que é que o senhor não faz televisão? Novelas? Vai fundo.

LUÍS

Quem me dera! Mas não é fácil. O senhor acha que eu não faria, se fosse

convidado? E o senhor devia dar graças a Deus por ter amigos e não precisar ir

prum asilo! De onde vem essa pretensão? E o senhor, por que não trabalha? Se

tá tão lúcido, não tá doente, e nem vai morrer, por quê? Vá à luta, então! Tra-

balha. Por que o senhor não tenta?

RUBENS

Ah, confessou? Agora você confessou! É por dinheiro, é apenas por dinhei-

ro que você está aqui. Não respeita meu trabalho coisa nenhuma! Nem conhe-

ce, nem respeita!

LUÍS

Respeito, claro que respeito! O senhor é quem não respeita o meu! Isso aqui

é um serviço digno, importante, que pode ajudar muita gente! Ninguém tem

a obrigação de conhecer o que o senhor deixa escondido a sete chaves! O se-

nhor vive escondido, como um ermitão, e há quinze anos não produz, não se

manifesta. Eu até pensei que o senhor fosse mais velho do que é. Por que o se-

nhor nunca mais escreveu coisa alguma, se despreza tanto o que já fez?

RUBENS

Quem disse que eu nunca mais escrevi? E quem disse que eu desprezo...?

Ninguém está interessado! Por isso. Ninguém!

LUÍS

Eu estou. Eu não estou aqui!

RUBENS

O teatro de hoje é uma mentira! Não existe, não existe mais teatro. Nin-

guém sabe mais o que está fazendo. Não existe mais ideal, nem pesquisa.

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218 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

Como é que se pode fazer teatro, sem nem conhecer quem está do seu lado? O

teatro profissional não passa de putaria, se você quer saber. Um bando de gen-

te que se reúne pra fazer uma peça porque dá prestígio, pra ocupar o tempo,

enquanto a televisão não chama de novo! Isso que se faz nunca foi teatro. Não

existem mais grupos.

LUÍS

Como não? Existem vários! O senhor é que está por fora. Há quanto tempo

o senhor não sai, não vai ver um espetáculo? O senhor vive aqui, fechado nu-

ma ilha de preconceito, e imagina estar acima de tudo e de todos. Qual é? Isso

é uma doença, a pior doença. O senhor parou no tempo. (ameaça sair)

RUBENS

Talvez, talvez eu tenha parado. Mas o que o senhor chama de grupo com

certeza depende do governo, ou da Secretaria, pra sobreviver! Duvido que eles

não vivam correndo atrás de patrocínio, esmolando apoios, pra poder fazer a

arte “idealista” que escolheram fazer. Mas, pra fazer teatro hoje em dia, é preci-

so se vender! Isso não é ser livre. Não existe mais ideologia nenhuma a não ser

o dinheiro.

LUÍS

O senhor está por fora. Existem grupos que são criticados porque até pare-

cem aqueles dos anos sessenta. E o senhor não conhece.

RUBENS

Conheço, sim, são os piores. Porque acreditam nessa conversa mole que

chamam de História! Na mentira da História! Será que eles não percebem que

a História que é contada é mentirosa? Eles só copiam a forma do que foi feito,

não existe vida no que eles fazem. Parece um prato requentado, não existe vi-

da, não! Até os grupos começam seus projetos com alguém fazendo contas

para ver se é lucrativo, se é viável, e tomando todo tipo de compromisso com

a realidade, pra não correr risco nenhum! Mas isso tira a liberdade de alma pra

pensar. Ninguém mais pensa, essa é que é a verdade. As pessoas querem con-

sumir, consumir tudo: margarina, sexo, até a história, o passado, a “cultura”

embalsamada do passado, mas pensar, que é bom, é indigesto.

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219

LUÍS

Eu quero que o senhor saiba que eu não vim só pelo dinheiro, não! Eles in-

ventaram esse projeto por sua causa, é o senhor quem está precisando! Por

mim, eu poderia fazer outro trabalho qualquer! Mas o senhor é quem manda.

Tudo bem, eu vou andando. (vai até a porta) Desculpa qualquer coisa.

RUBENS

(chocado) Quem disse que eu tou precisando?

LUÍS

Desculpa, eu não deveria ter... ter dito uma coisa dessas.

RUBENS

Essas esmolas que dão à cultura são pra simular que está tudo bem. Eu

tenho vergonha, o senhor está me entendendo? Eu tenho vergonha de de-

pender desse dinheiro! Durante anos, me deixaram à margem, definhando,

sem resposta, sem apoio, sem coisa nenhuma, e de repente me redescobri-

ram. Por quê?

LUÍS

Mas é assim que o mundo funciona!

RUBENS

Eu sei, mas eu tenho vergonha de fazer parte disso! No meu tempo, eu ti-

nha a ilusão de que meu trabalho importava. Mas acabou, meu tempo passou

e eu perdi todas as batalhas! Porque o mundo não mudou, nada mudou, nem

vai mudar! E não foi a ditadura, nem a falta de dinheiro que acabou comigo. É

que eu mesmo não acredito. Eu não consigo mais acreditar em nada. Meus

amigos morreram, e eu não tenho mais com quem falar, e eu também morri

um pouco, com cada um deles. Acho que eu não passo de um morto-vivo, se

o senhor quer saber!

LUÍS

O secretário é seu amigo; só quer ajudar. E a idéia de fazer um livro eu só

tive porque eu estou encantado com o que eu li. Sinceramente.

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220 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

RUBENS

Não é amigo, nunca foi. Sempre foi meu adversário, se é que o senhor me

entende! Nossas idéias nunca bateram. E agora eu aprendi com ele a palavra

mágica - visibilidade.“Eu quero te ajudar, mas você precisa dar umas entrevis-

tas, pra que eu possa...” Talvez o senhor não tenha consciência, mas até mesmo

o senhor só se lembrou de mim por causa dos jornais. A matéria que saiu, foi

ele que arrumou. E foi só por isso que, de repente, eu renasci. O artifício colou.

Capa do segundo caderno, fotos e... milagre! Funcionou! Adoraram porque fa-

lei mal de tudo. Eles adoram quem fala mal. Quando alguém esculhamba com

o que existe, está prestando um favor a quem não quer se comprometer.

LUÍS

Mas ele quer ajudar. Não sei se é seu amigo, mas é como se fosse.

RUBENS

Não é amigo, sempre político, sempre viveu pro sucesso e nunca mediu as

conseqüências para ter as rédeas na mão. E, agora que tudo passou e ele ven-

ceu, quer mostrar que o poder é magnânimo. Nós dois já estamos velhos, e é

só por isso que ele pode ter a elegância de querer me ajudar. Existem verdades

impronunciáveis, que só os mais velhos conhecem. Ele deve sentir pena da mi-

nha teimosia, só isso. É caridade, não amizade. Porque eu não conto mais. Fi-

ca subentendido que eu sempre estive errado.

LUÍS

Não pode ser! Eu sei que ele admira o senhor!

RUBENS

Tanto faz, não tem mais importância. Está tudo podre! Eu estou podre, vo-

cê também está! Você não vê? Não sou eu quem está morrendo, é um tempo

que está acabando. Eu sou o último estertor. Ele resolveu homenagear a agonia

de tudo em que ele também um dia acreditou. Nós sonhávamos com um tea-

tro para o povo. Engraçado. Para o povo! Nunca conseguimos chegar nem na

classe média, quanto mais no povo. E quem pode ir ao teatro, hoje em dia?

Com tanta gente nas ruas, pedindo, bebendo, morando, morrendo nas ruas,

que importância pode ter o teatro pra essa gente? Com sorte, o que eles podem

é ver televisão, e olhe lá! O teatro sempre foi feito pra uma elite, pra burguesia,

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221

e fazer um teatro popular nunca passou de um sonho. Uma ilusão, como as ou-

tras. (pausa) Pode ficar à vontade, pode ir, não liga pro que eu disse. Eu sei que

deve ser difícil sobreviver no mundo do jeito que está. Eu não quero te cansar.

LUÍS

O senhor não quer mesmo, então? (o outro não responde) Tá bem, eu vou

andando.

CENA 3

RUBENS

De novo? Eu pensei que nós tínhamos resolvido. O que foi agora?

LUÍS

Eles vão mandar outra pessoa, eu só vim me despedir. Eu me demiti, tou

fora da Secretaria.

RUBENS

Não sei por que essa mania de mentir e fantasiar. Deve ter sido porque eu

liguei e disse que não queria. É claro que foram eles...

LUÍS

Não, fui eu que pedi pra sair. O senhor tem fama de difícil, eles nem liga-

ram. Me ofereceram um outro serviço. Mas eu não aceitei. (o outro hesita) Pos-

so entrar?

RUBENS

Eu estou ocupado.

LUÍS

Eu trouxe o material que ficou comigo. Um pouco só. Não custa me rece-

ber. Eu não vou ganhar nada com esta visita. Eu só quero falar com o senhor.

(o outro abre)

RUBENS

Quer um café?

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Page 222: Agora Livre Dramaturgias Miolo

222 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

LUÍS

Não, obrigado. (Rubens sai, Luís fica) É o senhor mesmo quem faz?

RUBENS

E o almoço, também. É bom mexer na cozinha e trabalhar com as mãos,

me ajuda a descansar. Só tem uma faxineira, que vem duas vezes por semana.

LUÍS

Tem um texto onde o senhor diz que a vida verdadeira não cabe nos

arquivos de um computador e que o que importa realmente só é transfe-

rível pelo convívio vivo entre as pessoas. Mais ou menos isso! Depois da

última visita, eu não consegui parar de pensar nisso. (Rubens volta com

uma bandeja e café) O senhor sempre viveu sozinho? Me disseram que o

senhor foi casado.

RUBENS

Há muitos anos.

LUÍS

Uma atriz?

RUBENS

Era. Uma atriz. Especial.

LUÍS

Disseram que ela...

RUBENS

Desapareceu.

LUÍS

Morreu?

RUBENS

Pra mim, continua viva.

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Page 223: Agora Livre Dramaturgias Miolo

223

LUÍS

Na sua memória ou...?

RUBENS

Açúcar?

LUÍS

Adoçante.

RUBENS

Adoçante não tem.

LUÍS

Açúcar, tudo bem. Eu... Eu posso...? Eu gostaria de poder continuar a vir

aqui.

RUBENS

Pra quê?

LUÍS

Não sei. Pra aprender.

RUBENS

Mas e seus compromissos, seus testes? Você não tem tempo, tem que ga-

nhar a vida.

LUÍS

Não, de jeito nenhum, não é problema. Eu descobri que ando fazendo tu-

do errado. Não foi pra isso que eu quis estudar teatro. O senhor está coberto

de razão, eu acho que eu entendi. Pra sobreviver, eu andei sacrificando o es-

sencial, e eu quero começar tudo de novo.

RUBENS

O senhor está querendo me agradar?

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Page 224: Agora Livre Dramaturgias Miolo

224 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

LUÍS

Não, quer dizer... Eu nem sei. Eu quero crescer e acho que o senhor, aqui, à

margem, parece que o senhor não está contaminado por uma espécie de febre,

de correria... Pelo espírito desse tempo. Por mais difícil que seja, eu quero ten-

tar. (pequena pausa) O senhor aceita?

RUBENS

Eu não sei o que pensar. O que é que o senhor quer de mim?

LUÍS

Eu faço parte de um grupo, e a gente anda em crise. Eu contei pro pessoal

do senhor, e os olhos deles brilharam. Eles pediram pra ver se o senhor aceita

uma turma de alunos.

RUBENS

Eu não suporto dar aula, menino. (hesita) Quantos são?

LUÍS

São quatro, comigo. O núcleo mesmo são quatro.

RUBENS

(ri) Quer saber? Eu não vou abrir mão do dinheiro da Secretaria. Eu conti-

nuo duro e não foi nada fácil conseguir. Tive até que me internar. Eles devem ter

te contado. Antes, eu cansava de ligar e ninguém me atendia. Aí, eu tive essa

idéia. Tomei os últimos comprimidos que eu tinha e me internei. Eles falaram

em suicídio, mas não foi nada disso. Foi puro teatro! Fiquei no hospital uma se-

mana. Pra repousar. E eu precisava comer. Eu sabia que algum jornalista bobo

ia descobrir e dar uma notinha, nem que fosse na página policial! É melhor eu

ligar pra eles, antes que me mandem outro chato. Vou dizer que fico com você!

LUÍS

Mas eu não quero mais o emprego, eles já deram baixa, eu não posso mais

voltar. Vão ficar loucos comigo.

RUBENS

Que nada, vão achar normal, deixa comigo. Burocracia é a praia deles, é

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Page 225: Agora Livre Dramaturgias Miolo

225

tudo o que eles têm. E vão me achar louco do mesmo jeito.Você continua. Não

custa ajudar o governo a patrocinar uma pesquisa verdadeira. Só que aqui é

muito pequeno, não vai caber todo mundo.

CENA 4

VERA

O projeto não era esse, Luís. Você pirou!? A gente gastou um tempo enor-

me se preparando, e agora você quer jogar tudo fora?

LUÍS

Você não está entendendo.

VERA

Nós prometemos um nome famoso, alguém com prestígio, eles não vão

aceitar. É uma multinacional, Luís! Não foi fácil arranjar a grana e, pra mudar

tudo agora, só se fosse um outro nome forte. Eles ainda não fecharam com a

gente, e não vão querer, de jeito nenhum.

LUÍS

Mas o velho é uma lenda! Ele tem história, ele fez a história do teatro, o que

é que eles podem querer mais? Vai ser a grande volta de João Rubens Pessoa! O

homem é um gênio, você vai ver!

VERA

Que lenda, o quê! Ninguém mais sabe quem ele é. É louco, isso sim! Todo

mundo fala. Um velho caquético, que consegue ficar tanto tempo longe, sem

fazer coisa nenhuma, não tem nada a ver! Ninguém vai querer investir, ele es-

tá mais pra lá do que pra cá.

LUÍS

Não é nada caquético. Quando se anima, parece um menino, mais ágil do que

eu. Você não conhece, por isso tá falando. Nós podemos aprender um monte.

VERA

Cai na real, Luís, esse cara te enfeitiçou. O tempo dele já era, ele já era.

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226 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

Deve estar dando graças a Deus por ter arranjado um trouxa pra aturar suas

histórias, e ainda levar uma grana. (vai pro computador)

LUÍS

Não é assim, me deixa falar. Calma. Presta atenção. Não tem nada a ver com

feitiço. Eu estou com o material todo, ele tem meia dúzia de textos inéditos, eu

tenho certeza que você vai se apaixonar! Ele não parou de trabalhar esse tempo

todo. Antes de mais nada, eu quero que você leia parte do material...

VERA

E nem eu tou a fim de guru. Chega! Já pastei um monte de tempo no An-

tunes e depois no Oficina. Agora, eu quero liberdade. Eu larguei todos meus

empregos pra tocar nosso projeto. (pequena pausa) Foi ou não foi? Agora você

não pode me deixar na mão!

LUÍS

Ele é um autor. Não custa ler, não vai te tirar um pedaço. E o Secretário es-

tá disposto a investir nele. Acho que é culpa, sei lá. Os dois eram rivais, ou coi-

sa parecida, e agora resolveu ajudar o outro. Talvez a gente nem precise mais

correr atrás de patrocínio, o Secretário banca, você vai ver! Eles são da mesma

geração, vai rolar, eu tenho certeza. E ainda é capaz de a gente ficar com algu-

ma sala do Estado.

VERA

Ah, nem vem, não é nada disso! O Júlio, que é o braço direito do Secretário,

é que é apaixonado por você e é claro que é capaz de fazer o que você quiser.

LUÍS

Não fica repetindo uma coisa dessas. Ele só me indicou pra pesquisa por-

que eu sou bom, não teve nada de pessoal.

VERA

Pra cima de mim, Luís? Você anda dormindo com ele, não anda?

LUÍS

Não!

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227

VERA

Você é o maior mentiroso que eu já vi. E mente até pra você mesmo. Foi só

depois que você topou namorar com ele que ele te arranjou esse bico. Foi ou

não foi? Tou falando mentira?

LUÍS

Foi coincidência.

VERA

E esse patrocínio você tinha mesmo ficado de arranjar, desde o início.

Mas pro nosso projeto, que está pronto, escrito, aqui! Eu já te falei: é minha

última tentativa. Se não der certo, eu mudo de profissão. Você sabe quantas

noites eu varei fazendo as contas e montando tudo direitinho, de acordo com

a lei? Eu não vou jogar tudo fora, agora. Eles iam achar que nós piramos. O

projeto não era em torno de um clássico manjado, conhecido, consagrado?

Nós discutimos isso muito bem. Eles não querem saber de texto inédito. Pon-

to. Pra eles, não interessa. Texto nacional, só se fosse de um nome muito co-

nhecido, e que estivesse na moda. Não tem cabimento essa mudança. Eu que-

ro resolver minha vida já. Eu não sou bonitinha, a Globo não vai me chamar

nunca! E não sou filhinha de papai, pra ficar enrolando.

LUÍS

Me dá uma chance. Vamos fazer uma leitura. Se você não balançar, eu pro-

meto entrar na tua. Uma tentativa. Que tal?

CENA 5

Luís e Vera lêem trechos de escritos de Rubens, iluminados em contraluz.

LUÍS

(em tom de segredo) Palco iluminado: o mergulho é tão solitário e

particular, único, que chega a ser um mistério mesmo para o ator-agen-

te do processo. Mesmo público, só. Criação não é nunca do ego. É neces-

sário o sacrifício da consciência pessoal, para o acesso ao espaço real-

mente criador.

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228 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

VERA

E, por isso, a imagem pública do artista é anti-arte, pela própria contradi-

ção em que mergulha o envolvido. Prêmios e dinheiro, e mesmo uma plena

aceitação social, obrigam o ator a abandonar a solidão original implícita à cria-

ção e à convivência com o Absoluto. Toda solicitação mundana que se segue ao

sucesso é a antítese da pobreza, do não saber, do vazio e da humildade interio-

res e da nudez que possibilitam o contato. (a luz clareia o ambiente) Mas nem

uma peça é! São notas esparsas, não servem para nada. Não existe diálogo, his-

tória, nada. Não é teatro.

LUÍS

Não é uma peça, eu sei, mas é só um ponto de partida. Ele acha que só

havendo um compromisso em torno de uma idéia é que pode acontecer o

teatro verdadeiro. Justamente por isso, não é só mais uma peça. Ele tem tex-

tos prontos, também, não se preocupe! Eu só estou querendo te mostrar o

sentido da coisa. O que ele busca, a ideologia dele. Pra ver se bate.

VERA

Eu acho bonito, mas eu não estou interessada, pra dizer a verdade! Eu can-

sei. Eu quero existir, quero virar uma profissional. Isso ele não vai poder me dar

nunca! Ele também não sabe como conviver com a realidade, ele está pior que

nós. Não sabe, como ela existe, ele também não sabe!

LUÍS

Ele acha que, pra romper esse circulo vicioso em que transformaram a

vida, só arriscando. Ele acha que a verdade tem uma força única. Não a ver-

dade particular de um sujeito qualquer, mas a verdade mesmo, inteira. E

que existe uma catarse quando se fotografa no palco o avesso das coisas, da

vida, das pessoas. E que, quando isso acontece, ninguém consegue resistir.

E só assim se vai poder transformar o mundo. A partir de cada um.

VERA

Mas ele não era comunista, esse homem? Como é que agora ele vem

com essa conversa mística, de transformar as pessoas? Isso não combina.

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229

LUÍS

Não sei se era. Ele pode ter mudado. Quer dizer, parece que a mulher mor-

reu torturada, presa, não sei... Ele não gosta de falar nisso.

VERA

Como era o nome dela?

LUÍS

Acho que... Nina, sei lá. Nina Pessoa, deve ser.

VERA

Nina, como Nina? Quem disse que ela morreu? Aquela mulher meio louca

do Secretário também não chamava Nina?!

LUÍS

Não sei. Que mulher?

VERA

Aquela, de quando ele estava no Centro Cultural, dez anos atrás. Era o bra-

ço direito dele, uma mulher linda. E diziam que ela tinha pirado na prisão.

LUIS

Não pode ser a mesma!

VERA

Como não? Teve toda uma história. Foi um escândalo, o Rubens apareceu

e armou o maior barraco e precisou até de polícia pra separar. Ele não é casa-

do, o Secretário?

LUÍS

Não sei.

VERA

É a mesma, claro. Não morreu coisa nenhuma. Por isso, eles não se su-

portam.

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230 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

LUÍS

Se fosse, ele não aceitaria a ajuda, de jeito nenhum. O problema dele com o

Secretário é outro. Ele sabe muito bem o que está fazendo. A separação pode

ter acontecido, mas daí a pensar que... O que eu sei é que talvez ele seja uma es-

pécie de guardião de uma verdade preciosa!

VERA

Que guardião, guardião de quê?

LUÍS

Guardião, sim, ele não guardou nos livros nem nas idéias, sei lá, mas guar-

dou com a própria vida. Mesmo que ele esteja errado, ele tentou manter uma

ética, um compromisso. E ele precisou desse tempo pra tentar entender. Ele an-

dou quebrando a cabeça, pra tentar retomar um fio da meada da história, re-

cuperar a essência do teatro que eles chegaram a praticar, um teatro de grupo,

unido em torno de uma idéia!

VERA

Pra mim, isso tá com cara de desculpa. Só se foi por amor. E, se não foi por

amor, pior! É muito utópico, muito fora do chão, Luís. Hoje não tem mais es-

paço pruma coisa assim.

LUÍS

Tem, sim, claro que tem. A questão é descobrir algum atalho que rompa es-

se circulo vicioso na relação com o público. Não existe mais um espectador pu-

ro. Ele é formado e contaminado pela televisão, cinema, internet, publicidade,

tudo! E o pior é que isso é feito com muito glamour e com muita grana. Difícil

resistir. No passado, eles tinham uma platéia que eles mesmos formaram – es-

tudantes, idealistas e intelectuais. E havia um diálogo, um rumo: o caminho foi

sendo construído a partir disso. Ele quer encontrar uma saída pra retomar essa

troca de idéias, fora do jogo de cartas marcadas em que se transformou a mídia.

VERA

Mas o público não tá interessado. As pessoas vivem massacradas, fazendo

contas e sobrevivendo. A gente tem que se colocar no lugar delas. E, no fim de

semana, têm mais é que se divertir. Tá certo. Parece adolescente.

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231

LUÍS

Eu sei que é um achado. Nós não podemos jogar isso fora. Você tem que

conhecer a figura. Se fosse um autor morto, você prestaria atenção. Ele tem

razão, as pessoas não enxergam quem está vivo. Pra fazer parte da cultura,

precisa morrer. Ou sumir. Se não, ninguém leva a sério, ninguém respeita.

(lê outro trecho) Olha aqui. “Oração e fé criam o que acontece. Por oração,

entenda-se tudo o que se fala e, por fé, até mesmo a ausência radical de

qualquer tipo de crença.”

VERA

Por que é que ele não publica? Isso é literatura, não é teatro, Luís, claro

que não! Não tem nada a ver, são palavras, Luís, não têm a ver com o

mundo em que a gente vive. Vai lá discutir o projeto com quem vai soltar

a grana. Vão rir na sua cara. Quer saber o que mais? Eu estou interessada é

nessa mulher. Se ele largou tudo por ela, aí, sim. Não tem idealismo, mas

tem uma história de amor. Isso eu até acho bonito. Ele não tem nada escrito

sobre ela?

LUÍS

Que eu saiba, não. Ah, tem uma gaveta em que ele não quer que eu mexa.

Só se estiver lá. Mas pra quê você quer saber dessa mulher? Não interessa a vida

pessoal dele!

VERA

É só o que interessa. Um sujeito que faz uma coisa dessas por amor é

capaz de ter escrito alguma coisa especial. Por que é que você não tenta

descobrir?

LUÍS

Mexer na gaveta? Foi a única coisa que ele proibiu, eu não posso. Não seria

honesto.

VERA

Não seria por quê? Você não está sendo pago para organizar o que ele

escreveu? É uma pesquisa ou não é? Então? Vá à luta!

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232 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

CENA 6

LUÍS

(com o livro Psicodrama nas mãos, lê) “E, quando estiveres perto, eu arranca-

rei teus olhos e colocarei no lugar dos meus, e tu arrancarás meus olhos e colo-

carás no lugar dos teus e, aí, eu te olharei com teus olhos, e tu me olharás com

os meus.” Eu não manjo nada de psicodrama. Você acha legal?

RUBENS

(sorri e não responde) Você sonha, Luís?

LUÍS

Sonho. Quer dizer, em que sentido?

RUBENS

De noite, quando tá dormindo.

LUÍS

Não, é raro, é muito raro. Pelo menos, eu não lembro.

RUBENS

E no que é que você acredita?

LUÍS

(hesita) Na vida... Em tudo... No teatro e também... Em tudo.

RUBENS

Você não tem uma religião, uma fé? Fora do teatro?

LUÍS

Minha família é católica, eu fui batizado, mas... Eu não sou muito ligado.

Eu pensei que você não se importasse com isso.

RUBENS

E política? Você é de algum partido? Já militou por alguma causa?

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Page 233: Agora Livre Dramaturgias Miolo

233

LUÍS

Não, não, nunca! Eu não me ligo nessas coisas. Eu acho política um saco,

pra falar a verdade. Político é tudo igual, acho uma perda de tempo votar. Se eu

pudesse, pulava esse pedaço. Eu gosto de teatro, só ele me apaixona, e toma

muito tempo. Não dá pra... Onde é que você quer chegar?

RUBENS

Não sei. Onde é que VOCÊ quer chegar? Eu quero te conhecer melhor.

LUÍS

Mas você já me conhece. Eu sou assim, desse jeito mesmo. Não tem muito

mais que isso. Até que eu gostaria de ser mais profundo, de ter opiniões, idéias,

sei lá. Mas eu sou assim mesmo.

RUBENS

Você acha que pode aprender comigo, se não se abrir de verdade?

LUÍS

Mas eu não estou escondendo nada, eu não estou entendendo.

RUBENS

Você acha que uma relação pode existir com mão única? Que vai conseguir

aprender alguma coisa comigo, se eu também não aprender com você?

LUÍS

Você, comigo? Essa é boa, imagina!

RUBENS

Eu não tenho nenhuma resposta pra nada.

LUÍS

Tem, claro que tem.

RUBENS

Não tenho, por isso é que eu quero saber de você. Como é que você con-

segue viver assim? Colocando fora de você o teu centro? Claro que, pra crescer,

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234 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

você pode se apoiar em alguém com mais experiência, faz parte. Mas o rumo,

a longo prazo, vai nascer de você mesmo. A gente sempre acaba atraindo aqui-

lo que deseja.

LUÍS

Será? Eu não sei.

RUBENS

É porque, até agora, você nunca quis nada de verdade.

LUÍS

Eu quero ter uma vida legal, trabalhar e ser feliz. Não sei se é pouco, mas é

isso que eu quero.

RUBENS

Mas esse é um projeto pessoal, apenas. E o resto?

LUÍS

Não sei. O que é que existe mais pra se querer?

RUBENS

O fundamental. O que importa. O que faz a diferença. Um ator de verdade

precisa ter a coragem de mergulhar mais fundo que uma pessoa normal. E

descobrir que, lá no fundo, não existe diferença entre ele e os outros. Ele tem

que encontrar aquele ponto neutro, sábio, que existe no fundo de toda pessoa,

e VER o quanto é uno com toda a humanidade, com tudo o que possa existir,

com o bem e com o mal de cada um e de todos os outros.

LUÍS

Eu não sei. Será que precisa disso tudo? Assim é difícil. Eu não sou santo e

nem quero ser. Eu não sei se eu tenho esse tipo de vocação.

RUBENS

Sem isso, você acaba ficando à mercê das marés, das modas e das

opiniões de todos os outros, daqueles que te cercam. Para uma auto-refe-

rência, só tendo essa coragem. É preciso fazer essa escolha por você mesmo.

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235

Ninguém pode fazer isso por você. Professor nenhum, guru de nenhum

tipo, ninguém, por mais sábio que seja, pode dar ao outro aquilo que ele

não pretende.

LUÍS

Eu... É claro que eu quero ser um profissional e poder viver da arte que eu

faço. Isso é errado?

RUBENS

Errado não é. Mas o que eu estou dizendo é que existe uma escolha por

fazer. Não tem como escapar disso.Você tem que tomar partido na batalha que

corre invisível e perene, e da qual você faz parte, mesmo sem querer. É uma

batalha entre o Bem e o Mal.

LUÍS

Mas não fica uma coisa maniqueísta, simplista, dividir as coisas assim, entre

bem e mal, claro e escuro? Eu acho que a gente precisa lidar com os dois lados

ao mesmo tempo, e por isso é difícil.

RUBENS

Você tem razão. Precisa, mesmo, lidar com os dois lados ao mesmo tempo.

LUÍS

E então?Aonde é que você quer chegar?

RUBENS

É porque não é tão fácil. Essa escolha se renova. Mesmo quando alguém faz

sucesso porque escolheu o primeiro caminho, ele acaba tentado pelo poder.

Porque aí ele atrai muitas propostas rentáveis, e a economia das relações acaba

reproduzindo aquilo que existe na economia global. O rico fica mais rico, e o

pobre fica mais pobre. Existe uma lógica perversa para a qual não há saída,

quando o sujeito não escolhe. Pra romper o círculo vicioso, talvez o único

caminho seja o sacrifício. Mas, no mundo de hoje, todo mundo aprendeu a

cuidar das suas coisas e a ficar na sua e a ser cínico com tudo e a ir tocando e a

ir livrando sua cara e assim por diante.

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236 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

LUÍS

Mas, desse jeito, é difícil demais. Eu só quero fazer teatro. Eu não sou a

palmatória do mundo.

RUBENS

Aquilo que você projeta em mim tem tudo a ver com isso. Mas você prefe-

re personalizar essa verdade e achar que eu sou assim e ficar me colocando

num pedestal. Mas isso não vai levar a nada. Você tem que olhar pra tua gera-

ção e pro que existe hoje à tua volta. Nas últimas décadas, reduziram tudo ao

filtro da estética. E do sucesso objetivo. O filtro adotado, e que ainda vigora,

com menos força, mas ainda é o mesmo, é o do sucesso material, que é a medi-

da e a prova de que alguma coisa vale a pena. Claro que o sucesso quer dizer

alguma coisa, mas o fracasso também quer. Ficar nessa resposta material da

concreção de um resultado é pouco, muito pouco. Daí o caos espiritual que

rola. Ele veste a máscara da liberdade de criação, mas é uma mentira. Não existe

liberdade sem um compromisso maior que a ambição e o desejo pessoal. E essa

escolha eu não posso fazer por você.

LUÍS

Será que eu entendi? Eu preciso escolher?

RUBENS

Não precisa responder. Aliás, eu acho que você vai ter a vida toda pra pen-

sar. E teus amigos, quando é que eles vêm?

LUÍS

Eles estão viajando, com um espetáculo, por isso eu não marquei ainda.

Mas a coisa tá andando. Eu falei na Secretaria, e eles vão apoiar. Vai ter um

cachê, uma ajuda de custo pra todos, e eu estou preparando o projeto novo.

Leva um tempo.

RUBENS

Projeto? De novo, pra quê?

LUÍS

Claro, o que está aprovado é a pesquisa sobre sua obra e sua vida. É o que

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237

nós estamos fazendo, organizando o material escrito. Mas o projeto de mon-

tagem é outra coisa.

RUBENS

Como é que pode? Viver atrelado assim? A cada passo, a cada idéia, ter que

correr atrás de aprovação? Assim você acaba se sujeitando a quem não entende

coisa nenhuma de teatro. Como é que pode?

LUÍS

Não é bem assim. O assessor do Secretário, o Júlio, é um sujeito muito culto

e já foi ator, tá tudo bem. Ele está dando a maior força. Está interessado mesmo.

RUBENS

Isso é uma camisa de força, por isso vocês não conseguem mais pensar. É

pior que um vício!

LUÍS

Mas é o único jeito. Hoje em dia, é tudo assim. O senhor precisa compreen-

der o outro lado. Claro que precisa de um projeto escrito.

RUBENS

(muda de assunto, abrupto) Eu não acredito nessa história de viagem. Teus

amiguinhos não vieram ainda por quê? O que é que eles tão esperando? Sair a

verba?

LUÍS

Não. Quer dizer, claro que eles querem uma definição mais clara do que é

que a gente pretende...

RUBENS

Ah, claro, está tudo muito vago mesmo. Você não disse que vocês eram um

grupo?

LUÍS

E somos. Mas a gente está tentando um comportamento profissional. Eu

quero muito, de verdade, mais que tudo, que esse negócio saia. Mas está difícil!

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238 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

Confia em mim, vai dar tudo certo. É só uma questão de planejamento. Eu vou

marcar uma leitura pra semana que vem, que tal?

RUBENS

Leitura? Que leitura? Leitura de quê? Acho que eu tou velho mesmo, eu

não entendo a vida desse jeito. Sabe como era no meu tempo? Os grupos

tinham um administrador, que ganhava menos que um ator. E olhe lá! UM

administrador. Não existia produtor, captador, nada disso. Hoje, tem esse

monte de gente que você fala: precisa de produtor, captador, assessor de

imprensa... É gente demais. E o pior é ver você, que quer ser ator, mergu-

lhado nesses papéis e pouco se importando com o que eu tenho pra dizer.

LUÍS

Mas é assim que as coisas são. Você não disse que também quer aprender

comigo? Não disse que são dois mundos? Disse, não disse? Então, você está

muito longe de um deles. A gente também precisa ter os pés no chão. Confia

em mim, vai dar tudo certo. (ameaça sair)

RUBENS

Luís, espera.

LUÍS

Que foi, agora?

RUBENS

Você mexeu naquela gaveta? Por que é que ela tá aberta?

LUÍS

Não sei. Que gaveta? Não fui eu. Talvez a faxineira tenha aberto, por

engano. (Rubens vai até a gaveta, desconfiado)

CENA 7

LUÍS

Eu peguei os papéis, e não adiantou. Olha aqui. Tudo em branco.

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239

VERA

Não é possível. Como tudo em branco?

LUÍS

Ele deve ter desconfiado. Eu tenho certeza que eu vi pastas e mais pastas na

gaveta, cheias de papéis.

VERA

E por que é que você escolheu justo essa?

LUÍS

Só sobrou essa. Eu peguei no susto e só abri depois. Lembro que um dia

eu cheguei e a gaveta estava aberta, eu vi, cheia de papéis, acho que tinha

até manuscritos. E agora não tem mais nada, só umas contas e um monte

de papeis soltos. Só se ele arrumou e jogou tudo fora, de medo de eu pegar.

Se ele descobre, é capaz me matar.

VERA

Por que você não pediu abertamente?

LUÍS

Ele me provocou o tempo todo com uma conversa que me deixou pira-

do. Um papo sobre dois mundos e não sei o que mais. Eu não entendi na-

da do que ele estava falando, mas tive que manter a pose.

VERA

Você não tem remédio, Luís. Por que é que você nunca fala a verdade?

LUÍS

Como não falo? Falo, claro que falo. (hesita) Meu Deus, será que foi de pro-

pósito? Não pode ser. Ele deve ter armado pra mim.

VERA

Imagina, ele não ia fazer uma coisa dessas.

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240 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

LUÍS

Ah! Ele perguntou por que é que vocês ainda não foram lá comigo.

VERA

Você não disse que os meninos estão viajando, como a gente combinou?

LUÍS

Tá vendo, você manda mentir e depois me cobra. Claro que eu disse, mas

não colou. Parece que ele enxerga através da gente.

VERA

É que você é muito trouxa.Você nunca fala a verdade e o pior é que é o rei da

bandeira. Onde já se viu? Custava perguntar se ele não tem uma peça sobre ela?

LUÍS

Mas foi você que me mandou pegar.

VERA

Olha aqui. Um bilhete.Amarelado, deve ser bem antigo. (ela lê) “Desculpa, eu

tentei avisar, mas ele tá desconfiado, não larga do meu pé. Não sei como é que eu

fui cair nessa cilada. Casar com o Fran, Santo Deus. Onde é que eu estava com a

cabeça? Mas eu não vou me separar, eu não posso.” Fran não é o Secretário?

LUÍS

Não sei, pode ser.

VERA

Claro que é,“Fran” de Francisco. Deve ser dela! Será que ela traiu o marido

com ele? O... o ex-amante?

LUÍS

(continua a leitura) “Você adora dar uma de bonzinho. Mas se esquece que

foi você quem me internou.”

VERA

(interrompe) Ah, então, só pode ser dela. Ela não era louca mesmo!?

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Page 241: Agora Livre Dramaturgias Miolo

241

LUÍS

Que louca, o quê, espera. Deixa eu acabar. “Você costuma dizer que, quan-

do saí da prisão, não falava coisa com coisa e que estava paranóica com tudo,

até com você. E foi por isso que me internou, que só quis ajudar. Mas desde

quando tomar choque cura alguém? Mas dinheiro ajuda, sim, e pode conser-

tar tudo. Foi a Casa de Repouso que ele arrumou que me ajudou a voltar pros

eixos. E acho que eu aprendi a lição.Agora eu quero conforto, e não quero nun-

ca mais depender de ninguém, é isso que eu quero.”

VERA

Continua!

LUÍS

É só isso, não tem mais nada.

VERA

Procura aí, vê se acha. Deve estar no meio dos papéis.

LUÍS

Não tem nada, Vera, não tá vendo? Tudo em branco. Porque é que você tá

obcecada com essa mulher?

VERA

Que obcecada, o quê! Estou curiosa só. Tenho certeza que deve existir uma

peça.

LUÍS

Duvido. Ele acha que a vida pessoal não tem nada a ver com teatro. Ele não

ia escrever justo sobre isso.

VERA

Como não? Pergunta pra ele.

LUÍS

Imagina, Vera, não tem nada a ver.

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Page 242: Agora Livre Dramaturgias Miolo

242 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

VERA

Fala que pegou a carta por engano e que ficou curioso. Pergunta sobre ela,

diz que não mostra pra ninguém. Ele já acostumou com você, ele não vai te ne-

gar, eu tenho certeza.

CENA 8

RUBENS

(lê para Luís; revelação) “Manter-se nos limites do possível é respei-

tar as regras cênicas do pequeno drama psicológico embutido em histó-

rias sem grandeza. Só a deposição das máscaras que vestimos por medo

garante a reconquista da verdade e da fé. E é pela entrega que vem a des-

coberta de que nunca tivemos nada a perder. Quem se assiste descobre

que, além de ator, é co-autor da trama.” (pára de ler) E aí, que é que vo-

cê acha?

LUÍS

No palco ou na vida?

RUBENS

Nos dois. Claro que nos dois. Na vida do palco, e fora também. Não é tão

difícil de entender.

LUÍS

Como se cada um fosse um personagem, e não uma pessoa? Mas isso

embaralha tudo. Desse jeito, você não sabe mais onde começa o palco e on-

de começa a vida. Periga enlouquecer, não periga? Misturar tudo?

RUBENS

Quem tem vocação, o ator, o bom ator, tem que lidar com isso. Ele per-

cebe que até na vida as coisas se misturam. Representar é fingir, e o ator

descobre que, quando finge, existe um fundo de verdade, que até a menti-

ra acaba virando verdade. O palco é contíguo a esse espaço indefinido, a es-

se não saber quem se é, a essa coisa que se chama loucura.

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243

LUÍS

No que eu li, não tinha nada sobre isso. Você não tem alguma peça, ou al-

guma coisa escrita...?

RUBENS

Por que é que você tá perguntando?

LUÍS

Porque faz falta. Eu estou organizando o material, e parece que falta uma

peça do quebra-cabeça. Tá tudo redondo, quer dizer, quase. Tá fazendo falta,

sim, alguma coisa, não sei o que é.

RUBENS

Você mexeu na gaveta, Luís? (silêncio) Mexeu, não mexeu?

LUÍS

(tenta fingir) Eu... ?

RUBENS

(conformado) Mexeu.

LUÍS

Desculpa, não foi por querer. É que tinha uma página solta, de uma carta,

caída, que estava no meio dos papéis...

RUBENS

Que página o quê, Luís? Eu tirei tudo da gaveta.

LUÍS

Então, deve ter caído.

RUBENS

Só deixei uma única folha, pra te testar.

LUÍS

Desculpa, eu não sei o que dizer.

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244 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

RUBENS

Eu tinha esperança que você ia saber resistir, mas não. Tudo bem. No fun-

do, eu sabia. Aquilo que se fala vai fabricando o futuro. Quando eu disse pra

você não mexer, eu selei minha sorte. Como se fosse uma peça. A famosa pre-

paração. Você diz – não faça isso. É porque “isso”, mais adiante, vai acontecer,

ou pode acontecer.

LUÍS

Então, eu não tive culpa. Se foi de propósito...

RUBENS

Não tem importância se foi de propósito ou não. Você podia ter respei-

tado minha vontade. A página caiu na hora da arrumação, e eu resolvi cor-

rer o risco.

LUÍS

Posso... perguntar uma coisa? (o outro acede) Eu estou louco pra saber. Ela

ainda está viva ou...?

CENA 9

LILINHA

Espera, gente, eu quero contar pra vocês! Eu estava no meio da sessão e aí

eu vi o Luís, e ele me apontou um senhor que parecia um anjo.

RODOLFO

O quê? O Luís foi lá na sessão com você?

LILINHA

Não, Rodolfo, eu vi dentro da minha cabeça. Tinha aquele senhor e, na ho-

ra, eu não consegui entender o que é que ele estava querendo. Mas agora eu sei,

era o João Rubens, eu tenho certeza. Você não tá vendo, Vera? Foi um sinal.

VERA

Pelo amor de Deus, Lilinha, de novo esse papo, não!

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245

LILINHA

(infantil) Que papo? Mais respeito. Pode tirar o cavalo da chuva, que eu não

vou abrir mão da minha fé.

VERA

Não mistura as coisas, Lilinha. Desde que você se enfiou nessa seita, não fa-

la mais coisa com coisa.

LILINHA

Não é seita, Vera, não é. Não sei por que você teima.

VERA

(corta de novo) É o quê, então?

LILINHA

Você fala de um jeito tão... tão pejorativo. Pode ser seita, mas não desse jei-

to que você fala. Não é uma loucura qualquer, é o “Dai-me”, até o Ney já fre-

qüentou.

VERA

Que Ney?

RODOLFO

Latorraca.

LILINHA

Matogrosso.

RODOLFO

Desculpa, eu pensei...

LILINHA

Não sei por que vocês teimam em não querer ir lá comigo, tirar a prova.

RODOLFO

Eu? Já basta ter sido coroinha, Deus me livre!

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246 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

LILINHA

Porque, que abre a cabeça da gente, abre mesmo.

VERA

Só faltava você embarcar na canoa do Luís. A lei tá aprovada, e a gente tem

uma reunião, essa semana, vão dar a resposta. Como é que nós podemos che-

gar lá e falar que mudamos de idéia?

LILINHA

Vera, eu já te falei, você tem que ser realista. Quem te garante que eles

vão soltar a grana? Não está vendo a Argentina? O que nós estamos viven-

do é o fim dos tempos, não adianta mentir. Não adianta tentar fingir que

não é com você. Está tudo um caos, e você fica tentando fazer as coisas di-

reitinho, pra quê? Está tudo de pernas pro ar, o fim dos tempos está aí, es-

cuta o que eu tou te dizendo.

VERA

Não começa. Eu não quero discutir o fim dos tempos com você, tá certo?

Eu sou sua sócia. Aqui, pelo menos, tenta ser objetiva.

RODOLFO

Por enquanto, enquanto o mundo não acaba, nós temos que pagar as con-

tas, não temos? Enquanto não acaba de vez?

LILINHA

A coisa que eu mais queria era encontrar alguém assim como o João Ru-

bens, que tivesse uma visão lúcida de tudo. Eu não posso jogar fora essa chan-

ce. Na escola, eu sempre fui apaixonada pelos textos dele.

VERA

Ninguém mais sabe que ele existe!

LILINHA

Mas está tudo lá. Ele escreveu sobre tudo o que está rolando. Ele era adian-

tado demais pra época, por isso ninguém entendeu.

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247

RODOLFO

Lilinha, não leva a mal, mas presta atenção. A gente tem que fechar logo es-

sa porra de contrato, senão não vai ter peça nenhuma. Porque eu vou preso, tá

me entendendo? E a mulherada não quer saber de conversa, elas só querem

saber do dinheiro.

LILINHA

Você tá empregado, fazendo novela, tem mais é que pagar mesmo.

RODOLFO

Grande merda, a novela tá no fim. E, com o salário que eu ganho, você acha

que dá pra manter as duas?

LILINHA

Quem manda sair engravidando a torto e a direito, por aí?

RODOLFO

Aaah, é por isso que você nunca quis sair comigo?

LILINHA

Ah, vai te catar, Rodolfo. Eu não tenho nada a ver com isso. Eu quero fazer

teatro de verdade. Tou louca pra conhecer o homem. Eu tenho certeza. Ele veio

pra mudar nossas vidas.

RODOLFO

Vera, eu só topei porque você garantiu que desta vez ninguém ia pirar. E

agora esses dois vêm com porra-louquice. Qual é?

VERA

Eu sei. Merda. Que saco, Lilinha! Você é que tem que me ajudar, Rodolfo,

porque eu não tenho mais paciência.

RODOLFO

Cadê o Luís, por que é que ele não veio? Com essa maluca eu não quero

papo, eu vou falar prele parar com enrolação.

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248 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

CENA 10

RUBENS

(lê para o outro) “A arte apenas profissional circunscreve e domestica o

artista e, na verdade, o castra naquilo que ele tem de mais autenticamente

criador. O sofrimento do ator advém do atrito entre essência e personali-

dade e das contradições que é obrigado a suportar. Como na prostituição,

a arte exercida como profissão vincula algo de sagrado e potencialmente

transcendente com comércio. O ator comercia com a alma e, se não vende

seu corpo, vende sua face.”

LUÍS

Será que eu entendi? Prostituição? Você compara o ator a uma...?

RUBENS

O ator tem um grande poder – a palavra. A arte tem! A publicidade não usa

esse poder para vender, vender e vender cada vez mais!?

LUÍS

Faz parte. A gente tem que sobreviver.

RUBENS

Claro que tem. Mas, enquanto isso, você acaba esquecendo o poder que

tem nas mãos. São os atores que emprestam suas vozes pra comunicar as men-

sagens dos patrocinadores, dos políticos... O ator é o ponta de lança desse sis-

tema, você não pode esquecer disso. Até nas novelas eles não enfiam men-

sagens no enredo, a torto e a direito, sem respeito nenhum pelo espectador? É

uma espécie de prostituição, sim, senhor!

LUÍS

Eu não sei. Só sei que preciso confessar uma coisa. Às vezes, eu saio daqui

piradinho. Você fala do palco como se fosse uma coisa sagrada e como se o

teatro fosse uma religião. (hesita)

RUBENS

E é. Ou poderia ser.

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249

LUIS

Mas, se fosse, não teria como viver no mundo.

RUBENS

É. O problema é esse.

LUÍS

(muda de assunto) Você deu uma olhada no projeto da peça?

RUBENS

Mais ou menos. Quer dizer, dei, mas não entendi nada.

LUÍS

Não entendeu o quê?

RUBENS

Vai ser uma cooperativa ou não?

LUÍS

Vai, claro que vai. É mais fácil, por causa da burocracia.

RUBENS

Mas os salários que você colocou não batem.

LUÍS

Por quê? Você achou pouco o que eu pus pra você?

RUBENS

Ao contrário, é porque cada um vai ganhar uma coisa. Eu não entendi.

Numa cooperativa, todos não ganham igual?

LUÍS

Nem sempre, Rubens. Não é bem assim. Claro que a Vera e eu, que

cuidamos da produção, merecemos um pró-labore maior, e você, como autor,

também.

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250 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

RUBENS

Claro. Só que, no plano da inspiração, não existe “meu” e “teu”. Não dá pra

saber quem merece ganhar mais. Essa divisão vai contaminar a atitude das pes-

soas. Elas vão achar que não têm responsabilidade igual e nem obrigação de

assumir que a obra em que estão metidas é também delas, uma propriedade

coletiva, comum.

LUÍS

Não mistura as coisas, Rubens, deixa comigo. Você andou afastado e não tá

por dentro. Uma coisa é a criação, do jeito que você tá falando, tá legal. Mas a

parte material é diferente. Ah, eu tinha esquecido, você tem uma firma?

RUBENS

Eu? Firma? Como, firma?

LUÍS

Por causa da lei. Facilita, se você puder dar nota fiscal.

RUBENS

Você tá brincando. Eu não sou uma firma, eu sou um autor. O que é que

vocês querem de mim, Santo Deus? Agora eu vou virar uma firma? Como nota

fiscal? Pra quê?

LUÍS

Calma, por causa da lei. É pra prestação de contas, depois... (hesita) Tudo

bem, não liga pro que eu disse. Esquece.

RUBENS

Não, explica, eu quero saber. Se eu tenho que virar uma firma, eu quero saber.

LUÍS

Todo mundo, hoje em dia, abre uma firma. Todo mundo. É mais fácil. Se

você abre, te ajuda a pagar menos imposto.

RUBENS

Menos imposto, como? Que imposto?

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251

LUÍS

De renda, imposto de renda! Se você guarda as notas das despesas, das com-

pras todas, tudo pode entrar como despesa de produção. Você economiza e

também ajuda o trabalho que a contadora vai ter.

RUBENS

Que contadora? Na equipe tem uma contadora? Na equipe tem também

uma contadora? Vocês estão inteiramente loucos? O que é que é isso, Santo

Deus? Você tem coragem de me falar uma coisa dessas? Quanto tempo vocês

perdem com essa loucura, com essa burocracia sem fim? É impraticável, é me-

lhor parar com tudo. Eu não quero mais. Não quero mais participar dessa coisa

lastimável.

LUÍS

Mas o que é que você quer? Você vive numa cidade, num país, tem que

pagar imposto! E se fizer sucesso, vai pagar mais. É com os impostos que o

governo teoricamente cuida do povo e da cidade e até dos miseráveis que te

comovem tanto. Claro que eles roubam e tem corrupção. Mas você quer fazer

de conta que não vive nesse mundo, Rubens. Qual é? Esquece, eu não falei por

mal. Esquece. Eu prometo que vou te deixar fora disso. Desculpa!

CENA 11

RODOLFO

Espera aí, “péra aí”. Dançou, como? Como, dançou?

LILINHA

Eu não disse que a Argentina podia atrapalhar? Bem que eu tive uma

intuição.

RODOLFO

Dá um tempo, Lilinha.

VERA

É isso mesmo que vocês ouviram. Me chamaram com urgência, me servi-

ram um cafezinho, falaram e falaram, e pronto. Dançou. Por enquanto, pelo

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252 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

menos. Eles têm razão. Acontece que, com essa coisa toda do dólar e essa crise,

estão com medo de investir e acabar ficando no vermelho. Pediram pra

esperar até o fim do ano.

RODOLFO

(grande escândalo) Até o fim do ano? Mas eu não entendo. Não estava tudo

certo? Eles não tinham dado a palavra?

VERA

É, mas não estava assinado.

RODOLFO

Mas quem garante que no fim do ano...?

VERA

Ninguém, ninguém garante. Mas eles disseram que, se conseguirem

equilibrar as contas, talvez seja possível, mas aí vai ter que ficar pro ano que

vem.

RODOLFO

Mas que merda, Vera, não é possível. De novo? Sempre aparece uma bosta

dessas no caminho? Essa crise parece que não acaba. Quando não é uma coisa, é

outra.

VERA

Desculpa, eu tenho hora no analista e não posso demorar. Achei melhor

avisar logo, assim, cada um vai cuidar da sua vida. Eu não consegui encontrar

o Luís, ele que me desculpe. Um de vocês podia dar um toque nele.

LILINHA

Não, Vera, espera. Mas como? Ainda tem o outro projeto. Não é pra hoje a

reunião na casa do João Rubens?

VERA

Ah, meu Deus, pra quê? Não vai dar em nada, Lilinha.

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253

LILINHA

Agora é que nós não podemos dar o cano, de jeito nenhum. Rodolfo, vocês

prometeram que iam. O Luís garantiu que a Secretaria...

VERA

O Luís mente demais.

LILINHA

(apela) Rodolfo!

RODOLFO

Vera, quem sabe? Não custa dar um pulo, ainda mais agora a gente ficou na

mão. Pode ser que quebre nosso galho.

VERA

Você acha que a Secretaria tem dinheiro pra torrar desse jeito? O Luís fan-

tasia demais. Aquele menino que ele namora usa a Secretaria pra segurar o

Luís. Deve ser coisa dele, não deve ter nada a ver com o Secretário.

LILINHA

Vera, não fala uma coisa dessas. O Júlio é apaixonado pelo Luís, e daí? Claro

que ele ajuda. Por isso mesmo, pode dar certo. Não custa, Vera, vamos lá. Nós

podemos fazer agora o projeto do João Rubens e, no fim do ano, se Deus qui-

ser, sai o patrocínio pra outra peça, e pronto.Você vai ver. Combinado? (a outra

vai saindo) É hoje à noite, hein? Vocês estão com o endereço?

CENA 12

RUBENS

Lilinha?

LILINHA

Como é que o senhor adivinhou?

RUBENS

Você. Pode me chamar de você.

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254 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

LILINHA

Eu tava louca pra vir aqui.

RUBENS

(dirige-se à outra) E você é a Vera.

VERA

Eu mesma.

RUBENS

E ele, o galã, Rodolfo.

RODOLFO

Que galã? Imagina. Quem me dera. Só me dão papel de amigo do galã.

LILINHA

Que aura o senhor tem.

RUBENS

Aura?

VERA

A Lilinha acha que é vidente.

LILINHA

Acho, não, eu sou. Vocês não estão vendo? É incrível! De uma luz, de uma

limpeza rara.

RUBENS

Vamos sentar. Luís, pega as cadeiras da cozinha. Desculpa, aqui é pequeno,

vocês estão vendo. O Luís me disse que vocês são um grupo.

VERA

Bom, nem sei o que nós somos. Nós somos amigos e íamos fazer um tra-

balho, que agora foi adiado.

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255

RUBENS

Foi adiado, como, Luís?

LUÍS

Adiado, o quê? (custa a entender) Não, ela tá falando de outra coisa.

RUBENS

(olhando pro Luís) Quer dizer que não são bem um grupo?

LILINHA

Somos, sim, a Vera é que tem essa mania. Ela é crítica demais.

VERA

Como grupo, Lilinha? Quantos espetáculos a gente já fez? Meio.

LILINHA

Não interessa. Vamos fazer muitos ainda.

RODOLFO

Faz tempo que a gente estava pra marcar, mas não deu pra gente vir antes.

O Luís não teve culpa. Ele tem falado muito do senhor. E que tem um texto seu,

maravilhoso, aliás, mais de um.

VERA

Mas eu acho pouco provável que a Secretaria dê o dinheiro assim, a fundo

perdido.

LUÍS

Mas não é a fundo perdido. Eles já concordaram.

VERA

Concordaram quando, Luís? Deixa de ser mentiroso.

LUÍS

Nós só temos que dar umas oficinas, como forma de pagamento.

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256 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

VERA

Oficinas, Luís, de novo? Até receber, a gente já vai estar duro, e vamos ter o

mesmo problema: “vão” montar de que jeito? Só a verba pra mídia já é uma

pequena fortuna. E eles não bancam montagens, que eu saiba. Eu tou fora. Se

for um projeto alternativo, eu tou fora. Eu cansei. Eu não quero saber de nada

alternativo.

LUÍS

Mas você é uma atriz alternativa.

VERA

Alternativa, vírgula.

LUÍS

Ninguém sabe quem você é.

VERA

Sou uma atriz com oito anos de carreira, com muito orgulho. Todo mundo

me conhece.

LILINHA

Gente, não vamos brigar por causa de bobagem, por favor. Vera, dá um

tempo. Agora responde uma coisa, Luís. Vai ter verba pra montagem, mesmo?

Fala a verdade.

LUÍS

Meu Deus, eu já falei, mas parece que ninguém presta atenção. As oficinas

são só pra facilitar os ensaios, uma ajuda a mais, que o Júlio arrumou. Mas

depois vai ter uma verba de patrocínio, eu já disse.

VERA

Que verba? De onde vão tirar essa verba?

LUÍS

Verba, sim, senhora. Eu já estou com o projeto quase todo formatado. O

Júlio tá me ajudando. Vai sair como um projeto especial. O Secretário está

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empenhado. Eu já cataloguei praticamente todo o material aqui, do Rubens, e

eles têm interesse em que se monte uma das peças pra coincidir com o lança-

mento dos arquivos, que vão ficar lá, à disposição, na biblioteca da Secretaria.

Que foi, Vera, por que essa cara? Você não pode chegar e querer jogar tudo pro

alto. Qual é? O teu projeto é que acabou não saindo. Foi ou não foi?

LILINHA

Calma, gente.

VERA

Pois é, eu não comando a economia global, meu caro. O que é que eu posso

fazer, se justo agora a Argentina resolve falir?

LILINHA

Vera, o que interessa é que tem essa possibilidade. O Luís não ia ser louco

de inventar. Não vamos perder tempo discutindo. Eu estou curiosa, eu quero

saber do texto do João, que é o que interessa. (mais baixo, só pro Luís) Luís,

conta, quem sabe a Vera acalma?

LUÍS

Vera, olha isso aqui, nas minhas mãos. Você vai pirar. É um texto ineditís-

simo do João, que ele acabou de escrever pra nós quatro. Tá legal assim, Vera?

VERA

Como, pra nós? É novo mesmo?

LUÍS

E é sobre tudo o que a gente tá querendo falar. Tudo que está aí, essa reali-

dade pirante. Atual, atualíssimo. É ator, teatro, grupo, tudo isso. E como essa

questão da globalização afetou cada um. O João acha que existe um véu, um

muro que impede que a gente enxergue o nó da questão, o essencial. Esse bom-

bardeio de informações que não deixa espaço pra mais nada.

VERA

(irônica) Ah, que maravilha, quero só ver.

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258 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

LUÍS

Vera, assim não é possível.

VERA

Eu estou curiosa.

RUBENS

Calma, Luís, não tem problema.

VERA

Eu só estranhei o tema. O Luís disse que o senhor nem computador tem e

faz tempo que vive aqui, à margem. E como é que o senhor se mete agora a falar

sobre o que não sabe?

RUBENS

Por isso mesmo. Porque estou à margem, é que eu acho que fui capaz de

enxergar uma luz. Às vezes, só quem está à margem consegue enxergar o que

está na cara e que ninguém vê. Eu podia estar vivendo no mato e, por isso

mesmo, enxergar a podridão da cidade com mais clareza do que qualquer

um. A senhora precisa ter mais respeito, dona Vera, não só por mim, mas

pelos seus colegas.

VERA

Quem o senhor pensa que é, pra querer me ensinar?

LILINHA

Vera, pára, pelo amor de Deus. Que é isso?

RODOLFO

Segura, Vera, dá um tempo.

LILINHA

Seu Rubens, desculpa, a Vera é desse jeito, não leva a mal.

Todos falam ao mesmo tempo e a coisa vira uma balbúrdia.

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LUÍS

Ela ainda deve estar vendo na frente as cifras com que ela anda lidando.

VERA

Claro, vocês sempre largam tudo nas minhas costas.

RUBENS

(dá um esporro) Chega! Aqui não é hora nem lugar pra ficar discutindo

desse jeito. (silêncio, uma pausa) Que coisa mais árida, chata. Pra quê fazer

teatro, se for assim? (pequena pausa) O que eu não entendo é como é que con-

seguiram convencer o mundo de que não há como lutar e nem contra o quê

lutar! (olha pra cada um deles) Tá todo mundo ilhado, engasgado com essa

balela de que essa é a única forma de vida possível... E ninguém mais se comu-

nica, as pessoas só sabem fazer negócios.

VERA

Que conversa mais antiga. E o que é que o senhor pretende? Uma revolução

comunista, por acaso? A esta altura?

RUBENS

Quem sabe? Será que não existe outro jeito pra se viver? Até o comunismo,

apesar de tudo, me parece mais cristão do que isso que está aí. Um dia, no

futuro, ainda vão falar dessa paralisia diante dessa realidade que parece ter

escapado ao nosso controle. E vão rir da nossa estupidez, porque é claro que

existe uma saída. Mas é preciso começar a procurar.

VERA

(cínica) E o senhor não tem computador, por quê?

RUBENS

Quem disse pra senhora que eu não tenho?

VERA

Tem?

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260 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

RUBENS

O Luís me fez o favor de comprar, com a primeira parcela da Secretaria.

VERA

E onde é que ele está?

RUBENS

No quarto, pode ir lá ver. É muito útil. Eu estou fascinado, confesso. Mas

não existe o que possa substituir aquilo que você é capaz de fazer recolhido

com seus botões, de madrugada, em silêncio, numa hora em que estão todos

dormindo. Computador nenhum é capaz de fazer você pensar com originali-

dade e resolver as questões que realmente importam. É preciso encontrar den-

tro de nós por onde caminhar, e essa visão, essa inspiração não está arquivada

em parte alguma do mundo. Ao contrário do que a senhora possa pensar, eu

não tenho preconceito com nada.

VERA

Desculpa, eu... Ando meio estressada e... Me desculpa, mesmo.

LILINHA

Sabe o que eu acho? Eu saquei esse lance no meio de uma sessão... (sem jeito

por causa do Rubens) Quer dizer...

VERA

Lilinha, não.

RUBENS

(divertido) A senhora é espírita ou o quê?

LILINHA

Não, era uma sessão do “Dai-me”, o senhor sabe o que é?

RUBENS

Ouvi falar.

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LILINHA

Eu preciso levar o senhor pra ver. É lindo, é lindo. É como se fosse uma

internet na cabeça da gente. Como se fosse a internet dos índios e que eles

deixaram pra nós. O Ayahuasca é um chá que a gente prepara, e ele abre todos

os canais. Com o ritual, ele consegue conectar a gente com tudo, com o astral,

com tudo o que existe. Comparado com ele, essa internet do mundo parece

um circo sem pão. Ou um circo pros que têm pão. Porque essa coisa, do jeito

que está, parece que não tem mais fim. Eu já disse pra Vera que é como se fosse

o fim do mundo, e o anticristo tivesse tomado conta, e ela fica me gozando. Eu

acho que ele está aí, e é como se ele não tivesse cara. Porque todo mundo pen-

sou que era o Hitler, com aquela coisa do nazismo, e depois que era o Sadam

Hussein, coitado. Tomou uma sova dos americanos. O anticristo mesmo eu

acho que é essa coisa que assumiu as rédeas do mundo com a economia. É ou

não é? (olha pra Rubens) O senhor entende o que eu...?

RUBENS

Entendo muito bem.

RODOLFO

Acho que anticristo mesmo são minhas mulheres, que dizem que acredi-

tam em Deus, mas só pensam em dinheiro.

LILINHA

Ah, Rodolfo, você me cortou.

RUBENS

Quantas mulheres o senhor tem?

LILINHA

Muitas.

RODOLFO

Duas. Com filhos, duas. E, depois que inventaram esse negócio de “pensão”,

o homem divorciado virou escravo. E até que a Lilinha tem razão, com essa

história de anticristo. Os bancos enlouquecem o mundo, com esse poder que

eles têm, devem ser eles, mesmo. Não vê os juros? E os economistas também

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262 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

devem estar na jogada. E a gente fica sem saída. Eu estourei todos os meus

cartões pra pagar as contas, mas a culpa é deles, que não dão colher de chá

prum pai de família com três filhos.

LILINHA

Você, pai de família?

RODOLFO

Posso não ser de família, mas sou pai. Eles pegam pesado, e eu jogo sujo

também, fazer o quê? Não vou passar a pão e água, enquanto eles faturam com

a minha desgraça. Pra pagar, só se eu ganhar na loteria. Porque é uma bola de

neve, minha dívida parece a do Brasil, só faz crescer.

LILINHA

Tá bom, Rodolfo, chega.

LUÍS

Vera, uma surpresa que eu tinha preparado pra você, e nem sei se você

merece. Está aqui aquela peça que você queria ler. Está aqui.

A luz muda e todos os atores congelam, menos Lilinha, que vai até Luís e pega

o texto que ele tem nas mãos e o entrega a Vera, enquanto diz o texto que se segue.

CENA 13

LILINHA

(lê um fragmento do que Rubens escreveu) “Desmascaramento. Todos têm,

oculto em si, o ator. Médico e monstro, para ser, o ator NÃO É. Não é, para que

a personagem seja e, em cima dessa contradição, toda a arte teatral se proces-

sa. Quando o ator trabalha apenas com a personalidade, acaba por desprezar

os veios mais profundos do tesouro que a arte pode proporcionar. Pois o teatro

é arte alquímica, que oferece ao adepto a oportunidade de uma transformação

cabal...” Tá vendo, Rodolfo? Televisão não é a mesma coisa, porque você tem

que aparecer e brilhar. Teatro é diferente. É como no “Dai-me”. Lá, de tanto

repetir o hinário, eu acabo me sentindo fora de mim, de um jeito parecido com

o palco.

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LUÍS

Dá um tempo, Lilinha. E aí, Vera, leu a peça? O que é que você achou? Ele

escreveu pra você.

VERA

Claro que não foi pra mim.

RODOLFO

(preocupado) Mas não vai dar bode? Você disse que o meu papel é o do

Secretário, mas ele aparece como um belo dum filho-da-puta! Quando ele

descobrir...

LUÍS

Bode nenhum.

RODOLFO

Mas ele já leu? Ele não vai querer patrocinar uma peça que...

LUÍS

Ele não vai ler. Ele não tem tempo pra ler.

LILINHA

Mas não é a vida deles, Rodolfo, é só uma peça, é ficção. Ninguém vai perce-

ber. Pra quê que ele ia ligar?

VERA

É, legal. Mas uma coisa eu não entendi. Você não disse que ela era atriz? Na

história, ela não é.

LUÍS

Como não? Faz teatro de estudantes. Na vida também ela abriu mão do

teatro profissional. Só fez no começo, por paixão.

VERA

Então, é tudo um pouco idealizado demais, eu acho.

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264 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

LUÍS

É porque ela encarna o ideal deles, por isso. Eles conseguiram viver uma

utopia, era um tempo mais feliz. Existia um projeto, uma esperança. Não era só

teatro, não era só mais uma peça, nada disso. O que norteava tudo era a perspec-

tiva de uma mudança radical, política, que não veio. Eles se amaram enquanto

faziam peças em sindicatos e faculdades, pela cidade, sempre pregando.

VERA

Deixa eu te dizer uma coisa, Luís.Você não percebe quando mente? Me diz.

LUÍS

Por que isso agora?

VERA

Porque já é doença. Você não disse que era uma peça sobre ela?

LUÍS

Desculpa, é que, pra ele, não tem importância a história pessoal. Ele

preferiu colocar o amor deles dessa forma, essa paixão em ação, compartilha-

da, na militância artística e política. Foi por isso que ele deu a peça pra gente.

Ele acha que pode ajudar a gente a se encontrar. Porque o que forma um grupo

é uma crença comum, e nós não temos nenhuma.

VERA

(sem entender) Como não?

LILINHA

Tá vendo, Vera, eu não falei?

VERA

(indignada) Falou o quê? Aqui, cada um pensa tão diferente, que só for-

mando quatro grupos. Um pra cada um.

RODOLFO

Mas teatro não é igreja, nem partido, desculpa. Nós não estamos aqui

reunidos, e tudo? O que é que ele quer?

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265

LUÍS

Um grupo não é um bando de gente reunida pra fazer uma peça. Não é.

RODOLFO

É difícil, hoje em dia, o que é que ele tá pensando? A gente não tem nem

onde ficar, nem sede, nem teatro, nem porra nenhuma. Claro que o jeito é se

reunir de vez em quando, conforme der.

LUÍS

Mas, pra fazer, a gente precisa discutir essa questão. Pra ele, sem um proje-

to maior que a peça, não existe um grupo.

RODOLFO

Mas nós já temos dois projetos. Não tem o outro pro fim do ano? Então...

LUÍS

Mas é pouco, Rodolfo, não é isso.

LILINHA

Pouco por quê? O Rodolfo tem razão, no tempo deles, era diferente. Não

dá pra fazer igual.

LUÍS

Lilinha, ninguém tá querendo fazer igual. É só uma questão de compreen-

são do sentido de grupo, como aparece na peça.

VERA

Pelo que eu entendi, eles se sentiam o centro do mundo e achavam que a

História dependia deles. E acabaram acreditando que eram heróis. Mas o que

eles faziam era terrorismo. E muitos morreram por causa disso.

LUÍS

Que terrorismo, o quê. Era uma luta política.

RODOLFO

Eu não quero nem saber. O que interessa é o patrocínio. Quando é que sai?

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266 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

LUÍS

Tá tudo certo, só falta a gente ir lá, assinar.

RODOLFO

Aí, garoto! (todos se abraçam e comemoram)

LUÍS

O único problema é que eles querem que a gente leve o Rubens no dia da

assinatura do contrato.

LILINHA

E daí?

LUÍS

Ele disse que não vai, de jeito nenhum.

VERA

Como não?

LUÍS

E o Secretário faz questão, a gente vai ter que dar um jeito.

RODOLFO

A Lilinha pode falar com ele. Ele gostou dela, deu pra ver.

LUÍS

É, mas ele é teimoso. E o pior é que eu acho que o Secretário está mesmo

querendo humilhar ele.

VERA

Como, humilhar? Ele não vai bancar tudo? Claro que ele tem direito de fa-

turar em cima, por que não? Não tem cabimento. Ele é a estrela do evento e

não quer aparecer? Tenha paciência.

LILINHA

Deixa comigo, eu falo com ele. Ele vai aceitar, sim. Ele não diz que o “não”

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267

e o “sim” são mais próximos do que parecem? Deixa comigo.

CENA 14

RUBENS

Pra quê essa roupa nova, menina? Eu já disse que eu vou, não disse? Vou

com as velhas, mesmo, não quero enganar ninguém.

LILINHA

Mas é uma solenidade. O que custa? Olha aqui, essa camisa, que linda!

(mostra uma camisa cor de maravilha)

RUBENS

Essa, como? Eu não posso usar uma coisa dessas.

LILINHA

Não tem nada de mais. Prova, não discute, prova.

RUBENS

Vocês estão querendo me fantasiar de quê? (enquanto se troca) Ah, não, gra-

vata, de jeito nenhum.

VERA

O senhor não vai ficar com ela pra sempre.

LILINHA

Seu Rubens, não custa. É a assinatura do contrato, e os jornais vão estar lá.

RUBENS

Jornais, pra quê?

VERA

É o preço, homem, o que é que o senhor quer? Eles querem bancar, eles vão

mesmo bancar. Custa, um sacrifício?

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268 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

RUBENS

Eu não vou ficar confortável. Parece uma palhaçada.

LILINHA

Seu Rubens, foi uma sorte conseguir. Faz parte cumprir o ritual. Claro que

é política, mas faz parte.

RUBENS

Há mais de quarenta anos que eu não uso uma gravata. (começa a dar o nó)

Quando eu comecei, eu era certinho, eu tinha até esquecido. Até destoava dos

outros, sempre de paletó e gravata. Olha só, que coisa sem pé nem cabeça. (no

espelho) Vão achar que eu enlouqueci. Esse homem aí não sou eu. (começa a

tirar tudo)

VERA

Eu desisto.

RUBENS

Eu odeio provar roupa, me tira do eixo. Eu só resolvi fazer teatro pra poder

não ligar pra coisa nenhuma, muito menos pra roupa. Na hora, eu visto qual-

quer uma, pode deixar.

LILINHA

A gente não é o que veste, mas faz parte, seu Rubens.

RUBENS

Eu sei que é problema meu, mas eu odeio me apresentar como um “autor”.

Porque eu não sou. Quando eu escrevo, eu não sou autor, eu não sou nada.

Nada de nada. Era isso que eu queria. Queria era uma roupa de nada.

LILINHA

Então, que tal essa preta? Vai parecer uma rotunda, não é nada.

RUBENS

O artista só cria nu. Não que seja sem roupas, mas a atitude é de uma

nudez... Assim, de alma. Ele não pode se preocupar com nada.

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269

LILINHA

Mas ele tem que vender seu peixe. Na hora de vender, é outra coisa.

VERA

Eu já vou indo. Não tem o menor cabimento. Eu estou convencida de que

o senhor é completamente louco. A gente não pode perder mais tempo. Deixa

ele ir nu, se ele quiser. A reunião é daqui a quinze minutos.

RUBENS

Como, quinze minutos?

LILINHA

O tempo passou e a gente não se deu conta. Vamos logo, Seu Rubens.

VERA

Eu vou indo, vocês vão chegar atrasados. (sai)

LILINHA

Por favor, seu Rubens, vamos logo. Ela vai jogar isso na nossa cara o resto

da vida. É tão importante a gente conseguir. Por favor.

RUBENS

Pelo menos, sem gravata. Pronto, eu estou pronto. Tá bom assim? Eu sou

isso, assim mesmo, desse jeito, incompleto. E já me conformei com isso.

CENA 15

RODOLFO

Que foi engraçado, foi. O Secretário fazendo o discurso e falando maravi-

lhas, mas ele fingindo que não era com ele, nem olhou pra cara do outro.

LILINHA

Como se não estivesse entendendo nada. Como se fosse gagá. (ri)

RODOLFO

Eu acho uma sacanagem o que ele faz com o Secretário. Ele é até simpático.

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270 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

Não sei como ele tem coragem. Aceita o dinheiro do outro e depois xinga o cara

no palco.

LUÍS

Não é o Secretário, Santo Deus! É o personagem, que sabe se arrumar com

o poder, só isso.

RODOLFO

Mas ele puxa a brasa pra sardinha do escritor, o tempo todo.

LILINHA

Se eles não forem diferentes, fica sem colorido. Tem que ter uma con-

tradição.

RODOLFO

Claro que tinha que perder ela pro Secretário. A mulher presa, ele ficou na

dele, lavou as mãos, não quis nem saber.

VERA

Mas o outro também não fez nada.

LUÍS

Eles não eram do mesmo partido. Ela fez a opção lá dela, nenhum dos dois

pôde fazer nada.

RODOLFO

Que panaca! Foi o Rubens que deixou ela ir à luta, sozinha. O Rubens!

LILINHA

Ela nem estava mais com ele.

RODOLFO

Ele tinha que ter pegado em armas, como ela. Tinha que ter morrido!

LILINHA

Que horror! Se tivesse morrido, não tinha peça.

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271

VERA

Mas existe uma culpa, lá no fundo. Como se ele não tivesse se perdoado.

LILINHA

Claro, ele não internou ela?

VERA

Uma coisa que eu não entendo é essa mania dele de dizer que ela está viva.

LUÍS

Mania, por que? Eu não te contei? É porque ela está. Ela está viva, sim, senhora!

VERA

Como, está? E onde é que ela se enfiou?

LUÍS

Ninguém sabe, fugiu. Sumiu no mundo. Deu um golpe no Secretário,

pegou uma grana e caiu na estrada. Ninguém sabe onde foi parar.

LILINHA

Que maravilhosa! Claro, nenhum dos dois merecia ela. Fez ela muito bem.

VERA

Mas, na peça, ela não morre?

LUÍS

É o que eu tou dizendo. A peça é só é inspirada neles. E a “culpa” de que

você fala não é bem essa. Ele só quis refletir sobre a dificuldade dos que não

morreram. Não por causa deles, mas porque ele vê uma ruptura, que fez

com que eles não conseguissem passar o bastão da História pra nossa ge-

ração. Essa é a questão. É como se ele assumisse que eles têm uma dívida

conosco. E daí o cinismo e o besteirol e o teatro desengajado que a gente

pratica. Ele quer pôr o dedo nessa ferida.

RODOLFO

Eu não entendo esse preconceito. Eu adoro besteirol.

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272 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

LUÍS

É sua cara, mesmo.

VERA

Que responsabilidade? Que coisa mais neurótica! Eles não têm nada a ver

com isso!

RODOLFO

Que cara chato!

VERA

Onde já se viu ele assumir uma responsabilidade desse tamanho? Que coisa

mais onipotente!

LILINHA

O Rodolfo só está de bronca por causa do personagem dele.

RODOLFO

Que personagem, o caralho! Esse velho é que é muito enjoado.

LILINHA

(explode, emocionada) Enjoado, nada. Ele é sério, muito sério. Você não sabe

como ele saiu da Secretaria! (culpada por ter omitido) Luís, quando eu deixei ele

em casa, ele estava bem estranho. Não abriu a boca, não falou nada no caminho.

VERA

Devia estar cansado.

LILINHA

(para Luís) Não, não era isso. Ele estava mal. Era bom você ir falar com ele.

Não custa. Dá uma ligada, pelo menos.

CENA 16

LUÍS

Eu fiquei preocupado. Você desligou o telefone por quê?

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273

RUBENS

Não foi nada.

LUÍS

Você tá abatido.

RUBENS

Não é nada, não. Eu estou... Nada mesmo, tá tudo bem.

LUÍS

Pode falar.

RUBENS

Eu tentei, você viu que eu tentei. Levei numa boa a reunião, o encontro,

tudo. Mas foi um erro. Foi um erro. Um erro. Eu fiz mal, não adianta me enga-

nar. Eu tou enojado comigo. Enojado!

LUÍS

Quando a gente vai numa dessas reuniões, bate uma ressaca, faz parte.

RUBENS

Eu queria sumir, como ela. É como se faltasse um pedaço dentro de mim.

Dói, sabe, Luís? Dói! Ele achava que ela era radical, mas, mesmo assim, era

apaixonado por ela, tanto quanto eu. Ela sempre foi melhor do que nós dois

juntos. Ela cobrava. O tempo todo ela cobrava. E obrigava a gente a aprofun-

dar todas as questões. Não era patrulha, era certo. Ela nunca fez média com

coisa nenhuma. Sem isso, não resta nada!

LUÍS

Porque é que você nunca foi atrás dela?

RUBENS

Até nisso ela foi radical: nunca escreveu, sumiu de vez. E acho que foi a

coisa certa. É impossível mudar sem matar o passado. Ontem, na

Secretaria, eu aceitei fazer o papel de mim, como os outros me vêem.

Assumi minha vida, meu passado, e eu não sou isso, claro que não. Era mais

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274 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

confortável o papel de suicida, louco e ausente.

LUÍS

Mas ela deve ter construído outra vida. E você também precisa se cuidar.

Ninguém vive fora do mundo. Você fala como se ela tivesse conseguido preser-

var uma pureza, mas você também!

RUBENS

Ela deve ter encontrado uma nova trincheira, eu tenho certeza. E eu não sei

inventar outra, sem ela. Porque eu fiquei aqui, apatetado, desse jeito, congela-

do, neste apartamento, e não entendo mais o sentido da vida, nem da minha,

nem da dos outros. Depois que você chegou com essa história da pesquisa, eu

andei tentando me enganar. Mas eu não sei. E quer saber? Eu tentei mesmo o

suicídio, não foi nada forjado. Depois, eu fiquei sem graça, e inventei aquela

história toda, menti. Enquanto eu estava lá pra assinatura do contrato, ela não

saía da minha cabeça e eu tenho certeza que o Secretário também não pensa-

va em outra coisa. Ele está pouco se lixando pro projeto. O dinheiro só tem a

ver com ela.

LUÍS

Mas o que importa é que ele deu.

RUBENS

Ninguém cede impunemente. Quando você faz o jogo do sistema, pensan-

do em levar vantagem, você se contamina de alguma forma. E se contagia com

os vícios que quer combater, é impossível passar batido, atravessar ileso.

LUÍS

Mas, pra viver, é preciso jogar, não existe outra forma.

RUBENS

Mas, no campo do inimigo, você já entra em desvantagem. Ele sabe disso

muito bem, ele sempre foi uma das melhores cabeças. E sabe também que, ao

ir lá, eu assinei minha rendição. Ele é pragmático e só acredita nos frutos da

ação objetiva, mas, mesmo assim, eu vi uma tristeza nova nos olhos dele. Ele

sabe que também perdeu com meu fracasso. Não foi uma simples vitória, não

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275

foi uma vitória verdadeira. Nem ele, nem eu conseguimos ficar com ela, que

era o que contava. E agora eu me rendi ao caos. Lá, enquanto assinava, eu esta-

va me rendendo ao caos.

LUÍS

Você não está exagerando? Foi só um contrato. Todo mundo assina con-

tratos, faz parte.

RUBENS

O caos só existe e cresce cada vez mais, porque todos acham que não vale a

pena resistir nem se indignar com mais nada. E eu não vejo saída. Talvez, se ela

estivesse aqui, eu conseguisse compreender. Claro que pra viver você tem que

sujar as mãos. Mas tem um limite. Eu não sei se vou suportar.

CENA 17

LUÍS

Gente, ele está em crise. Eu não sei se não foi um erro levar ele lá.

VERA

Erro, por quê? Ele é adulto, assumiu um compromisso, agora não pode

voltar atrás.

LUÍS

Eu sei, eu sei...

RODOLFO

Desculpa, eu tenho que ir andando.

LILINHA

Dá um tempo, Rodolfo.

RODOLFO

Não posso, já faltei a duas audiências. O juiz não é mole. É capaz de ele

mandar me prender, dessa vez!

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276 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

LILINHA

Audiências, que audiências, Rodolfo? De novo?

RODOLFO

As duas se juntaram, agora. Querem acabar comigo.

LILINHA

Vera, você tem toda razão, a gente nunca foi um grupo. Nem sei se a gente

tem condição de fazer uma peça assim, tão... tão...

VERA

Espera aí, só por causa do Rodolfo? Uma coisa não tem nada a ver com

outra.

LILINHA

O Rodolfo nunca tem tempo, e odeia discutir. Assim não dá.

LUÍS

Esquece o Rodolfo, Lilinha. Eu estou preocupado com o Rubens, porque

ele não está nada bem. Não é fingimento. Ele está dilacerado por ter aceito o

patrocínio.

VERA

O QUÊ? Esse homem não regula. Ele quer viver do quê? De brisa?

LUÍS

Ele diz que a ingenuidade e a pureza são a única forma...

VERA

(corta) Pureza, agora? Você sabe mentir muito bem quando te interessa,

quando te convém. (furiosa) A esta altura, com tudo assinado, duvidar? Tenha

paciência.

LUÍS

Mas ele tem razão. Não tem como fingir, Vera. Tem uma coisa, lá den-

tro, que você não consegue trair, sem se violentar. Se você está cheio de

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277

problemas, torturado, o que é que você vai fazer? Despejar seu lixo sobre

os outros?

VERA

Isso é bonito de falar. Eu quero que os outros se danem. Esse homem é

louco, obcecado, Santo Deus, nunca vi uma coisa igual. Eu não me confor-

mo. Ele já escreveu a peça. Pronto. Ele que fique na dele, não tem nada que

interferir. A única coisa que me deixa segura é que ele não pode mais voltar

atrás.

LUÍS

Pode, sim. Claro que pode.

VERA

Era só o que faltava...

LUÍS

Tem uma cláusula...

VERA

Que cláusula?

LUÍS

Ele se reservou o direito de desistir, se achar que a coisa não...

VERA

Como é que você deixou passar uma coisa assim? Luís, como é que você fez

uma cagada dessas?

RODOLFO

Ele não pode fazer isso com a gente!

VERA

Quer dizer que agora a gente vai depender do humor do homem, para

saber se a coisa sai ou não sai? Ele é louco, não vai dar certo.

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278 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

LUÍS

Chega, Vera, nem mais uma palavra, chega. Quer saber? Se a coisa não

sair, a culpa vai ser sua. Você tem que se abrir, será que você não entende?

Tá pensando que vai usar o Rubens, como se ele fosse... sei lá... um idiota?

Ele não é um idiota, e é você que está sendo estúpida, burra e teimosa. Você

não me deixa falar. O projeto só saiu porque eu acreditei. Mas você conti-

nua duvidando, e eu estou de saco cheio. Se manca. Se você não quiser, não

precisa fazer a peça com a gente, tá bem assim?

VERA

Ah, você está querendo me tirar, Luís? Agora que eu entendi. É isso que você

quer?

LUÍS

Não quero tirar ninguém. Só estou dizendo que é justo que a coisa seja feita

com a cara dele, do jeito que ele achar melhor. Ele é o autor, será que você não

entende?

VERA

Ele é o autor, e eu sou uma atriz.

LUÍS

É um sujeito perfeitamente razoável e lúcido, e não vai aprontar. Se ele

desistir, vai ser por uma boa causa.

VERA

Boa causa?

LUÍS

Eu não vou fazer nada que vá contra o que ele acredita e muito

menos contra o que eu acho certo. Eu confio muito mais nele do que em

você.

VERA

Ah, é assim? Então é assim? (pros outros) Vocês ouviram? Vocês ouviram?

Mas que merda! Se você pensa que pode falar comigo desse jeito, está muito

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enganado. Eu não preciso dessa merda, tá sabendo? Fodam-se, você e o seu

autor! Eu estou fora! FO-RA! (sai, batendo a porta)

LILINHA

Calma, gente. Vera, espera!

CENA 18

LUÍS

Desculpa, eu sei que é tarde. Mas eu e a Vera brigamos... e eu achei melhor

vir falar com você. Eu estou precisando.

RUBENS

Entra.

LILINHA

Eu quis vir junto, o senhor se importa?

RUBENS

Não tem problema, claro que não. Vamos entrar.

LUÍS

Desculpa, eu sei que não é problema seu. Mas eu minto demais e nem sei

mais quando tou falando a verdade, porque é tudo tão louco. Só sei que está

tudo errado, continua tudo errado, e não é porque eu minto. Claro que não.

(explode) Eu estou cansado! Cansado! Eu odeio discutir, mas ela não acredita

em nada e só vive me cobrando. Parece que tem prazer! Se, pra fazer teatro, eu

vou ter que brigar assim, o tempo todo, discutir tudo, sem parar, eu não sei se

eu quero. Ela nunca assume o que é feito pelo outro. E agora, ficou louca, quan-

do soube da cláusula que te dá o direito de desistir.

RUBENS

Calma, nós estamos no mesmo barco. Eu não vou desistir.

LUÍS

Não vai, como?

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280 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

LILINHA

Mas, então, você não precisa sofrer desse jeito, Luís. Eu vou ligar já pra Vera,

e vai ficar tudo bem.

LUÍS

Não vai ligar nada pra ninguém! Espera, Lilinha. Explica melhor, Rubens.

Como, não vai desistir, por quê? Desde o início, a gente conversou direitinho,

e você sabe que tem todo o direito de mudar de idéia.

RUBENS

Eu tenho um compromisso com você, Luís, e vou cumprir.Agora não existe

mais “teu” e “meu”. Minha peça agora já é sua também, por direito. Claro que

é. E o que estamos passando também é problema nosso, não é só seu.

LUÍS

Eu nem sei... Sabe por que é que eu minto? No fundo, é o que as pessoas

esperam. Eu sinto isso. Ninguém quer saber da verdade, porra nenhuma!

Todos só querem ouvir o que escolheram como verdade. E querem a confir-

mação de que estão certos. Mas que verdade? E eu me viro. Ela diz que não tem

preconceito com nada, mas é mentira. Vive pegando no meu pé por causa do

Júlio. Ele me ajuda, mas não tem nada a ver com a nossa relação. No fundo, ela

tem inveja, porque não tem ninguém. E eu não posso sair por aí anunciando

que namoro o rapaz que assessora o Secretário. Ninguém ia entender. Isso não

é mentir!

LILINHA

O Seu Rubens não vai desistir, Luís, não tem mais problema.

LUÍS

Tem, porque sou eu que não quero mais. Eu não suporto mais olhar pra

cara dela, nem ouvir o Rodolfo falar das mulheres dele. Parece que não tem

fim. Parece que ninguém quer saber do que interessa.

RUBENS

Senta, Luís, relaxa. Todo mundo às vezes tem vontade de jogar tudo pro alto

e sumir. Mas não tem pra onde, essa é que é a verdade. Não tem.

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281

LILINHA

Calma, Luisinho, vai ficar tudo bem.

RUBENS

A contradição faz parte da vida. Existe uma responsabilidade de quem está

no comando, e, no caso, você está.

LUÍS

Eu, no comando? Desde quando?

RUBENS

Desde que o projeto saiu. Você não pode querer eliminar a Vera desse

jeito. Ela está em você, não vai adiantar. Desculpa, eu sei que a culpa foi

minha. Ontem, quando você veio, eu desabafei com você como amigo. Mas

eu não posso voltar atrás. A assinatura do contrato mexeu comigo, mas

acabou sendo uma libertação. Esse tempo, todo eu me viciei em culpar o

Secretário pelos meus problemas. Mas, se eu quiser continuar a viver, eu vou

ter que participar de tudo como existe. E essa sua crise tem um lado bom.

Tem um nível de pensamento que a gente só atinge quando entrega os pon-

tos e desiste. Como se fosse uma morte. Mas, se você pára e olha pro proble-

ma que tinha, ou que pensava que tinha, vai ver que... não tem mais

importância.

LILINHA

O Rubens tem razão, nós podemos não ser um grupo, mas nós somos ami-

gos, Luís. No fundo, eu sei que você gosta dela.

LUÍS

Eu acho que nós não estamos à altura da sua peça. Como é que eu posso

defender no palco suas idéias, se, na vida, eu não consigo praticar?

RUBENS

A prova de que você está à altura é duvidar. Você está muito diferente do

menino deslumbrado que apareceu aqui a primeira vez. E, se cada vez que

alguém duvidasse, largasse tudo, o mundo não saía do lugar.

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282 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

LUÍS

Ela faz análise, mas parece que não adianta. Não acredita em nada. Como

é que vai poder fazer a personagem?

RUBENS

Acredita, sim, e nem sabe que acredita. Às vezes, a vida obriga você a vestir

uma máscara e, depois, você não sabe mais como tirar. E, mesmo quando um

ator não conhece a personagem, nos ensaios, ele pode ir descobrindo as facetas

escondidas que nem imagina que tem. E, com isso, ele cresce e se transforma.

E eu duvido que ela consiga ensaiar o papel da Nina sem se envolver. Ela vai se

contagiar da beleza da personagem, eu tenho certeza. Mas isso só vai ser pos-

sível se vocês confiarem nela.

LILINHA

Ela também não me respeita, Luís, é o jeito dela. Não vê como ela fala

comigo? Eu não posso abrir a boca. Ela quase não dorme, é por isso que

vive tensa. Porque sono também é vida, isso é que ela não sabe. O sono não

é uma bênção, Rubens?! Ele apaga tudo de ruim que a gente passa durante

o dia. Como se fosse um perdão. E é isso que a gente tem que fazer, Luís, a

melhor coisa agora é a gente ir dormir. Amanhã, você acorda outro, você

vai ver.

LUÍS

Mas que é que eu tenho a ver com a loucura dela, me diz?

RUBENS

Porque não é só dela, é sua também. E o único problema é que vocês estão

com medo.

LUÍS

Medo de quê? Ela não tem medo de nada.

LILINHA

Deixa de ser tonto, Luís. Claro, nós todos estamos mexidos. Pra ela, deve ser

ainda mais difícil, porque não acredita em nada.

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283

LUÍS

(para Rubens) Mas não existe uma contradição enorme entre o que você

prega e essa forma pela qual a gente vai fazer a peça? A gente vai, pega o di-

nheiro, toma mil compromissos com tudo e é obrigado a dar o crédito pra

Secretaria, pra todos os apoios? É um inferno, tudo isso. Isso não invalida

tudo?

RUBENS

Não, não invalida, não. Se não for assim, essas idéias não vão sair do papel.

Mesmo que exista uma contradição, é o único jeito. Pode ser que pra alguém,

que a gente nem sabe quem é, elas possam ser um estímulo, provocar uma

descoberta, ser o estopim de uma transformação, quem sabe? E vai ter valido a

pena. E principalmente cada um de vocês também vai se transformar, com

certeza. Uma peça não é uma coisa morta. Eu tenho certeza de que a Vera vai

se transformar, e você e eu também, mesmo a distância, todos nós vamos

mudar, e é isso que importa. (olha pra Lilinha) Vocês são um grupo, sim. Um

grupo do início do milênio, no Brasil, com todas dificuldades que isso possa

ter. Eu quero te agradecer, Luís: você veio até aqui e me tirou de um limbo onde

eu tinha me metido. Minhas idéias não servem pra nada, se não forem passadas

adiante, pra ouvidos jovens, como os de vocês.

LUÍS

Por que é que, na hora H, dá esse frio na barriga, Santo Deus? Eu tou morto

de medo!

RUBENS

Tá tudo certo, Luís.Vamos em frente. (a luz cai, em contraluz, e o iluminador

dá meia platéia)

CENA 19

LUÍS

(se dirige à cabine de luz) Pessoal, vamos dar uma passada na luz da cena

final. (chama pelos outros) Rodolfo, chega aqui. Vera, vem dar uma força. Eu já

volto. (ele sai, a luz passeia pelo cenário)

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284 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

RODOLFO

(cantarola) “... assim pungente, não há de ser inutilmente... a esperança”

VERA

(cantarola) “cada paralelepípedo da velha cidade esta noite vai se arrepiar...”

Entra uma música de transição para o final.

LILINHA

Gente, eu nem acredito, passou tão depressa. Eu morro de medo de estréia!

VERA

Rodolfo, suas duas mulheres estão lá fora. No maior papo, juntas. Você

é louco?

RODOLFO

Elas que quiseram, estão amigas, nem se largam mais. Ando até

desconfiado.

VERA

Desconfiado, como?

RODOLFO

Brincadeira, elas me adoram. A Lilinha é que não quer saber de mim. (corre

atrás da atriz)

LUÍS

(entra pela platéia) Pessoal, olha quem chegou!

RUBENS

Eu só vim dar um abraço.

LILINHA

Que flores lindas, Rubens, que maravilha!

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Page 285: Agora Livre Dramaturgias Miolo

285

VERA

Eu também adorei, obrigada pelas palavras. Meu Deus, a camisa! Lilinha,

não tá vendo? É aquela.

RUBENS

Em sua homenagem. Ah, o cenário está igualzinho ao meu apartamento!?

E aí, tudo pronto?

LUÍS

Eu estou estranhando sua animação. Não tá nem um pingo nervoso?

RUBENS

Eu estou feliz. Pra mim, já foi um sucesso. Ela me mandou um cartão.

Soube da estréia e mandou.

LILINHA

Ela, quem? Não é possível! Depois de tanto tempo? Deixa eu ver. Meu Deus,

veio da Índia? Então ela está lá? (lê) “Agora, eu vivo com Shiva.” Meu Deus!

RODOLFO

Que filha-da-puta. Ela casou com um indiano?

LILINHA

(ri) Que indiano, o quê! É um Deus, Rodolfo. Tá aqui a imagem, no cartão.

Aquele, de muitos braços.

RUBENS

Os adeptos de Shiva acreditam que a melhor forma de devoção a Deus é

mostrar o quanto a própria vida é um teatro. Por isso, largam tudo e vivem sem

nada, pelas ruas, o rosto coberto de cinzas, sem mais nada. Abrem mão até

deles mesmos.

LILINHA

(continua a ler) Vera, olha que lindo! Ela diz: “Força! Nós estamos juntos!

A distância não importa!” Como é que ela adivinhou?

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Page 286: Agora Livre Dramaturgias Miolo

286 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

RUBENS

E aí, Luís, não é pra ficar contente?

VERA

Rubens, vem cá. Eu quero falar com você. Obrigada... por tudo. Vai ser um

sucesso. Eu nunca fiz uma peça tão forte. Eu estou apaixonada pela Nina, pela

peça, por você, por tudo. Você vai jantar com a gente, não vai? Eu não aceito

recusa.

RUBENS

Claro, vamos jantar todos juntos e comemorar.

LUÍS

Ela está mesmo apaixonada, Rubens, é melhor você se cuidar!

RODOLFO

Gente, tá na hora! O autor, já pra platéia. Vai começar!

LILINHA

Rubens, espera! Eu quero te dedicar uma frase sua. (vira-se para a platéia)

“Oração e fé criam o que acontece...” (pausa, torturada) Esqueci. (corre e Ru-

bens a abraça)

RUBENS

Por oração, entenda-se tudo o que se fala. (sopra baixinho pra ela) E,

por fé...

VERA

(com ar maroto) ... até mesmo a ausência radical de qualquer tipo de cren-

ça”.

Lilinha sai correndo atrás da outra, e Rubens descobre Luís melancólico, abre

os braços e todos se abraçam.

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Page 287: Agora Livre Dramaturgias Miolo

287

FAUZI ARAP

ator e diretor. Estreou como diretor profissional na montagem de Navalha na

Carne (1966), de Plinio Marcos, na versão carioca produzida por Tônia Carre-

ro. Na década de 1970, estréia como autor, com Pano de Boca, e passa uma tem-

porada dirigindo apenas seus próprios textos: O Amor do Não, Um Ponto de

Luz, entre outros. No final da década de 1980 cria o projeto Rosa dos Ventos que

ocupa o Teatro Eugênio Kusnet por dois anos e consegue recuperar o espaço

com encenações, leituras e shows de música popular. O projeto mereceu o

Grande Prêmio da APCA, e lançou a autora Noemi Marinho, com Fulaninha

& Dona Coisa, seu texto de estréia. Também na década de 1980, coordenou o

seminário permanente de dramaturgia da APART (Associação Paulista de Au-

tores Teatrais). Seus trabalhos recentes incluem direções de peças de Leilah As-

sumpção, Leo Lama, Juca de Oliveira, José Vicente, Mário Bortolotto, e dos

shows Âmbar, A Força que Nunca Seca, e Maricotinha, todos de Maria Bethâ-

nia. Seus prêmios incluem dois Molière, como autor, (1977 e 1988), mais

inúmeros prêmios Shell, Mambembe, APETESP e APCA, como diretor e au-

tor. Pelas direções de Santidade e Caixa Dois (1997), recebeu os prêmios Shell

e APETESP de melhor direção; os dois espetáculos também foram escolhidos

na categoria melhores do ano. Publicou pela Editora Senac o livro Mare Nos-

trum (1998), relato autobiográfico em torno de suas experiências lisérgicas, vi-

vidas nas décadas de sessenta e setenta. O Mundo é Um Moinho foi produzido

no Rio de Janeiro, pela Casa da Gávea (2003), com direção do autor e tendo no

elenco Caio Blat, Cláudio Cavalcanti, Maria Ribeiro, Cristiana Kalache e Pau-

linho Giardini.

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NOVAS DIRETRIZES EM TEMPOS DE PAZ

dramaturgo: Bosco Brasil

debatedor: Gianni Ratto

MONTAGEM

direção: Ariela Goldman

elenco: Dan Stulbach e Jairo Matos

cenário e figurino: Ariela Goldman

trilha sonora: Aline Meyer

luz: Rodrigo Guimarães

produção executiva: Aline Meyer

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290 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

NOVAS DIRETRIZES EM TEMPOS DE PAZuma fábula de Bosco Brasil

PERSONAGEM

CLAUSEWITZ por volta de 40 anos, ator

SEGISMUNDO por volta de 40 anos, interrogador

CENÁRIO

sala na Imigração do Porto do Rio de Janeiro

ÉPOCA

década de 40, séc. XX

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Page 291: Agora Livre Dramaturgias Miolo

291

Segismundo está limpando as unhas nervosamente. Clausewitz abre a

porta com cuidado. Segismundo sinaliza para que ele entre. Clausewitz entra

e fecha a porta atrás de si. De fora, chega o apito rouco e insistente de um car-

gueiro que se prepara para zarpar.

SEGISMUNDO

Por que isso sempre acontece comigo?... (para Clausewitz) Eu tenho que

ir para casa depressa. Entende? Ordens. De lá de cima. (para si) Justo hoje

esse sujeito me aparece?

Clausewitz reage à palavra “sujeito”.

SEGISMUNDO

Onde está o seu passaporte?... Eu deixei aqui, em algum lugar. Pode sen-

tar. (sinaliza e fala com todas as letras) Sentar. Pode. Na cadeira. (tempo) Só

quero ver como é que eu vou me entender com esse sujeito...

CLAUSEWITZ

(murmura) Sujeito... Predicado... Objeto... (tempo) Objetos.

SEGISMUNDO

Você fala português?

Clausewitz faz um gesto evasivo com a cabeça.

SEGISMUNDO

Sei. Um pouco. Melhor... Deixa eu ver: a gente vai ter que preencher is-

to aqui. (coloca um papel na máquina de escrever) Por que mudaram a fór-

mula do depoimento outra vez?... Esse pessoal não sabe o que quer. (dati-

lografando) Distrito Federal... (para si) Que dia é hoje?

CLAUSEWITZ

Dezoito de abril de 1945.

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292 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

SEGISMUNDO

O senhor fala bem português, então?

Clausewitz faz mais um gesto evasivo com a cabeça.

SEGISMUNDO

Vamos ver se acabamos logo com isto...

CLAUSEWITZ

Sua esposa?

SEGISMUNDO

Minha irmã. Vamos ver... Data de hoje, nome do depoente...

CLAUSEWITZ

Seu nome?

SEGISMUNDO

Como?

CLAUSEWITZ

Seu nome.

SEGISMUNDO

Segismundo.

CLAUSEWITZ

Segismundo?

SEGISMUNDO

Meus pais morreram eu ainda era de colo. Nunca vou saber por que ga-

nhei esse nome.

CLAUSEWITZ

Segismundo. (tempo) Sabe, esse nome... Não. O senhor não vai se inte-

ressar. Eu também não me interesso por isso.

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Page 293: Agora Livre Dramaturgias Miolo

293

SEGISMUNDO

(tempo) O senhor fala mesmo, o português.

CLAUSEWITZ

Eu falo.

SEGISMUNDO

Já esteve no Brasil antes?

CLAUSEWITZ

Nunca antes.

SEGISMUNDO

Sei. E o senhor aprendeu como, o português?

CLAUSEWITZ

Estudei sozinho. Depois de tudo que eu passei... tudo que eu passei na Guer-

ra... estudar uma língua tão estranha foi bom para mim, me fez esquecer... Eu

sou grato ao “x”. Gastei muito tempo estudando os valores do “x”no português.

Como é que vocês usam de tantas maneiras uma letrinha à toa?! Estudando o

“x” eu às vezes quase esquecia da Guerra... Quase esquecia da maldade. (tempo)

Claro, um funcionário do consulado do seu país em Manchester me emprestou

alguns livros. Ele também repetiu “não” muitas vezes. Agora eu falo: “não”.

SEGISMUNDO

Era a obrigação dele.

CLAUSEWITZ

Repetir o “não”?

SEGISMUNDO

Não se pode dar visto de entrada ao primeiro que aparece.

CLAUSEWITZ

Ah... Estava falando da pronúncia. “Não”. É difícil dizer: “não”. Essas

“nasais” da sua língua...

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294 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

SEGISMUNDO

Nazistas, o senhor disse?

CLAUSEWITZ

Por favor! Nasais! Nasais... Não. Mão. Verão.

SEGISMUNDO

Então, o senhor aprendeu com esse funcionário do consulado?

CLAUSEWITZ

Eu já tinha estudado um pouco no seminário. Por causa do meu profes-

sor de latim. O Professor Cracowiack... (tempo) Docta ignorantia. O se-

nhor já ouviu isso, não?

SEGISMUNDO

Não. O que é?

CLAUSEWITZ

Latim.

SEGISMUNDO

Não estudei latim.

CLAUSEWITZ

O senhor nunca foi à missa?

SEGISMUNDO

Não.

CLAUSEWITZ

(tempo) O senhor sabe: meu país é um país de católicos como o seu país.

SEGISMUNDO

Fui criado num orfanato luterano.

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295

CLAUSEWITZ

(tempo) Desculpai-me.

SEGISMUNDO

(tempo) Então o senhor aprendeu português no seminário...

CLAUSEWITZ

Não. Latim... Com o professor Cracowiack, como eu disse. (tempo) In-

teressante. Nunca soube como o professor Cracowiack foi acabar dando

aula no seminário. (tempo) O professor Cracowiack amava as línguas neo-

latinas. (tempo) Professor Cracowiack falava dezessete línguas! (tempo) Ele

tinha o exemplar de uma revista com poesia brasileira moderna. (se anima)

O senhor já ouviu falar do senhor Carlos Drummond de Andrade?

SEGISMUNDO

É o sujeito forte do ministro da Educação e da Saúde. Eu sei que escre-

ve num jornal. Parece que é escritor. E o senhor, é escritor?

CLAUSEWITZ

Não, sou agricultor.

SEGISMUNDO

E aprendeu sozinho o português... Não é todo dia que chega um estran-

geiro aqui, falando português.

CLAUSEWITZ

É bom estar no Brasil.

SEGISMUNDO

Deve ser. (tempo) Escute, o senhor chegou num dia um pouco agitado.

Precisamos resolver esta confusão logo. O senhor sabe que pela lei ainda es-

tamos em guerra. Eu sei, eu sei... Na Europa a coisa parou. Logo vem o ar-

mistício. Mas para nós, aqui na Imigração, tudo continua o mesmo. Esta-

mos esperando novas diretrizes para tempos de paz. Enquanto não che-

gam, continua o mesmo: se quer ficar no país, como estrangeiro, o senhor

precisa de um salvo-conduto. O senhor quer ficar no país, não é?

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296 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

CLAUSEWITZ

Eu quero.

SEGISMUNDO

Sei. Então nós temos que esclarecer algumas dúvidas a seu respeito. Se

isso não for possível, o senhor será obrigado a voltar ao cargueiro e seguir

viagem.

CLAUSEWITZ

Eu tenho visto.

SEGISMUNDO

Visto para entrar no país, expedido pelo consulado brasileiro em Man-

chester... É esta folhinha, estou certo? Agora... Está vendo o seu passaporte?

Algum carimbo nesta folha? Então. Quem bate esse carimbo sou eu. O se-

nhor ainda não entrou no Brasil. O senhor não entrou em país algum. O

senhor entrou na minha sala. Eu digo se o senhor fica ou segue viagem.

CLAUSEWITZ

O cargueiro vai para as Ilhas Fauklands... E que eu vou fazer lá?

SEGISMUNDO

E o que o senhor veio fazer aqui?

CLAUSEWITZ

Aqui? No Brasil? Trabalhar.

SEGISMUNDO

No seu passaporte diz que o senhor é agricultor.

CLAUSEWITZ

O seu país precisa de braços para a lavoura...

SEGISMUNDO

O meu país precisa de muita coisa. Posso ver suas mãos?

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Page 297: Agora Livre Dramaturgias Miolo

297

CLAUSEWITZ

Não entendi.

SEGISMUNDO

(gesticula) Eu quero ver suas mãos.

CLAUSEWITZ

O senhor quer ver minhas mãos...

SEGISMUNDO

Isso mesmo. Agora. Suas mãos.

Clausewitz mostra as mãos.

SEGISMUNDO

A palma da mão, por favor.

Tempo. Clausewitz vira as palmas das suas mão para cima.

SEGISMUNDO

O senhor nunca pegou numa enxada na sua vida. Sabe, senhor...

CLAUSEWITZ

Clausewitz.

SEGISMUNDO

Então. Foi o que mais me chamou a atenção. Mais do que todo o resto.

Um agricultor. Eu fiquei pensando o que um agricultor faz na Europa, nes-

tes dias. O senhor fazia o quê, lá?

CLAUSEWITZ

Nada.

SEGISMUNDO

Sei. E aqui, o senhor quer fazer o quê?

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Page 298: Agora Livre Dramaturgias Miolo

298 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

CLAUSEWITZ

O Brasil precisa de braços para a agricultura.

SEGISMUNDO

O Brasil sempre precisa de alguma coisa. Uma hora, precisa plantar; outra

hora, precisa temperar o aço. Uma hora, o Brasil precisa de nós; outra hora,

não precisa mais de nós... (tempo) O senhor não trouxe nenhuma bagagem?

CLAUSEWITZ

O que eu sou é tudo que eu tenho.

SEGISMUNDO

Não tem bagagem, então.

CLAUSEWITZ

Eu fui deixando os meus objetos pelo caminho, da Po... Polsh...

SEGISMUNDO

(ajuda) Polônia.

CLAUSEWITZ

(assente) Da Polônia até o Brasil. (se esforça) Até aqui...

SEGISMUNDO

O senhor embarcou em Manchester, não foi isso? Não embarcou com nada?

CLAUSEWITZ

Não.

SEGISMUNDO

Isso é muito estranho. Quase todos que têm desembarcado aqui, nos últi-

mos tempos, vêm trazendo móveis, tapetes, pianos... Alguns até trazem carros.

CLAUSEWITZ

Eu sei. Essas pessoas vão vender esses objetos para pagar por uma vida

nova. Me falaram em construir fábricas, em comprar fazendas. E depois

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Page 299: Agora Livre Dramaturgias Miolo

299

vão comprar outros objetos outra vez. Outros tapetes, outros pianos. Ob-

jetos. Parece que estão se preparando para fugir de novo. E quando isso

acontecer vão precisar de objetos para vender.

SEGISMUNDO

Mas o senhor não trouxe nada.

CLAUSEWITZ

Meus braços.

SEGISMUNDO

Sei. O Brasil precisa de braços para a lavoura.

O cargueiro apita.

SEGISMUNDO

O seu navio já está para partir.

CLAUSEWITZ

Eu não vou ficar?

SEGISMUNDO

Não posso me arriscar. Há muitas contradições no seu depoimento.

CLAUSEWITZ

O senhor fala: contradições. Onde estão as contradições?

SEGISMUNDO

Em todo lugar. O senhor diz que é agricultor, mas não tem um calo na

mão. Nunca veio ao Brasil, mas fala português muito bem.

CLAUSEWITZ

O senhor acha que eu sou um espião?

SEGISMUNDO

Não. Acho que é um nazista tentando entrar no Brasil.

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300 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

CLAUSEWITZ

Nazista?! Eu?!

SEGISMUNDO

Por favor... Não tenho nada contra o senhor. Mas agora nós vencemos uma

guerra contra o nazi-fascismo. É o que estão falando. O senhor não imagina a

confusão que foram estes últimos anos... Uma hora diziam para barrar os

judeus, outra hora para barrar os alemães. Enquanto não chegam as novas

diretrizes para tempos de paz, tenho que resolver tudo por mim mesmo.

CLAUSEWITZ

Confusão! Confusão... (respira) Há uma confusão. Eu não sou nazista.

Eu sou... da Polônia!

SEGISMUNDO

Uma passageira do navio disse que conhecia o senhor. É pena que ela

não falava tão bem o português. Não deu para entender muito bem. Parece

que viu o senhor fazendo... fazendo umas maldades... Não sei bem se é essa

a palavra.

CLAUSEWITZ

Maldades?

SEGISMUNDO

O senhor andou cortando a língua de uma moça.

CLAUSEWITZ

(tempo) Ah... Quem disse isso foi uma senhora ruiva, com uma cicatriz

aqui?

SEGISMUNDO

Conhece?

CLAUSEWITZ

Na viagem, eu conheci. Ela me conhecia. Do palco! Do palco... No

Teatro! Está claro? (pausa) Eu era ator.

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Page 301: Agora Livre Dramaturgias Miolo

301

SEGISMUNDO

O senhor não disse que era agricultor?

CLAUSEWITZ

Eu era ator. Agora sou agricultor.

SEGISMUNDO

(tempo) Desde quando o senhor é agricultor?

CLAUSEWITZ

Faz uns... uns quinze meses. Quando eu desisti de ser ator, tinha que

escolher uma profissão. Agora sou agricultor.

SEGISMUNDO

Mas nunca plantou nada...

CLAUSEWITZ

A Europa estava na guerra. O Brasil precisa de braços para a agricultura.

SEGISMUNDO

O senhor é ator? Ou é agricultor?

CLAUSEWITZ

Eu decidi ser agricultor. Eu não quero mais saber do Teatro. O senhor

acha que tem lugar para o Teatro no mundo, depois desta Guerra?

SEGISMUNDO

Eu nunca fui ao teatro. Ouvi pelo rádio, uma vez. Uma história de uma

mulher que assina umas promissórias, depois vai embora de casa. Não

entendi muito bem. Não tinha a ver com a minha vida.

CLAUSEWITZ

É o que eu estava dizendo. O mundo que eu vi... O Teatro nunca vai

falar do mundo que eu vi. O senhor não imagina o que é uma guerra den-

tro da sua própria casa.

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Page 302: Agora Livre Dramaturgias Miolo

302 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

SEGISMUNDO

(impaciente) É. Todos vocês dizem isso.

CLAUSEWITZ

“Vocês”? Quem?

SEGISMUNDO

Os estrangeiros.

CLAUSEWITZ

Mas eu vi coisas que o senhor nem pode imaginar!

SEGISMUNDO

(impaciente) Escute. Se o senhor tivesse alguma bagagem, alguma coisa

para dar ao rapazes aí da alfândega... Um presente. Assim era muito mais

fácil. Mas o senhor não tem nada.

CLAUSEWITZ

Tenho as minhas lembranças.

SEGISMUNDO

Isso não vai ajudar o senhor. Para mim não quer dizer nada a sua guer-

ra. Todos vocês querem me fazer chorar.

CLAUSEWITZ

“Vocês”? Os estrangeiros? Os estrangeiros querem fazer o senhor chorar?

SEGISMUNDO

Perda de tempo. O que vocês podem me contar que me cause alguma

emoção diferente? É como o Teatro que eu ouvi no rádio...

CLAUSEWITZ

O teatro não pode tocar o senhor. Estou de acordo. Não depois desta

guerra. Mas as lembranças... Eu vivi estas lembranças. Foi... foi um tempo

difícil.

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Page 303: Agora Livre Dramaturgias Miolo

303

SEGISMUNDO

O Brasil mandou tropas. Fizeram tanto escarcéu nas ruas que o

Presidente mandou. Estamos com as contas em dia.

CLAUSEWITZ

É diferente. Não estou falando da guerra dos soldados. Estou falando da

Guerra que entrou na minha casa! (tempo) O senhor não tem idéia do que

uma pessoa pode fazer com outra pessoa.

SEGISMUNDO

Está bem: vocês mataram, vocês violaram as suas virgens, vocês come-

ram carne dos mortos. Eu sei. Todos vocês me contam a mesma coisa! Eu,

eu digo: e daí? Isso foi lá na Europa. Por que isso deveria me dizer respeito?

CLAUSEWITZ

Porque o senhor também é uma pessoa. É um sujeito!

O navio apita mais uma vez. Pausa. Segismundo pega um salvo-conduto

e o assina.

SEGISMUNDO

Está bem. Ainda temos uns dez minutos antes do seu navio zarpar. Eu

já estou atrasado mesmo. (para si) Tanto faz se eu encontrar um daqueles

na rua... (tempo) Vamos fazer um trato. O senhor tem esses dez minutos

para me fazer chorar.

CLAUSEWITZ

Fazer o senhor chorar?

SEGISMUNDO

Isso. Me conte suas histórias da Guerra. Se eu não chorar nos próximos

dez minutos por causa das suas lembranças, o senhor embarca no navio. Se

eu chorar... Está vendo este salvo-conduto? É seu.

CLAUSEWITZ

Isto está no regulamento?

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Page 304: Agora Livre Dramaturgias Miolo

304 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

SEGISMUNDO

Para o senhor, agora, eu sou o regulamento.

CLAUSEWITZ

(tempo) O senhor chora, eu fico no Brasil?

SEGISMUNDO

Fica.

O navio apita outra vez.

SEGISMUNDO

Está se preparando para zarpar. (tempo) Se quiser desistir.. Pode embar-

car agora.

CLAUSEWITZ

Eu vou contar. Eu vou contar...

Segismundo volta a limpar as unhas, calmamente. Clausewitz parece estar

procurando as palavras.

SEGISMUNDO

Esta papelada... Nunca vi juntar tanta poeira.

CLAUSEWITZ

Por favor, eu preciso pensar.

SEGISMUNDO

Pensar no quê? É só contar o que o senhor viveu.

CLAUSEWITZ

Eu não sei as palavras... Não sei como colocar em... palavras... É difícil

contar essa coisa em português.

SEGISMUNDO

Eu só falo português.

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Page 305: Agora Livre Dramaturgias Miolo

305

CLAUSEWITZ

É difícil!

SEGISMUNDO

O senhor também fala português.

CLAUSEWITZ

Não é a mesma coisa!

SEGISMUNDO

Eu estou esperando...

CLAUSEWITZ

Está bem! Está bem. Eu vou tentar.

Tempo.

CLAUSEWITZ

(sôfrego) Perto da minha cidade... Perto da minha cidade. Tinha um...

cheiro de carne... de carne humana no fogo... Não! Eu não vou conseguir

contar isso. Não em português.

O navio apita mais uma vez.

SEGISMUNDO

Quer desistir?

CLAUSEWITZ

Outra lembrança. (tempo) Prenderam o professor Cracowiack... Os

alemães prenderam.

SEGISMUNDO

(se interessa) O professor de latim?

CLAUSEWITZ

O professor de latim.

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Page 306: Agora Livre Dramaturgias Miolo

306 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

SEGISMUNDO

Levaram para um interrogatório, o professor?

CLAUSEWITZ

Levaram. Sim. Eu estava lá... na mesma sala...

SEGISMUNDO

E aí?

CLAUSEWITZ

Prenderam o professor numa cadeira... numa cadeira como esta.

(tempo) Aí começaram a bater... bater em professor... no professor... com...

com uma...

SEGISMUNDO

Uma, o quê?

CLAUSEWITZ

Eu não sei. Eu não tenho as palavras.

SEGISMUNDO

Eu vou emprestar algumas ao senhor. Antes de me mandarem para este

posto, eu fazia uns serviços para a Polícia Política...

CLAUSEWITZ

O senhor?

SEGISMUNDO

Quem me arrumou o emprego foi um padrinho. Ele era um dos chefes

lá dentro. Me trouxe do Rio Grande porque confiava só em mim. Sabia que

eu dava conta do recado.

CLAUSEWITZ

(confuso) Não entendi.

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Page 307: Agora Livre Dramaturgias Miolo

307

SEGISMUNDO

Alguém tinha de fazer o serviço.

CLAUSEWITZ

Que serviço?

SEGISMUNDO

Fazer aquele pessoal falar. Às vezes não queriam nem que aquele pessoal

falasse. Era só dar um susto. Sabe, eu sempre gostei de dar um bom susto.

(tempo) É... Enquanto precisaram de mim eu fiz muita coisa para eles. (sem

qualquer emoção) Cansei de ver o sujeito chegar de cinqüenta dias sem ver o sol,

mijando na mesma bacia esse tempo todo, e ainda ter de ficar mais vinte horas

de joelhos. Os meus rapazes raspavam os pelos do corpo do sujeito, davam uns

beliscões e se divertiam atirando uma lata no topo da cabeça dele. Quando caía

de cara no chão, aí sim, aí era hora de começar. Eu puxava o sujeito pelos cabe-

los e não deixava ele dormir. Queimava o corpo inteiro do sujeito com ponta de

cigarro, até no saco. Depois jogava óleo de rícino em cima. Batia com o cassetete

até não enxergar mais o rosto do detido. Enfiava pimenta no cu dele com um

clister deste tamanho. E o sujeito ainda tinha que limpar toda a bosta do chão.

Ou eu batia mais com o cassetete. Para os mais difíceis eu tinha um expediente:

enfiava no canal do pênis um arame. Depois eu esquentava a ponta que ficava

para fora com um maçarico. O sujeito parecia um leitão na hora da matança.

Quando acordava, pedia para assinar o depoimento. (tempo) No Brasil tudo

tem que terminar num depoimento assinado. Como este aqui.

CLAUSEWITZ

Eu estou... estou espantado.

SEGISMUNDO

Espantado? Mas o senhor veio da guerra!

CLAUSEWITZ

Não. Eu estou espantado porque nunca imaginei que essas coisas

pudessem ser ditas no seu idioma. Para mim, o português era um latim

falado por bebês, velhinhos... pessoas que não tivessem dentes! Se essa

gente tivesse dentes, como poderia ter perdido tantas consoantes?

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308 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

SEGISMUNDO

Também arrancávamos os dentes do sujeito, é claro.

CLAUSEWITZ

(tempo) Eu que achava que o português era uma língua falada por gente

com dotes de análise e síntese.

O navio apita mais uma vez. Tempo.

CLAUSEWITZ

O que o sujeito fez para o senhor?

SEGISMUNDO

Que sujeito? Ah, aquele sujeito... Nada. Eu fazia tudo o que me man-

davam fazer. Foi assim desde o tempo do orfanato. Eu era forte para a

idade. Para o coral eu não servia, mas para quebrar o pescoço das galinhas

eu servia. Pelo menos me deixaram ficar junto com a minha irmã... Eu

sempre fiz tudo o que me mandaram fazer.

CLAUSEWITZ

(irritado) Por que vocês fazem tudo que mandam?

SEGISMUNDO

“Vocês”?...

CLAUSEWITZ

Homens como o senhor. Homens como o senhor me fizeram odiar o

idioma alemão. Eu amava Goethe! Agora não posso mais ouvir uma linha

do Fausto.

SEGISMUNDO

Quem? Do que o senhor está falando?

CLAUSEWITZ

De teatro!

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309

SEGISMUNDO

Eu tinha entendido que o senhor agora era um agricultor.

CLAUSEWITZ

Eu sou um agricultor! Mas eu sou um agricultor no Brasil. Eu tenho que

falar a língua que se fala aqui! E o senhor está me fazendo odiar o por-

tuguês!

O navio apita. Segismundo olha o relógio.

SEGISMUNDO

No Brasil nós falamos português...

CLAUSEWITZ

(tempo) Meu professor de latim dizia que o português era uma língua

falada por passarinhos... Tão doce, tão alegre...

SEGISMUNDO

(tempo) O senhor nunca recebeu uma ordem em português. Por isso

teve essa idéia. Quando o meu padrinho me dá uma ordem, eu obedeço.

(tempo) O senhor tem suas lembranças. Eu tenho as minhas. Sabe qual foi

o primeiro serviço que eu fiz para o meu padrinho? Desenterrei um defun-

to de um mês e deixei na porta da viúva.

CLAUSEWITZ

(estremece) Titus!

SEGISMUNDO

O quê?!

CLAUSEWITZ

Titus Andrônicus. Não conhece?

SEGISMUNDO

Você e o seu Teatro outra vez...

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310 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

CLAUSEWITZ

Mas esse era o monólogo de Aarão! A passageira... A senhora ruiva... Ela

me viu no papel de Aarão! Toda noite eu sugeria que arrancassem a língua

e cortassem as mãos de uma jovem profanada; eu falava de mortes,

estupros, massacres... Atos cometidos nas sombras da noite...

SEGISMUNDO

A viúva era uma estancieira que estava criando problemas para o meu

padrinho. Já tinham mandando matar o marido dela, mas a viúva contin-

uava. Meu padrinho me disse para dar um susto na viúva. Isso aconteceu!

Silêncio.

CLAUSEWITZ

Eu estava no palco quando os alemães cruzaram a fronteira do meu país.

Como todas as noites. A companhia decidiu nem interromper a sessão. Mas no

dia seguinte o teatro estava fechado. Fiquei em casa. Foi a primeira vez em dez

anos que eu passei uma noite fora do palco. Tanta coisa tinha acontecido na

Polônia, tanta coisa tinha acontecido na Europa! E eu, no palco, esse tempo

todo. Por isso eu acho que foi uma espécie de alívio quando não tive que fazer

minha maquiagem naquela noite. Acho... acho cheguei mesmo a pensar que,

afinal, tinha chegado a hora de viver a vida. (tempo) A vida... (tempo) Os dias

foram passando e eu não saí para a rua. Via tudo da janela. Eu não sabia o que

fazer no meio daquela confusão. Eu era um ator! Não sabia carregar um fuzil,

não sabia curar uma ferida... O melhor era ficar em casa.Até o dia em que foram

me buscar. Não tive medo, não. Achei outra vez que, de alguma maneira, eu

estava vivendo. Vivendo enquanto eu presenciava todo o horror. Porque era a

única coisa que eu podia fazer: estar presente. E guardar na memória. (tempo)

Eu estava presente quando mataram professor Cracowiack. Eu estava presente

quando encontraram o corpo do meu pai, que tinha se suicidado com um

arame no pescoço. Eu estava presente quando meus amigos caíram metralha-

dos na fuga pela fronteira. Eu estava presente quando deixei minha mulher no

hospital em Paris, esperando para morrer. Eu não vivi. Eu colecionei lem-

branças.

O navio apita. Segismundo olha o relógio.

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311

SEGISMUNDO

Estão atrasados.

CLAUSEWITZ

(tempo) Eu achava que eu não podia falar das minhas lembranças para

o senhor. Mas agora eu acho que não adianta.

SEGISMUNDO

Está em jogo o seu salvo-conduto. Sua vida nova no Brasil. Desistiu?

CLAUSEWITZ

Eu já desisti de tanta coisa. Já desisti do meu país. Já desisti da minha

família. Já desisti da minha profissão. Já desisti do Teatro.

SEGISMUNDO

Desistiu do Brasil, então?

CLAUSEWITZ

Não imaginava que no Brasil as pessoas também obedeciam ordens.

SEGISMUNDO

É, os brasileiros obedecem ordens.

CLAUSEWITZ

Eu só queria entender por que vocês obedecem ordens!

SEGISMUNDO

“Vocês”? Os brasileiros?

CLAUSEWITZ

Vocês!

SEGISMUNDO

“Vocês”... Os homens como eu... O senhor não obedece ordens, não é?

O senhor acha que é melhor do que eu.

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312 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

CLAUSEWITZ

Não. Eu sei que eu sou pior que o senhor. Eu escapei. Eu estou vivo. E

todos estão mortos: meus amigos, meus pais, meu país... minha mulher...

Se eu estou vivo é porque eu errei. É porque eu era pior que eles. Eu sou

pior que o senhor, tenho certeza.

SEGISMUNDO

(tempo) Deve ser difícil pensar que nós somos iguais. O senhor pode

aceitar que é pior do que eu. Mas não pode aceitar que nós somos iguais.

CLAUSEWITZ

Eu cometi um crime monstruoso. Eu estive presente. E não fiz nada. Eu

sobrevivi.

SEGISMUNDO

(pausa) Eu também. Por isso meu padrinho me afastou para este posto.

Ele diz que é preciso esperar um pouco as coisas se acalmarem. Logo vem

o armistício. Logo vêm as novas diretrizes para tempos de paz. (tempo) Eu

sei que ninguém quer saber de mim. Eu fiz o que eles mandaram e eles

querem esquecer que mandaram fazer o que eu fiz.

CLAUSEWITZ

E o senhor cumpriu ordens...

SEGISMUNDO

Sem pestanejar. Sem nem cobrir o rosto. (tempo) Só uma vez eu cobri o

rosto. É, uma vez eu cobri o rosto com uma máscara... (tempo) Minha irmã.

Aí na foto... É a minha família, sabe? Um dia eu viajava com ela para o Rio

Grande, quando um caminhão cortou a minha frente. Quando eu acordei

já estava no hospital. Bem. Não aconteceu nada comigo, o carro escapou de

lado com a freada e foi colhido pelo caminhão que vinha na outra direção.

O lado do passageiro. O lado onde estava sentada minha irmã. Ela ficou

entre a vida e a morte. Se não fosse um médico... Um cirurgião... Um rapaz,

um rapaz simpático... Fez de tudo para salvar minha irmã e conseguiu. Uns

anos depois me mandaram quebrar os ossos da mão de um cirurgião que

estava preso conosco. (tempo) E era ele. O médico que salvou minha irmã.

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313

CLAUSEWITZ

O senhor obedeceu?

SEGISMUNDO

Eu disse: foi a única vez em que usei uma máscara. (tempo) Quebrei

osso por osso das mãos do médico que salvou a vida da minha irmã.

CLAUSEWITZ

Por que você fez uma coisa dessas?

SEGISMUNDO

Porque eu sou pior que o senhor.

Silêncio.

Foi a única vez que eu escondi o rosto. Bobagem porque eu acho que o

médico... não sei como... o médico me reconheceu... alguma coisa nos meus

olhos... Não sei o que pode ter sido. Eu estava cumprindo ordens.

Silêncio.

Hoje soltaram todos os presos políticos do Rio. Uma porção deles passou

pelas minhas mãos. Meu padrinho não me ligava fazia meses. E ligou hoje.

Disse para eu voltar mais cedo para casa, para tirar uns dias de férias. Alguém

pode querer acertar as contas comigo... Eu perguntei se era uma ordem. E ele

respondeu que eu podia tomar o que disse como eu bem entender. Ele nunca

tinha me dado uma ordem na vida, foi a última coisa que falou antes de desli-

gar o telefone.

Tempo longo.

De uns tempos para cá eu não posso olhar para minha irmã que eu vejo

nos olhos dela os olhos daquele médico. Que raiva que eu tenho dele, sen-

hor Clausewitiz... Que raiva...

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314 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

O navio apita várias vezes. Segismundo se volta para a máquina de

escrever e começa a bater o depoimento de Clausewitz. Tempo.

CLAUSEWITZ

Ainda vale o nosso acerto?

SEGISMUNDO

O seu navio já vai zarpar.

CLAUSEWITZ

Mas eu ainda não contei como morreu o professor Cracowiack.

SEGISMUNDO

Os nazistas bateram nele até a morte, na sua frente.

CLAUSEWITZ

Ele morreu na minha frente, sim. Mas os nazistas não bateram no professor.

O oficial encarregado tinha trabalhado todo o dia. Estava cansado. Sabia que

nenhum daqueles homens torturados tinha alguma coisa para falar. E sabia que

nenhum deles podia resistir. Para simplificar tudo, resolveu dar um tiro no pro-

fessor Cracowiack e acabar com ele de uma vez. Como o oficial tinha batido

muito nos outros prisioneiros, sua mão estava trêmula e ele acabou acertando

o professor Cracowiack num lugar que não o matou imediatamente. Acho que

o oficial estava mesmo muito cansado porque nem deu outro tiro. Mandou

jogar a mim e ao professor em uma cela. O professor Cracowiack sangrou por

quinze horas. Eu fiquei do lado dele até a morte. Pude observar seus olhos

ficarem de louça, senti o calor e a umidade do seu último bafo. Morreu com

uma certa calma, depois de uma noite falando quase sem parar. Repetiu a

primeira aula que ouvi dele; citou a Eneida; corrigiu meu latim. Eu vi aquele

homem morrer na minha frente aos poucos. Eu estava presente. Ele falava

dezessete línguas e o último som que emitiu não foi nem uma palavra. Parecia

mais um móvel sendo arrastado na madrugada. (tempo) Seria bonito se o pro-

fessor Cracowiack tivesse morrido dizendo Docta Ignorantia...

Tempo.

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315

SEGISMUNDO

E aí?..

Tempo.

CLAUSEWITZ

(pausa) Um pouco antes de morrer o professor Cracowiack começou a falar

sem tomar fôlego por um longo período. De repente, virou o rosto para o céu

começou a dizer umas palavras sem sentido... Se eu me lembro bem... (febril; ten-

tando se lembrar e traduzindo ao mesmo tempo) “Ai, pobre de mim! Ai, infeliz! Aqui

estou para entender, ó Deus, já que me tratas assim, que crime, cometi contra vós

nascendo? Mas se nasci já compreendo que crime cometi... Aí está motivo sufi-

ciente para vossa justiça e rigor, porque o crime maior do homem é ter nascido”

Segismundo estremece. E passa a prestar atenção ao que diz Clausewitz.

CLAUSEWITZ

(toma coragem) “Só queria saber,para apurar meus cuidados – além do crime

de nascer – que outros crimes cometi para me castigares ainda mais? Não nasce-

ram também todos os outros? Pois se os outros nasceram, que privilégios tive-

ram que jamais gozei? Nasce a ave, e, embelezada por seu ricos enfeites, não passa

de flor de plumas, ramalhete alado, quando, cortando veloz os salões aéreos,

recusa piedade ao ninho que abandona em paz. E eu, tendo maior alma, tenho

menos liberdade? Nasce a fera, e, com a pele respingada de belas manchas, lem-

brando as estrelas – graças ao douto pincel – logo, atrevida e feroz, a necessidade

humana lhe ensina a crueldade, monstro de seu labirinto. E eu, com melhor

instinto, tenho menos liberdade? Nasce o peixe, que nem respira, aborto de ovas

e lodo, e, feito um barco de escamas sobre as ondas, seu espelho gira por toda

parte, exibindo a imensa habilidade que lhe dá o coração frio; e eu, com mais

escolha, tenho menos liberdade? Nasce o regato, serpente prateada, que dentre

flores surge de repente e de repente entre flores se esconde, onde, músico, celebra

a piedade das flores que lhe dão a majestade do campo aberto à sua fuga. E tendo

eu mais vida, tenho menos liberdade? Assim chegando a esta paixão, um vulcão,

qual o Etna, quisera arrancar do peito pedaços do coração. Que lei, justiça ou

razão pôde recusar aos homens privilégio tão suave, exceção tão única, que Deus

deu a um cristal, a um peixe, a uma fera e a uma ave?”

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316 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

Silêncio. Segismundo está chorando. E deixa cair uma lágrima sobre o

salvo-conduto.

SEGISMUNDO

Merda. Borrei seu salvo conduto.

CLAUSEWITZ

(tempo) O “meu” salvo-conduto?

SEGISMUNDO

O pior é que eu não entendi nada o que o sujeito disse... (entrega o salvo-con-

duto) Tome. Eu cumpro minhas promessas. E pode esquecer este depoimento...

Hoje, no Brasil, ninguém vai assinar depoimento algum! Agora pode ir.

CLAUSEWITZ

(tempo) O senhor não vai me levar de volta ao navio?

SEGISMUNDO

O Brasil precisa de braços para a lavoura. Pode ir, eu já disse.

O navio apita várias vezes.

CLAUSEWITZ

O cargueiro vai embora.

O apito do navio vai ficando distante.

CLAUSEWITZ

Eu preciso contar uma coisa...

SEGISMUNDO

Chega das suas lembranças, senhor Clausewitz.

CLAUSEWITZ

É sobre o que eu acabei de contar.

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Page 317: Agora Livre Dramaturgias Miolo

317

SEGISMUNDO

Fale logo, senhor Clausewitz.

CLAUSEWITZ

(tempo) Nem tudo é verdade...

SEGISMUNDO

(tempo) Como é?

CLAUSEWITZ

Eu vi o professor Cracowiack morrer. Mas ele não disse nada disso que eu

disse que ele disse. O professor Cracowiack passou as últimas horas da sua vida

me explicando com se prepara um mingau que só fazem no vale onde nasceu.

SEGISMUNDO

(tempo) E o que era todo aquele monte de palavras?

CLAUSEWITZ

Teatro.

SEGISMUNDO

Teatro?

CLAUSEWITZ

Um monólogo de uma peça de um autor espanhol. Eu recitei esse

monólogo todas as noites durante um ano...

SEGISMUNDO

Isso não está certo. Eu disse que o senhor tinha que me fazer chorar com

as suas lembranças.

CLAUSEWITZ

Eu forcei a minha memória e só lembrei de trechos de peças nas quais

eu atuei. Eu me lembro dos alemães cruzando a fronteira do meu pais. Mas

me lembro também da primeira vez em que li um autor espanhol.

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318 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

SEGISMUNDO

Isto não está certo, senhor Clausewitz ! Eu não devia deixar o senhor

sair desta sala.

CLAUSEWITZ

Mas eu ganhei a aposta. O senhor chorou. Olhe aqui o salvo-conduto

manchado com as suas lágrimas.

SEGISMUNDO

Foi o seu Teatro que me fez chorar! Foi a merda do seu Teatro que me

fez chorar!

CLAUSEWITZ

(pensa) É... Foi. Foi o Teatro.

SEGISMUNDO

O que o senhor acha que provou para mim?

CLAUSEWITZ

Nada. Para o senhor eu não provei nada. Eu provei para mim mesmo.

Olha, eu sei que o Brasil precisa de braços para a agricultura, mas eu sou ator.

Esta é a minha profissão. Eu ainda não sei para que serve o Teatro no mundo

depois da Guerra. Só sei que eu tenho que continuar a fazer o que eu sei fazer.

Um dia alguém vai saber para que serve. Se serve. Para mim me basta fazer.

Fazer teatro. É como a receita do mingau do professor Cracowiack. Alguém

precisa saber como se faz esse mingau...

SEGISMUNDO

Saia da minha sala, o senhor, o teatro e o mingau.

Segismundo volta a limpar as unhas. Tempo. Clausewitz assente e vai

saindo.

SEGISMUNDO

Senhor Clausewitz.

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Page 319: Agora Livre Dramaturgias Miolo

319

CLAUSEWITZ

Sim.

SEGISMUNDO

Como é essa história?

CLAUSEWITZ

Que história?

SEGISMUNDO

Estou falando dessa peça, desse autor espanhol.

CLAUSEWITZ

Ah... (tempo) Certo dia, no reino da Polônia...

SEGISMUNDO

(atalha) Se passa na sua Terra, então...

CLAUSEWITZ

Se passa na minha terra. Como eu dizia... disfarçada em homem,

Rosaura chegava durante a noite à Polônia, acompanhada por Clarin,

decidida a vingar sua honra, quando dá com uma estranha torre. De den-

tro, então, sai um homem envolto em peles e acorrentado. Sabe como se

chama esse homem? Você não vai acreditar. Segismundo.

SEGISMUNDO

Está falando sério?

CLAUSEWITZ

Segismundo olha para o céu... e diz...

Contando com toda a atenção de Segismundo, o senhor Clausewitz segue

a contar a trama de A Vida é Sonho...

E CAI O PANO.

São Paulo, outubro e novembro de 2001

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Page 320: Agora Livre Dramaturgias Miolo

320 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

BOSCO BRASIL

é formado em Teoria do Teatro (Dramaturgia e Crítica Teatral) pela Escola

de Comunicações e Artes (ECA), da Universidade de São Paulo.

Autor de teatro, rádio e TV, assume a direção artística do Teatro de Câmara

de São Paulo, em 1994. Em 1995 cria a Caliban Editorial, lançando a coleção

Teatro Brasileiro de Bolso, dedicada à dramaturgia contemporânea brasileira.

Como dramaturgo, teve vários textos encenados como Esquina dos Otários

(1983), Jornal das Sombras (1986), Morto não Assina (1993), Qualquer um

de Nós (1996), entre outros. Recebeu os prêmios Shell e Molière de melhor

texto de 1994, por Budro; indicações para os prêmios Shell e Mambembe,

por Atos & Omissões, em 1995; Os Coveiros, 1997, que fez temporada em

São Paulo e viajou por todo Brasil e Portugal; O Acidente, 1998, indicado

para melhor texto. Novas Diretrizes em Tempos de Paz, prêmio Shell e APCA

como melhor texto de 2001, apresentou-se em São Paulo e Rio de Janeiro,

viajou por todo país e fez temporada em Portugal; sua versão argentina

estréia em Buenos Aires em 2004. Várias de suas peças já tiveram leituras

dramáticas públicas na França, Itália, Grécia e México. Blitz foi editada na

França em 2005 e sua versão radiofônica foi transmitida pela Radio Culture

de Paris no mesmo ano. Atualmente a nova versão de Os Coveiros, com

Marcos Pasquim e André Matos viaja o país, depois de temporada em São

Paulo, no Teatro Folha.

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Page 321: Agora Livre Dramaturgias Miolo

ATO SEM HISTÓRIA

dramaturgo: Luís Alberto de Abreu

debatedora: Ilka Marinho Zanotto

MONTAGEM

direção: Ednaldo Freire

elenco: Aiman Hammoud, Ale Saleh,

Edgar Campos, Luti Angeleli e

Mirtes Nogueira, da Fraternal

Companhia de Arte e Malas-Artes

produção: Nádia De Lion

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Page 322: Agora Livre Dramaturgias Miolo

322 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

ATO SEM HISTÓRIALuís Alberto de Abreu

PERSONAGEM

MESTRE

PRIMEIRO HOMEM

SEGUNDO HOMEM

MÃE

PRÓLOGO

A área de representação é delimitada por uma corda estendida no chão. É

um retângulo de 4m x 3m que tem em cada um dos quatro ângulos uma flor

artificial. Ao fundo, fora da área de representação, três cadeiras de madeira,

simples. Uma, à direita, está ocupada por uma mulher. Outras duas, à esquer-

da, estão ocupadas por homens. Ao centro, em pé, atrás de uma pequena mesa,

está o velho. Sobre a pequena mesa coberta por uma toalha branca estão

alguns objetos: um velho chapéu de feltro, uma faca de cozinha, uma flor arti-

ficial, um jornal dobrado, um molho de chaves. Ao iniciar-se a representação,

o velho pega o chapéu e entra na área de representação. Anda em direção ao

público.

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Page 323: Agora Livre Dramaturgias Miolo

323

MESTRE

Boa noite. Houve um tempo em que não se imaginava um homem sem

chapéu. Sou desse tempo. Nesse tempo, tinha-se também, como hoje,

pequenos e grandes medos. Os grandes eram parecidos com os de hoje. Os

pequenos é que eram diferentes, e para se defender de alguns deles usava-

se chapéu: tinha-se medo de insolação do dia e da garoa da noite; de

friagem, que perrengava os quartos da gente; de corrente de ar, que endure-

cia as juntas; do vento encanado, que fazia dor nas cadeiras; de golpe de

vento, que deixava a cara torta e de vento tomado de revestrés, que eu

nunca soube direito o que era, mas, por via das dúvidas, usava chapéu. Dos

medos grandes havia principalmente o pavor de morrer de repente, sem

preparo, sem visita e consolo dos amigos. Sou um velho desse tempo, do

tempo do onça, tempo d’antanho, dos mil-réis, tempo de se comprar tostão

de mel coado. Outro dia minha neta implicou porque não largo desse velho

chapéu. Queria jogar fora e me dar um novo. Ah, mas eu catei meu fiapo

de voz, juntei com um pouco de raiva e um restinho de autoridade que

ainda tenho e trovejei: ninguém põe a mão nesse chapéu! (com orgulho)

Ordem minha saiu alta, de fazer gosto, mandante mesmo! Fez eco nas pare-

des da casa, deve de ter chegado até na rua! Como antigamente! Usar

chapéu faz bem pra memória!, argumentei. (rápido) Explico antes que

pensem que estou caducando como pensou minha neta. Quando o tempo

passa, a lembrança dos acontecimentos e das pessoas fica guardada nas

coisas. Numa velha ferramenta, numa foto, na fachada de uma casa ou

nesse chapéu. Ele me remete ao tempo, aos amigos que já foram. Eles ocu-

pam as ruas da minha lembrança e ouço suas vozes nas tardes daquele

tempo. Não, não era um tempo melhor que o de agora. Melhor é este, em

que além de viver posso lembrar. Mas não é daquele tempo que quero falar.

Conto uma lembrança de poucos anos atrás, uma lembrança guardada

ainda na pele (com a mão direita pega um jornal sobre a mesa) e neste velho

jornal: conto uma história deste tempo de homens sem chapéus. (com um

gesto da outra mão, chama Homem 1 para que entre na área de represen-

tação; Homem 1 obedece)

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Page 324: Agora Livre Dramaturgias Miolo

324 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

Aconteceu nesta mesma rua de asfalto que por baixo tem os trilhos de

bonde; que por baixo tem calçamento de pedra; que por baixo tem a terra

nua. E todas essas camadas têm seu tempo e suas histórias. Como esse

chapéu. Mas diferentemente de todas as coisas, aquele homem não tinha

história. (entrega o jornal para o Homem 1; ele abre o jornal, lê por alguns

instantes com atenção e olha o lugar com interesse; velho afasta-se para o

fundo)

CENA 1 – Um homem sem memória

HOMEM 1

Foi aqui, com certeza! (para o público, como se se explicasse) Coisas trá-

gicas sempre me atraem. É normal, não existe nada de mórbido nisso! A

desgraça e entre todas as desgraças a morte e entre todas as mortes a morte

bruta, súbita, nos atrai. Tem pesquisa, estatística que prova isso! É por isso

que, antigamente, marcava-se o local de um acidente ou assassinato com

uma cruz. Por isso vim aqui. Pode parecer estranho mas é normal! Meu

analista disse que é normal, então é normal! E quem é que, aqui, vai discor-

dar de analista? Então, é normal! É uma coisa que parece um negócio de

resíduo primitivo, coisa assim, que todo mundo tem! Por isso vim. (Mestre

pega o molho de chaves sobre a mesinha e, num gesto expressivo, o estende ao

Homem 2, que permanece absorto, sentado sobre a cadeira; o homem olha a

chave e olha o Mestre sem entender; com um pequeno e incisivo gesto, o Mestre

faz com que o homem pegue a chave; depois, indica-lhe a área de represen-

tação; o homem guarda a chave com um gesto lento e desorientado e levanta-

se para entrar na área de representação; Homem 1 perscruta o ambiente à

procura de indícios) Hoje em dia essas coisas são tão comuns que ninguém

mais se lembra de marcar o lugar. E foi quando procurava indícios do triste

acontecimento que encontrei, ali, pasmado, aquele homem sem história.

Bom dia, senhor!

HOMEM 2

(ainda desorientado, sorri) Bom dia.

HOMEM 1

O senhor podia me informar, por favor, se foi mesmo aqui que aconteceu

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325

essa morte de que todo mundo fala? Faz hoje uma semana. Aquele caso

rumoroso, saiu até no jornal... (para o público) Eu falo demais! Eu sempre

falo demais, puxo conversa com qualquer um, minha finada mulher me

dizia, emendo assunto sem tampa em assunto sem fundo, costuro conver-

sa à toa com prosa fiada... (cai em si) Já sei, estou falando demais, de novo,

mas já vou concluir! Pois, só depois de conversar um tempão com aquele

homem, falando de tudo e de nada, do tempo, do sol forte, bom pra

amadurecer manga no Pará, e da chuva, boa pra plantar arroz no Mato

Grosso, foi que percebi que só eu estava falando. (ao Homem 2) Aquele

homem sem história só sorria como se fosse um tonto.

HOMEM 2

É que eu sou um tonto. Acho que sou. Não sei muito de nada, não!

Lembro de um homem que me disse bom dia e falava coisas que eu não

conseguia entender. (meneia a cabeça e muda, instantaneamente, de tom e

assunto) Tenho muitas vontades. (começa a rir enquanto fala) Umas horas

vem a vontade de rir. Vontade forte, doida, muito, sem juízo... eu rio. (ri

mais; ainda rindo, começa a transitar para a melancolia) Outras horas

começo a ficar triste sem saber e quero rir mas a tristeza vai crescendo,

aumentando, até ficar maior que eu. Agora, por exemplo, estou triste.

Minha cabeça sempre está vazia de passado, mas agora uma imagem me

veio. Acho que é minha mãe. (a um sinal do Mestre, a Mãe se levanta; o

Mestre pega a flor da mesinha e a entrega à Mãe; a Mãe olha para a flor, tem

uma emoção forte mas se contém a um gesto do Mestre; entra na área de re-

presentação)

CENA 2 – A morte brusca

MÃE

Sou mulher pequena, frágil, sempre fui. Penso que é por isso que me

assusto com a grandeza das coisas. E, entre as coisas grandes, as imensas,

está o amor. E a dor é outra coisa entre as maiores. Eu, pequena como sou,

trago essas duas imensidões somadas e unidas dentro de mim.

HOMEM 2

(sorri e aproxima-se, encantado, da mulher; mulher, depois de o olhar

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326 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

fixamente, se afasta) Lembranças eram raras na cabeça daquele homem

sem história. Por isso, ele, agora, preso à recordação dessa mulher que

talvez seja a mãe que ele conheceu na infância, não prestou muita atenção

ao homem que carrega um jornal e lhe disse bom dia. Aquele homem que

fala demais.

HOMEM 1

Sim, eu sei, reconheço que falo demais, mas não disse mais do que duas

frases àquele homem! (Homem 2 tira a chave do bolso e a olha sem ainda

lembrar; afasta-se da mulher) Não tem sentido o que depois aconteceu! Eu

só vim ver o local do crime, do acontecimento rumoroso. É estranho, está

certo, mas é normal!

MÃE

Sou mãe, e dizendo isso vocês já imaginam tanto a razão do meu amor

quanto a da minha dor. Sou mãe comum, dessas que preferem dar o peito

ao filho do que ao marido que, de resto, nunca tive. Um homem me deu

amor por poucas noites de minguado prazer e ao sumir no mundo me

deixou um filho. Desfrutei do amor de meu filho por três anos apenas.

HOMEM 2

(tenso) Que lembrança distante é essa que mal recordo? Que mãe é essa

que talvez seja a minha? (irritado) E que é esse homem que me diz bom

dia? O que quer esse homem que me diz bom dia?

HOMEM 1

Bom dia! Foi só isso que eu disse! E depois perguntei sobre o crime, só! Até

aquele momento minha vida vinha caminhando normal, tinha sentido. Um

sentido pequeno, mas tinha! Eu tinha até alguns sonhos, pequenos também -

pescaria no Mato Grosso, um pequeno sítio - que queria realizar no futuro...

Eu sempre adio as coisas! Sei que falo demais, mas isso não é razão...

MÃE

Por três anos tive meu filho. Tinha cabeça grande, de cabelos cheios e

finos onde eu gostava de perder a mão. No quarto ano ele foi separado de

mim e de todos os muitos anos que eu teria junto dele.

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327

HOMEM 2

(com tensão crescente) Sou uma pessoa normal, tranqüila. Ando pela

cidade, vou a festas, tenho amigos, com certeza, não lembro muito bem. Às

vezes, tenho medo do que não lembro. Essa mulher que talvez seja lem-

brança de minha mãe...

MÃE

(furiosa) Não sou sua mãe! (Homem 2 sente o impacto da revelação;

Mestre pega a faca sobre a mesinha)

MESTRE

Aquele homem sem história tentou vasculhar seu passado para identi-

ficar aquela lembrança: não havia passado.

HOMEM 1

Aquele homem sem história tinha apenas o presente.

MÃE

Um homem sem história não tem registro do que foi, memória, passado.

Tem apenas o corpo presente, a sensação presente. No presente tudo é novo.

HOMEM 2

Um homem sem história é um homem novo, que nasceu agora, já adul-

to. Sem velhos costumes, velhos hábitos, velhos amigos ou inimigos. Um

homem sem história é um homem sem o velho homem que conhecemos.

HOMEM 1

A paixão, a ira, as vontades que se acumularam pouco a pouco no pas-

sado que ele não lembra surgem agora, imensas, novas, urgentes, senhoras

do homem sem história.

HOMEM 2

Às vezes, não sei de onde, vem a vontade de rir. A vontade cresce e eu

rio. Vem a vontade de patinar no parque, de beber, de zoar na noite. Às

vezes crescem outras vontades. (Mestre entrega-lhe a faca; homem pega a

faca, brinca com ela e a guarda) Não sei quem me deu a faca, não lembro.

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328 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

MÃE

Deixei meu filho com a vizinha e saí. Vizinha não cuida direito, não é

filho dela, eu sei, mas eu precisava procurar trabalho.

HOMEM 1

Eu só queria ver o local. O crime tinha sido há uma semana. O que tem

isso de mau? De mórbido? Disse “bom dia”, ele respondeu.

HOMEM 2

Bom dia.

HOMEM 1

Aí, só fiz uma pergunta, mostrei o jornal e comecei a falar, eu sempre

falo demais, e a resposta foi fria, foi aço veloz que eu mal percebi...

HOMEM 2

Só lembro de um homem que falava demais. Eu devo ter tentado segu-

rar meu braço, ele deve ter me provocado, talvez ele fosse meu inimigo, não

sei, não lembro!

HOMEM 1

Nem tive tempo de gritar pelo primeiro golpe e ele já desferia o nono,

o décimo, não contei. Lembro que olhei perplexo para aquele homem

desconhecido: eu ainda esperava a resposta para minha pergunta. E mal

entendi por que me cobri de vermelho e mal entendi que já estava morto.

Eu tinha uns pequenos sonhos a realizar. (Homem 1 sai da área de repre-

sentação, devolve o jornal ao Mestre e se senta)

CENA 3 – A mãe separada do filho

HOMEM 2

Não sei, não lembro. (Mãe olha para Mestre, que faz um gesto para que

ela continue a representação)

MÃE

Eu não quero lembrar.

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329

MESTRE

É preciso.

MÃE

Sou gente comum, mãe solteira como tantas. Deixei o menino com a

vizinha e saí para a rua. Sem dinheiro, sem emprego, sem muito futuro, a

gente espera milagre, sorte na loteria, achar dez reais que sejam, perdidos

por quem tem muito. A gente espera, sempre, um homem que goste da

gente, que ajude a gente, porque viver não é fácil. A gente confia em Deus,

na sorte. Confiei naquele homem sem história.

HOMEM 2

Posso, claro que posso, desejo, quero! É boa essa vontade que cresce,

pensou o homem sem história. Na ausência de passado a única coisa con-

creta é o corpo. O corpo pede.

MÃE

Falou que eu tinha rosto de modelo, que conhecia um fotógrafo de

revista, que eu era bonita. Não acreditei, mas existem tantas histórias com

final feliz, tantas moças que do dia pra noite...Fui. Quis acreditar...

HOMEM 2

Tive a impressão de já ter estado naquele lugar outras vezes, mas não

com aquela mulher. Acho que ela estava com medo, não sei. Acho que eu

também tinha medo de que alguém me visse, de que ela gritasse, do que eu

ia fazer porque meu corpo mandava e eu queria, eu podia, eu posso, eu

quero, eu faço. Acho que foi isso, não lembro.

MÃE

Quis acreditar. Que é que a gente vira se não acredita na inocência

humana, na bondade humana? Num milagre, num amor que nasce do

nada? Não me culpem por acreditar!

HOMEM 2

Fizeram retrato falado, vi pendurado numa banca de jornal. Não era eu,

não estive naqueles lugares. É alguém parecido.

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330 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

MÃE

Meu último pensamento foi para o menino. Meu último desejo foi

perder minha mão em sua cabeça grande, farta de cabelos longos e finos.

HOMEM 2

Quem é essa mulher? Que imagem é essa que me vem à cabeça?

MÃE

Dói esse nada, esse mistério em que me encontro. Estou morta, meu

filho vive. Dói a separação, a ausência, e dói tanto que ora desejo o impos-

sível, que é estar com ele, viva; ora sonho a blasfêmia de ele estar aqui,

comigo, morto. (vira-se para Homem 2) Maldito! (afasta-se, soluçando

baixinho; entrega a flor ao Mestre e senta-se)

EPÍLOGO

HOMEM 2

Às vezes, cai de vez, sobre o homem sem história, o peso de uma insu-

portável tristeza e ele vasculha o passado que não lembra em busca de sua

origem. (emocionando-se) Se lembrasse eu poderia olhar o horror e me

assustar com meu rosto no espelho. E me ferir e me cortar e purgar e pagar

e uivar e chorar cada dia por cem anos até que a exposição da minha dor e

do meu sincero pesar comovessem os seus corações. (despe-se de qualquer

emoção) Mas não lembro, não choro nem estou chorando agora. A tristeza

uma hora se desfaz e o homem sem história caminha pelas ruas carregan-

do seu presente sem passado. (olha a faca com estranhamento, guarda-a e

caminha assobiando tranqüilamente; sai da área de representação e do palco;

Mestre coloca o chapéu e caminha para o público)

MESTRE

(lê no jornal) Desculpem a dureza da história e espero poder, numa

outra vez, recebê-los com histórias ternas ou divertidas. Histórias de

amores impossíveis e, no entanto, vividos, que nos façam acreditar – e que

não nos culpem por acreditar – em milagres e na inocência humana. E

histórias de risos inconseqüentes e irrefreáveis. Porque este nosso tempo é

feito também dessas histórias, que são tão reais e importantes como as

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Page 331: Agora Livre Dramaturgias Miolo

331

histórias duras. Quanto a mim, eu sigo com a cabeça enterrada neste

chapéu, e pouco me importo se me acham ridículo, anacrônico, fora de

moda. Tenho medo de insolação do dia, da garoa da noite, de golpe de ar e

vento tomado de revestrés que eu nem sei o que é. Mas tenho mais medo

de perder minha história. Boa noite, obrigado pela presença.

FIM

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332 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

LUÍS ALBERTO DE ABREU

dramaturgo. É autor de mais de quarenta peças teatrais encenadas, entre as

quais Bella Ciao; Cala a Boca Já Morreu; A Guerra Santa; O Livro de Jó. Teve

as seguintes peças encenadas no exterior: E Morrem as Florestas

(Dinamarca); Xica da Silva (Japão e Coréia do Sul); Guerra Santa

(Inglaterra); O Livro de Jó (Dinamarca, Austrália e Rússia). Foi menciona-

do como um dos mais importantes dramaturgos da atualidade, na América

Latina, pela publicação espanhola “Escenários de Dos Mundos – Inventário

Teatral de Iberoamérica”, preparado pelo Centro de Documentação Teatral

do Ministério de Cultura da Espanha – Instituto Nacional de Las Artes

Escénicas y de la Música. É roteirista dos filmes Kenoma (1998) e

Narradores de Javé (2000), ambos dirigidos por Eliana Caffé. Organizou os

núcleos de dramaturgia da Escola Livre de Teatro de Santo André (SP) e da

Associação Galpão de Belo Horizonte (MG).

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O CÉU DA PÁTRIA

dramaturgos: Jandira Martini e Marcos Caruso

debatedor: Aimar Labaki

MONTAGEM

direção: Marcos Caruso

direção musical: Dagoberto Feliz

elenco: Antônio de Andrade, Antonio Petrin,

Eduardo Silva, Eliana Rocha,

Francarlos Reis, Jairo Matos e

Sônia Guedes

coro: Ana Paula Aquino, Augusto Jucal,

Carlos Baldim, Carol Novak,

Cris Piratininga, Eliane Batista,

Eliana Ferraz, Flávia Ercoli,

Mari Mazzo, Maurício Inafre,

Vanessa Bruno e Wladimir Candini

cenário e figurino: Sylvia Moreira

luz: Marcos Loureiro

trilha sonora Aline Meyer

montagem: Delermi Produções Artísticas

produção executiva: Cris Bonna

O Céu da Pátria é o único texto que não foi escrito originalmente

para o projeto Ágora Livre Dramaturgias

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334 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

O CÉU DA PÁTRIAJandira Martini e Marcos Caruso

A Artur Azevedo e a todos os “revisteiros” que tão bem entenderam

este país, os autores dedicam esta “Revista em Quatro Quadros,

um Prólogo e uma Discreta Apoteose”

Por que toda vez eu afundo na eleição?!

Neste céu de opereta há de haver explicação para eu ser sempre o segundão?

CENÁRIO

O do título. Um azul muito azul. Anil. Nuvens muito brancas. Sendo este

céu o nosso, tem, naturalmente, “mais estrelas” e um sol de “raios fúlgidos”.

Algumas bananeiras esparsas dão-lhe um leve toque verde. Quase no

proscênio, uma passarela de nuvens.

PRÓLOGO

Entram correndo, montados num grande cometa-patinete, dona Ordem e

seo Progresso. Personagens alegóricas, vestem-se com as cores da bandeira e

usam faixas com os respectivos nomes.

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Page 335: Agora Livre Dramaturgias Miolo

335

ORDEM

Mais rápido, Progresso, mais rápido, antes que ele nos alcance!

PROGRESSO

Não falei, Ordem, pra você não ficar dando bandeira?

ORDEM

Eu fiz o que me mandaram. Não mandaram fiscalizar a eleição? Fazer

boca-de-urna? Puxar a brasa pra sardinha do nosso candidato?

PROGRESSO

Sim. E em nosso próprio nome. Em nome da Ordem e do Progresso,

mas você poderia ser mais discreta. Acho que aquele barbudo nos seguiu e

é bem capaz de vir até aqui tirar satisfações...

ORDEM

Ele não é nem louco. Aqui não entra qualquer um, afinal somos nós os

porteiros e... (vira-se e vê a platéia) Meu Deus!!

PROGRESSO

(assustado) É ele?!

ORDEM

Não, são eles. (progresso não entende) O público!

PROGRESSO

(sem jeito) Oh! Os senhores... mil perdões!!

ORDEM

(falando com a platéia) Boa noite, cavalheiros!

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336 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

PROGRESSO

(idem) Boa noite, senhoras, damas...

ORDEM

Eu sou a Ordem, ele o Progresso...

PROGRESSO

Bem vindos ao céu da Pátria!!

(música)

Deste céu azul anil,

mui amado, varonil,

somos diletos porteiros

e dos deuses mensageiros.

Na terra estivemos rondando,

pesquisando, xeretando

os meandros, os bueiros,

excessos eleitoreiros,

pra não dar nenhum chabu

e não vir um urubu

a mandar lá no Brasil.

Tudo foi tão bem armado,

planejado e vigiado,

sem nem pingo em “i” faltar!

Deu-se, então, o esperado:

nosso belo candidato,

moço fino e de bom trato,

sucedeu a Itamar.

Ao final da música, ouve-se uma grande explosão. O céu treme. Há muita

fumaça.

QUADRO 1

UM RABO DE FOGUETE

ORDEM

(assustada) O que houve?!

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Page 337: Agora Livre Dramaturgias Miolo

337

PROGRESSO

Que estrondo foi esse?!

Entra correndo, aflito, o Verde-Louro. É, como o nome indica, um papa-

gaio verde, que lembra, vagamente, Zé Carioca.

VERDE-LOURO

Seo Progresso! Seo Progresso! Seo Progresso!

PROGRESSO

Diga logo, Verde-Louro! O que houve?

VERDE-LOURO

Temos problemas, senhor!

PROGRESSO

Problemas de ordem... ou de progresso?

VERDE-LOURO

Problemas de ordem, senhor.

PROGRESSO

Então é com ela! (aponta dona Ordem)

VERDE-LOURO

Dona Ordem, a situação é grave, grave, grave...

ORDEM

Pare de se repetir como um papagaio, diga logo!

VERDE-LOURO

Um intruso acaba de invadir o céu da Pátria, pátria, pátria...

ORDEM

Fechem tudo! Tranquem todas as portas! Intrusos não podem entrar

no céu do Brasil!

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Page 338: Agora Livre Dramaturgias Miolo

338 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

Foco de luz sobre Lula, que entra agarrado a um rabo de foguete.

LULA

Desculpe, dona Ordem, mas já entrei!

PROGRESSO

O miserável pegou um rabo de foguete!

VERDE-LOURO

Bem-feito, bem-feito, bem-feito...

(muito surpresos e assustados, dona Ordem, seo Progresso e Verde-Louro

cantam)

Que desplante, que ousadia!

Que coragem, que ironia!

Sai pra lá, volta pra trás

Qu’isto aqui não é bordel!

Vade-retro, Satanás!

Qu’isto aqui é o nosso céu!

LULA

Tô sabendo. O céu do Brasil. Por isso que eu estou aqui.

(os outros três continuando a cantar)

Que acinte! Que ambição!

Que vieste cá fazer?

Se acabaste de perder

outra vez a eleição?

LULA

(cantando conforme a música)

É isso que me traz cá.

Não tenho medo à careta

E nem vou fugir da raia,

Se perdi pela segunda,

Se levei um pé na bunda,

Há de haver uma razão!

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Page 339: Agora Livre Dramaturgias Miolo

339

Perguntei a meio mundo:

“Por que, raios, eu afundo

Toda vez nessa eleição?!”

Me disseram: “Só Deus sabe!

Sobe lá, ó barbudão!”

Neste céu de opereta

Há de haver explicação.

Quero ver qual a mutreta

Qual é a maracutaia

Pr’eu ser sempre o segundão???

PROGRESSO

Ainda que mal pergunte, meu senhor... companheiro... camarada?!...

Não importa! Quem o senhor acha que vai responder essa sua pergunta?!

LULA

(seco) Deus.

Todos gargalham. As gargalhadas ecoam no céu da Pátria nesse instante.

ORDEM

Deus não recebe encanadores!

PROGRESSO

Que é isso, Ordem? Controle-se! Mas por que o senhor veio procurar

Deus justamente aqui?

LULA

Este não é o céu do Brasil?

(os três, muito compenetrados, cantam)

Muito amado, varonil!

Salve! Salve!

Ave! Ave!

Viva! Viva!

Anauê!

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Page 340: Agora Livre Dramaturgias Miolo

340 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

LULA

Pois então! Chamem Deus.

VERDE-LOURO

Como “chamem Deus”?! Pensa que é fácil, fácil, fácil?

LULA

(para Progresso) O senhor nunca ouviu dizer que Deus é brasileiro?

PROGRESSO

Ouvi. Mas, pra ser sincero, nunca acreditei.

LULA

Nem eu. Mas já que tenho que procurar...

VERDE-LOURO

Pra falar a verdade, meu amigo, nós nunca o vimos por aqui, aqui, aqui...

LULA

Vocês têm certeza de que Ele não está aqui?

ORDEM

Isso não podemos afirmar. Dizem que Deus está em toda parte...

LULA

Pois, então, me dêem licença...(e vai saindo)

PROGRESSO

Onde é que o senhor pensa que vai?

LULA

A toda parte. Esse Deus eu vou achar.

ORDEM

Volta aqui, barbudo! Aqui não é assim, não. O que é que o senhor está

pensando? Que o céu é a casa da sogra? O fiofó da Maria Joana? Aqui temos

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Page 341: Agora Livre Dramaturgias Miolo

341

regras, estatutos, Constituição!

LULA

Vocês pensam que vão me engabelar, é? Cadê essa Constituição?

(desafiando) Eu quero ver essa Constituição!

QUADRO 2

DONA CONSTITUIÇÃO

A Constituição – papel da primeira vedete da companhia – entra com

roupas adequadas, mas provocantes. É jovem e muito bonita.

CONSTITUIÇÃO

Deixem o companheiro entrar!

PROGRESSO

Companheiro?! Mas, dona Constituição...!

CONSTITUIÇÃO

Não atravanque, ô Progresso!

LULA

(muito surpreso, encantado mesmo) Dona Constituição! Que surpresa!

CONSTITUIÇÃO

(música)

Sou da terra mais garrida

A vedete preferida!

Sou do bosque o sabiá,

Cotovia do terreiro,

Sou o coco do coqueiro,

Caruru e mungunzá!

LULA

(ainda encantado) Pra quem nasceu nos tempos do Império, a senhora

até que é muito... conservada!!!

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Page 342: Agora Livre Dramaturgias Miolo

342 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

CONSTITUIÇÃO

(música)

São reformas, são emendas,

Já enfrentei muitas contendas,

Já entrei na faca à beça!

São muitos anos de plástica,

De fazer muita ginástica,

Inda querem revisão:

homessa!!

LULA

A senhora é, efetivamente... do cacete!

CONSTITUIÇÃO

(música)

Só Deus sabe a quantas ando,

Venho há anos capengando,

Sem reclamar nem dar pio,

Mas no verde destas matas,

Neste céu azul anil,

Finco pé contra bravatas,

Defendendo o meu Brasil!

TODOS (menos Lula)

Glória, glória! Salve! Salve! Viva! Viva! Anauê!

LULA

Já que a senhora se apresentou, permita que eu me apresente...

CONSTITUIÇÃO

Que é isso? Eu conheço o companheiro de longa data. É um prazer rece-

bê-lo no céu da Pátria!

PROGRESSO

(furioso) Ela vai deixar o cara entrar! Que absurdo! (e sai)

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Page 343: Agora Livre Dramaturgias Miolo

343

ORDEM

(não menos furiosa) Que asneira! Ela ensandeceu! (e sai)

VERDE-LOURO

Ensandeceu! Ensandeceu! (vai saindo e repetindo)

LULA

Bom, dona Constituição, eu vou ser curto e grosso...

CONSTITUIÇÃO

Nem precisa, meu filho. Já sei de tudo. Você veio ao lugar certo. Um giro

pelo céu da Pátria vai clarear suas idéias...

LULA

(entra música; falando no ritmo) Não me fala em giro. Chega de girar!

Girei o país inteiro, fiz carreata, botei gravata, tanto showmício, que des-

perdício! Montei em jegue, troquei de vice, comi buchada, não deu em nada!

(cantando)

Procurei não dar tropeço,

Fiz das tripas coração,

Veja só se não mereço

D’Ele um pouco de atenção!

CONSTITUIÇÃO

Dele? Dele quem? Você está falando de quem?

LULA

De Deus. Eu quero falar com Deus.

Entra o General e Silva carregando confetes, serpentinas, cornetinha e lín-

gua-de-sogra.

LULA

(para Constituição) Quem é esse? Acho que já vi esse cara.

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Page 344: Agora Livre Dramaturgias Miolo

344 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

CONSTITUIÇÃO

É o General e Silva.

E SILVA

Ora, quem vejo! Querida Constituição!

CONSTITUIÇÃO

Não seja falso, E Silva! Você nunca me respeitou...

E SILVA

Isso são águas passadas, querida. Estou indo para a concentração. Você

não vai desfilar conosco? (e sai tocando sua cornetinha)

LULA

Hoje é carnaval aqui?

CONSTITUIÇÃO

Aqui sempre é carnaval!

LULA

Estão comemorando alguma coisa?

CONSTITUIÇÃO

A vitória. E se quer um conselho, siga esse homem. (vendo um bloco que

se aproxima) Não precisa mais. Eles estão vindo aí, em bloco.

QUADRO 3

O PATRIÓDROMO

Vem entrando na passarela de nuvens o “Bloco do Poder”. Dona Ordem é a

porta-bandeira, seo Progresso, o mestre-sala. O bloco é composto por alguns

marechais e generais, muitos empresários e uma infinidade de puxa-sacos.

Cada um deles tem uma mamadeira enorme. Todos chupam sofregamente. A

comissão-de-frente, chefiada por Verde-Louro, desenrola uma passarela de

veludo vermelho, sobre a qual o bloco vai passando e cantando.

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Page 345: Agora Livre Dramaturgias Miolo

345

O poder é nosso vício,

O poder é nosso pão,

Desde sempre é nosso ofício

Governar esta nação.

Ela é a nossa mamadeira,

Nossa mãe de encantos mil!

Nossa eterna bandalheira,

Somos donos do Brasil!

(breque)

Por isso “nóis”

(estribilho)

mama, mama, mama, mama,

mama ocê, passa pra mim,

mama, mama, mama, mama,

mama tudo, até o fim!

LULA

Por que eles estão falando tudo errado agora?

CONSTITUIÇÃO

Demagogia. Querem ser populares...

O bloco continua desfilando, repetindo a música do início.

LULA

Eu vou falar com eles. Eles devem ser assim (faz gesto) com o Homem!

(indo até um dos componentes do bloco) Ô, companheiro, por favor...

FOLIÃO

Sai pra lá. Não vê que está atrapalhando, não?

LULA

Só uma pergunta...

FOLIÃO

Quer tirar esse pé imundo do nosso tapete?!!

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Page 346: Agora Livre Dramaturgias Miolo

346 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

LULA

Calma, companheiro...

FOLIÃO

Calma, porra nenhuma! (e dá um puxão no tapete, obrigando Lula a

pular fora)

A música prossegue e continuará até o bloco desaparecer na coxia.

CONSTITUIÇÃO

Então? Conseguiu alguma coisa?

LULA

Que nada! Me puxaram o tapete!

CONSTITUIÇÃO

Esses não mudam nunca! Conheço essa gente de outros carnavais! Mas

olha lá! Vem vindo outro!

Surge o “Bloco dos Vira-Casacas”. Todos muito bem-vestidos, com

casacas de cores variadas. As casacas são “double-face”, têm cores diferentes

por dentro, e são rapidamente viradas pelos atores, no estribilho da música.

É um bloco de coreografia complicada e movimentação muito rápida. Muito

ágeis, mas sorrateiros, eles cantam.

(estribilho) Oi vira que vira,

É fácil virar,

Oi vira a casaca

E vais te salvar! (repete)

Já foste PB, PPP, PQP,

São siglas avulsas,

De resto, que importa?

Qualquer probleminha,

Tu mesmo te expulsas,

Nem perdes a linha,

E de outro partido

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Page 347: Agora Livre Dramaturgias Miolo

347

Já bates à porta.

UM VIRA-CASACA

Sê claro, bandido,

E um preço estipula!

OUTRO

Virar custa tanto!

TODOS

Se frase tão chula,

Tem lá seu encanto

E te querem pagar...

Vira a casaca!

Afinal, não és santo!

Se viras a tempo,

Tu vais te salvar!

(e recomeçam a cantar)

LULA

(indo até um deles) Ô, companheiro... (Vira-Casaca vira-lhe a cara; ele

tenta outro) Companheiro... (comportamento idêntico ao do anterior; Lula

desiste e volta para perto da Constituição)

CONSTITUIÇÃO

Conseguiu alguma coisa?

LULA

Me viraram a cara...

Nem bem o “Bloco dos Vira-Casacas” acaba de desaparecer na coxia e

já pula na passarela um passista-malabarista, que num enorme megafone

grita.

PASSISTA

Olha o voto útil na avenida, gente!

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Page 348: Agora Livre Dramaturgias Miolo

348 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

Irrompe, magnífica, soberba, gloriosa, a Escola de Samba “Unidos do Voto

Útil”, empolgando com seu samba, que nada mais é do que um plágio descara-

do de “Lata d’Água”, de Luís Antonio e Jota Jr.

Voto útil na cabeça!

Lá vai Maria,

Lá vai co'as outras...

Sobe o moço na pesquisa,

Um pro outro já avisa:

Votamos contra!

Deslancha o candidato, desembesta,

Não tenho opinião, não tenho guia,

O pouco de caráter que me resta

Acaba onde o Ibope principia!

(e repete “da capo”...)

Durante a passagem dessa Escola, Lula tenta se dirigir a alguns de seus

passistas, que, ocupados em suas criativas evoluções, nem ao menos o vêem e

acabam por derrubá-lo. Ele, ainda meio confuso, volta para perto de

Constituição.

CONSTITUIÇÃO

E aí?

LULA

Me derrubaram...

CONSTITUIÇÃO

Essa gente é uma praga!

LULA

A senhora foi muito gentil, mas eu vou indo. Tenho coisa mais impor-

tante pra resolver...

CONSTITUIÇÃO

Espera. Falta só um. O último é sempre o mais rico e mais luxuoso!

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Vem surgindo o “Bloco da Vênus”. É, de fato, luxuosíssimo. Traz uma

enorme alegoria, do alto da qual uma inacreditável loura seminua joga bei-

jos. É um bloco de muita luz, câmeras e muita ação.

BLOCO DA VÊNUS

Raiou dengosa, enluarada

A nossa Vênus iluminada!

Ó Vênus loura, d'amplas madeixas,

De que te queixas?

De que te queixas?

Um dos integrantes do bloco, com uma câmera na mão, se dirige à

Constituição, focalizando-a.

CÂMERA

Então, Dona Constituição, como se sente vendo o nosso desfile?!

LULA

(colocando-se em frente do Câmera) Deixa eu aproveitar, companheiro...

Do alto de sua alegoria a Vênus grita.

VÊNUS

Corta! Corta!

O Câmera volta, rapidamente, a se integrar no bloco, que continua cantando.

BLOCO DA VÊNUS

Vênus formosa, flor d’açucena!

Ordena, pede, sussurra, acena,

Diz logo, ó deusa da perna torta,

O que te serve?

O que te importa?

Porque o resto a gente corta!

Ó Vênus “blonde”, Vênus bendita,

Sossega, ó deusa, a periquita!

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350 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

Quem te perturba?

Diz logo, apita!

Porque o resto a gente edita...

(estribilho) Edita e corta, torna a cortar!

És tu a musa desta eleição!

Reinas impune na imensidão,

Oh, minha deusa televisão!

(e, repetindo seu belo estribilho, vão saindo...)

CONSTITUIÇÃO

Bom, meu filho, o que eu tinha pra te mostrar era isso...

LULA

E o povo? Onde é que fica o povo?

CONSTITUIÇÃO

Aqui?? Aqui não tem povo nenhum.

LULA

Como não tem povo?

CONSTITUIÇÃO

Este céu é o céu da elite. E agora, se você dá licença, tenho que fazer

meus curativos. A última plástica me deixou com várias emendas soltas.

(vai saindo e se despedindo) Até a vista, Luís Inácio!

Lula, sozinho e arrasado, canta.

LULA

“Deus, oh Deus, onde estás que não respondes?”

Te procuro e tu te escondes,

Onde é que eu vou te achar?

Deus, oh Deus,

Isto é muita sacanagem!

Ficar só e abandonado!

Até tu vais me faltar?

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351

Mas será que a um filho teu,

Que lutou tão destemido

pelo povo desvalido,

Não estendes tua mão?

“Deus, oh Deus, onde estás que não respondes?”

Te procuro e tu te escondes,

Para a Terra eu vou voltar!

LULA

Táxi! Táxi!

QUADRO 4

TÁXI ESPECIAL

Entra um “Cúmulus-Táxis-Nimbos”, dirigido por um velho de longas bar-

bas brancas, e breca ruidosamente. O Velho desce do táxi com um bloquinho

de papel e uma caneta na mão.

VELHO

O companheiro poderia me dar um autógrafo?

LULA

Claro, companheiro. Eu estou indo para a Terra. O senhor conhece o

caminho mais curto?

VELHO

Eu sou o caminho!

LULA

(desconfiado) Eh! Que que é, hem? Está pensando que é quem?

VELHO

Deus.

Nesse momento, raios de luz incríveis iluminam o céu da Pátria e ouve-se uma

divina música cantada por um coro de Anjos, Arcanjos, Querubins e Serafins.

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352 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

LULA

Não acredito! Não pode ser! Meu Deus! Aliás, Seo Deus! O senhor veio

aqui pra me dar a resposta??

DEUS

(canta) A resposta já tiveste,

Viste tudo lá e cá.

Sempre haverá quem te conteste,

Mas não deixes de lutar!

Se uma idéia tu defendes

Se na alma a tens bem clara

Não deixes que a impaciência,

Te tire toda a prudência,

A coerência é tão rara!

Vai nessa, Luís Inácio,

Se vencer nem sempre é fácil,

Mais vale na vida o lutar!

(discreta apoteose)

Entram Querubins apressados e vão se acercando de Deus.

QUERUBINS APRESSADOS

Oh, Senhor! Oh, Senhor! Estávamos preocupados! Vós sumistes! Deveis

voltar ao Vosso Reino de Glória!!

Apressadamente, colocam Deus sobre uma nuvem que vai subindo.

LULA

(com o bloquinho e a caneta na mão) O Senhor não queria um autógrafo?

DEUS

Que cabeça a minha! Se eu chego lá sem esse autógrafo, ele me mata!

LULA

O autógrafo não é pro Senhor?

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353

DEUS

Não. É para o meu filho.

Lula assina e entrega o bloquinho para Deus. A nuvem vai subindo,

enquanto os Querubins cantam e Deus acena para Lula, até desaparecer no

mais alto dos céus possível dentro de um teatro.

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354 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

JANDIRA MARTINI

atriz, autora e diretora. É autora de A Vida É Uma Ópera; Sonho de uma

Noite de Outono (que dirigiu em montagem teatral); O Eclipse (sobre

Eleonora Duse, a ser encenado em 2007). Junto com Marcos Caruso,

escreveu os textos Sua Excelência o Candidato; Jogo de Cintura; Porca

Miséria; Os Reis do Improviso; Operação Abafa; e o roteiro dos filmes O

Casamento de Romeu e Julieta e Trair e Coçar é Só Começar. É co-autora, em

parceria com Eliana Rocha, do texto Em defesa do Companheiro Gigi Damiani,

que também dirigiu em teatro. Traduziu, adaptou e dirigiu A Revolução Está

Chegando e Eu Não Sei O Que Vestir, de Lívia Cerrini; e Gato Por Lebre, de

Georges Feydeau. Como atriz, destacam-se seus trabalhos mais recentes

nos espetáculos teatrais Porca Miséria, direção de Gianni Ratto; Os Reis do

Improviso, direção de Noemi Marinho; O Evangelho Segundo Jesus Cristo,

de José Saramago, adaptação de Maria Adelaide Amaral, direção de José

Possi Neto; Operação Abafa, direção de Elias Andreato. Pela Rede Globo,

participou das telenovelas O Clone e América, de Glória Perez, e das minis-

séries Os Maias e A Casa das Sete Mulheres, de Maria Adelaide Amaral.

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355

MARCOS CARUSO

ator, autor e diretor. Estão entre seus mais recentes trabalhos como ator em

teatro, Operação Abafa, de sua autoria e de Jandira Martini; Intimidade

Indecente, de Leilah Assunção (2001 a 2005); Honra, de Joanna Murray-

Smith (1999). Participou de diversos filmes nacionais, como Memórias

Póstumas (1999), de André Klotzel; Depois Daquele Baile (2004), de

Roberto Bontempo; Irma Vap, o Retorno (2004), de Carla Camurati. Na

televisão, atuou na minissérie Presença de Anita (2002), de Manoel Carlos,

e nas novelas Coração de Estudante (2002), de Emanuel Jacobina; Mulheres

Apaixonadas (2003), de Manoel Carlos; Como Uma Onda (2005), de Walter

Negrão; Páginas da Vida (2006), de Manoel Carlos – todas pela Rede

Globo. Dirigiu os espetáculos teatrais Brasil S/A (1996) e S.O.S. Brasil

(1999), ambos de Antonio Ermírio de Moraes; Estórias Roubadas, de

Donald Margulies, com Beatriz Segall e Rita Elmôr (2000). Para a televisão,

escreveu a novela Braço de Ferro, TV Bandeirantes (1993); A História de

Ana Raio e Zé Trovão, Rede Manchete (1992); Brava Gente, SBT (1996), e

dirigiu Fala Dercy, SBT (2002). Em parceria com Jandira Martini, escreveu

Sua Excelência o Candidato; Jogo de Cintura; Porca Miséria, vencedor dos

prêmios Mambembe, APCA e Shell de melhor autor (1994); Os Reis do

Improviso; Operação Abafa. É autor de Trair e Coçar é Só Começar, espetácu-

lo brasileiro de mais longa temporada.

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ÁGORA TEATRO

Associação sem fins lucrativos, criada em 1998 por Celso Frateschi e Ro-

berto Lage, que atualmente a coordenam em parceria com Marlene Salga-

do e Sylvia Moreira. O encontro destes quatro profissionais ocorreu na

montagem de Sonho de um Homem Ridículo, espetáculo teatral baseado no

conto homônimo de Fiódor Dostoievski, sucesso de público e crítica, cu-

ja adaptação e interpretação é de Celso Frateschi (prêmio Qualidade Brasil

2005, como melhor ator), direção de Roberto Lage, cenários e figurinos de

Sylvia Moreira e direção de produção de Marlene Salgado. A montagem

mais recente, envolvendo estes profissionais, é Ricardo III, adaptação de

Celso Frateschi ao texto de William Shakespeare, que marca a abertura do

espaço Ágora Teatro totalmente reformado e preparado para abrigar uma

intensa e diversificada programação.

Ao longo de sua existência o Ágora Teatro, se destacou no cenário teatral

paulistano pelo diálogo reflexivo sobre o fazer teatral e a sua relação com a

sociedade. Nesta perspectiva, desde o início, elaborou e realizou seminá-

rios, mostras de dramaturgia e montagens de espetáculos. Manteve cons-

tantemente cursos de aperfeiçoamento para o trabalho do ator e um núcleo

de investigação. Dentre as atividades realizadas destacam-se:

• Odisséia do Teatro Brasileiro (2000), seminário, posteriormente pu-

blicado pela editora Senac, que abordou as formas de evolução do

teatro brasileiro, visando colaborar com a construção de um pensa-

mento teatral contemporâneo. Esta atividade reuniu profissionais

como: Aderbal Freire Filho, Aimar Labaki, Antunes Filho, Antônio

Araújo, Augusto Boal, Enrique Diaz, Eduardo Tolentino, Fauzi Arap,

Fernando Peixoto, Gianfrancesco Guarnieri, Gianni Ratto, João das

Neves, José Celso Martinez Corrêa, Márcio de Sousa, Paulo Autran,

Sábato Magaldi e Sérgio de Carvalho;

• Ágora Livre Dramaturgias (2001), ciclo de debates, onde questões

presentes na história do teatro ocidental, formuladas a 13 autores

contemporâneos, foram respondidas na forma de textos e monta-

gens: Eu Não Sou Cachorro!, de Fernando Bonassi, direção Elias An-

dreato; Pai, de Izaias Almada, direção Roberto Lage; Só mais um

Instante, de Marta Góes, direção Aline Meyer e Juca Rodrigues,

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358 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

Sobre a Arte de Cortar Bifes, de Hugo Possolo, direção Jairo Matos, A

Cabeça, de Alcides Nogueira, direção Márcia Abujamra, Ilmo.

“Senhor”, de Naum Alves de Souza, direção Celso Frateschi, Velhas

Variações Sobre o Mesmo Tema, texto e direção Mário Bortolotto,

Cor de Chá, de Noemi Marinho, direção Márcia Abujamra, O Mun-

do é Moinho, de Fauzi Arap, direção Tunica Teixeira, Novas Diretri-

zes em Tempo de Paz, de Bosco Brasil, direção Ariela Goldman, O

Céu da Pátria, de Jandira Martini e Marcos Caruso, direção Marcos

Caruso. Este projeto recebeu o Prêmio Shell 2001 na categoria espe-

cial;

• Ágora Metrópolis XXI (2002): surgiu da demanda de estender-se a

prospecção na área da dramaturgia, focando desta vez questões per-

tinentes à vida na metrópole;

• Ágora Livre Atores (2001): diálogos públicos com jovens atores e

artistas consagrados, como: Raul Cortez, Lineu Dias, Marco Ricca,

Leona Cavalli, Renato Borghi, Alexandre Borges, Eva Wilma, José

Moreira (ator português), Nicete Bruno, Miriam Rinaldi e Brian

Stirner (professor, ator e diretor inglês);

• Ágora Livre Grupos (2001): visando o desenvolvimento de um pen-

samento teatral, grupos com reconhecido trabalho de pesquisa via-

bilizaram discussões, a partir das suas experiências;

• Ágora Livre Diretores (2003), diálogos com diretores conhecidos por

linguagens e metodologia distintas;

• Albert Camus (2003), seminário abordando a obra e a trajetória de

Camus;

• Diana, de Celso Frateschi (2000), Tio Vânia, de A.Tchekov (2000) e

Os Justos, de A. Camus (2003), são alguns dos espetáculos teatrais

produzidos.

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