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  1 José Eduardo Reis Universi dade Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD) Instituto de Literatura Comparada (ILC) da Faculdade de Letras do Porto (FLUP) A genealogia do pensamento de Agostinho da Silva O filósofo israelita Martin Buber publicou em 1946 em hebraico uma obra de teor político filosófico, traduzida três anos mais tarde para inglês com o título  Paths in Utopia.  Nela, Bub er identifica a pr opensão para a uto pia com o an elo da realização da ideia geral de justiça, ideia que, segundo ele, manifesta-se segundo duas modalidades, a religiosa, projectada como imagem escatológica e messiânica de um tempo perfeito, e a filosófica, projectada como imagem ideal do espaço perfeito. A  primeira concepção envolve questõe s do tipo cósmico, ontológico e metafísico , enquanto que a segunda confina-se ao plano imanente do funcionamento estrutural das sociedades e da conduta ética do homem. Segundo Buber, a escatologia ou visão  perfeita do tempo distingue -se da utopia ou visão perfeita do espaço, pelo facto daquela decorrer da crença num acto transcendental, proveniente de uma vontade superior e exterior ao homem, independentemente deste poder vir ou não a desempenhar um papel activo na preparação do reino futuro. Com a utopia é a vontade decidida e consciente do homem, liberta de qualquer vínculo à transcendência, que soberanamente intervém na modulação do espaço social perfeito.  No entanto, esclarece Buber, desde o século das luzes, que a visão escatológica da

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    Jos Eduardo Reis

    Universidade Trs-os-Montes e Alto Douro (UTAD)

    Instituto de Literatura Comparada (ILC) da Faculdade de Letras do Porto (FLUP)

    A genealogia do pensamento de Agostinho da Silva

    O filsofo israelita Martin Buber publicou em 1946 em hebraico uma obra de

    teor poltico filosfico, traduzida trs anos mais tarde para ingls com o ttulo Paths

    in Utopia. Nela, Buber identifica a propenso para a utopia com o anelo da realizao

    da ideia geral de justia, ideia que, segundo ele, manifesta-se segundo duas

    modalidades, a religiosa, projectada como imagem escatolgica e messinica de um

    tempo perfeito, e a filosfica, projectada como imagem ideal do espao perfeito. A

    primeira concepo envolve questes do tipo csmico, ontolgico e metafsico,

    enquanto que a segunda confina-se ao plano imanente do funcionamento estrutural

    das sociedades e da conduta tica do homem. Segundo Buber, a escatologia ou viso

    perfeita do tempo distingue-se da utopia ou viso perfeita do espao, pelo facto

    daquela decorrer da crena num acto transcendental, proveniente de uma vontade

    superior e exterior ao homem, independentemente deste poder vir ou no a

    desempenhar um papel activo na preparao do reino futuro. Com a utopia a

    vontade decidida e consciente do homem, liberta de qualquer vnculo

    transcendncia, que soberanamente intervm na modulao do espao social perfeito.

    No entanto, esclarece Buber, desde o sculo das luzes, que a viso escatolgica da

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    instaurao de um reino harmonioso na terra por um acto providencial da vontade

    divina perdeu a sua fora apelativa dando lugar ideia moderna de progresso.

    Convocmos Martin Buber para precisar que a ideia de progresso, tal como foi

    formulada pelos livres-pensadores do sculo XVIII e sistematizada pelos seus

    continuadores do sculo XIX, assenta em quatro pontos fundamentais, a saber: (i) a

    proclamao de uma discernvel continuidade, no isenta de turbulncias, de

    hesitaes e de movimentos retrocessivos, da evoluo da histria social e espiritual

    do homem, a qual passvel de ser segmentada em fases ou estdios que, pela sua

    sequncia, so reveladores de um desgnio imanente de maturao e perfeio ntica

    e material; (ii) que essa continuidade governada por leis histricas racionalmente

    induzidas a partir da anlise dos eventos gerados pelo homem e no deduzidas da

    crena em um esquema providencial de ordenao divina; (iii) que por meio do

    conhecimento dessas leis se pode prever a qualidade do avano inelutvel de um

    determinado estdio de desenvolvimento para o estdio que lhe sucede; (iv) que esse

    avano requer a interveno da vontade e do esforo dos homens para ser realizvel;

    (v) finalmente, que este esquema de pensamento uma verso laicizada, como afirma

    Buber, duma viso escatolgica da histria assente na ideia do milnio.

    E chegmos ao milnio. No ao limiar do segundo lapso de mil anos d. C.,

    mas nomeao de um conceito que, para a histria das ideias, crenas e concepes

    teleolgicas desempenha uma funo dominante e orientadora na mentalidade do

    ocidente judaico-cristo; de um termo, cujo contedo designa, por efeito de

    sinonmia, a esperana, o princpio de que se nutre, como o demonstrou Ernst Bloch,

    o esprito da utopia orientado para o futuro, os dias a vir, a idade de ouro recuperada,

    a entrada nas graas da Stima Idade, a Parsia prometida aos crentes, o reino

    terrestre do Messias, a sociedade da justia, o estado final do processo csmico que

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    definitivamente sublimar as insuficincias, as calamidades, as faltas acumuladas

    pelo homem ao longo da sua mesma e necessria histria, esperana consubstanciada

    nos quarto, quinto e sextos versculos do vigsimo captulo da revelao proftica do

    Apocalipse de Joo: "Voltaram vida [os mrtires cristos] e reinaram com Cristo

    durante mil anos [...].. A segunda morte no tem poder sobre eles; sero sacerdotes

    de Deus e de Cristo e reinaro com Ele durante mil anos." (Apoc.20-4; 20-6)..

    Para Norman Cohn, autor de In the Pursuit of the Millenium (Na Senda do

    Milnio), esta noo de salvao caracteriza-se por ser de tipo colectivo na medida

    em que extensvel a um grupo de fiis , terreal pela promessa de ser efectivada

    neste mundo , iminente pois dever ocorrer em breve e de sbito , total quanto

    ao grau de perfectibilidade alcanado e ser concretizada por efeito de uma

    interveno exterior, sobrenatural.

    Mas limitemo-nos ao sucedido na civilizao ocidental. Dos adeptos do

    Livre-Esprito, na Idade Mdia, s Testemunhas de Jeov, no sculo XX, passando

    por variadssimos movimentos religiosos sectrios gerados em diferentes pocas,

    regista-se a espantosa sobrevivncia de uma mesma frmula ideolgica de inspirao

    apocalptica sobre o devir do mundo, a contnua reproduo da crena no valor de

    verdade literal da profecia escatolgica anunciada no ltimo livro cannico da Bblia.

    No seu diferenciado modo de interpretar o texto sagrado e de agir seja pacfica seja

    violentamente a partir dessa interpretao, os milenaristas manifestam, grosso

    modo, a sua vontade salvfica segundo duas posies, a saber, a de esperarem

    convictamente a vinda ou a de se prepararem activamente para a consumao do

    reino prometido de justia, paz e abundncia, que dever preceder um estdio

    ulterior, esse sim, final da histria do mundo terreno, correspondente, na viso de

    Joo, descida dos cus da Nova Jerusalm (Apoc. 21).

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    Como se pode verificar, o conceito de milnio, apesar da sua simples

    derivao etimolgica e originria determinao semntica, reveste-se de subtilezas e

    complexidades acrescidas que derivam: (i) quer das divergentes interpretaes dos

    textos proftico-apocalpticos que esto na origem daquelas duas atitudes sectrias,

    (ii) quer dos prprios contributos tericos de pensadores e autores alinhados por uma

    viso teleolgica-transcendente da histria, (iii) quer ainda das propostas de

    interpretao dos estudiosos e exegetas do fenmeno milenarista.

    A irresistvel atraco pelo tempo futuro , portanto, uma modalidade do

    pensar e do agir que, na tradio ocidental, adquiriu uma forte colorao escatolgica

    por via da influncia duma crena original de entre as vrias crenas religiosas dos

    povos da antiguidade do povo judaico: a de se ter auto constitudo e auto

    proclamado como o agente humano da realizao de um plano necessariamente

    benigno e salvfico do Criador do Mundo, tido pelo nico e verdadeiro Deus. Da

    que, talvez, a concepo providencial, segmentada e apocalptica da histria, assente

    na ideia de tempo linear, progressivo, apotetico-finalista, e que conheceu larga

    fortuna no ocidente, tenha por original ilustrao mtica a crena semita numa

    aliana, que narrada no captulo 17 do Gnesis, firmada entre Deus e um

    descendente de No, Abro, depois rebaptizado Abrao, o pai dos povos, a quem foi

    prometida a posse futura de uma terra de segurana e abundncia.

    So os profetas da poca da invaso sria e, depois, do exlio, Isaas,

    Jeremias e Ezequiel, que do nfase e promovem esta forte mitificao da vinda do

    Messias-Salvador. Cerca de seis sculos depois de Isaas, por volta do ano 165 a. C.,

    outro profeta, Daniel, compor aquele que considerado o mais antigo e completo

    apocalipse cannico do antigo testamento, revelando porque a revelao lhe foi

    dada tambm em sonhos ao rei que oprimia ento o seu povo, Nabucodonosor, o

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    sentido dos dois sonhos que este tivera e que o deixara to intrigado. Esses sonhos

    reais, envolvendo, respectivamente, (caps. 2 e 7) quatro animais e uma esttua

    polimrfica, simbolizariam, na interpretao do profeta, a queda dos quatro grandes

    imprios terrestres que se sucederam no Prximo Oriente ( e que a exegese bblica

    identifica com o Assrio; o Persa; o Helnico, de Alexandre Magno; o Romano), e

    que deviam preceder a iminente fundao do quinto, o ltimo, de inspirao divina.

    O estudo de Norman Cohn, circunscrito a movimentos milenaristas que

    despontaram no norte da Europa ao longo da Idade Mdia, por de mais esclarecedor

    quanto s potencialidades revolucionrias da interpretao literal da profecia

    atribuda a So Joo. De 431 em diante, isto , aps o Conclio de feso, a crena no

    milnio inspirar, sobretudo, sentimentos religiosos populares e ser devidamente

    explorada e utilizada por auto-proclamados profetas iluminados e guias messinicos

    como eficaz expediente ideolgico para animar prticas religiosas heterodoxas, ergo

    herticas, e conduzir revoltas sociais protagonizadas pelas famintas e crdulas legies

    de pobres a quem fora prometido, pelo Cristo-Redentor, o reino dos cus. No de

    estranhar, portanto, que a teologia escolstica medieval, com S. Toms de Aquino

    (1224/25-1274) cabea, tenha reiteradamente reprovado qualquer veleidade de

    explicar o curso da histria humana com base em interpretaes profticas,

    incentivando, antes, a auto-vigilncia ideolgica contra qualquer insidiosa irrupo

    mental utpica-quilistica.

    Mas o esprito da utopia no aprisionvel e sopra quando e donde menos se

    espera. No fim do sculo XII, o monge cisterciense Joaquim abade do mosteiro de

    Curazzo, na Calbria, onde nascera em 1135, e fundador, em Fiore, de um mosteiro e

    de uma ordem monstica que perdurou at 1570 formulou, a partir do intenso

    estudo das Escrituras, e com o benefcio de vrias iluminaes espirituais, uma leitura

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    salvfica e proftica-utpica da histria da humanidade. E f-lo sob o estmulo e com

    o prprio beneplcito do Papa Lucius III, dentro do corpo institucional e doutrinal da

    Ecclesia Romana, de que era devoto insuspeito, sem nunca ter sofrido, ao longo de

    toda a sua vida, a reprovao e o estigma da prtica de heresia.

    sua maneira, Joaquim de Fiore foi uma espcie de filsofo da histria

    empenhado em subministrar um sentido lgico e uma explicao coerente do curso

    temporal do mundo. Para tal, fundou toda a sua teoria acerca do significado do devir

    histrico num princpio de razo elementar, capaz de discernir o propsito da ordem

    passada, presente e futura das coisas humanas. Claro que no sculo XII europeu esse

    princpio de razo no podia ser suficiente nem imanente, mas necessariamente

    transcendente, induzido da teologia crist e do contedo narrativo da Bblia, do livro

    matriz que enformava toda a verdade essencial acerca da histria do mundo, dos

    desgnios de Deus e da sua progressiva revelao. Para Joaquim de Fiore,

    condicionado que estava pelos "dolos" do seu tempo, a Bblia cannica, a que foi

    sendo fixada pelos diferentes conclios, era o livro em que Deus fizera escrever a sua

    vontade e feito comunicar a sua una e tridica natureza de Pai, Filho e Esprito Santo,

    mas tambm o livro em que cripticamente anunciara um plano de progressiva

    iluminao ecumnica que requeria ser decifrado. Nele se continha a smula da

    histria do passado espiritual do gnero humano e, simultaneamente, a chave da sua

    histria futura, a qual, em ltima anlise, s podia ser coerentemente compreendida e

    interpretada luz daquela vontade e daquela natureza divinas.

    A histria estaria assim dividida em trs fases ou trs estados (status): o do

    Pai, o do Filho e o do Esprito Santo. Cada um destes trs estados dividir-se-ia em

    sete perodos (e o nmero sete, que j havia sido utilizado por S. Agostinho para

    estabelecer a sua prpria cronologia do mundo, tem o seu fundamento bblico por

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    analogia com os sete dias da Criao), os aetates, cada um deles designado pelo

    nome de uma personagem clebre da histria sagrada.

    discordante e impura vida activa estaria, portanto, para suceder a

    concordante e pura vida contemplativa praticada pelo novo homem espiritual, um ser

    de sabedoria e paz, sintonizado com a recta lei de Deus e liberto da servido das ms

    inclinaes. peremptria a convico de Joaquim acerca do futuro estado do

    homem, quando afirma: "Ns no seremos o que fomos, mas principiaremos a ser

    outros".

    afinal uma convico fidesta no compassado e benigno devir da histria,

    na ascenso faseada da humanidade em direco ao bem e felicidade teleolgicas,

    que, margem da doutrina oficial da igreja romana de raiz agostiniana e de

    essncia tomista , despertou e legitimou as expectativas de mudana e as

    movimentao sociais dos deserdados ao longo da Idade Mdia. Mas tambm uma

    convico que viria ulteriormente a secularizar-se em teorias de emancipao social e

    em filosofias do progresso, anunciadoras de um tempo ltimo e perfeito da durao

    da histria, e que, entre muitas outras concepes postuladas pelos livres-pensadores

    do sculo XVIII e XIX, vo desde a representao do estado da religio positivista de

    August Comte comunidade fraternal de Robert Owen, sociedade comunista

    esboada por Karl Marx, passando pelo projectado estado Prussiano de Hegel a

    consumao acabada da Ideia absoluta (Ideia, que o princpio hegeliano de

    explicao da objectivao do mundo).

    No Portugal de seiscentos, a tese proftica-utpica da quinta monarquia,

    inspirada em fontes bblicas, teve, como se sabe, na pessoa do padre jesuta Antnio

    Vieira (1608-1697) um dos seus mais estrnuos defensores. Mas no foi o nico. No

    sculo XVII, a conjuntura ideolgica, poltica e social do nosso pas foi

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    particularmente propcia a sondagens visionrias sobre o devir da ptria e do mundo.

    As posies proftica-milenaristas de teor lusocntrico que se divulgaram e

    propagaram em Portugal, sobretudo nos decnios que decorreram entre 1630 e 1670,

    isto durante o perodo que mediou entre o crescendo da expectativa popular da

    restaurao e a fase da reconsolidao da soberania nacional, caracterizaram-se pela

    irrupo mais ou menos generalizada duma eufrica esperana messinica-

    nacionalista e por aquela voltagem ideolgica revolucionria indutora de utopismo -

    j registada, por exemplo, na Crnica de D. Joo I de Ferno Lopes.

    Sendo o milenarismo do jesuta portugus de tipo hermenutico,

    essencialmente derivado da leitura da Bblia, no que concerne s condies do

    advento ou instaurao do reino de mil anos dos santos (portugueses), ele aguardava

    por uma resoluo final da histria que nitidamente pressupunha uma interveno

    transcendente, providencial - na qual o Papa, o monarca e o povo portugueses

    desempenhariam um papel instrumental decisivo - e que daria incio idade de mil

    anos profetizada no Apocalipse.

    Como fervoroso catlico que era, Vieira procurou conformar o seu

    milenarismo utpico aos dogmas da Igreja, conformidade difcil de ser dialectizada e

    sustentada num sculo fortemente marcado pela intolerncia entre diferentes credos

    religiosos e particularmente feroz na perseguio movida aos judeus. Do ponto de

    vista eminentemente religioso, Vieira parece, portanto, conceber o quinto Imprio

    como sendo doutrinalmente uno, unidade no imposta, voluntariamente reconhecida

    pela revelao universal da suprema verdade na pessoa de Cristo, mas permevel

    diversidade de culto. Do ponto de vista existencial seria um estado caracterizado pela

    pr-libao das glrias futuras, governado pelas leis fsicas da vida temporal, uma

    espcie de condio ontolgica refundida, digamos assim, um preldio terrestre da

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    eterna bem-aventurana, no qual, os homens, conhecendo finalmente uma paz

    perptua de mil anos, viveriam saudveis e dotados de uma longevidade excepcional:

    entregues s suas actividades normais, pratic-las-iam de modo fraterno e santificado.

    Num apontamento que Vieira deixou incompleto e que foi recentemente editado, em

    apndice, na Apologia das Coisas Profetizadas pode ler-se: " A 1 felicidade

    temporal deste bem-aventurado Reino ser aquela sem a qual nenhuma outra se pode

    chamar verdadeira felicidade, e a qual em si mesma abraa todas ou quase todas as

    que se podem gozar nesta vida, que a paz. Haver paz Universal em todo o mundo,

    cessaro as guerras e armas em todas as naes e ento se cumpriro inteiramente as

    profecias to multiplicadas em todos os profetas to variamente explicadas pelos

    expositores, e nunca bastantemente entendidas" (Vieira 1994: 287). Essa paz

    promoveria uma tal revoluo de hbitos, seria acompanhada por uma tal mudana

    no esprito da vida, que na terra ver-se-ia cumprida finalmente a profecia de Isaas

    que refere a convivncia do lobo com o cordeiro.

    No contexto da cultura literria portuguesa do sculo XX, Fernando Pessoa

    (1888-1935) retomou com impressionante vigor e com consciente deliberao a

    utopia-proftica-milenarista (ou, nas suas palavras, o mito) do quinto imprio,

    requalificando o seu contedo, alijando-o das suas mais imediatas implicaes

    bblico-teolgicas e procurando fundament-lo no como mera possibilidade formal,

    mas como possibilidade objectivamente real. semelhana de Vieira, tambm

    Pessoa recorda para demonstrar, reprova para desmistificar, lamenta para sublimar,

    exorta para estimular, prediz para utopizar. Pessoa, na linha do pensamento de Padre

    Antnio Vieira, - e esse o sentido da segunda parte da sua obra potica Mensagem -

    recorda ento para demonstrar aquilo que poderamos designar a funo utpica do

    conhecimento do "mar portugus", entendido este mar no tanto como uma expresso

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    adjectiva da grandeza nacional, mas antes como uma dupla alegoria representativa (i)

    das possibilidades reais, das possibilidades possveis - digamos com nfase

    pleonstico -, as que conduzem efectiva descoberta do novo, mas tambm (ii) das

    possibilidades simblicas de transcendncia do mundo dado, do mundo histrico, o

    dos (quatro) imprios materiais. Ora, de entre os cinco nacionais smbolos,

    enunciados por Pessoa, que configuram o sonho (utpico) portugus, o segundo tem

    por ttulo O Quinto Imprio. Porm mais do que procurar definir ou determinar a

    sua possvel natureza, este imprio -nos apresentado como uma imprescindvel

    figurao do descontentamento anmico, como uma necessidade lgica ou causa final

    da indagao humana, como uma realidade possibilitada pela idealizao activa, anti-

    conformista, obreira do desejo profundo ou da viso da alma.

    No contexto da cultura portuguesa da segunda metade do sculo XX,

    Agostinho da Silva quem recebe e quem magnifica o testemunho da esperana

    milenarista, quem prolonga o olhar de um Vieira e de um Pessoa num indefectvel

    futuro de jbilo e de apaziguamento existencial trazidos ao mundo pelo concurso,

    pelo exemplo ou pelo "sacrifcio" da nao portuguesa. Melhor dizendo, da nao

    ideal portuguesa. Daquela que, nas suas grandezas reais/simblicas, mas tambm nas

    suas faltas simblicas/reais, Agostinho historiou/mitificou at exausto em escritos

    vrios, sempre com o assumido propsito de apresent-la como pea instrumental ou

    cifra de um processo csmico que, necessariamente e com o concurso da liberdade

    humana, h-de finalizar com a esperada redeno do mundo. Na pura tradio, de

    raiz hebraica, proftica-messinica da cultura ocidental, a nao portuguesa, pelo que

    fez e deve fazer, pelo que cumpriu e deve continuar a cumprir, vale, tambm, para

    Agostinho da Silva, enquanto smbolo de uma esperana ou de um desejo ntimo de

    teor escatolgico: a histria, mas tambm a cincia, a filosofia, a literatura, a cultura,

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    todas as criaes do esprito humano interessaram-no enquanto frmulas de

    demonstrao ou auxiliares de conhecimento e de entendimento para a consumao

    desse processo, em que as melhores das idiossincrasias nacionais ou os mais

    positivos e significativos eventos da histria de Portugal - dos quais o navegar

    bolina pelo mar ignoto e sem fim sob o benefcio e orientao dos astros, o descobrir

    novas linhas do horizonte, o ligar e religar continentes separados, o unir e casar

    gentes e culturas distantes e desconhecidas entre si - configuram, pelo seu valor de

    revelao e de reconstituio planetria da ideia-utpica-limite-da-unidade-essencial-

    do-ser, o acontecimento simblico supremo. este Portugal de vocao messinica e

    milenarista, o Portugal do mito e o da utopia, ou talvez, em expresso mais ousada, o

    do mito utpico, e no o Portugal da ideologia e da histria poltica, este Portugal

    inspirado pela fora do mistrio e pelo jogo da descoberta, e no o Portugal agitado

    pela ambio do domnio e pelo jogo do poder imperial, este Portugal do ser e no

    o Portugal do ter, este Portugal de esperana, de viso, de irmandade, de sacrifcio

    voluntrio e silencioso, representado por figuras-modelo como o rei poeta D. Dinis e

    a Rainha santa Dona Isabel - (acolhendo no reino os franciscanos espirituais,

    discpulos de Joaquim de Fiore e propagadores do culto do Esprito Santo) -, mas

    tambm representado pelo Infante Santo - (expiando e redimindo, com o seu

    martrio, o maquiavelismo palaciano que trocou a razo de estado pelo amor fraterno,

    i.e. que trocou a preservao das fronteiras contingentes e limitadoras do imprio

    material pela fidelidade infinita liberdade do imprio do esprito) -, representado

    por Lus de Cames - (escrevendo sobre a Ilha dos Amores, e tomando-a no tanto

    como prmio da viagem ndia, mas antes como amostra de uma condio

    nostlgica-oracular, a do paraso a reaver) -, representada por Ferno Mendes Pinto -

    (o peregrino da aventura e da efabulao, de polimorfa identidade circunstancial,

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    vivendo segundo a 'metafsica do imprevisvel' em permanente estado de espanto e

    de superao da adversidade) -, este Portugal, o do Vieira e o do Pessoa, profetas

    do V Imprio - (transcendendo a "apagada, austera e vil tristeza", como diz o verso

    camoniano, dos tempos de medocre desvitalizao e asfixiante represso em que

    viveram, e apontando, por diferentes vias hermenuticas, outras possibilidades de

    ser) -, mas tambm o Portugal dos municpios, dos baldios, da boda comunitria, das

    festas do Pentecostes, das cortes consultivas, da governao democrtica e popular,

    da partilha pelos homens-bons da administrao das coisas pblicas, das descobertas

    geogrficas, da fruio positiva, aventurosa e contemplativa da vida, este Portugal

    ideal, disseminando-se pelos diferentes continentes ao longo dos sculos,

    sobrevivendo mais como lngua sem fronteiras do que ptria ou ptrias confinadas

    geografia do seu territrio, tudo isto que, no essencial, constitui o ncleo da

    identidade nacional prefigurador da ideia do V imprio de Agostinho da Silva. A

    histria de Portugal, melhor dizendo, uma certa histria de Portugal, mais

    assumidamente mtica do que real, opera como uma espcie de mnada prospectiva

    ou esboo da utopia do V imprio no pensamento de Agostinho, o qual confere,

    semelhana de Pessoa, maior valor de conhecimento lgica do mito - tomado como

    smula de uma verdade perene e desejada -, do que metodologia da histria -

    entendida como especioso e, em ltima anlise, subjectivo processo de reconstituio

    de uma irreconstituvel objectividade dos factos pretritos.

    O seu texto Considerando o Quinto-Imprio (1960) uma espcie de guia

    ou manual de instrues para os adeptos desse projecto, escrito no esprito mais

    espiritualmente empenhado do seu autor e onde se pode ler, como o eco de uma regra

    monstica, uma sistemtica de princpios gerais de organizao social e de aco

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    potencializadora da vocao de perfectibilidade e de transcendncia do ser humano.

    A escreve Agostinho.

    Teremos como ideal de governo o no haver governo, como o no havia no

    Paraso, e a toda a Histria veremos como a lenta e segura preparao, no pela

    sabedoria do homem , mas pela pacincia e a tenacidade de Deus, para que, passando

    por cima de todas as teocracias e de todas as aristocracias e de todas as democracias,

    cheguemos quela tambm soluo da antinomia governante-governado.

    Teremos como ideal de economia o no haver economia, como no a havia

    no Paraso, sendo apenas dever de cada um o florir como pode e direito de cada um o

    encontrar o que precisa: destruamos tambm aqui a antinomia de produtor e

    consumidor, de liberdade e segurana.

    Teremos como ideal de gente aqueles em que tambm se tiver destrudo a

    antinomia de criana e de adulto, de ignorante e de sbio, de homem e de mulher;

    esperemos que no Quinto Imprio no haja nem escolas nem livros nem casamentos:

    como no Cu.

    E teremos, finalmente, como ideal de pensar, donde tudo arranca, a fuso

    plena de sujeito e objecto um no-pensar. Para o pr em termos mais ou menos

    teolgicos, queremos ver do Pai e do Filho, o lao do Esprito que os une: ou de, na

    realidade, nos absorvermos na inconscincia dele. O que novamente traria a terreiro,

    desta vez sem heresia, o velho Joaquim de Flora, e seu Reino do Esprito-Santo e seu

    Imprio da Flor-de-Lis" (Silva 1989: 197-200).

    Bibliografia

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