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Para que um trabalho jurídico sobre economia da cultura? Considerações acerca de uma pesquisa concluída Agostinho Geraldo Gomes

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Para que um trabalho jurídico sobre economia da cultura? Considerações acerca de uma pesquisa concluída

Agostinho Geraldo Gomes

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Para que um trabalho jurídico sobre economia da cultura? Considerações acerca de uma pesquisa concluída

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Pode causar surpresa em alguns o fato de que um trabalho, uma pesquisa de natureza jurídica, ocupe-se de maneira extensa e sistemática do tema cultura, de manifestações artísticas, expressões culturais e temas afins. Não raro ainda persistem, já quase ao fim da segunda década do século 21, maneiras de pensar próprias dos séculos 18 e 19, isto é, em alguns ainda persiste a ideia de que a cada área do saber compete um objeto exclusivo e próprio de pesquisa. A trans-modernidade ainda não lhes alcançou, não lhes faz eco ou sentido.

Estranha-se que essa atitude de resistência atinja inclusive (e não em pequeno núme-ro) agentes culturais, fazedores de cultura e tantos outros que, adotando falas para (des)explicarem curadorias, artes, ocupações, etc., não buscam senão confirmar arcaicas linguagens de distanciamentos entre os que sabem e os que não sabem.

Esses discursos deixam transparecer a insistência na especificidade, posse e autoridade que conferem, a apenas algumas esferas do saber, competência e ex-clusividade na abordagem de determinados e específicos temas, neste caso a da cultura. Por sorte, cada vez menos são levados a sério esses discursos que ainda se ressentem da nova racionalidade calcada na transversalidade dos saberes, das falas, das percepções e das abordagens. No século 20, vários muros caíram, entre eles os que delimitavam os saberes em áreas estanques e incomunicáveis.

Superadas essas resistências em sistemas conceituais de racionalidade positiva e possessiva, a abordagem dialogal entre economia, cultura e direito, como é o caso da pesquisa “Quanto vale a cultura?”1, sobre a qual aqui se apresenta uma breve reflexão, é apenas uma das múltiplas possibilidades em que a transdimen-sionalidade, a indagação transversal, a dialogicidade, entre outras várias áreas do saber, podem ser colocadas a serviço da emancipação humana, pelo viés do esclarecimento, da busca pela melhor luz e pelo melhor conceito possível num contexto de aqui e agora.

Para contemplar uma fala já concluída (no caso, a pesquisa apresentada) e refletir sobre ela, é preciso ter com clareza o principal objetivo de todo trabalho acadêmico, qual seja: pacificar uma angústia, um conflito. Porém, não pode ser essa angústia um mero sintoma conceitual-afetivo do pesquisador. O trabalho acadêmico clama

1 Quanto vale a cultura? Uma análise jurídico-empírica do adimplemento dos direitos culturais pelas unidades federativas do Brasil. Dissertação (mestrado em Ciências Sociais Aplicadas). Faculdade de Direito da Universidade Metodista de Piracicaba (Unimep), 2016.

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Apropriar-se criticamente das informações obtidas pelos Relatórios Resumidos da Execução Orçamentária (RREO) das Unidades da Federação, nos exercícios fiscais de 2012, 2013 e 2014, buscando uma análise e um questionamento sistemáticos sobre a problemática dos investimentos públicos em cultura no Brasil fora o objeto precípuo da pesquisa. O que significa dizer que não seria por mero levantamento e tabulação de valores que se chegaria a termo em tamanha indagação – muito ao contrário, a complexidade do tema exigiu complexidade de abordagem.

Assim é que o leitor encontrará, na pesquisa efetuada, não somente embasamento teórico-jurídico acerca do que sejam políticas públicas de adimplemento de direi-tos fundamentais (e o que de fato são os direitos fundamentais, notadamente os culturais), mas também um olhar sobre as práticas e procedimentos necessários para as ações e decisões administrativas que envolvem uma participação deli-berativa/autorizativa do poder legislativo nos planos plurianuais, nas diretrizes orçamentárias e nas efetivas leis orçamentárias que dão legalidade e escopo a toda ação do poder executivo.

Ainda na esfera jurídico-política, as indagações acerca dos desafios orçamentários, das restrições pelas possibilidades fáticas (escassez de recursos) a que os direitos sociais estão sujeitos em países em desenvolvimento, o acerto, ou não, da parti-cipação do poder judiciário (judicialização) na apreciação de políticas públicas de direitos sociais e outros temas conexos à eficácia e efetivação de direitos sociais fazem-se necessariamente presentes na pesquisa. Mais que isso, as restrições e os desafios orçamentários são submetidos a uma verificabilidade empírica, através da qual, em fundamentada e ponderada tabulação, os números e os índices obtidos transmutam-se em textos reveladores dos verdadeiros discursos do administrador público, discursos a partir dos quais se pode constatar a negatividade material com a qual de fato, em geral, têm sido tratados os direitos culturais no Brasil.

Ingênua, contudo, seria uma reflexão que, buscando denunciar a negatividade material a que estão submetidas as políticas públicas de adimplemento de direi-tos culturais, não refletisse sobre o que de fato se entende por cultura, sobre os direitos fundamentais a ela correlatos e, principalmente, sobre as negatividades presentes na própria cultura e nas ações culturais.

A busca pela conceituação do que se entende por cultura a partir do saber jurídico, e abrindo-se este na indagação e no questionamento em várias direções e dimensões de outros saberes, viabilizou, no trabalho em questão, a decantação dos ruídos pre-sentes nos discursos e nas falas sobre cultura que, travestidos em emancipatórios, sob a roupagem de um relativismo estéril, de um igualar das falas apenas porque

por publicidade, portanto não pode ter por origem a particularidade, a mera vaidade de um eu inquieto. Não, na contemporânea multiplicidade não há como não partir de algo que, do começo ao fim, possa ser (e já o seja) coletivo.

As questões relativas às fontes de investimento em cultura, como bem salienta Hobsbawm, “são importantes não apenas para as pessoas que decidem sobre a distribuição de dinheiro para as artes, mas para todos nós” (HOBSBAWM, p. 79, 2013). Isso significa que, a despeito do enfado que uma análise e um estudo mais apurado sobre os orçamentos e os respectivos processos e procedimentos legais destinados à efetivação de políticas públicas culturais possam causar ao cidadão e ao leitor não acadêmico, refletir e debater sobre quanto e como são aplicados recursos públicos no âmbito das artes e da cultura é tema sempre coletivo, de grande relevância para a coisa pública (rex publica) e de primeira grandeza para o exercício da cidadania plena.

No Brasil tem sido, como já se tem visto há algum tempo, por via dolorosa o chamado por uma maior atenção às questões relativas aos orçamentos, gastos públicos, desvios de interesses e destinos das dotações orçamentárias, entre outras tantas lamentáveis questões relativas ao mau uso e ao desmando dos recursos do povo, do tesouro público.

Pode-se mesmo alegar que, tardiamente e ainda de forma incipiente, o cidadão brasileiro tem despertado para uma das principais funções que lhe compete: o controle da administração pública – o controle social que, mais que manifesta-ção em redes sociais ou em ocupações de espaços e ruas, exige o debruçar-se sobre contas, números, pautas, pareceres, planos, projetos, sessões e tantas outras desconfortáveis e insípidas realidades e dados que, por exigirem esforço, silêncio e determinação, são pouco ou quase nada afeitos à espetacularização da participação política que tanto agrada ultimamente.

Exatamente por meio dessa ação e desse controle social, pela via da reflexão e do trabalho investigativo e crítico, é que será possível a emancipação política da qual emergirá uma plena cidadania. Emancipação que não se confunde com libertação, vez que nesta a liberdade é consentida e naquela a liberdade é conquistada. Não há conquista sem esforços, e o principal deles é, sem dúvida, o esforçar-se para conhecer, isso porque não há poder sem saber (FOUCAULT, 2005). O empodera-mento político da sociedade civil se dá e se dará na medida em que, garantido o acesso aos saberes (conforme já o está constitucionalmente), deles se apropriem e de fato deles se utilizem tanto o homem comum, quanto o acadêmico, para a transformação dos contextos.

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são falas, escamoteiam e inibem a necessária constatação das implicações que determinam a diferenciação entre os conceitos de cultura-meio e cultura-fim.

Refletindo mais profundamente sobre esses conceitos é que se verificará que ambos falam em defesa da cultura, ambos navegam sobre oceanos de possibi-lidades de manifestações artísticas e de linguagens. Contudo, bem distintas são suas naus, bem diversos são seus lemes, bem outros são seus destinos.

Nas águas da cultura-meio, tudo é imenso, tudo está por acontecer e por vir, nada já está definido e nem é delimitado, tudo é um sendo; nelas, a incerteza é o marco fértil em que as identidades, as falas únicas, os silenciamentos, as censuras e os neomoralismos da “liberdade de fazer calar o outro”, próprios da cultura-fim na sociedade fechada, não encontram profundidade, nem peso, nem medida.

A cultura-meio, fruto da sociedade aberta por não ser identitária, não é excludente porque não se constitui por aplainamentos pela mediação de etnia, gênero, terri-torialidade ou por qualquer outra força narcísica de diferenciação. A cultura-meio jamais é passível de posse ou de autoria, pois é sempre processo aberto a releitu-ras, apropriações e recriações férteis, não cabendo nela e nem a partir dela negar, com mesquinhas clausuras, o que é garantido a todos: herança, legado, acesso universal a todas as formas de expressão, a todos os modos de criar, fazer e viver, enfim, ao ampliadíssimo universo de bens culturais expostos nos artigos 215 e 216 da Constituição Federal e que, por serem de tamanha extensão, carecem de melhor análise e estudo.

Sem que se aprofundasse nessas indagações, nesse aclaramento e esclareci-mento das concepções sobre cultura, as conclusões às quais se pudesse chegar sobre quanto e como se investe em cultura no Brasil correriam o risco de se tornarem meras opiniões, meras impressões de pouco ou nenhuma contribuição efetiva para o que de fato se espera e se busca para a sociedade civil brasileira: transformação, superação e emancipação.

O aclaramento no âmbito da pesquisa para a construção de um texto emanci-pador fora mediado pelo alinhavo e pelo diálogo com uma gama de autores que, embora advindos de diferentes tempos, áreas de saber e abordagens políticas, encontram-se perfeitamente em harmonia na formatação de um hipertexto que, fugindo e contrariando o senso comum de que toda ação e todo bem cultural é em si mesmo necessariamente pura positividade, defende a tese, dentre outras, de que não podem os direitos culturais ter a fundamentalidade alicerçada no princípio da dignidade humana.

Isso porque tal princípio, além de ser em si mesmo culturalmente construído e definido, pode ser (e na verdade já o tem sido) utilizado ideologicamente como regra de positividade moral para silenciar as manifestações sombrias inerentes ao inconsciente humano. É sempre em nome de uma dignidade que determinadas vigilâncias ou patrulhas civis e sociais questionam e querem fazer silenciar as artes que não se deixam domesticar pelo que é imposto como digno e moral por certas maiorias, como se tem visto recentemente no Brasil, fruto de uma sociedade fechada, intolerante à concretude do fato de que a arte e a cultura possuem uma parcela de negatividade que não pode ser eliminada (COELHO, 2008).

A constatação desses e de outros equívocos de compreensão e atuação no âmbito cultural, tanto por parte da sociedade civil, quanto também por um significativo número de agentes e fazedores de cultura, é um grande indicativo de que tantos outros, de mesmo ou maior grau e natureza, também podem estar (como de fato estão) presentes na esfera da administração pública. Equívocos que, para além das mazelas e inocências político-partidárias, bem demonstram a falta de cultura na lida e no trato da própria cultura.

Por fim, ao demonstrar pela análise das execuções orçamentárias a concretude e a realidade das políticas públicas em cultura no Brasil, mais do que concluir que os investimentos nessa área são sistematicamente estigmatizados pela negati-vidade material, constata-se, por inequívoca verificabilidade, que o administrador público investe menos do que poderia investir em cultura. Além disso, os números e tabelas obtidos carregam de gravidade a percepção de que além de investir aquém do que poderiam, em geral, quando investem o fazem preferencialmente de forma a favorecer a cultura-fim, tão a serviço da sociedade fechada pelo viés da insistência em modelos de difusão cultural alicerçadas nas forças identitárias, nos nacionalismos, nos assemelhamentos, que mais não provocam senão novas maneiras de excluir, novas (velhas) formas de apartar o nós dos outros.

Contribuir com questionamentos e indagações para a prática efetiva de acessi-bilidade aos saberes, incluindo-se os saberes jurídicos e econômicos acerca da cultura e dos direitos culturais, visando a um efetivo apoderamento da sociedade aberta para o exercício da cidadania ampla, parece ser motivo suficiente para que se produza, não apenas este, mas vários outros trabalhos jurídicos sobre economia e cultura, principalmente porque “os interesses da cultura não podem ser deixados por conta do mercado” (HOBSBAWM, p. 80, 2013), nem exclusivamente da admi-nistração pública e, muito menos, de algumas vozes que, por reconhecerem-se maiorias, esquecem que a justiça e a democracia do estado de direito social estão a serviço principalmente das minorias.

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Referências bibliográficas

COELHO, Teixeira. A cultura e seu contrário - cultura, arte e política pós 2001. São Paulo: Iluminuras, 2008.

FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: Nau, 2005.

HOBSBAWM, Eric. Tempos fraturados. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.

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