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7/26/2019 Agostinho - Aula 10:09:15 Maria Imaculada Azevedo Fernandes
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PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULOPUC-SP
MARIA IMACULADA AZEVEDO FERNANDES
INTERIORIDADE E CONHECIMENTO EMAGOSTINHO DE HIPONA
MESTRADO EM FILOSOFIA
SO PAULO2007
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PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULOPUC-SP
MARIA IMACULADA AZEVEDO FERNANDES
INTERIORIDADE E CONHECIMENTO EMAGOSTINHO DE HIPONA
MESTRADO EM FILOSOFIA
Dissertao apresentada BancaExaminadora da PontifciaUniversidade Catlica de So Paulo,como exigncia parcial para obtenodo ttulo de Mestre em Filosofia soborientao do Prof. Doutor Marcelo
Perine
SO PAULO2007
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Banca Examinadora
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Para Erim,meu sol,
minha luz.
Para Juninho e Joo,razo de tudo.
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AGRADECIMENTOS
Ao Prof. Marcelo Perine, pela orientao sempre segura, serena e encorajadora.
Telma de Souza Birchal, professora do departamento de filosofia da Universidade
Federal de Minas Gerais, por conduzir meus primeiros passos rumo ao pensamento de
Agostinho.
minha irm, pela incondicionalidade do apoio.
Ao meu pai e minha me. Ao meu pai por sua agradvel e generosa companhia em
tantas viagens a So Paulo. Por oferecer apoio e segurana sempre. minha me pela
pacincia e boa vontade de ler e comentar meus textos, pela dedicao, pelo incentivo.
Pelo francs, ingls, latim e cada vrgula colocada ou retirada. Por sofrer comigo nas
dificuldades, por comemorar por mim as vitrias.
Ao Erim por sua constante presena.
ESTE TRABALHO CONTOU COM O FINANCIAMENTO DO CNPq
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RESUMO
Esse trabalho tem como objetivo investigar a questo da interioridade agostiniana
atravs do problema do conhecimento.
Interioridade e conhecimento representam duas peas-chave do pensamento de
Agostinho e trazem um enigma com o qual nos ocuparemos em compreender. Refere-se
forma aparentemente antagnica de conciliar a atividade humana do conhecimento
atravs do cogito agostinianocom a teoria da iluminaodivina. Investigaremos qual
o estatuto do conhecimento no pensamento agostiniano; o que implica dizer que a
interioridade , ao mesmo tempo, o lugar do conhecimento e o caminho para Deus; e se possvel conceber o conhecimento como uma funo do intelecto humano e uma
intuio do contedo das idias vindas de Deus.
PALAVRAS-CHAVE: Agostinho, cogito, iluminao, interioridade.
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ABSTRACT
This work has as a purpose to research the question of Augustin interiority
through the problem of the knowledge.
Both interiority and knowledge represent the key-pieces of Augustin thought and
they bring an enigma which well be busy in understanding. It refers to the apparently
antagonistic form to conciliate the human activity of the knowledge through the cogitoof
Augustin with the theory of the divine illumination. Well research which is the statute of
knowledge in Augustin thought; what it implies to say that the interiority is, at the same
time, the place of the knowledge and the way to God; and if it is possible to conceive the
knowledge as a function of the human intellect and an intuition of the contents of ideas
coming from God.
KEY-WORDS: Augustin, cogito, illumination, interiority.
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SUMRIO
INTRODUO.....................................................................................................08
CAPTULO 1: O HOMEM E A CRIAO
1. A criao ex nihilo.........................................................................132. A natureza do homem....................................................................173. O homem e a imagem da Trindade................................................204. A natureza do mal..........................................................................255. A graa...........................................................................................306. A salvao pelo conhecimento de Deus.........................................37
CAPTULO 2: INTERIORIDADE E PRESENA DE DEUS
1. A questo da interioridade..............................................................452. O homem interior e o homem exterior...........................................483. O itinerrio da alma a si mesmo: a viso da imagem.....................524. O conhecimento de si.....................................................................565. Do conhecimento de si ao conhecimento de Deus.........................586. O Conhece-te a ti mesmo............................................................62
CAPTULO 3: CONHECIMENTO E PRESENA DE DEUS
1. A procura da verdade.....................................................................662. A iluminao..................................................................................693. A natureza do olhar........................................................................724. Iluminao e conhecimento de Deus.............................................745. O mestre interior............................................................................766. O conhecimento de si.....................................................................827. Memria, inteligncia e vontade....................................................868. Interioridade e conhecimento.........................................................89
CONCLUSO ......................................................................................................96
BIBLIOGRAFIA...................................................................................................100
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INTRODUO
De qualquer maneira que queiramos interpretar o pensamento de Agostinho,
deparamos com problemas que singularizam e ao mesmo tempo limitam uma anlise
que vise abranger um nmero muito grande de textos da obra desse grande doutor, pai
da Igreja Catlica do Ocidente. A comear pelo fato de que Agostinho no escreveu
com o objetivo de elaborar um sistema filosfico propriamente dito. Suas reflexes so
quase sempre respostas a problemas gerados do envolvimento com as grandes questes
doutrinais da Igreja de sua poca. Assim, com os mais variados tipos de textos como
cartas para amigos e pessoas da comunidade onde trabalhou, sermes que por vezes
parecem verdadeiros tratados, dilogos de cunho tanto filosfico como didtico,
dissertaes e outros, Agostinho vai tecendo suas reflexes ao longo de uma jornada de
vida e trabalho pela Igreja, procurando abordar os mais diversos e diferentes assuntos.
No difcil de concluir, portanto, que o pensamento de Agostinho foi evoluindo e
se modificando com o passar dos anos. Dos seus primeiros escritos elaborados aps sua
recente converso at os ltimos, j Bispo em Hipona, percebemos fortes influncias de
correntes filosficas importantes como a estica por meio de livros de Ccero e
neoplatnica mediante os Platonicorum libri a que teve acesso. No obstante, o
pensamento agostiniano medida que encontrava seus prprios contornos tendeu a ir se
distanciando das bases filosficas pags na mesma proporo em que se firmou no
pensamento filosfico cristo, inclusive com uma considervel intensificao dos
dogmas religiosos. Por isso, no incomum depararmos com justaposies de diversos
raciocnios, evoluo de conceitos e at mesmo certa ausncia de unidade em seus
diversos textos.
Sem querer negligenciar toda complexidade que a obra apresenta e cuja anlise
mais completa exigiria uma inspeo bastante cuidadosa dos diversos e diferentes
escritos de Agostinho, limitamos nosso estudo em apenas dois de seus principais textos:
Confisses e A Trindade. Ambas so classificadas pelos historiadores do pensamento
agostiniano como escritos da maturidade, e o motivo da escolha dessas obras se resume
na forma como o hiponense aborda tanto a questo da interioridade como a questo do
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conhecimento. Outras obras como O livre arbtrio,A graa, Solilquiose De Magistro
foram por vezes tambm usadas como referncia, mas no com a mesma intensidade,
por uma questo mais de enriquecimento e esclarecimento de determinados pontos que
julgamos ser importante tratar.
Interioridade e conhecimento representam, a nosso ver, duas peas-chave do
pensamento de Agostinho e trazem um enigma com o qual nos ocupamos em
compreender ao longo desse trabalho. Refere-se forma aparentemente antagnica de
conciliar a atividade humana do conhecimento atravs do cogito agostiniano, atividade
essa que exige um esforo pessoal do sujeito que conhece, com a teoria da iluminao
divina.
O cogito agostinianorepresenta o movimento de coligir da alma que lembra, junta
e recolhe dados de conhecimentos latentes e escondidos na memria. Pode ser
considerado como uma atividade intelectiva totalmente interna e atravs da qual a alma
se conhece, pensando em si mesma, apreende sua prpria existncia por uma
experincia imediata e se encontra com Deus.
A iluminao divina representa a forma mais imediata da presena de Deus na
alma. Ela o ponto de insero entre a mente e as verdades inteligveis. A luz irradiada
por Deus ilumina as verdades, o que pressupe que a luz capacita a alma a ver as leis e
regras gerais segundo as quais podemos perceber, julgar e apreender os objetos de
conhecimento.
De forma geral, os intrpretes do pensamento agostiniano afirmam que a teoria da
iluminao divina uma herana da teoria platnica da reminiscncia. De fato,
Agostinho herda de Plato tanto as dicotomias entre sensvel e inteligvel, eterno e
temporal, mutvel e imutvel, como o conceito de Idia associado principalmente criao ex nihilo. Mas a teoria platnica da reminiscncia, alm de ser incompatvel
com a teoria da salvao crist, no consegue explicar como o esprito toma contato
com as verdades eternas.
Para Agostinho, a capacidade de ver as verdades inteligveis est em ns, bastando
para isso que a coloquemos na direo certa, ou seja, em direo ao mundo existente
com a alma. O interior , pois, o lugar onde a esfera do inteligvel se d ao
conhecimento. Ainda que se possa vislumbrar toda beleza e perfeio na ordem csmicacriada por Deus, o conhecimento das verdades eternas se d mediante um ato consciente
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de interiorizao. Assim poderemos ver que a teoria da iluminao divina tem um
carter genuinamente cristo e inovador na medida em que inclui uma noo de
interioridade tal, antes no considerada pelos gregos e seus seguidores.
Enquanto a interioridade em Agostinho o lugar do encontro com a Verdade e,
por isso mesmo, encontro com Deus, a fonte mesma desse encontro, sede do
conhecimento, o transcendente, o que leva a alma buscar em si uma fora maior que a
si mesma. Uma frase famosa pode sintetizar o que precisamos saber sobre a fora
interior atravs da qual o homem adquire o domnio das verdades transcendentes em
Agostinho: Noli foras ire, in teipsum redi; in interiori homini habitat veritas. (No v
para fora, volte-se para dentro de si mesmo. No homem interior mora a verdade).1Tudo
que precisamos est intus, no homem interior, no esprito, lugar de penetrao da
memria, da razo, da dileo e da vontade, porque Deus est presente ali e pode ser
consultado sempre que quisermos.
Deus no apenas o que ansiamos em ver e conhecer, mas a fora subjacente
prpria capacidade de tudo compreender. Deus a prpria luz interior que ilumina a
razo, capacitando-a a enxergar as verdades inteligveis dentro e fora de si.
assim que a frmula da iluminao divina, antes de dispensar a atividade
humana, ao contrrio, exige um esforo radicalmente reflexivo. Se Deus est presente
no interior do esprito e se podemos por meio de Sua presena ultrapassar os limites de
nossa existncia temporal e mundana e atingir as verdades inteligveis, a atividade de
conhecer apresenta-se como uma experincia totalmente individualizada. Cada um de
ns tem de voltar-se para sua prpria atividade de conhecer, adotando uma atitude
reflexiva de ateno a si mesmo.
Tomar posio de um ponto de vista de primeira pessoa, dar ateno forma comoo mundo aparece e pode ser pensado por cada um de ns, eis o que afinal a frmula
significa. Assim, o ponto central do conhecimento ou da conscincia em Agostinho
justamente aquilo que nas cincias modernas ficaria de fora, a saber, a viso a partir do
que o eu pensa. Acostumados s frmulas objetivadas do mundo moderno,
desconsideramos a dimenso pessoal e particular das formas intuitivas do conhecimento
e concentramo-nos nos objetos experimentados. Agostinho nos chama a fazer o
1AGOSTINHO. De vera Religione, XXXIX: 72. Citado por TAYLOR. In interiore homine, p. 172.
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caminho contrrio: concentrar na forma como os objetos aparecem para ns, fazer da
experincia de conhecer o prprio objeto do conhecimento, tomar conscincia de nossa
conscincia, experimentar nossa prpria experincia.
Mas como em Agostinho em termos de atividade cognitiva e do conhecimento, o
que separa a ao do homem da ao de Deus uma linha muito tnue e sutil, todo
apelo ateno a si mesmo tambm um apelo a Deus. A verdade est dentro do
homem e pode ser conhecida por meio de sua razo, mas tambm est acima, pois Deus
a prpria Verdade. a verdade de Deus que serve de critrio e modelo ao qual a razo
deve se curvar e reconhecer.
Agostinho precisava demonstrar que Deus pode ser visto no mundo criado em
uma ordem perfeita e espetacular, mas tambm e mais importante na intimidade da
presena da prpria pessoa diante de si mesma. Deus como Verdade apresenta-nos os
modelos e princpios de toda razo e julgamento corretos, o que nos faz produzir idias
dos elementos observados. As idias, no entanto, no surgem dos objetos observados e
sim daquela luz incorprea pela qual a mente humana iluminada. Deus a fonte da luz
e raiz de toda atividade cognitiva, de todo julgamento correto e de toda Verdade.
Ao propor uma investigao sobre a questo do conhecimento em Agostinho de
Hipona, dirigimos nosso olhar para o universo conceitual que resume as caractersticas
essenciais do pensamento filosfico do pai do cristianismo as quais aparecem
associadas a importantes questes teolgicas. De todas essas questes, a primeira e
principal delas parece-nos ser a relao entre o homem e Deus, o que implica saber qual
a posio da criatura face ao criador. A segunda e no menos importante, parece-nos
ser a introduo de uma linguagem da interioridade at ento desconhecida no cenrio
filosfico. Agostinho o fundador de uma linha de espiritualidade filosfica que afirmaa certeza de Deus no interior da alma e isso traz uma mudana tanto na concepo de
Deus como na concepo de homem em todo pensamento ocidental.
Com o olhar sobre esses dois eixos de reflexo, procuramos estruturar esse
trabalho dividindo-o em trs partes: a primeira, fazendo jus ao universo conceitual
referido acima, visa explicitar as bases do pensamento filosfico e teolgico de
Agostinho, tendo como ponto central o estatuto do homem na teoria da criao. A
segunda procura explicar como o Bispo de Hipona concebe e apresenta a noo deinterior. A terceira, enfim, trata exclusivamente da questo do conhecimento:
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conhecimento sensvel, conhecimento racional, conhecimento de si e conhecimento de
Deus.
Porque em todas essas formas de conhecimento a percepo e apreenso do objeto
passam necessariamente por dentro, Agostinho faz do conhecimento de si um dos fins
privilegiados da conscincia. Por meio do conhecimento de si e da conseqente
realizao da identidade do sujeito face ao objeto de conhecimento revelam-se as
condies de possibilidade da Verdade. Significa, pois, que para alm dos limites do
esprito est a possibilidade de apreenso daquelas normas que transcendem e permitem
julgar as atividades de sensao, lembrana, pensamento e raciocnio da alma. Podemos
dizer que o que faz transcender os limites do prprio esprito a luz divina e o que faz o
homem alcanar a luz uma capacidade inerente alma humana.
O pensamento de Agostinho quer demonstrar que entre o homem e Deus h um
elo de unio cujo ponto de interseo se inscreve em uma possibilidade de ultrapassar os
limites temporais e corpreos da vida humana. O elo , pois, resultado da constituio
da mens, parte superior da alma humana e potencialidade capaz de ver as realidades
incorpreas e imutveis.
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CAPTULO 1
O HOMEM E A CRIAO
CRIASTES-NOS PARA VS E O NOSSO CORAO
VIVE INQUIETO, ENQUANTO NO REPOUSA EM VS
(CONFISSES I:1, 1)
1. A criao ex nihilo
Embora Agostinho no tenha elaborado, sistematicamente, uma doutrina da
criao, encontramos em diversas de suas obras comentrios de suma importncia que
nos fazem entender sua concepo de natureza humana e csmica. Diferentemente de
muitos filsofos da tradio grega, cujos representantes tiveram a preocupao de
elaborar uma teoria da natureza, Agostinho procurava, principalmente, responder a
dvidas e interrogaes em relao a certas passagens das Escrituras, combater o
dualismo estico e o materialismo dos maniqueus e ainda mostrar a inviabilidade das
idias necessitaristas e emanatistas de um mundo eternamente existente dos
neoplatnicos.
, pois, seguindo a tradio crist que o santo Bispo compreendia a doutrina da
criao, no tanto como um ensinamento filosfico, mas como a prpria experincia de
Deus e da salvao. Segundo a concepo crist, a criao o resultado do ato livre de
Deus, fruto do amor e da manifestao da Trindade2
divina.
No vocbulo Deus, eu entendia j o Pai que criou todas as coisas; e pelapalavra princpio significava o Filho, no qual tudo foi criado pelo Pai. E,
2A Trindade o dogma de um s Deus em trs pessoas: o Pai, o Filho e o Esprito Santo, reconhecidascomo distintas em uma mesma unidade, natureza, essncia ou substncia. O leque de interpretaes arespeito dessa doutrina levou Agostinho a escrever o seu tratado sobre a Trindade (De Trinitate) cujasbases instauram-se tanto nas Escrituras como no neoplatonismo (LACOSTE. Dicionrio crtico deTeologia). A trindade neoplatnica se expressa na teoria das trs hipstases de Plotino. Da primeirahipstase o Uno procede o seu verbo o Intelecto , e deste seu Verbo a Alma universal
(MONDOLFO, p. 207). Se significativas diferenas entre as duas trindades podem ser assinaladas,devemos ressaltar a grande proximidade entre a segunda pessoa da trindade crist e a segunda hipstaseneoplatnica, ambas associadas inteligncia, sabedoria e verbo de Deus-Uno.
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como eu acreditasse que o meu Deus trino, procurava a Trindade nas vossasEscrituras e via que o vosso Esprito pairava sobre as guas. Eis a vossaTrindade, meu Deus: Pai, Filho e Esprito Santo. Eis o Criador de todacriatura.3
No livro XI das Confisses, ao comentar o Gnesis 1,1, Agostinho ressalta que o
ato de criao foi o ato de falar, expresso do Verbo Divino. Criastes, Deus, o cu e
a terra, neste princpio, no vosso Verbo, no vosso Filho, na vossa Virtude, na vossa
Sabedoria, falando e agindo de um modo admirvel 4. O Verbo, atribudo segunda
pessoa da Trindade , portanto, o mediador do ato criador. ... falastes, e os seres foram
criados. Vs os criastes pela vossa palavra5
.De acordo com a interpretao dada por Agostinho, a criao pela Palavra
demonstra que Deus criou todas as coisas a partir do nada ou, se quisermos ser mais
especficos, a partir de sua prpria vontade e prprias idias. Criou toda matria, toda
forma e a prpria possibilidade de formao da matria e das formas sem o indcio
de qualquer obrigao ou necessidade, mas como resultado da bondade e do amor. ,
pois atribudo ao Esprito Santo esse amor.
Quando no relato da criao, expresso nos captulos iniciais do livro do Gnesis,
Deus contempla sua criao e classifica como boas as criaturas, o Esprito, cuja obra
associada do Pai e do Filho, que se manifesta para que a criao acontea e se
conserve. Segundo o Hiponense, portanto, ao dizer que uma criatura boa, Deus est
afirmando que ela pode permanecer.
assinalada, nesse sentido, a presena constante de Deus em sua obra. Deus cria
todas as coisas e permanece junto delas; responsvel pela permanncia e conservao
de tudo o que criado sem, no entanto, ser parte integrante dessa criao.
Ressaltamos aqui a diferena fundamental entre a concepo de criao adotada
por Agostinho e aquela defendida pelos neoplatnicos. O conceito de criao, alm de
ressaltar o ato livre pelo qual Deus teria criado sem a presena anterior de qualquer
forma e qualquer matria, assinala a impossibilidade de haver consubstancialidade entre
criador e criatura.
3
AGOSTINHO. ConfissesXIII: 5,6.4AGOSTINHO. Confisses XI: 9, 11.5AGOSTINHO. Confisses XI: 5, 7.
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Criastes, sim, o cu e a terra, sem os tirardes de Vs. Doutro modo, seriamiguais ao vosso Filho Unignito, e, por isso mesmo, iguais a Vs o que no da vossa substncia. Nada havia, fora de Vs com que os pudsseis criar, Trindade Una e Unidade Trina. Do nada, pois, fizestes o cu e a terra, quele,grande, e a esta, pequena. S Vs existeis, e nada mais6.
Nas EnadasVpodemos encontrar o conceito de emanao defendido por Plotino:
Todos os seres que j so perfeitos geram. Ora, o que sempre perfeito geraconstantemente e eternamente, e gera um inferior a si mesmo (V, 1, 6). Ento,se Ele (Uno), permanecendo em si mesmo, gerar alguma coisa, gera-a de simesmo, pois Ele por excelncia aquele que (V, 4, 2). 7
Na idia de criao, Deus anterior e independente de qualquer criatura existente.
nesse sentido que Agostinho afirma que se todos os nossos conceitos derivam de
nossas experincias corporais ou espirituais, experincias ligadas matria e ao tempo,
suas modalidades no se aplicam de forma alguma a Deus, pois Deus transcende o
nosso entendimento na mesma medida e proporo que transcende o nosso ser8. Em
uma belssima passagem das Confissespodemos ver como era cara para Agostinho a
idia de Deus como um Ser superior e independente das criaturas.
(Quem Deus?) Perguntei-o terra e disse-me: Eu no sou. E tudo o quenela existe respondeu-me o mesmo. Interroguei o mar, os abismos e os rpteisanimados e vivos e responderam-me: No somos o teu Deus; busca-o acimade ns. Perguntei aos ventos que sopram; e o ar, com seus habitantes,respondeu-me: Anaxmenes est enganado; eu no sou o teu Deus.Interroguei o cu, o Sol, a Lua, as estrelas e disseram-me: Ns tambm nosomos o Deus que procuras. Disse a todos os seres que me rodeiam as portasda carne: J que no sois o meu Deus, falai-me do meu Deus, dizei-me, aomenos, alguma coisa dEle. E exclamaram com alarido: Foi Ele quem noscriou9.
Sabendo da criao ex nihilo, podemos nos perguntar, no entanto, se a forma
como Agostinho concebe a criao pode ser tomada como um ato atemporal e nico de
Deus ou se o seu ato permanece eternamente.
No captulo 4 do livro XI das Confisses, Agostinho faz referncia s rationes
seminales ou foras germinativas. Ainda mesmo o que no foi criado e todavia existe
nada tem em si que antes no existisse. Portanto sofreu mudana e passou por
6AGOSTINHO. ConfissesXII: 7, 7.7MONDOLFO. O pensamento antigo, v. II, p. 2048AGOSTINHO.A TrindadeV: 1, 2.
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vicissitudes10. As rationes seminales,segundo Boehner e Gilson, so um indcio de que
o mundo e as coisas teriam sido criadas graas ao ininterrupta de Deus11.
Embora o mundo e todas as coisas tenham sido criados simultaneamente,
podemos observar o surgimento de seres provindos dessas foras germinativas. Assim
temos entre as criaturas aquelas que foram criadas desde o incio na plena perfeio de
suas formas (os anjos, o firmamento, a terra, o ar, o fogo, os astros e a alma humana), e
as que foram esboadas, cabendo a uma evoluo natural faz-las surgir no seu tempo
certo (o corpo de Ado e de todos os homens e os germes originais dos seres vivos).
As foras germinativas contm as sementes evolutivas daqueles seres que foram
criados em estado de uma preformao, mas fariam cumprir, to somente, os
desdobramentos dos contedos espirituais j depositados por Deus no instante eterno e
ininterrupto do seu ato criador12. A criao seria nada menos, portanto, que a expresso
maior da eternidade, pois se faria continuamente no eterno presente de Deus.
Mas, enquanto no h diferena entre o dizer e o criar, pois o dizer simultneo e
sempiterno tem o sentido do nosso mandar, o realizar-se acontece dentro de uma
ordenao temporal. Isso porque, ao criar o mundo, Deus criou o tempo e tudo passou a
se submeter inexoravelmente temporalidade para que se realizasse a histria da
salvao. ressaltado, portanto, por Agostinho, o existir dinmico de um tempo que se
define justamente por sua sucesso ordenada em direo ao futuro escatolgico, o que
nos traz imediatamente a idia de volta ao criador.
No primeiro captulo das suas Confisses, lemos sobre essa idia da volta, que ser
uma de suas idias mais centrais e que nos permitir fazer os mais variados
desdobramentos. ... criastes-nos para Vs e o nosso corao vive inquieto, enquanto
no repousa em Vs.13A criao ser a base do plano da salvao de Deus na medidaem que exorta, necessariamente, o retorno de toda criatura sua unidade de origem.
Ainda segundo Boehner e Gilson, a idia do retorno ou da ascenso a Deus
provm de Plotino, mas em Agostinho essa idia se reveste de um significado
profundamente cristo na medida em que contrape a criao concepo pag de um
9AGOSTINHO. ConfissesX: 6,9.10AGOSTINHO. Confisses XI: 4, 6.11
BOHENER & GILSON.Histria da Filosofia Crist, p. 178 e 179.12Ibidem.13AGOSTINHO. ConfissesI: 1,1.
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mundo eternamente existente. Assim, ao passo que em Plotino o retorno ao Uno (que
pode ser considerado como correspondente a Deus14) se faz sob a idia de um ser como
ato puro15, Agostinho condiciona o retorno pureza de esprito, caridade16 e
humildade que mantm o homem no lugar devido dentro da ordem csmica: acima dos
animais e abaixo dos anjos e santos superior a tudo o que terreno e inferior a tudo o
que celeste.
dessa forma que o homem poder contemplar a Deus nas obras em que Ele
criou, mas jamais conhec-Lo nelas.17Aqui, justamente nesse ponto, que a criao do
homem ter uma significao totalmente singular em relao ao universo criado. Existe
uma possibilidade latente no homem que o torna potencialmente capaz de conhecer a
Deus ou ao menos reconhecer a Sua inteligibilidade e transcendncia. Essa capacidade
resulta da frmulaImago Dei, cuja reflexo passaremos a seguir.
2. A natureza do homem
Toda a doutrina agostiniana sobre a natureza humana fundamenta-se no trecho do
Gnesis 1,26 que diz: Faamos o homem nossa imagem, segundo a nossa
semelhana. Apoiado nas Escrituras, Agostinho tinha muito claro que o homem
pertence a um estatuto superior da criao, pois Deus, tendo criado do nada (criaoex
nihilo), conferiu a todas as criaturas certa participao de seu ser. Contudo, somente
ao homem Deus conferiu mais do que uma simples participao, mas o
compartilhamento da sua prpria essncia trina. Assim, ainda que toda a criao se
14BEIERWALTES.Agostino e il Neoplatonismo cristiano, p.96.15Para Plotino o Uno o Ser em ato por si mesmo. Por si d a substncia a si mesmo, sendo o atocongnito com ele (...). Ele ato que transcende o intelecto, a razo e a vida; estes nascem dele e no deoutro. Portanto, vem-lhe o ser por virtude de si mesmo, a si mesmo e por si mesmo; no tal como lhecoube ser, mas como ele quis ser, assim ... Conduz ele a si mesmo quase no interior de si mesmo,amando-se a si mesmo, luz pura sendo ele mesmo aquele que ama (...). Mais ainda, se ele, sobretudo,existe, enquanto tem seu fundamento em si mesmo, e quase olha para si mesmo, e o seu quase ser estecontemplar-se a si mesmo, ento, ele quase se cria a si mesmo. (EnadasVI, 8, 6 inMONDOLFO, 201)16Em Agostinho a palavra caridade (caritas) tem o sentido do verdadeiro amor que aspira eternidade, o
qual se contrape cobia (cupiditas) amor que se prende ao mundo em como tal transitrio. Para sabermais ver: ARENDT. O conceito de amor em Santo Agostinho.17BOHENER & GILSON.Histria da Filosofia Crist, p. 187
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assemelhe de certo modo ao Criador, o homem que herda a imagem de Deus que vem
impressa na sua alma.
O que o Hiponense ressalta em vrias de suas obras que o homem, tendo sido
criado imagem e semelhana de Deus, recebeu um esprito intelectual acima de todos
os outros seres para que pudesse reconhecer as obras divinas, louvar e seguir os planos
de salvao. o que justifica o fato de o santo Bispo colocar o homem como figura
absolutamente central nas suas investigaes.
Essa proximidade entre o homem e Deus, embora seja prpria da natureza
humana, no pode ser descrita como uma cpia da perfeio divina.
(...) fixemo-nos nas trs realidades que parece termos encontrado em ns. Novamos falar ainda das realidades supremas: o Pai, o Filho e o Esprito Santo.Mas vamos nos referir agora imagem imperfeita, contudo imagem, ou seja, criatura humana18.
A alma do homem ser sempre uma imagem imperfeita, no s porque o homem
conheceu a queda e o pecado, mas porque a plenitude do Ser somente existe em Deus. A
prpria forma como Agostinho concebe a alma humana demonstra que no a alma
toda que o reflexo da Trindade, pois h nela uma poro inferior e outra superior. Aporo superior, que ele define como mens, que pode ser descrita como a imagem de
Deus.
(...) cada homem denominado imagem de Deus, no devido a toda a suanatureza, mas apenas quanto mente. E ele no seno uma pessoa, sendo aimagem da Trindade, pela mente19.
A imagem, propriamente dita, aquela que apesar de toda a imperfeio se
aproxima mais da verdadeira imagem de Deus, encontra-se no homem interior, em seuesprito. Ora, sendo Deus entendido sempre como o Deus Trino trs pessoas numa
mesma substancialidade o homem reproduzir o modelo trino. A alma do homem
como o reflexo de toda a Trindade. Devemos entender o homem feito imagem da
Trindade, isto , imagem de Deus20.
18
AGOSTINHO.A TrindadeIX: 2, 2.19AGOSTINHO.A TrindadeXV: 7,11.20AGOSTINHO.A TrindadeXII: 7,9.
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Segundo Somers21 podemos apontar trs aspectos importantes na doutrina da
imagem em Agostinho. Primeiramente, a imagem signe (marca) da divindade
remete-nos a Deus e nos revela sua natureza , portanto, possibilidade de
conhecimento, gnose e sabedoria porque participao da sabedoria divina. Acrescenta-
se aqui a noo de dualismo, que segundo Somers, Agostinho teria herdado do
platonismo. A imagem no mais o homem inteiro, mas somente o esprito, sujeito da
iluminao, excluso do corpo.
Em segundo lugar a imagem effige(figura) de Deus, sua representao real. Se
Deus trino, a imagem tambm trina. A expresso mxima e superior da imagem de
Deus no homem est na trindade: memria, inteligncia e vontade. Assim no na f,
mas na prpria estrutura trinitria da alma (estrutura esta que diferencia o homem de
todos os outros animais) que o homem pode conhecer a Deus.
Por fim a imagem miroir(espelho) de Deus, porque o instrumento pelo qual o
homem pode contemplar o semblante de Deus. A alma como espelho capta o reflexo da
luz divina, permitindo pressentir o Ser enigmtico da presena. A imagem, nesse
sentido, no exclusivamente uma semelhana nem uma participao da luz eterna. Ela
a prpria presena real da Trindade.
Nesse sentido, no exercendo a virtude de f que a alma a imagem da
Trindade. Tambm no percebendo o sensvel, nem alcanando a cincia do que lhe
exterior, pois o que lhe exterior no faz parte da constituio humana. A verdadeira
imagem, aquela que a Trindade criadora quis realizar em ns, nos consubstancial a
ponto de fazer parte de nosso ser.
No obstante, o homem no s a alma. Esta se serve de um corpo, superior a
ele, mas no sem ele. Portanto, para o Hiponense, o corpo tambm faz parte danatureza humana, embora seja reconhecido que deva ser governado pela alma.
A posio adotada por Agostinho quando se trata da distncia entre corpo e alma
tomada em um sentido nitidamente antropolgico22e pode tambm ter suas bases na
tradio platnica, na medida em que defende que a relao entre alma e corpo no se
21SOMERS. La gnose augustinienne : sens et valeur de la doctrine de limage, p. 1-4.22LADARIA. In: O homem e sua salvao, p. 104. O autor chama nossa ateno para uma aparenteruptura entre o pensamento paulino, que influenciou e suscitou importantes reflexes na tradio
patrstica e a forma como Agostinho aborda o tema. Enquanto em so Paulo o uso dos termos carne e
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fundamenta em dimenses completamente opostas entre si, pois a alma governa o corpo
e tende a se unir quilo que lhe consubstancial. Assim, por ser uma substncia
imaterial, a alma dever tender naturalmente s realidades tambm imateriais e da fazer
com que o corpo no fique apegado s coisas materiais e terrenas. Todo desvio fruto
no de uma tendncia m do corpo e sim de um desequilbrio da prpria alma que se
esqueceu de sua verdadeira natureza.
Para o Hiponense, ainda que o corpo tenda para o mal, fruto da criao e como
tal bom. O que torna o corpo verdadeiramente mau o mau uso da vontade, quando o
esprito, deixando-se governar somente com base na liberdade humana, deixa-se levar
pela tendncia m.
Nesse sentido, mesmo que se reconhea forte influncia de um dualismo que pode
ter suas origens no pensamento platnico ou, mais especificamente, neoplatnico, a
concepo de natureza humana do Hiponense toma o sentido do espiritualismo cristo,
no qual alma e corpo constituem o homem criado por Deus. No um corpo separado de
uma alma ou uma alma que se viu prisioneira de um corpo, mas um indivduo nico e
singular criado imagem de Deus.
Das duas substncias, alma e corpo, aquela no s superior, como a parte que
se liga a Deus e participa ativamente da verdade eterna e imaterial. Nesse sentido,
ainda que a alma seja uma substncia completa, ela se une a um corpo para formar com
ele uma nova substncia. A alma, nesse sentido, tem a funo de ser a substncia
animadora e vivificadora do corpo e graas a essa unio, que a natureza inferior ou
corporal se une, por intermdio da natureza superior da alma, natureza suprema de
Deus23.
3. O homem e a imagem da Trindade
esprito demonstram uma oposio de profundo radicalismo, em Agostinho os termos usados so corpoe alma, prefigurando muito mais o sentido usado na tradio filosfica pag.23BOEHNER e GILSON.Histria da Filosofia Crist, p. 182.
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A partir do captulo IX de ATrindadeAgostinho, ao procurar conhecer a Deus e
os mistrios de sua Trindade, mostra como a estrutura da alma humana se assemelha
estrutura trina de Deus e a maneira pela qual aquela participa de um plano maior da
criao. Agostinho sabe que embora possamos perceber a presena de Deus nas
maravilhas que ele criou, no interior da alma que se pode reconhec-lo, pois a imagem
de Deus est no homem interior, no esprito. Assim, mesmo que no se possa encontrar
a imagem da verdadeira Trindade, aquela que somente pode ser reconhecida somente
em Deus, possvel encontrar o lugar onde ela est presente. A reflexo sobre o amor
da alma a si mesma ser o ponto de partida.
Quando amo algo, encontro trs realidades: eu, aquilo que amo e o prprioamor. Pois no amo o amor, se no amo, eu que amo: no h amor onde nada amado. So portanto trs os elementos: o que ama, o que amado e oamor24.
Agostinho aponta-nos a primeira trade interior: inteligncia, amor e conhecimento
(mens, amor enotitia) como correspondentes aos trs elementos encontrados na alma:
aquele que ama, o amado e o prprio amor. Essas trs realidades, apesar de serem
inseparveis e estarem em estreita relao umas com as outras, tm cada uma o seu ser
prprio, pertencem ao homem, apesar de no constiturem o homem. Em Deus, ao
contrrio, h trs pessoas que so o prprio e nico Deus.
Mas resguardadas as diferenas, fixemo-nos no seguinte ponto: Agostinho afirma
serem essas trs realidades mens, notitiae amor iguais e ao mesmo tempo distintas
umas das outras. No captulo VIII Agostinho j havia falado que o amor pressupe, por
si mesmo, o conhecimento.
Pode-se conhecer algo e no o amar. Pergunto, porm, se possvel amaralgo que se ignora porque se isso (no) for possvel, ningum capaz de amara Deus, antes de conhec-lo. E o que conhecer a Deus, seno o contemplar eperceber com firmeza, com os olhos da mente?. (...) Ama-se, portanto, o quese desconhece, mas se cr25...........................................................................................................................
24AGOSTINHO.A TrindadeIX: 2, 2.25AGOSTINHO. A Trindade, VIII: 4, 6. O amor , para Agostinho, o ponto de partida para oconhecimento, pois amar a condio do desejo de buscar e nesta busca se manifesta a prpria presena
do objeto amado. O desejo de conhecer pressupe algum saber prvio, o qual comparvel teoria dareminiscncia de Plato, porm Agostinho recusa a reminiscncia no sentido de serem as lembranas deuma outra vida e afirma serem essas lembranas a prpria experincia de Deus no nosso interior.
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Entretanto, acreditamos com firmeza em todas aquelas coisas pensadas,porque as representamos conforme um conhecimento especfico ou genrico,que para ns possui cunho de certeza26............................................................................................................................
A questo, porm, reside em sabermos de que semelhana ou comparaocom as coisas conhecidas havemos de lanar mo para crer e amar ao Deusainda no conhecido27.
Deparamo-nos aqui com dois pontos importantes. O primeiro diz respeito ao lugar
e estatuto da f no pensamento agostiniano. Se for inegvel, por um lado, que preciso
crer para conhecer, por outro, se afirma que a f no pode ser cega.
Se pudermos contemplar e perceber a Deus _ na medida que ele pode ser vistoe percebido _ favor reservado aos puros de corao pois: Bem aventuradosos puros de corao, porque vero a Deus (Mt 5, 8) _, temos de am-lo,apoiados pela f. (...)
...............................................................................................................
Entretanto, deve-se cuidar de que a alma ao crer no que no v, no imaginecoisas irreais, e d um falso objetivo sua esperana e a seu amor. Nessecaso, a caridade no procederia de corao puro, de conscincia reta e de fsem hipocrisia, (...)28.
O segundo ponto que o conhecimento sempre decorre de certa analogia a um
outro conhecimento j constitudo. nesse sentido que se poder pensar na
possibilidade de conhecer a Deus, pois a alma humana a prpria imagem como
espelho da Trindade Divina e representa um conhecimento manifesto.
Ao dizer que sabemos o que uma alma (animus), no o dizemos comincoerncia, pois ns temos uma alma. No porque a tenhamos visto com os
olhos do corpo, e tampouco por termos percebido por uma noo geral ouespecial, ou pela semelhana com outras muitas coisas por ns vistas. Mas,como acabo de dizer, sabemos por termos uma alma. O que h que se conheamais intimamente e leve a pessoa a sentir-se ela mesma do que esse princpioque nos faz sentir as demais coisas? Conhecemos, por comparao a nsmesmos, os movimentos dos corpos que nos fazem perceber que outros almde ns esto vivos (...) Conhecemos, portanto, a alma (animus) dos outros pelanossa. E pela nossa acreditamos na alma dos outros as quais no conhecemos.Temos portanto uma alma29.
26AGOSTINHO.A TrindadeVIII: 5, 7b.27AGOSTINHO.A TrindadeVIII: 5, 8.28AGOSTINHO.A TrindadeVIII: 4, 6.
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Com efeito, saber o que uma alma ainda est longe de saber o que se e,
portanto, longe de poder amar a si mesmo, pois a mente no pode amar a si mesma, se
no conhecer a si mesma30. Precisamos saber quem somos para conhecer o objeto do
nosso amor.
O amor de si mesmo pressupe a mense seu amor, mas tambm pressupe a mens
e o seu conhecimento. No ato de amar a si mesmo, sujeito e objeto parecem ser
indistintos, porm no h alma amante sem seu amor, nem amor sem a alma amante.
Como tambm no h amor nem alma que ama se no h conhecimento, porque s se
conhece o que se ama. Nesse sentido Agostinho afirma:
Assim como so duas as realidades: a mente e seu amor, quando a mente seama a si mesma, tambm so duas: a mente e seu conhecimento, quando ela seconhece a si mesma. Portanto, a mente, o seu amor e o seu conhecimentoformam trs realidades. Essas trs coisas, porm, so uma nica unidade. Equando perfeitas, tambm so iguais31.
..............................................................................................................................
(...) Mas quando a mente se conhece e se ama, aquelas trs realidades: amente, o conhecimento e o amor permanecem uma trindade e no se dnenhuma mistura ou confuso. Cada uma dessas realidades est em si, econtudo esto mutuamente cada uma inteiramente nas outras de modo total;cada uma nas duas outras, ou as duas outras em cada uma delas. Portanto,todas em todas32.
Para ser imagem essa primeira trade deve exprimir tanto a natureza da alma
humana como o semblante da Trindade divina. Portanto, os trs elementos: a mens, seu
amor e seu conhecimento devem ser distintos e sob qualquer proporo pertencerem
mesma essncia. Um sinal manifesto da distino dos trs termos podermos falar de
igualdade e desigualdade entre eles, pois onde falta a distino real, a desigualdade impossvel33.
A igualdade provm do verdadeiro conhecimento e do verdadeiro amor da alma a
si mesma. Quando o conhecimento que a alma tem dela mesma ordenado, o
conhecimento perfeito e igual sua alma. O mesmo se diz do amor: ele perfeito e
igual alma quando no se confunde com o corpo ou com as coisas corporais.
29AGOSTINHO.A TrindadeVIII: 6, 9.30AGOSTINHO.A TrindadeIX: 3, 3.31AGOSTINHO.A TrindadeIX: 4, 4.32AGOSTINHO.A TrindadeIX: 5, 8.
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Alguns passos mais adiante e Agostinho nos apontar outra trindade, mais
completa e mais manifesta, mas estreitamente ligada anterior. Essa segunda trade da
alma, minuciosamente tratada no captulo X de A Trindade, ser um dos pontos-eixos
da obra, pois ali temos a teoria do conhecimento agostiniana. Toda a investigao em
torno dessa segunda trindade visa descobrir a maneira pela qual ela pode ser diferente e
mais reveladora que a primeira.
Em ambos os casos o que prevalece como figurao da natureza humana o carter
uno e trino dos seus elementos. No primeiro a mens, o amor e o conhecimento. No
segundo a memria, a inteligncia e a vontade.
Nos captulos seguintes Agostinho far ainda outras analogias trinitrias,
mostrando que h algo na alma humana que fala da natureza de Deus. Agostinho une o
conhecimento da alma ao conhecimento de Deus e demonstra nas diferentes analogias
trinitrias, que por meio das diversas atividades da alma, podemos encontrar aquilo que
nos faz semelhantes a Deus. Assim temos: amante, amado e amor; mens, notitia e amor;
memria, inteligncia e vontade; memria sensvel, viso interior e vontade; memria
de Deus, inteligncia de Deus e amor a Deus.
Segundo Gilson, qualquer que seja a imagem que Agostinho analise, deve
manifestar sua existncia no interior da mens em trs termos consubstanciais, apesar de
sua distino, sendo iguais e com relaes mtuas entre si34. Dessa forma, a imagem da
Trindade na alma humana exige que haja trs realidades distintas numa nica
substncia, porque as trs so relativas umas s outras. No h trs substncias, mas trs
realidades distintas e opostas como termos de relaes recprocas. Dessa forma o
conhecimento e o amor no se encontram na mente como uma substncia. Eles so, com
a mens,uma s e mesma substncia.Mas afinal, o que a mens? O termo mens no contexto do pensamento agostiniano
no pode ser definido por uma simples oposio ao corpo35. Agostinho identifica a mens
com a parte superior da alma humana. A mens no a alma, mas o que h de mais
nobre na alma36.
33BOYER. LImage de la Trinit: synthse de la pense augustinienne, p. 95.34
GILSON.Introduction ltude de Saint Augustin, p. 290.35ANDRADE. O autoconhecimento da mens no livro X do De Trinitate de Santo Agostinho,p.83.36AGOSTINHO. A Trindade XV: 7, 11.
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pela singularidade da mens que o homem tem definido seu papel e posio
diante de toda criao. A mensultrapassa tudo que h de inferior na prpria alma como
as percepes dos sentidos corporais atributos comuns tambm aos animais e se
insere na capacidade de alcanar certa viso das coisas invisveis, soberanas e
incorpreas. De todas as atividades tridicas atribudas mens, no entanto, podemos
perceber que, alm de elementos intelectivos, h sempre a presena do elemento
vontade ou amor (que uma vontade com vigor maior37) Considerando que a mensno
se compe somente de elementos que normalmente atribumos ao conceito de mente e
que o termo traz em si uma riqueza de significado que ultrapassa o sentido restrito de
cognio, tal qual costumamos entender hoje, que alguns comentadores do
pensamento agostiniano preferem no traduzir a palavra mens para no fazer parecer
que o termo foi empregado somente para expressar uma parte da alma puramente
intelectual, excluindo dela a vontade38.
Nos captulos seguintes trataremos mais profundamente da atividade da menspor
meio da relao entre as realidades da trade memria, inteligncia e vontade, mas por
enquanto continuaremos nossa reflexo sobre a concepo de natureza humana do
Bispo de Hipona, agora em relao questo do mal.
4. A natureza do mal
Partindo da difcil questo sobre a origem do mal - que jamais poderia vir de Deus
porque Deus bom39 -, Agostinho pretendia combater as idias materialistas edualistas do maniquesmo e resolver o embate sobre o pecado original com Pelgio40,
um dos seus maiores opositores.
37Ibidem, XV: 21, 41.38A esse respeito ver: CUNHA. O movimento da alma.39AGOSTINHO. ConfissesVII: 5, 740 O monge ingls Pelgio defendia a posio de que o pecado de Ado fora o resultado de um atoindividual que no podia ser transposto a toda humanidade. Pelgio no foi o nico a se posicionar contrao dogma do pecado original, assim a histria dessa discusso bastante complexa e envolve diversas
questes a respeito da hermenutica bblica da Igreja dos primeiros sculos e os diversos pontos dediscusso levantados pelos pelagianos. Negando a transmisso do pecado das origens, os pelagianoscomprometiam a doutrina da graa divina. Diante disso, Agostinho combateu rigorosamente o
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O Hiponense nega a materializao do mal, ou seja, que o mal seja um princpio
ou uma substncia preexistente no mundo em contraposio a um bem, e nega o
dualismo que v a separao material entre corpo e alma. Para Agostinho o mal a
expresso da finitude das criaturas, ou seja, uma ausncia de perfeio41. Mesmo que o
homem seja mais perfeito que os outros seres e tenha herdado a imagem de Deus, no
idntico ao seu Criador. Essa falta o que acarreta o mal.
Podemos dizer ento que em Agostinho o mal, propriamente dito, no existe42, e o
que existe uma predisposio da vontade para pratic-lo. O mal seria, em suma, um
desvio da vontade e um distanciamento de Deus pelo pecado. Procurei o que era a
maldade e no encontrei uma substncia, mas sim uma perverso desviada da
substncia suprema...43, escreve Agostinho nas Confisses, confirmando que o mal
no preexiste ao mundo como uma fora, como afirmavam os maniquestas, mas que
est dentro de ns.
Trazendo a origem do mal para o interior do homem, Agostinho vem reafirmar o
carter dinmico da natureza humana. O homem no uma criatura passiva diante dos
imperativos de um bem ou de um mal existente fora de ns, mas dono de uma vontade
que decide entre um e outro. A vontade , pois, uma faculdade constitutiva do esprito
que nos possibilita fazer escolhas independentemente do mundo exterior.
Essa forma de pensar rompe definitivamente tanto com as concepes filosficas
maniquestas como com a tradio grega que associa o desejo do bem ao conhecimento.
Em Agostinho a vontade no depende somente do conhecimento, mas principalmente de
uma deciso pessoal que muitas vezes gera ou gerada de um conflito. O conflito,
porm, no causado pelas maleficncias do corpo, pois este inferior alma e, sendo
inferior no tem autoridade sobre aquilo que superior. O conflito gerado na prpriaalma que decide entre isto ou aquilo, visando, entre outras coisas, tambm as
solicitaes do corpo44.
movimento, insistindo na vinculao de toda humanidade ao pecado de Ado e na necessidade dalibertao atravs da redeno de Cristo e misericrdia de Deus.41NOVAES. Vontade e contra vontade, p. 6342
Ibidem, p. 64.43AGOSTINHO. Confisses VII: 16, 22.44NOVAES. Vontade e contra vontade, p. 63.
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Nesse sentido podemos dizer que o bem e o mal existem dentro de ns em forma
de duas vontades, uma que tende ao pecado e carne, outra que tende benevolncia e
ao esprito.
Assim, (existiam) duas vontades, uma concupiscente, outra dominada, umacarnal e outra espiritual, batalhavam mutuamente em mim.Discordando, dilaceravam-me45.
A alma vive um conflito constante entre essas duas tendncias. Luta consigo
mesma comandando o corpo, mas no domina a si mesma46. Essa luta traduz um
paradoxo dentro do pensamento agostiniano, na medida em que se coloca um obstculo
entre o querer e o poder realizar. No realizo se no quero, mas tambm no fao tudo
que quero, porque a razo no governa e sim, a vontade47.
Assim temos em um trecho dos mais significativos a este respeito nas Confisses:
A alma manda ao corpo, e este imediatamente lhe obedece; alma d umaordem a si mesma, e resiste! (...) A alma ordena que a alma queira; e sendo amesma, no obedece. (...) Repito: a alma ordena que queira porque se noquisesse no mandaria , e no executa o que lhe manda!Mas no quer totalmente. Portanto, tambm no ordena terminantemente.
Manda na proporo do querer. No executa o que ela ordena enquanto elano quiser, porque a vontade que manda que seja vontade. No outraalma, mas ela prpria. Se fosse plena, no ordenaria que fosse vontade,porque j o era. Portanto, no prodgio nenhum em parte querer e em parteno querer, mas doena da alma. Com efeito, esta, sobrecarregada pelohbito, no se levanta totalmente, apesar de socorrida pela verdade. So, pois,duas vontades. Porque uma delas no completa, encerra o que falta outra48.
A alma domina o corpo porque superior e sendo superior no se submete a ele.
Mas no domina a si mesma, porque em todo ato de vontade existe um querer e um no
querer. O problema que, a alma, acostumada s concupiscncias, entra em conflito
consigo mesma e permanece na dvida at que a vontade superior vena.
A afirmao acima pressupe que a vontade livre para exercer ou no o seu
poder de escolha, livre em relao a si mesma. Podemos obrigar algum a fazer alguma
coisa, mas nunca a quer-la. Assim a vontade alheia a qualquer manifestao do
45AGOSTINHO. ConfissesVIII: 5, 10.46
ARENDT. A descoberta do homem interior, p. 251.47Ibidem.48AGOSTINHO. ConfissesVIII: 9, 21.
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mundo exterior e livre em sua essncia. Resta, porm, analisarmos a questo entre o
querer e o poder e isso implica considerarmos o valor da ao no pensamento
agostiniano.
Agostinho em momento algum nega que a vida contemplativa, guiada pela busca
da verdade, seja a negao da vida sensvel. O homem um ser no mundo e enquanto
tal est sujeito aos desejos e paixes e, mais ainda compelido a discernir, entre as
coisas sensveis as que remetem ao bem e as que remetem ao mal. E, mesmo
conhecendo o bem, ou seja, mesmo sabendo como se deve agir em conformidade com a
lei, o homem pode escolher fazer o mal, ou ainda, pode fazer o bem porque conhece a
lei, e ter a vontade de praticar o mal.
(...) considera um homem que est impossibilitado de abusar da mulher de seuprximo. Todavia, se for demonstrado, de um modo ou de outro, qual o seuintuito e que o teria realizado se o pudesse, segue-se que ele no menosculpado por a do que se tivesse sido apanhado em flagrante delito49.
Existe uma vontade que sempre capaz de visar ao bem, mas para se ter acesso a
essa vontade perfeita a alma tem de estar preparada, pura, livre do pecado e das
tentaes, estado alcanado somente pela graa. A conscincia da verdade deve ser
buscada, portanto, em Deus para que Ele guie no as nossas aes, mas a nossa vontade.
Agostinho se baseia na prpria experincia de converso para suas concluses. E
bem se sabe o quanto essa experincia lhe causou sofrimento e angstia na guerra que
travava consigo mesmo antes e aps sua converso. Assim, em termos de concepo
filosfica, Agostinho transfere o embate entre o bem e o mal do maniquesmo para
dentro de si mesmo. Esse embate acontece independentemente do consentimento ou no
da razo e do entendimento. O embate entre a alma e ela mesma, entre essas duas
vontades que comandam o agir e o pensar.
Segundo Ricoeur, a filosofia de Agostinho, ao refletir em torno da natureza do mal
tinha o objetivo apologtico50 no s de combater as idias maniquestas, que
49AGOSTINHO. O Livre-arbtrioI: 3, 8.50
O movimento apologtico aconteceu durante os primeiros sculos da era crist atravs dos primeirospadres, pais da Igreja, que tinham como objetivo forjar, construir e defender a f, a liturgia, a disciplina,os costumes e dogmas cristos constituindo, assim, as bases do cristianismo.
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materializavam a figura do mal mas principalmente, de criar um conceito de pecado
original.51
Para os gnsticos o mal uma realidade fsica, uma potencialidade procedente do
mundo que atinge os homens. Sem possibilidade de ser uma conseqncia da liberdade
humana, a confisso no tem uma finalidade tica, pois o pecado provm do prprio
estar no mundo, no fazer, mas ser.
Para os cristos, ao contrrio, o mal no tem natureza, no uma coisa, no uma
matria, no uma substncia, no mundo, mas entrou no mundo por meio da
fraqueza humana. Da, o mito admico se tornar o smbolo de que o homem a causa e
a origem radical do mal. A figura de Ado arquetpica, pois representa toda
humanidade e, na obra de Agostinho, representa a natureza de pecado que herdamos
como dado biolgico que, associado vontade outra natureza , ganha tambm o
estatuto jurdico de culpabilidade individual. Assim, o pecado original foi herdado pelos
cristos como uma categoria jurdica de dvida e uma categoria biolgica de herana.
Ado representa a queda, o iniciador e ns, na medida em que tambm pecamos,
no iniciamos, mas damos continuidade ao erro primordial. Foi por meio do primeiro
homem que o pecado entrou no mundo, bem como o poder de liberdade e de escolha
dos homens.
Em conseqncia interpretao de Agostinho do mito admico, o mal deixa de
ter dimenso cosmolgica, como na concepo gnstica, para se revestir de um carter
puramente tico, pois enquanto o homem integralmente responsvel por sua queda,
co-autor do pecado. Agostinho inaugura a viso tica do mal na medida em que atribui
ao homem a plena responsabilidade de seus atos, mostrando que a natureza do homem
no m, m a sua vontade.Longe de se admitir, ainda, uma contingncia do mal, prevalecem na interpretao
agostiniana traos nitidamente neoplatnicos. O mal uma inclinao do ser para o
no ser ou uma inclinao para o nada, entendendo como nada uma averso a Deus.
o movimento de averso que constitui o pecado. Tal movimento, logicamente, no
poderia vir de Deus.
51RICOEUR. A simblica do mal interpretada, p. 227-265.
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Para Agostinho seria, portanto, menos difcil aceitar que o pecado e o mal
entraram no mundo com a queda de Ado e a idia de que o gnero humano inteiro est
em estado de condenao como resultado do erro primordial, do que entender como o
homem pode ser afligido por tantos males quando a graa e a misericrdia divina agem
nele. Deus no pode ter criado o mal, porque este uma inclinao para o nada. Assim,
no pode haver comeo individual do mal, pois este uma continuao, uma
perpetuao, uma marca hereditria transmitida a todo gnero humano pelo primeiro
homem.
A coao, representada pela serpente, d a idia de que o mal exterior ao homem
e, como tal, superior e mais forte. Por outro lado, Ado cede s sedues desse mal
exterior e da nasce a culpa. Entre estas duas tendncias mal para alm do humano e
mal que decorre de uma escolha m se concentra o sofrimento humano que s
superado atravs da experincia dolorosa da conscincia culpada que busca a graa e a
salvao divina.
5. A graa
Agostinho reconhecido como o doutor da graa por ter sido o primeiro a levar
at s ltimas conseqncias a defesa da necessidade e realidade da graa divina. O
problema e o cenrio em torno do qual o assunto emergira era to polmico quanto a
prpria doutrina da graa que o hiponense formulou e procurou justificar. O embate
era principalmente com Pelgio, apresentado anteriormente como o grande opositor dadoutrina do pecado original e, agora, como o defensor incondicional da liberdade de
escolha do homem.
A reflexo que faremos a seguir no quer se ocupar do contexto ou dos
pormenores da polmica e sim expor de maneira resumida a forma como Agostinho
procurou solucionar o problema da difcil conciliao entre graa, predestinao e livre-
arbtrio sem, contudo, aprofundar nas lacunas e contradies de sua doutrina.
Pretendemos apenas seguir o fio condutor da reflexo agostiniana sobre a graa, a fim
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de compreendermos o peso que tal doutrina representa dentro do pensamento do
filsofo.
Tendo em vista a criao crist, tudo que Deus deu ao homem poderia ser
considerado um dom gratuito, uma graa. A prpria natureza do homem, sua
constituio fsica, mental e espiritual, poderia ser considerada como uma graa
universal e comum a todos desde o momento da criao. Acima dessa graa, no entanto,
se encontra uma outra bem diferente e que incorpora o sentido pleno que o Hiponense
quer demonstrar quando se refere ddiva maior recebida de Deus pelo homem. Trata-
se no mais daquela graa atravs da qual o Verbo divino fez todos os homens sua
imagem, mas de uma outra que tem o poder de transformar alguns homens seguidores
de Deus e da verdade. Tal a graa propriamente dita.
Agostinho parte do pressuposto de que Deus criou o primeiro homem em um
estado muito superior ao estado atual. Antes do pecado original o homem gozava de um
amor pleno a Deus, no cometia pecado algum e, por isso, no conhecia a tristeza ou a
dor. Criado em um estado de pura retido, usufrua de uma sabedoria sem esforo,
evitava naturalmente o erro e gozava de uma subordinao perfeita de seu corpo sua
alma.
O homem aderia a Deus como seu bem mais absoluto. Assim sem luta ou
perturbao interiores, sem tentaes em seu redor, vivia em paz e no lugar que lhe era
devido, na sua beatitude.
A constituio exata do ato que modificou to profundamente o estado de natureza
primitiva do homem bastante complexa e no pode ser resumida na simples
transgresso de uma ordem. A proibio de se comer de certo fruto significa a
imposio de um ato de obedincia tal que a prova do exerccio de uma virtudeentendida como superior a qualquer outra virtude. A imposio um preceito, uma
regra de procedncia, uma forma de assegurar, na prpria obedincia, a posio do ser
humano em relao ao Criador.
Ora, o primeiro homem vivia em um lugar em que no lhe faltava nada, no havia
carncias e podia usufruir de todas as ddivas da criao. Suprido, assim, de tantos dons
de se admirar que o homem tenha preferido se desviar de Deus e pecar. Resultado do
enfraquecimento do livre-arbtrio, o homem conheceu a queda mesmo tendo recebidotudo que precisava para evitar o erro. No , portanto, pela dificuldade do preceito, nem
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por uma insubordinao qualquer da carne que se encontra a origem do mal, mas na
vontade do homem, que desejando uma independncia, tentou se elevar a uma posio
que no era a sua. Assim, na concepo agostiniana o homem pecou por orgulho, por
uma autoconfiana demasiada em si mesmo, o que o fez desertar do princpio ao qual
ele deveria se agarrar, fazendo de si mesmo o seu prprio princpio.
No orgulho de tentar ver em si mesmo sua prpria luz, o homem teria
demonstrado nada menos que o mal vinha de seu prprio interior. Segundo Gilson 52, o
erro primordial representa para Agostinho uma falta to profunda que pode ser
incorporado e representado de uma forma inconsciente de sua verdadeira natureza, pois
em lugar de abominar sua fraqueza, o homem a apresenta como desculpa: ... fui
seduzido 53. O orgulho faz colocar sobre um outro a prpria culpa, mas a transgresso
voluntria da ordem no deixa dvidas de que ela prpria se acusa no momento da
desculpa.
por isso que Agostinho insiste em afirmar que o pecado original uma
conseqncia do livre-arbtrio. Deus no fez nada que no fosse bom e o movimento
que separa o homem de seu fim vem do homem mesmo. Foi por um ato voluntrio que
o homem se desviou de Deus, subvertendo a ordem divina, preferindo a obra ao seu
Criador54.
Agostinho associa sempre a concupiscncia e a ignorncia ao pecado original. Ao
criar o homem, Deus certamente exclura esses dois vcios da natureza humana. Com a
queda, no entanto, Ado e toda sua descendncia passaram a enfrentar a ignorncia e o
esforo de se sair dela, bem como a revolta do corpo contra o esprito. O mal que existia
em Ado se propagou at ns e se transformou num mal de segunda natureza. Uma
natureza viciada, mas em ltima instncia, uma natureza criada como imagem de Deus eque no pode ter sido totalmente destruda pelo pecado.
Na viso de Agostinho, a natureza consentida to gratuitamente ao primeiro
homem no perdeu o carter de ser dom de Deus, mesmo depois da queda. Ao contrrio,
dotado de capacidades bem diferentes das dos animais, o homem pode adquirir lenta e
progressivamente, por meio de longos exerccios, as artes, as cincias e as virtudes. Se
52
GILSON.Introduction ltude de Saint Augustin, p. 188.53Gn 3, 12.13.54GILSON.Introduction ltude de Saint Augustin, p. 188.
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existem virtudes naturais no homem decado como fora, temperana, justia, prudncia
e senso porque essas virtudes so ainda vestgios de uma ordem quase destruda, mas
restaurvel, que Deus conservou justamente para esse fim. Trata-se de um resto de
disposio habitual ou de uma fora excepcional capaz de ser testemunha ou a prpria
concluso do amor e do dom de Deus.
O reconhecimento do que Deus conserva da antiga natureza do homem, no
entanto, no deve encobrir o fato de que sem Deus no h salvao.
A natureza do homem foi criada no princpio sem culpa e sem nenhum vcio.
Mas a atual natureza, com a qual todos vm ao mundo como descendentes deAdo, tem agora necessidade de mdico55.
As virtudes que subsistiram queda no conseguem encontrar seu valor primitivo,
a no ser que Deus o devolva por um socorro especial. Esse socorro a verdadeira
graa, descrita anteriormente, pois a adaptao da ddiva natureza decada.
Assim quando Deus criou o primeiro homem encheu-o de graa para que ele
pudesse viver eternamente sua beatificao. No estado de natureza decada Deus atribui
a graa a fim de tornar possvel a salvao antes perdida. O que h de comum em ambosos casos a gratuidade absoluta com que Deus concede os dons; no entanto a verdadeira
graa ser sempre aquela em que os dons so distribudos no em funo da
constituio, mas da restaurao da natureza perdida.
Sustentando agora uma natureza pervertida pelo pecado, a graa no tem mais o
objetivo de construir a obra de Deus, mas de restabelecer a desordem da qual o homem
o nico autor.
Nesse sentido, a graa em Agostinho se distingue radicalmente de tudo o que Deusempresta ao ser das criaturas no momento da constituio de sua natureza e se justifica
somente como dom restaurador de uma natureza que se perdeu.
O primeiro passo para essa recuperao encontra-se na histria da salvao
bblica, quando Deus promulgou a lei para o povo que queria segui-lo. A lei no foi
criada para extinguir o pecado, afinal este s pode ser extinto por meio da graa mas
para mostrar ao homem sua culpa e a necessidade inexorvel da salvao.
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(...) a inteno da lei proibitiva que se recorra graa do Senhormisericordioso por aquilo que se comete com freqncia. Pois a lei age comoum guia que nos dirige na prpria f (...)56.
Portanto, em termos de atitudes dos homens perante a lei, Deus espera no o seu
cumprimento cego, mas principalmente o temor e a f.
Pelo temor pedimos a Deus que ordene o que quer que faamos. Pela f esperamos
que Deus conceda a possibilidade do cumprimento daquilo que Ele ordena. Dai-me o
que me ordenais, e ordenai-me o que quiserdes, diz Agostinho nasConfisses57.
O temor necessrio para que o homem no se encha de orgulho e jamais se
esquea do que no capaz. A f necessria para que o homem seja sempre receptvel
vontade de Deus.
A aquisio da graa , pois, uma condio sine qua nonpara o cumprimento da
vontade divina e para o prprio cumprimento da vontade humana, quando se trata de
cumprir a vontade de Deus. Para os que crem adquiri-la por meio das boas obras,
preciso lembrar que isso inverte indevidamente os termos, pois a graa no seria gratuita
se estivesse associada a mritos.
A graa de Deus a vida eterna em Cristo Jesus, a fim de que entendssemosque a concesso da vida eterna por Deus no por nossos mritos, mas pelasua misericrdia. (...) Deus quem opera em vs o querer, segundo a suavontade (Fl 2,13). (...)Pelo fato de dizer que Deus quem opera em vs o querer e o operar, segundosua vontade, no se h de concluir pela excluso de livre-arbtrio. Se assimfosse, no teria dito acima: Operai a vossa salvao com temor e tremor (Fl2,12). Quando se ordena o trabalho, supe-se o livre-arbtrio, mas com temore tremor, a fim de se evitar atribuir a si mesmo a boa obra e se orgulhar desua prtica (...) Portanto, se temeis e tremeis, no vos ensoberbecereis dasboas obras como se fossem vossas, porque Deus quem opera em vs58.
Podemos concluir a partir disso que o ponto de partida para a aquisio da graa
ser acima de tudo a f. Assim a f ser anterior s obras no para dispens-las, mas
para poder preparar o interior a fim de receber a graa e da poder fazer boas obras. Vale
dizer que ningum capaz de fazer boas obras a menos que tenha f e,
conseqentemente, tenha recebido a graa.
55AGOSTINHO.A natureza e a graaIII, 3.56
AGOSTINHO.A natureza da graaXII, 13.57AGOSTINHO. ConfissesX: 29, 40.58AGOSTINHO.A graa e a liberdadeIX, 21.
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Se a graa precede as obras, precede tambm o mrito, o que significa dizer que
em torno da graa h uma espcie de eleio. O problema, nesse sentido, parece
bastante complexo visto que toda eleio pressupe uma escolha que no s parece ser
incompatvel com a gratuidade pura da graa como com o prprio conceito de justia na
doutrina agostiniana. A justia de Deus entendida por Agostinho como misericrdia
que perdoa59. Desse modo podemos pensar que no podendo a eleio preceder a
justia, Deus confere a justia antes de proceder a eleio, o que pressupe a existncia
da predestinao no ato da justificao divina. O problema ser tornar a predestinao
divina compatvel com a livre escolha do homem.
Se conseguirmos considerar que as circunstncias nas quais se prev exatamente
aquilo que nossa vontade se decidir no interferem no querer, ento a liberdade poder
ficar assegurada e a justia divina chegar na medida das prprias decises do homem.
Ainda que a vontade esteja submetida influncia das graas que Deus sabe que
devero ser consentidas para o projeto se realizar, no se pode acusar a vontade de no
ser livre. A predestinao divina a previso infalvel das obras futuras que, para serem
realizadas, precisam das circunstncias e das graas salutares preparadas por Deus para
seus escolhidos. Ela no , pois, uma eleio e sim a prescincia daquele que sabe qual
ser exatamente a resposta para o seu chamado.
Foi por meio da conciliao entre a prescincia divina e a liberdade humana que
Agostinho tentou encontrar resposta para a angustiante questo sobre o porqu de Deus
justificar mais a uns que a outros. Se Deus sabe por antecedncia quais sero todas as
nossas respostas, no pode errar em saber quais graas dever nos oferecer. Deus sabe
exatamente a medida da graa oferecida a fim de que ela se torne libertadora sem ser em
momento algum constrangedora. Deus jamais age por constrangimento, pois navontade que ele age.
Para Agostinho a exata previsibilidade dos atos humanos por Deus no altera a
vontade do homem, ao contrrio, concilia a possibilidade e a necessidade da graa com
o livre-arbtrio da vontade. Mas fica a dvida se o homem ainda conserva a liberdade
quando seus atos se submetem influncia da graa. O problema no nasce do percurso
entre a graa e o livre-arbtrio, pois estes se encontram conciliados, mas entre a graa e
59GROSSI e SESBO. In: O homem e sua salvao, p. 246.
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a liberdade. O livre-arbtrio a faculdade de escolha do homem. Agostinho defende
essa faculdade como um dom dado por Deus a todo homem desde o momento em que
nasce.
A liberdade no , a rigor, um poder de escolha, mas um estado da vontade
voltado e orientado para o bem que em ltima instncia sempre Deus. Agostinho
parece penetrar no labirinto desses dois conceitos por meio do texto de So Paulo que
diz: ... no fao o bem que quero e fao o mal que no quero60. Para no
comprometer o livre-arbtrio, o Hiponense afirma que o homem somente pode fazer o
que Deus lhe d fora para fazer. Assim, o que marca a diferena entre o homem que
tem a graa e aquele que no a tem no ser a possesso ou no possesso de seu livre-
arbtrio, mas a eficcia de sua vontade. A graa , pois, aquilo que confere vontade,
seja a fora de querer o bem, seja a fora que possibilita sua concluso.
dessa dupla fora que a liberdade agostiniana se define, pois afinal receber a
graa antes de tudo aceit-la, como consentir significa agir de acordo com seu querer.
Deus d a vontade de querer e ajuda a fazer aquilo que se quer. A vontade, assim,
agindo de acordo com o seu prprio querer, testemunha por si mesma a liberdade do
livre-arbtrio, porque Deus auxilia quem quer agir, no para dispensar a ao voluntria
humana e sim para permitir que a ao se conclua. Mesmo submetida graa, a vontade
tem de estar presente sempre, afinal:
Tudo provm de Deus, mas no como se estivssemos dormindo, apticos,ablicos. Sem tua vontade no estar em ti a justia de Deus. Certamente avontade no seno tua, a justia no seno de Deus. Pode existir a justiade Deus sem a tua vontade, embora no possa dar-se em ti margem da tuavontade... Sers obra de Deus, no s por seres homem, mas por seres justo.Melhor para ti ser justo do que ser homem. Se o ser homem obra de Deus e
o ser justo obra tua, ao menos essa obra tua maior que a de Deus.Porm, Deus te fez sem ti... Quem te fez sem ti no te justificar sem ti.Fez o inconsciente, justifica o consciente (querente). Mas a justia no tua,ele quem justifica61.
Quando o homem se entrega ao pecado, age livremente, pois escolheu por si
mesmo recusar o dom divino da graa. Quando, porm, entende e resolve seguir o
chamado da graa, por amor ao bem e justia que o faz. Em ambos os casos a alma
se v encantada. Tanto o encantamento pelo pecado como pelo bem que a graa oferece
60Rm 7, 19.
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so a prpria manifestao da espontaneidade da deciso. A diferena entre ambos
que, no primeiro caso, o homem acaba por se ver preso a toda sorte de obscuridade e
perverso da carne, enquanto no segundo, ele experimenta a verdadeira liberdade,
porque faz que o seu objeto de encantamento seja precisamente sua liberdade.
Por ela mesma, a vontade nem sempre boa. Por vezes, mesmo querendo o bem
no pode alcan-lo. Toda essa ausncia de liberdade se d pelo pecado que contamina
nossa vontade. Tambm o livre-arbtrio pode amar e procurar algo alm de si mesmo,
mas por suas prprias foras no capaz de amar a Deus. Reportamo-nos ento
novamente ao texto das Confisses, que a todo instante nos lembra que a queda e o
afastamento de Deus tm dimenses infinitas, a menos que Deus nos estenda a mo e
nos levante. Restaurando em ns o amor a Deus de que nossa vontade primeira era
capaz, a graa nos d foras para vencer todo tipo de tentao, transformando nossa
vontade em boa vontade. somente atravs da boa vontade que o livre-arbtrio se v
livre. somente tendo em vista a noo de liberdade no sentido propriamente
agostiniano que se pode dar sentido s frmulas aparentemente to paradoxais dessa
doutrina.
Na doutrina agostiniana a liberdade se confunde com a eficcia de um livre-
arbtrio orientado para o Bem. Eficcia essa totalmente subordinada autoridade da
graa. Ora, se o ofcio da graa justamente atribuir eficcia ao livre-arbtrio, quanto
mais graas se recebe mais livre o homem se torna.
6. A salvao pelo conhecimento de Deus
A doutrina da criao pressupe que Deus pode criar com base no modelo das
suas prprias idias, porque elas so os pensamentos e a voz de Deus dizendo que elas
se faam. As coisas criadas, na medida em que recebem sua forma e seu ser do Criador,
tornam-se vestgios de Deus porque participam das idias divinas. O que Agostinho
mostra, afinal, que todas as coisas criadas possuem uma dependncia ontolgica em
61Sermo 169, 13.
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relao a Deus, porque so a prpria realizao da ordem racional de Deus no universo.
Mas essa dependncia ultrapassa o campo dos movimentos inerentes ordem do
universo para constituir-se em uma dependncia tambm de ordem espiritual.
Sendo dependentes ontolgica e espiritualmente, as criaturas somente adquirem
sua plenitude pelo encontro ou, se quisermos utilizar uma terminologia neoplatnica,
pela volta da criatura ao seu criador.
O mundo criado apresenta uma ordem perfeita, porque participa das idias de
Deus e a lei eterna implica ordem, perfeio e harmonia. Por isso os seres humanos, que
na escala de participao ocupam o degrau mximo da criao, so convidados a ver,
respeitar e a querer essa ordem. No obstante, a procura pela ordem ou razo do mundo
confunde-se sempre com a procura de Deus, princpio e causa de tudo.
Ora, se Deus criou a partir do modelo de suas prprias idias, a sabedoria, objeto
da filosofia, no se encontra nas coisas criadas, mas no prprio criador. no criador que
encontramos a resposta para toda e qualquer especulao. Mas como conhecer a Deus?
Como penetrar nos mistrios mais insondveis e da conhecer sua obra?
Agostinho defende com base nos relatos bblicos que assim como Deus nos
revelou a criao e muitas outras coisas, afim de que possamos conceb-lo,
reconhecendo-o como o Ser por excelncia, tambm revela quem ele por meio de
Moiss em xodo 3,14 Ego sum qui sum Eu sou quem sou.
Por meio dessa revelao Agostinho levado a defender a posio de que Deus a
verdadeira essncia, pois na mxima Ego sum qui sum Deus estaria revelando que o
ato de existir precisamente o que designa a palavra essncia62. Deus , portanto o
Ser por excelncia, o que significa ser eterno, imutvel e perfeito.
Pode-se perceber por essa interpretao, certo ponto de encontro entre a filosofiade Agostinho e a dos neoplatnicos, pois para Plotino o termo Uno, na forma como
Porfrio o traduziu, pode ser interpretado ao mesmo tempo como esprito, ser pensante,
eterno e imutvel63. Ora, ao tomar Deus como uma unidade trina, Agostinho est
reunindo no Criador todas as qualidades relativas ao Uno neoplatnico. Dessa forma o
Deus cristo ser o princpio eterno e imutvel de todas as coisas e esprito unificador
de si mesmo, porque simplesmente o que : eterno, imutvel, perfeito e completo.
62BEIERWALTES.Agostino e il Neoplatonismo Cristiano, p. 107.63GILSON.Introduction ltude de Saint Augustin, p. 290.
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Entre o princpio unificador e o mundo subjacente a esse princpio encontramos, como
nos gregos, uma diviso: de um lado, o mundo dos entes submetidos ao tempo e do
outro, o princpio e fundamento desses entes, ou seja, o ser que intemporal porque
divino.
Mas se a forma pela qual Agostinho interpreta o trecho de xodo 3,14 pode ser
enquadrada no universo conceitual neoplatnico, no se pode negligenciar as diferenas,
especialmente quando se trata do estatuto dado ao homem diante da figura do divino.
Deus, de acordo com o sentido cristo reconhecido por Agostinho, tambm
benevolncia e cuidado, porque permitiu que as criaturas tivessem participao no seu
ser. Assim a busca do homem pela ordem do inteligvel, to cara para os gregos,
substituda por uma busca pessoal e ardente por algo que ultrapassa o humano, mas que
no est fora dele.
Como na concepo crist da queda e do pecado, a tradio neoplatnica tambm
acreditava que o afastamento de Deus consistia na disperso da alma na materialidade e
na diversidade do mundo sensvel; e que a via da aproximao consistiria no retorno a
Deus e reencontro de seu verdadeiro ser. Agostinho no somente absorveu os princpios
tericos da unidade da alma e sua semelhana em relao transcendncia divina da
filosofia neoplatnica como usou terminologias e conceitos prprios dessa filosofia
como o caso do termo disperso.
A disperso est relacionada perda da unidade de origem da alma face
diversidade e materialidade do mundo, e o reencontro est relacionado ao
reconhecimento da unidade que faz os homens semelhantes a Deus. Esse reencontro em
ambos os casos se daria por degraus de ascenso e estaria condicionado a uma
descoberta que deveria acontecer ainda nessa vida. A diferena que na tradioneoplatnica a subida e o encontro somente so possveis aos filsofos e pessoas cultas,
enquanto para Agostinho ela acessvel a todos aqueles que tm f64.
Podemos perceber, portanto, que por meio de Agostinho toda a relao com o
mundo temporal e intemporal muda radicalmente e isso que nos possibilita falar de um
retorno a Deus como plano de salvao. Para os gregos o retorno unidade de origem
faz parte de um movimento intrnseco e imanente a ele mesmo, enquanto em Agostinho
64MORESCHINI.Histria da literatura crist grega e latina, 2002.
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o sentido de uma volta verdadeira natureza, aquela que foi criada fora e
anteriormente ao pecado e corrupo original. A filosofia de Agostinho procura, nesse
sentido, percorrer o caminho capaz de levar o homem sua forma mais primitiva. Como
afirma Gilson, ela visa fins prticos e seu ponto de aplicao imediata o homem65.
A filosofia foi o ponto de partida para a descoberta da sabedoria e ser o
instrumento que Agostinho utilizar para conduzi-lo at Deus. Ela ser nada menos que
a procura de um conhecimento que possa fazer com que o homem seja melhor, mais
prximo do bem e, por conseguinte, mais prximo a Deus.
Mas poderamos nos perguntar, no entanto, como se d essa procura ou como o
homem se torna consciente do caminho que dever percorrer at a sua salvao.
Para Agostinho a idia de Deus surge de um conhecimento universal e
naturalmente inseparvel do esprito humano. Assim, ele jamais colocou em dvida a
existncia de um Deus Criador. Mas embora esse no fosse um problema pessoal, o
Hiponense nunca deixou de se interessar pelo assunto, a ponto de mostrar, pela
elaborao de uma prova, no tanto a necessidade da existncia de Deus, mas o fato
mesmo de sua existncia66. Partir deste pressuposto significa dizer, portanto, que
Agostinho quer tornar mais claro e evidente para a apreenso humana aquilo que j
um dado interior.
Boyer chama nossa ateno, no entanto, para o perigo de tomarmos essa forma de
conhecimento por um saber intuitivo da presena de Deus no esprito, pois esse tipo de
interpretao leva conseqentemente afirmao de que Deus pode ser visto por uma
via imediata e direta. Boyer acredita, como a maioria dos intrpretes do pensamento
agostiniano, que no se pode atribuir ao santo Bispo uma doutrina da viso imediata e
intuitiva como conhecimento de Deus dentro de uma ordem natural e espontnea darazo67. Assim o autor defende que a ascenso da alma em direo a Deus se opera por
degraus.
A alma parte primeiramente da conscincia das coisas visveis e sensveis, cujo
conhecimento apela para imagens e representaes. Nesse primeiro degrau a alma est
65
GILSON.Introduction ltude de Saint Augustin, p. 1.66BOEHNER, P.Histria da Filosofia Crist, p. 157.67BOYER, La preuve de Dieu augustinienne, p. 107.
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sujeita a dvidas e incertezas, mas pode lanar os olhos sobre o universo a fim de
reconhecer que Deus o seu autor.
Em seguida a alma passa pelo reconhecimento de si. Nessa etapa a memria ser
intermediria entre a realidade exterior e interior; entre a realidade em si mesma e o que
se guardou no seu interior. nessa etapa que a alma percebe sua superioridade em
relao s outras criaturas e se v diante de algo que ultrapassa a si mesma.
Nesse itinerrio o eu interior se transforma em um campo infinitamente
explorado, mas cada vez mais misterioso. E justamente porque a alma se v maior que
a si mesma o que claramente expresso no captulo X das Confisses que ela aponta
para o transcendente. A alma no s a habitao de Deus, ela a prpria imagem de
Deus e, como tal, transcende o mundo e no se reduz a uma simples natureza. Os
degraus percorridos so, portanto, nessa ordem: sentidos, memria e razo. Ou se
quisermos variar os termos: mundo sensvel, conhecimento de si e apreenso de Deus.
Agostinho demonstra o tempo todo que, por pertencer parte superior da alma, em
se tratando do homem, nada superior razo. Assim, transcender razo significa
transcender quilo que pode ao menos parecer atingir a Deus.
Mas o Hiponense mostra, ainda, que a verdade de Deus algo que tambm
ultrapassa a prpria razo e que descobrir uma realidade superior ao homem no
significa necessariamente descobrir Deus, pois o Criador, na forma como Agostinho o
concebe, se apresenta por um carter distintivo de um Deus que se faz conhecer para
que o universo no o possa ignorar, mas que se deixa conhecer somente o suficiente
para despertar o desejo do homem de empenhar-se em procur-lo e o possuir68.
Podemos dizer, portanto, que o homem pode