46
Agradecimentos No processo de confecção deste livro-reportagem nos deparamos com um imenso desafio. Que prontamente por nós foi aceito. Mas, como em toda caminhada, pessoas importantes cruzaram o nosso caminho. E gostaríamos de agradecer a cada uma delas. Parceiras deste filho que a quatro mãos foi acalentado e desenvolvido. Ao querido Carlos Lima, dono de uma história linda e marcante. Obrigado por compartilhar histórias de uma vida intensa e cheia de vontade. Ficamos eternamente gratos pela sua sempre disposição, acolhida e o sorriso. A Vanessa Pimenta o nosso eterno agradecimento pela entrevista que detalhou em miúdes como o "Aurora da Rua" funciona. Seu poder de descrição para nós foi de vital importância no processo. A Vânia, Rute, Elias, Seu Gerson, Denivaldo e a todos os moradores da Trindade. Obrigado pela confiança e receptividade. Esperamos ter sido merecedores de tal presente. A nossa querida orientadora Ana Carolina Castellucio pelos momentos de apoio, pelas sugestões e direcionamento a ser percorrido. Agradecemos de coração as dicas. Por fim, eu, João Aguiar Neto, um dos autores deste livro, gostaria de agradecer a duas pessoas que considero importantes no desenvolvimento do meu gosto para a escrita e a leitura. A minha mãe, Luciana Pinto Aguiar e ao meu eterno avô, João Adonias Aguiar, o meu eterno agradecimento. E eu Jaqueline Vaz, também autora deste livro, meus agradecimentos a Deus, minha fonte de energias positivas e acalento e a minha mãe, Deize de Lima Vaz sempre presente e incentivadora nos meus dias difíceis e me acompanhando em dias de sorrisos.

Agradecimentos - WordPress.com · igreja que em um primeiro momento irá decepcionar o visitante. A Igreja da Trindade, construída em 1739 e reconstruída em 1888 em conseqüência

  • Upload
    others

  • View
    0

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Agradecimentos - WordPress.com · igreja que em um primeiro momento irá decepcionar o visitante. A Igreja da Trindade, construída em 1739 e reconstruída em 1888 em conseqüência

Agradecimentos

No processo de confecção deste livro-reportagem nos deparamos com um

imenso desafio. Que prontamente por nós foi aceito. Mas, como em toda

caminhada, pessoas importantes cruzaram o nosso caminho. E gostaríamos de

agradecer a cada uma delas. Parceiras deste filho que a quatro mãos foi

acalentado e desenvolvido.

Ao querido Carlos Lima, dono de uma história linda e marcante. Obrigado por

compartilhar histórias de uma vida intensa e cheia de vontade. Ficamos

eternamente gratos pela sua sempre disposição, acolhida e o sorriso.

A Vanessa Pimenta o nosso eterno agradecimento pela entrevista que detalhou

em miúdes como o "Aurora da Rua" funciona. Seu poder de descrição para nós

foi de vital importância no processo.

A Vânia, Rute, Elias, Seu Gerson, Denivaldo e a todos os moradores da

Trindade. Obrigado pela confiança e receptividade. Esperamos ter sido

merecedores de tal presente.

A nossa querida orientadora Ana Carolina Castellucio pelos momentos de

apoio, pelas sugestões e direcionamento a ser percorrido. Agradecemos de

coração as dicas.

Por fim, eu, João Aguiar Neto, um dos autores deste livro, gostaria de

agradecer a duas pessoas que considero importantes no desenvolvimento do

meu gosto para a escrita e a leitura. A minha mãe, Luciana Pinto Aguiar e ao

meu eterno avô, João Adonias Aguiar, o meu eterno agradecimento.

E eu Jaqueline Vaz, também autora deste livro, meus agradecimentos a Deus,

minha fonte de energias positivas e acalento e a minha mãe, Deize de Lima

Vaz sempre presente e incentivadora nos meus dias difíceis e me

acompanhando em dias de sorrisos.

Page 2: Agradecimentos - WordPress.com · igreja que em um primeiro momento irá decepcionar o visitante. A Igreja da Trindade, construída em 1739 e reconstruída em 1888 em conseqüência

2

DESCOBRINDO A TRINDADE

Salvador esconde muitas surpresas, por ser uma cidade com nuances

bem distintas, o seu habitante não consegue vislumbrar tudo que a cidade

pode mostrar. Ruas, praças, locais dos mais diversos, compõem essa

identidade única que só Salvador possue.

Dentre esses achados, o morador ou visitante curioso percorrendo pela

Avenida Jequitáia sentido Feira de São Joaquim, se surpreenderá com uma

igreja que em um primeiro momento irá decepcionar o visitante.

A Igreja da Trindade, construída em 1739 e reconstruída em 1888 em

conseqüência de um incêndio que a destruiu quase que totalmente, só

restando as paredes externas revestidas de pedra. Na reconstrução, as

paredes internas da edificação foram erguidas com tijolo. As marcas desse

incêndio são visíveis na atual condição do local. A estrutura da igreja é

composta por uma nave única, com corredores laterais e superpostos por

Page 3: Agradecimentos - WordPress.com · igreja que em um primeiro momento irá decepcionar o visitante. A Igreja da Trindade, construída em 1739 e reconstruída em 1888 em conseqüência

3

tribunas, uma típica construção colonial. Como estes espaços são aproveitados

pelos moradores, veremos nas páginas a seguir.

O cartão de visita é um painel com a representação do que a

Comunidade da Trindade representa para os seus moradores, do lado

envolventes escadarias que dão acesso a duas vistas únicas, a primeira uma

panorâmica do local, onde se vê o Porto de Salvador, o Mercado do Peixe, o

Cais Dourado, e a maravilhosa Baia de Todos os Santos. A segunda é da

entrada da Igreja - cujo acesso se dá pelo pátio bem amplo - com a

predominância do rococó mas, deixando transparecer o desgaste evidenciando

assim, a sua idade centenária.

O visitante que chegar a comunidade irá ficar em dúvida por qual

caminho entrar. Se preferir ir em frente, passará pelo portão principal da igreja,

feito de madeira, desgastado pelo acúmulo dos tempos e a implacável ação da

maresia – um dos principais fatores de desgaste em se tratando de cidades

litorâneas – mas logo a visão estará impactada pelo interior da igreja, cuja

beleza arquitetônica fica ofuscada pela situação de degradação – o pátio

interno funciona como casa para os moradores – logo assim percebendo-se a

finalidade do local.

Mas, se preferir entrar pela direita encontrará uma frondosa mangueira,

árvore predominante no local que na época da safra brinda os moradores com

um banquete de frutas tenras e doces, contribuindo assim para que os

moradores se fartem com as mais diversas formas de receitas e quitutes.

Logo após a mangueira, o mundo comunitário da Trindade logo se

apresentará aos olhos menos acostumados com o local. Uma pilha com toras e

restos de madeira usados para o preparo dos alimentos e para a reciclagem,

logo ao lado da mangueira. Madeira que para os moradores é muito útil. Serve

de alimento para o fogão como também objeto para a venda. Um jardim bem

amplo rodeado por construções, onde acontecem as refeições, onde o jornal

“Aurora da Rua” é produzido, onde é feita a comida de cada dia. Estes e outros

locais serão descritos com mais profundidade nos próximos capítulos, todos

eles são vitais na condução do propósito comunitário do local.

Page 4: Agradecimentos - WordPress.com · igreja que em um primeiro momento irá decepcionar o visitante. A Igreja da Trindade, construída em 1739 e reconstruída em 1888 em conseqüência

4

A Igreja da Trindade acolhe hoje moradores em situação de risco,

pessoas relegadas por suas famílias, pessoas com distúrbios mentais e

problemas com drogas e álcool. Destas, algumas ocupam uma importância

estratégica na organização das tarefas do dia a dia, na articulação dos projetos

que são desempenhados e uma em específico (Vânia) atualmente é a

responsável pelo jornal “Aurora da Rua”. Mas todos, em sua maioria

contribuem para a manutenção da funcionalidade do local. Pessoas como o

Elias, se encarregam de organizar a planilha com as funções de cada um

durante a semana como também o responsável por preparar as refeições

oriundas dos mantimentos conseguidos com doações ou contribuições dos

moradores. Como isso se dá? Como as tarefas são desempenhadas, veremos

no próximo capitulo deste livro-reportagem.

Alguns dos moradores, os que se permitem um tratamento advindo do

reconhecimento de algum tipo de enfermidade, contam com o apoio de

psicólogos, terapeutas e anônimos que, voluntariamente, colaboram com o

projeto. Centenas de necessitados já foram atendidos ao longo desses onze

anos. Toda quinta feira acontece a Celebração onde a população de Salvador

é convidada a conhecer a igreja e os moradores em situação de rua são

recebidos e acolhidos com uma xícara de mingau e um pão, como acontece

em detalhes, mais adiante descreveremos.

A sobriedade nos relatos e a vontade de ser reinserido no ambiente

social e familiar são as tônicas destes moradores. Veremos relatados nos

depoimentos das personagens, histórias de vida, infortuítos, escolhas erradas,

o peso das más companhias, e uma vontade de querer ser acolhido e ser

amado nem que seja em um primeiro momento, anônimos. Mas todos ali se

conhecem por uma só janela, a da vontade.

O conceito, como funciona e quais são as pessoas que contribuem

para que a comunidade da Trindade consiga sobreviver mesmo com a falta de

apoio do poder público é o que tentaremos mostrar e relatar nestas páginas.

Como uma igreja abandonada se tornou desde 2000, um lugar seguro para

quem deseja viver em família e em sociedade.

Page 5: Agradecimentos - WordPress.com · igreja que em um primeiro momento irá decepcionar o visitante. A Igreja da Trindade, construída em 1739 e reconstruída em 1888 em conseqüência

5

A dignificação passa por um processo de resgate da auto-estima que

muitos ali quando chegam à Trindade julgam ou tem a certeza que a perderam.

A evolução do significado do amor, em especial do amor-próprio, da

valorização do ser humano, serão as mensagens que predominarão neste livro.

Todo ser humano tem direito a dignidade e a igualdade no tratamento1. Uma

sociedade mais justa e equânime passa por uma profunda revisão do que está

sendo feito, o que deve ser combatido e o que nunca deveria deixar de

acontecer.

Resolvemos escrever este livro por causa de uma empatia que nos foi

tomando conta desde o dia que os membros da comunidade que trabalhavam

no “Aurora da Rua’ vieram trazer suas experiências em tocar um jornal

comunitário que enfrenta várias dificuldades no seu dia a dia. Saber que os

moradores de rua fazem parte da produção de uma forma tão participativa foi

outro fator preponderante para desencadear a nossa curiosidade.

Um dos interlocutores do processo de intermediação das entrevistas e

visitas, Carlos Lima, foi uma peça fundamental para o nosso encantamento

com o propósito e dimensões do trabalho realizado na Trindade. Jaqueline e

Eu pensamos então em fazer o nosso livro-reportagem tendo como objeto a

Comunidade da Trindade e o “Aurora da Rua”.

Com entrevistas e depoimentos emocionados de pessoas que

passaram por situação de risco, fatores de solidão e exclusão pelas famílias

são revelados com sentimento – às vezes com melancolia – mostrando assim

um pequeno retrato do abandono, que tanto visita as memórias destes

cidadãos.

No processo de apuração, encontramos com Seu Gérson. Homem de

história marcante e emocionante – foi às lagrimas quando nos concedeu a

entrevista – cuja trajetória foi marcada por escolhas equivocadas e desilusões.

Carlos Lima, que agora é universitário, é outro dos personagens marcantes de

1 Declaração Universal dos Direitos do Homem

Page 6: Agradecimentos - WordPress.com · igreja que em um primeiro momento irá decepcionar o visitante. A Igreja da Trindade, construída em 1739 e reconstruída em 1888 em conseqüência

6

nossa narrativa, como a lucidez em momentos decisivos, faz a diferença entre

uma recuperação e a continuidade de um processo de dependência.

Emoção, esse é o ingrediente principal deste livro. Nos depoimentos

que colhemos, foi o que nunca faltou.

Sejam bem-vindos ao “Aurora da Trindade”.

Fui excluído

Da sociedade

Fui acolhido

Na Santíssima Trindade

O álcool tirou

Minha sobriedade

Sou um alcoólatra acolhido

Na Santíssima Trindade

Estou resgatando

Minha dignidade

Aqui na igreja

Da Santíssima Trindade

Aqui encontrei

Minha liberdade

E a misericórdia

Da Santíssima Trindade

Hoje paro e contemplo

Os olhos já não choram mais

Quem chora é o coração

Page 7: Agradecimentos - WordPress.com · igreja que em um primeiro momento irá decepcionar o visitante. A Igreja da Trindade, construída em 1739 e reconstruída em 1888 em conseqüência

7

Do meu irmão que encontrou a paz

Aqui a gente se entende

Somos todos iguais

Cantamos a alegria

Dividimos os ‘ais’

Um cantinho

Um calor

Um pedaço de pão

Muito amor...

Canção Igreja da Trindade

Page 8: Agradecimentos - WordPress.com · igreja que em um primeiro momento irá decepcionar o visitante. A Igreja da Trindade, construída em 1739 e reconstruída em 1888 em conseqüência

8

1 A DOCE TRINDADE

Reúne teu povo, ó doce Trindade,

reúne os eleitos, a humanidade,

para viver a união, do Espírito Santo teu dom,

para louvar bendizer e cantar teu Amor,

para louvar bendizer e cantar teu Amor!

...

Doce Trindade, doce ternura,

Te adoramos de todo coração!

Nós te pedimos, pro Povo da Rua,

Nunca lhe falte um pedaço de pão...

Glorificamos, humildemente,

Nossa dormida sobre o papelão.

E te louvamos, agradecendo,

Tua acolhida e o teu perdão!

(Canção da Trindade)

Como já visto anteriormente, a Igreja da Trindade é um local que por

aparência é abandonado, mas que traz uma amostra do nosso país. Este, que

com a sua evolução está se tornando cada vez mais, uma réplica europeia,

tomada pelo consumismo, o luxo e a frieza dos relacionamentos.

Dentro daquele espaço de paredes rebocadas, porém ásperas, a Igreja

da Trindade nos traz a primeiro momento uma impressão de uma imagem fria e

desamparada, como se fosse mais um daqueles casarões desativados, como

encontramos aos muitos na Cidade Baixa nas ruas de Salvador. Mas, este

local tão simples e sem as caprichosas decorações faustosas como

Page 9: Agradecimentos - WordPress.com · igreja que em um primeiro momento irá decepcionar o visitante. A Igreja da Trindade, construída em 1739 e reconstruída em 1888 em conseqüência

9

encontramos nas igrejas católicas, nos comove e emana uma sensação única,

divina, acolhedora e confortante.

Ao entrar na igreja há uma recepção agradável por parte dos

moradores que sempre estão a fazer uma atividade. Adentrando por uma porta

rústica e visivelmente marcada pela ação do tempo, deparamos com um

grande salão, com bancos de madeira iguais aqueles que sentamos na

pracinha. É nítido observar nas paredes dianteiras armários, objetos pessoais,

colchões de pessoas que ali moram. Pessoas que residem dentro da igreja e

que dormem no mesmo local do altar e onde fazem as suas celebrações

religiosas.

Cheio de armários identificados, pois cada morador possue seu local de

acondicionamento dos seus pertences, roupas, fotos pessoais ou de familiares

e peças de grande valor artístico feito à mão. Uma área que necessariamente

resgata o sentido e o espaço que poderia ser a sua casa, o seu cantinho e

morada.

Ainda explorando os detalhes, ao meio, está o altar ornamentado por

velas acessas, produzidas na própria igreja e comercializadas diariamente ou

em eventos festivos. Também é muito forte a criatividade artística notável em

uma grande pintura, cujos personagens são pessoas negras – uma mensagem

subliminar bem suave - ao redor da mesa farta retrata com os olhos da

exclusão o quadro “Santa Ceia” 2 em que Jesus e seus apóstolos dividem o

pão e o vinho. É possível encontrar no espaço mais pinturas, todas elas com

personagens que possuem as mesmas características, afirmando como a

população de Salvador, constituída majoritariamente de negros do que

brancos, trata os que são excluídos pela sociedade.

2 Quadro pintado por Leonardo da Vinci – atualmente no Museu du Louvre - Paris

Page 10: Agradecimentos - WordPress.com · igreja que em um primeiro momento irá decepcionar o visitante. A Igreja da Trindade, construída em 1739 e reconstruída em 1888 em conseqüência

10

Outro ponto a ser destacado, é a cozinha. O espaço que abastece os

moradores da Trindade. Um grande fogão a lenha composto por muitas toras

de madeira que as próprias pessoas que ali vivem trazem para a comunidade,

é o que alimenta o fogo para preparar as principais refeições. É possível

observar no pequeno espaço, enormes panelas, uma pia com alguns copos,

pratos e talheres. Os utensílios não são suficientes para todos, tendo a

necessidade de um revezamento entre todos.Tudo isso organizado por uma

planilha que organiza o dia de cada morador colaborar com o preparo das

refeições.

“Preferimos um fogão a lenha, pois ele cozinha muito mais rápido, já que

a porção dos ingredientes tem que ser a maior possível para alimentar a todos

e também de acordo com o que temos disponível no dia. Aqui todos cozinham,

mesmo quando o prato do dia não sai muito bom, comemos assim mesmo”,

complementa um residente da comunidade.

Page 11: Agradecimentos - WordPress.com · igreja que em um primeiro momento irá decepcionar o visitante. A Igreja da Trindade, construída em 1739 e reconstruída em 1888 em conseqüência

11

O morador e também um dos responsáveis pela administração da igreja

Carlos Lima3, descreve um pouco da sensação das pessoas que visitam a

Trindade: “No primeiro momento, você é imbuído de um encantamento com

lugar, mas ao vivenciar o cada dia, você observa as necessidades que

passamos e a luta para se conseguir a noite digna”.

Mesmo que essa palavra – encantador – seja um tabu para os que

vivem ali dentro, para os visitantes é um local cativante, embora não se

imagina o que é feito por aqueles que necessitam do local para poderem se

manter. As celebrações religiosas ocorridas todas as quintas à noite e nas

manhãs de domingo é diferente da maioria das igrejas. A “celebração”,

diferentemente de uma “missa” traz um ritual de integração, de músicas e da

participação de todos, onde a acolhida é destinada a todos que visitam a

Trindade.

São enfatizadas as emoções em todas as celebrações. O sentimento

toma conta do local, e as palavras são ditas de uma maneira que evidencia a

força da mensagem. Em vários momentos, percebemos a intensidade de um

desejo de internalidade, reforçado pelas palavras de Carlos Lima “É tudo de

dentro para fora”.

Durante a realização da celebração nas noites de quinta, no meio do

grande salão ficam as enormes panelas de mingau e cestos com pães. Tudo

conquistado através da luta diária dos moradores que eram das ruas e também

produzidos por pessoas como o Elias, encarregado da cozinha e exímio

cozinheiro. A celebração começa com todos rodeados dos alimentos e dos

objetos de conotação religiosa, ao som de músicas e de instrumentos como o

violão e os timbaus. Também estão presentes, pessoas que ajudam a

administrar a igreja com um pároco e o Irmão Henrique no comando.

Aos visitantes, existe o momento de se apresentar. Ninguém fica “à

parte e sim faz parte” como mais um morador e mais um integrante da família

Trindade. Nos intervalos das musicas é lido entre as pessoas um trecho dos

3 Nome fictício para preservar a identidade da fonte (pedido)

Page 12: Agradecimentos - WordPress.com · igreja que em um primeiro momento irá decepcionar o visitante. A Igreja da Trindade, construída em 1739 e reconstruída em 1888 em conseqüência

12

salmos 21, 22, 23; depois em cada intervalo todos expressam seus

agradecimentos por pedidos alcançados e súplicas por aqueles que estão

passando por um momento difícil, tendo o afago e o acolhimento dos outros.

Tudo é repartido, inclusive os momentos difíceis.

Todos são ouvidos, expressam seus sentimentos e fazem desse

momento algo muito forte, tocando os corações dos envolvidos. Assim, seguem

um caminho diferente das demais missas, que sempre se apresentam com o

mesmo ritual emblemático da Igreja Católica.

O irmão Henrique, sempre presente nas celebrações, conta as histórias

de suas peregrinações e contribui com palavras de fé e sabedoria no ato

ecumênico. Ele é um monge francês e sua missão começou em 1989 quando,

recém-chegado a Salvador, resolveu morar nas ruas para poder conhecer de

perto o drama das pessoas que vivem nessa situação. Até então, a sua

contribuição era a de levar alimentos, cobertores, roupas e, através de orações,

conforto aos desabrigados.

Recentemente o irmão Henrique, caminhou ao santuário de Goiás, e

conheceu os mosteiros trinitários e espaços de vida contemplativa.

Descrevendo em seu sotaque francês, ele contou durante a celebração de

como foi a sua peregrinação. O irmão Henrique e demais pessoas que o

acompanharam, nos conta que visitou comunidades e foi ao mosteiro da

Anunciação do Senhor e foram acolhidos pelos irmãos que vivem no mosteiro.

Também nos relatou, durante o momento da celebração, sobre as

suas caminhadas por lá, durante as andanças eles tiveram que subir uma

montanha e passaram a noite no alto dela e no meio da mata perto de um

complexo federal, contaram com a ajuda dos guardas que deixaram que os

dormissem por lá. No dia posterior depois de um dia cansativo, também

contaram com a ajuda de uma moradora que os acolheram em sua casa.

Passaram noites em outras igrejas, foram acolhidos por fazendeiros, estes que

também se sentiram motivados a seguir a peregrinação, e viveram a

experiência da devoção até chegar ao Santuário de Trindade em Goiás.

Page 13: Agradecimentos - WordPress.com · igreja que em um primeiro momento irá decepcionar o visitante. A Igreja da Trindade, construída em 1739 e reconstruída em 1888 em conseqüência

13

Ressaltaram a emoção ao pisar no Santuário de Trindade em Goiás, e

sentiram a benção de Deus em estar naquele local. Descobriram que existem

muitas pessoas boas que os ajudaram nos momentos de frio e fome. Também

observaram que este Brasil guarda riquezas muito belas, e somente quem tem

o olhar sensível e otimista consegue enxergar lugares que praticam a

solidariedade e o amor ao próximo.

Depois de todos os cânticos, da comunhão da hóstia e do vinho, é

chegada a hora da alimentação, fruto do trabalho coletivo e digno. Estes

associados da fé que movimenta estes moradores que viviam nas ruas, a

situação deplorável, o sentimento de indiferença e exclusão destinado aos que

passam por qualquer intempérie, fato comum em nossa sociedade. A esta fé

que é o elemento fundamental para o reforço de uma afirmação latente na

vontade de uma reinserção por meio da dignificação do trabalho e a revisão de

valores e condutas realizados na Trindade.

Na celebração da Trindade, os votos de unificação de pensamento

aparecem na despedida do culto. Abraços e apertos de mão fraternos, aliados

a uma mensagem de amor ao próximo fazem parte do repertório. Diferente das

missas ortodoxas, enfadonhas para algumas pessoas, como a maioria das

igrejas católicas, ao exemplo a Igreja do Rosário e Nossa Senhora das Mercês,

que por ser um ritual muito extenso e cansativo, a integração entre os

presentes não se dá de uma forma espontânea, mas sim protocolar.

“... Caminhemos a Terra Santa, Doce Trindade, da Fé e do Amor...”.

Trecho de um cântico da Trindade

O trabalho da Igreja da doce Trindade, assim como diz a letra de um

dos cânticos, deveria ter uma divulgação e visibilidade maior a um

conhecimento geral.

Page 14: Agradecimentos - WordPress.com · igreja que em um primeiro momento irá decepcionar o visitante. A Igreja da Trindade, construída em 1739 e reconstruída em 1888 em conseqüência

14

Embora, ela não seja iluminada como todas as outras, ilumina o

coração dos que a frequentam; mesmo que não seja ornamentada por imagens

de santos como as outras, mas sim a fé que move a coragem de brigar pela

conquista do pão de cada dia; mesmo que não tenha missas e sim,

celebrações que atingem o poder de reflexão e o nascimento do poder do amor

incondicional.

Doce Trindade, Nós agradecemos,

Porque nos tornaste, filhos da Luz!

Nós te agradecemos, por teu imenso amor,

Por nós Povo da Rua, povo sofredor!

Tu nos tiraste, da escuridão,

Para sermos luzes, diante das nações!

Cântico: Doce Trindade

Page 15: Agradecimentos - WordPress.com · igreja que em um primeiro momento irá decepcionar o visitante. A Igreja da Trindade, construída em 1739 e reconstruída em 1888 em conseqüência

15

2 A Trindade e seus Personagens

O “mundo” da Trindade é feito pelos seus personagens, gente que lá

chega em busca de um acolhimento ou de um prato de comida e um pedaço de

pão. Muitos deles nós encontramos em nossas visitas, nos emocionamos com

relatos de pessoas que encontraram naquele local um novo sentido de família.

As mais diversas histórias de vida, contadas com o arrependimento de

ações precipitadas ou da velha influência das más companhias, fazem parte

dos vários cenários que tomamos como fio condutor deste capítulo.

Pessoas como Carlos Lima, que nas nossas conversas na Trindade se

mostrou um pouco arredio em um primeiro momento, logo depois nos expôs a

uma história de vida tão rica, que mescla passagens de sofrimento, outras de

resignação, mas que nunca perdeu a vontade de desenvolvimento.

“Eu nasci em Mossoró no Rio Grande do Norte. Meu pai era encanador

e minha mãe costureira. Meus pais trabalhavam muito para dar conta de

Page 16: Agradecimentos - WordPress.com · igreja que em um primeiro momento irá decepcionar o visitante. A Igreja da Trindade, construída em 1739 e reconstruída em 1888 em conseqüência

16

sustentar eu e meus irmãos, apesar de boa parte do dinheiro que meu pai

ganhava ia para a bebida e o jogo.

O cara era muito viciado, mas eu tenho muitas boas lembranças dele.

Por causa do trabalho, minha mãe era muito ausente e quem cuidava das

coisas em casa era minha irmã mais velha. Até os sete anos de idade tive uma

vida relativamente normal, frequentava a escola, brincava, etc.

As coisas começaram a ficar esquisitas depois que minha mãe sofreu

um acidente. Ela foi atropelada por um carro enquanto voltava do trabalho de

bicicleta. O que eu sei é que ela ficou com sérios problemas mentais e não

pode mais trabalhar e muito menos cuidar da família.

- Sobre a relação do pai com a família

Meu pai, que já não era uma pessoa lá muito equilibrada, não deu

conta e saiu de casa, não abandonou a gente, mas não conseguiu mais ficar

com minha mãe que se tornou uma pessoa, digamos, extremamente emotiva

(pra não dizer violenta).

O caso é que em decorrência desses acontecimentos, deu-se início ao

tal processo de "ruptura dos laços familiares". Passei a viver em casa de tios e

por fim, após a morte de meu pai quando eu tinha 10 anos, fui morar com

minha irmã mais velha, a que cuidava da gente e que na verdade é a referência

materna que eu tive, mas que também não tinha uma vida muito estruturada.

Ela era casada com um cara que tinha o péssimo hábito de espancá-la.

Ela tinha três filhos e quando encheu-se de apanhar do marido largou tudo,

inclusive os filhos e eu, e foi embora com outro homem.

Mas ela voltou depois de algum tempo para buscar os filhos e eu.

- A imensa janela se abriu na vida de Carlos Lima:

Foi aí que eu caí no mundo. Junto dela e da família do cara com quem

ela estava agora, que também era família do corno veio, pois o cara com quem

ela foi embora era sobrinho do marido dela (confusão)...

Page 17: Agradecimentos - WordPress.com · igreja que em um primeiro momento irá decepcionar o visitante. A Igreja da Trindade, construída em 1739 e reconstruída em 1888 em conseqüência

17

Junto dela e da família do cara com quem ela estava agora eu fui parar

no Pará para trabalhar numa plantação de pimenta. Depois de quase virarmos

trabalhadores escravos partimos para São Paulo e nos instalamos debaixo de

um viaduto na cidade de São José dos Campos.

Eu dei uma drástica resumida nessa parte pra coisa não ficar muito

longa.

Enfim, eu estava oficialmente em situação de rua pela primeira vez

aos 12 anos de idade. Foi então que eu comecei a fumar pedra, depois fui

parar na capital paulistana onde virei ladrão também.

- Vida de infrator:

Nessa eu já havia me apartado de minha irmã que também já havia se

apartado do cara com quem estava depois que ele inventou que também podia

bater nela. Depois de muita pedra, cola de sapateiro (benzeno), bolsas de

velhinhas e casas de família depenadas, eu fui parar no SOS Criança (não

confunda com FEBEM, eu não fui preso, mas apenas recolhido e nessa época

eu até tinha decidido parar de me drogar e consequentemente de roubar) e

depois fui deportado de volta para Mossoró que a essa altura do campeonato

era pequena demais pra mim.

Fiquei algumas semanas na casa de um tio e decidi ir embora para o

Rio de Janeiro, afinal eu ainda não conhecia a Cidade Maravilhosa. Saí de

Mossoró com 5 reais no bolso, generosamente cedidos pela esposa de meu

tio, e um péssimo senso de direção.

Se não fosse o abnegado caminhoneiro que me deu carona de

Fortaleza-CE até Macaé-RJ eu teria parado no Pará outra vez. Então, com

apenas duas caronas, aos dezesseis anos de idade eu cheguei ao Rio de

Janeiro, onde moraria por mais 15 anos.

- Vivendo na Cidade Maravilhosa:

Não tive grandes dificuldades em para me estabilizar no Rio. Depois de

algumas noites na rua consegui trabalho, fiz amigos (amigos de verdade que

Page 18: Agradecimentos - WordPress.com · igreja que em um primeiro momento irá decepcionar o visitante. A Igreja da Trindade, construída em 1739 e reconstruída em 1888 em conseqüência

18

me ajudaram muito), voltei a estudar, comecei a fazer teatro e a vida seguia

bem melhor que a encomenda.

Eu morava num apartamento em Copacabana. Não é pra todo mundo

não! Com o passar do tempo fui adquirindo o hábito de beber

demasiadamente. Herança genética? Do álcool ao retorno às drogas foi um

pulo.

Das drogas às ruas outro pulo. Teve uma época na minha vida em que

eu ganhava por baixo uns três mil reais por mês, trabalho não faltava, mas eu

não conseguia sequer pagar o aluguel de 120 reais mensais do barraco na

favela da Rocinha onde então morava.

- As escolhas equivocadas:

Uma vida razoavelmente confortável jogada na latrina. Meus amigos...

Joguei todos na latrina também. Resumindo: ferrei com a porra toda! Acabei

parando numa casa de recuperação onde fiquei nove meses e de onde saí de

volta para as ruas.

Decidi então que era hora de sair do Rio. Talvez fosse uma boa

procurar a minha família. Fui parar em Salvador e acabei encontrando a

Trindade. Ou foi a Trindade que me encontrou? Não sei. Só sei que acabei

encontrando a minha família.

Eis a síntese da "estória" de minha vida. Não se engane com o humor

contido nessas palavras. A verdade é que, talvez por defesa, eu não entro em

contato de verdade com essa "estória".

Quando falo disso é como se estivesse falando de outra pessoa. Isso

tudo me soa muito distante. Não sou eu. É apenas algo que, por um acaso, fui.

Mas não me reconheço mais em nada disso. E deixe estar. É melhor assim”.

Com esse relato, de uma pessoa que enfrentou os reveses da vida, as

mazelas são expostas à medida que vamos adentrando nos relatos intensos de

uma trajetória marcada pela vontade de ter uma vida melhor e de que a

sociedade o visse com outros olhos.

Page 19: Agradecimentos - WordPress.com · igreja que em um primeiro momento irá decepcionar o visitante. A Igreja da Trindade, construída em 1739 e reconstruída em 1888 em conseqüência

19

Mas o arrependimento, na maioria das vezes, é tardio e uma

aproximação com seus entes queridos é mais complicada. Tanto que alguns

recebem visitas de familiares na Trindade, mas não são recebidos em suas

próprias casas. O medo do desconhecido ou do modo da acolhida é uma

preocupação de muitos. Tanto que evitam uma maior aproximação. “Se

quiserem me ver, estou aqui. Sabem o endereço, irei recebê-los de braços

abertos”, nos disse um morador da Trindade em uma das nossas visitas.

Apesar de todo sofrimento, em muitas das nossas conversas informais

com alguns moradores, pudemos encontrar dois tipos de entendimento. Um

aceita a vida atual, entendendo que as escolhas erradas e o fato de ter

sucumbido ao vício, é imperdoável. Já outros, tem ciência dos seus erros, mas

apontam a família como o principal fator de desencadeamento da situação.

A rua, embora seja, para os boêmios, fascinante ou fonte de

inspiração, para os que são apresentados a ela como uma única fonte de

sobrevivência o fascínio logo perde espaço para as incertezas. Rotinas simples

para a maioria como acordar, escovar os dentes, dormir, comer e tomar banho,

para os que se encontram em situação de risco tudo é cercado de incertezas,

em principal a do futuro.

Finalizando a nossa entrevista, Carlos Lima comenta sobre os erros de

interpretação comuns em se tratando de pessoas em situação de risco.

Quero deixar claro que eu não posso falar sobre moradores de rua, ou

grupos generalizados. Posso falar do que foi comigo. São processos muito

particulares para serem generalizados de qualquer modo que seja. Estamos

falando de vidas humanas, de espíritos, de seres ímpares. Não dá pra ser

cientificista. Pra mim esse é o maior erro dos antropólogos, sociólogos e...

ologos. Insistem em juntar pessoas em grupos e ficam apontando elementos

determinantes para isso e aquilo outro sem levar em consideração as

particularidades do indivíduo. Mas quem sou eu para tirar deles a razão que eu

não tenho? Deixe estar. Mas a minha maior dificuldade era exatamente lidar

com as minhas dificuldades, admitir meus problemas e procurar me ajudar.

Minha dificuldade era me respeitar. E se eu não posso tirar do outro o que eu

Page 20: Agradecimentos - WordPress.com · igreja que em um primeiro momento irá decepcionar o visitante. A Igreja da Trindade, construída em 1739 e reconstruída em 1888 em conseqüência

20

não tenho, muito menos posso dar ao outro aquilo que eu não tenho nem pra

mim.

Um dos fatores que fazem o morador de rua se sentir marginalizado é

o modo como a sociedade enxerga os que moram em situação de risco nas

ruas. Carlos Lima comenta:

Não vê. Apenas olha de canto de olho. Conviva com essas pessoas,

meu nobre. Acolha-as de verdade em sua vida e permita-se ser acolhido, pois

a questão não é exatamente como a sociedade vê, mas como eu vejo. A

sociedade é um corpo muito grande e confuso para ver algo de verdade. Só

seremos autenticamente coletivos, meu amigo, quando formos autenticamente

indivíduos e respeitarmos a individualidade do outro. Declaração estranha para

quem vive e ama tanto uma comunidade, não?

Outro dos personagens que nos contou sobre a sua história de vida foi

o Seu Gerson Boaventura. Nascido em uma família muito humilde residente em

Pero Vaz, bairro do subúrbio de Salvador, começou a trabalhar muito cedo.

Entre 11 e 12 anos estava já trabalhando como marceneiro - consertando

estofamentos e colchões - fato que impossibilitava os estudos durante o dia,

sendo quase que obrigado a passar para o turno noturno. Dentre outras

atividades, já na idade adulta, atuou também como serralheiro-metalúrgico –

trabalhando na Petrobrás – onde chegou até liderar equipes de profissionais

encarregados em manutenção de plataformas.

Uma das matérias dos tempos de escola que Seu Gerson lembra com

carinho é a Geometria:

“Ela era uma das disciplinas que eu mais gostava, pois me ensinava

formas geométricas que depois eu iria aplicar no desenho dos armários e

portões que eu fazia na oficina”.

Page 21: Agradecimentos - WordPress.com · igreja que em um primeiro momento irá decepcionar o visitante. A Igreja da Trindade, construída em 1739 e reconstruída em 1888 em conseqüência

21

A vocação para a política surgiu logo cedo, nos tempos de escola.

Engajado no movimento estudantil pode atuar na militância, em especial nos

tempos da Ditadura Militar. Sempre ia para as reuniões do “movimento” munido

com idéias que mais tarde ajudaram ao ingresso no sindicalismo, quando fez

parte do Sindicato dos Metalúrgicos, veiculado à CUT.

“Eu me lembro até hoje do medo que os meus colegas e eu sempre

passávamos quando tinha as reuniões do sindicato nas fábricas. Um sempre

ficava tomando conta do outro, com medo dos patrões descobrirem. Porque

uma vez descobertos, éramos demitidos imediatamente ou encaminhados a

Polícia Militar”.

Essa na verdade, era a rotina da época. Uma vez descobertas as

manifestações ditas “subversivas”, as conseqüências não eram nada

agradáveis. Ou a demissão sumária, ou então o encaminhamento para o

DOPS (Departamento da Ordem Política e Social), braço militar da Ditadura no

Brasil. Muitos sindicalistas foram mortos em decorrência das manifestações e

da opinião contraria a da situação. Um dos marcos da Ditadura no Brasil, a

“Marcha dos 100 mil” foi realizada por iniciativa dos sindicatos.

E por ter essa vida tão atribulada, Seu Gerson vivia mais na rua do que

em casa, aumentando assim as lacunas no relacionamento familiar. Fato que

anos depois veio a ser um dos motivos do seu rompimento com a família.

“Minha mãe era muito rígida, por isso que com o passar do tempo

meus irmãos foram se desgarrando. Minha família é muito desunida. Não tem

muita preocupação de se integrar, de fazer festa junto. Por causa disso,

começaram os problemas em casa. Só gostavam porque eu vinha com o

dinheiro da farra, mas não ficavam felizes com a minha presença”.

A separação da companheira que é mãe dos dois filhos dele foi o fator

fundamental para o descaminho. A cachaça associada com as drogas

aumentavam sensivelmente o problema. Ele foi desmoronando por causa do

Page 22: Agradecimentos - WordPress.com · igreja que em um primeiro momento irá decepcionar o visitante. A Igreja da Trindade, construída em 1739 e reconstruída em 1888 em conseqüência

22

vicio, logo passando a ser uma pessoa em situação de risco, morando na rua.

Entre situações de perigo das mais diversas, vendo a necessidade da procura

de ajuda, procurou as irmãs, que são evangélicas fervorosas. Elas lhe

apresentaram o CAPES e logo o tratamento começou inclusive com passagem

nas Obras Sociais de Irmã Dulce.

Um dos motivos que foram preponderantes para a aceitação do

problema e a busca para um tratamento foi o alto risco de vida das pessoas

que moram na rua.

“Já levei coronhada de policial, colocaram a arma na minha cabeça,

dormia ao relento só porque a droga dava sono, mas mesmo assim acordava

com medo da perversidade dos outros. Porque morador de rua não é lá muito

amigo do outro. Em muitos casos competimos por um espaço, por uma

refeição”.

A falta de compaixão e amor ao próximo eram uma dos fatores que

faziam com que o dia a dia dos moradores de rua fossem mais duros. As

poucas manifestações de caridade que encontrava, não eram de bom grado

mas sim, uma troca de favores.

“Me sentia humilhado, as pessoas me viam diferente. Quando me

davam um prato de comida, eu pensava que era um ato de caridade com um

irmão em Cristo que vivia na rua. Mas logo vinham me pedindo para jogar um

lixo para fora, pegar peso, e com isso ficamos fedorentos. Até o próximo

banho, mais outros dramas eu passava. Isso acabando com a minha auto-

estima.

“Eu não queria que o povo me visse com aquela roupa, só com os

trapos, o problema era que eu não conseguia lavar, e quando isso por milagre

acontecia, como não tinha muitas peças, eu ia para a rua com ela molhada no

corpo, aumentando o fedor”.

Page 23: Agradecimentos - WordPress.com · igreja que em um primeiro momento irá decepcionar o visitante. A Igreja da Trindade, construída em 1739 e reconstruída em 1888 em conseqüência

23

Seu Gerson por muito tempo foi catador de latinha.Tanto que a

profissão de reciclador foi regulamentada recentemente. Mas mesmo assim,

tempos atrás, o comportamento da sociedade ao lidar com essas pessoas era

bem diferente do civilizado.

“Os motoristas de carros de passeio e de ônibus, jogam os carros em

cima de nós. Já bateram o pneu em minha perna. Passam xingando e nos

colocando nomes. A classe dominante não é educada a tratar aos que passam

necessidade como iguais. Mas sim como lixo ou verme. Não sabendo eles, que

o papel do reciclador para a sociedade é de uma importância imensa”.

A Comunidade da Trindade apareceu em sua vida por causa do

tratamento que fazia na CAPES, com o apoio psicológico das Obras Sociais de

Irmã Dulce. Dentre essas sessões de tratamento, um dos psicólogos sugeriu

que fosse morar na Trindade, para que não pudesse acontecer uma recaída no

tratamento, fato que era uma ameaça iminente.

“Depois do tratamento no ambulatório, você se integra com o pessoal

da Trindade, lá eles ajudam pessoas com o seu problema” – uma sugestão de

um psicólogo na época do tratamento.

“Eu agradeço muito à Deus e a Trindade, por ter resgatado a dignidade

que achava que estava perdida. Chegando aqui fui surpreendido com a

unidade dos N.A (Narcóticos Anônimos), foi ela uma das responsáveis para eu

me afastar das drogas. Porque antes de eu vir morar na Trindade, eu tive uma

recaída”.

“Eu me dedico a Trindade, pois acredito com a filosofia daqui, neste

lugar eu levantei e andei. O acolhimento, o banquete (pois saciei a minha fome)

e o trabalho (os moradores ajudam com a coleta de materiais recicláveis),

foram fatores que me ajudaram muito a minha recuperação”.

Page 24: Agradecimentos - WordPress.com · igreja que em um primeiro momento irá decepcionar o visitante. A Igreja da Trindade, construída em 1739 e reconstruída em 1888 em conseqüência

24

“Trabalhando no “Aurora da Rua” como jornaleiro, eu ganhava pelo

serviço. Eu recebia e guardava o dinheiro, não fazia mais as “coisas” da rua.

Quando eu torrava tudo em bebida e drogas”.

Relatos como os de Carlos Lima e do Seu Gerson Boaventura,

reforçam a vontade de viver, a superação de obstáculos e de como a vida na

rua pode ser a única saída para momentos de desilusão. A companhia das

drogas, o abandono dos parentes, a marginalização pela sociedade, aumentam

sensivelmente o quadro.

Muitos deles buscam a paz que em muitos momentos da vida não

encontraram. A tranqüilidade agora é resumida em coisas simples, que muitos

não dão valor. Um teto, um prato de comida, uma roupa lavada e uma palavra

de carinho ou de conforto, para muitos de nós soam como necessidades

ínfimas, mas para várias pessoas, e a Trindade abriga muitas delas, é o

verdadeiro paraíso.

O resgate da dignidade e o sentir-se útil à sociedade, também traz um

raio de luz em todas as manhãs aos moradores da Trindade. Este que ilumina

o rosto de cada um e fazendo os olhos brilharem por uma perspectiva de

futuro, é despertado em um projeto que existe na comunidade: O Jornal Aurora

da Rua. Um jornal que é feito pelos próprios moradores da Trindade, relatando

suas experiências nas ruas, sentimentos, dificuldades, e o reerguimento que

conseguiram através da comunidade. Essa é a maior conquista: conseguir seu

sustento e o valor de si mesmo por meio de um trabalho digno.

Page 25: Agradecimentos - WordPress.com · igreja que em um primeiro momento irá decepcionar o visitante. A Igreja da Trindade, construída em 1739 e reconstruída em 1888 em conseqüência

25

3 Aurora da Rua – O Jornal que nasce da Rua

Nestas noites das noites da rua, eu canto a aurora... Nestas noites escuras sem lua, eu canto a aurora...

Um sorriso de dor, a ternura... Aurora da Rua...

Aurora da Rua... Aurora da Rua...

Papelão, cobertor, nas calçadas, eu canto a aurora... Nas marquises, viadutos e praças, eu canto a aurora...

Acolhida, partilha abraçadas... Aurora da Rua...

~~~~~~~~~~~~

Nenhum lar, ninguém mais a seu lado, eu canto a aurora... Humilhado, vencido, pisado, eu canto a aurora... Encurvado enfim levantado... Aurora da Rua...

Aurora da Rua... Aurora da Rua...

Nas prisões e nas garras das drogas, eu canto a aurora...

Adicção, dependências e morte, eu canto a aurora... Nesta luta, herói, tu és sóbrio... Aurora da Rua...

~~~~~~~~~~~~

Na violência sem lei e sem dor, eu canto a aurora...

Violentada... Queimado... Pavor! eu canto a aurora... Na ternura, partilha da dor... Aurora da Rua...

Aurora da Rua... Aurora da Rua...

Uma luz, no escuro, cintila... Aurora da Rua...

Uma fé, nesta noite, ilumina... Aurora da Rua... O Amor, como sol, ressuscita... Aurora da Rua...

Irmão Henrique, peregrino da Trindade

A idéia do Jornal Aurora da Rua, surgiu em Canudos em 2006. O

projeto, segundo o irmão Henrique, nasceu como uma utopia e o objetivo inicial

Page 26: Agradecimentos - WordPress.com · igreja que em um primeiro momento irá decepcionar o visitante. A Igreja da Trindade, construída em 1739 e reconstruída em 1888 em conseqüência

26

é ajudar a recuperar a dignidade do povo da rua. Em uma entrevista publicada

em um boletim diário do município o irmão Henrique pontua: “O que vai

permanecer desta experiência toda são mulheres e homens que caminham de

cabeça erguida, encontram uma nova aurora em suas vidas”.

No mês de março de 2007, nos seus 458 anos, Salvador recebeu um

presente especial: O "Aurora da Rua", um jornal de rua que pretende tornar

visível a face e a voz daqueles que muitas vezes são pouco vistos e pouco

ouvidos na sociedade. Um jornal que traz, pela primeira vez para o Nordeste, o

conceito de "jornal de rua". A sede do jornal fica ao lado da Igreja da Trindade.

O "Aurora da Rua" não é apenas uma publicação, mas um projeto de

reinserção social. O jornal se compromete com o processo de construção da

auto-estima e com a formação das pessoas em situação de rua. Com esse

objetivo, foi realizada uma semana de preparação e capacitação dos

vendedores.

Page 27: Agradecimentos - WordPress.com · igreja que em um primeiro momento irá decepcionar o visitante. A Igreja da Trindade, construída em 1739 e reconstruída em 1888 em conseqüência

27

O jornal é vendido exclusivamente por pessoas em situação de rua,

assim servindo de fonte de renda. É fácil reconhece-los de longe, pois todos

portam uma identificação, colete e crachá. O periódico pretende ajudar no

processo de reinserção social dos vendedores, que comercializam o jornal pelo

valor de R$ 1,00 – R$ 0,75 ficam para os vendedores e o restante para a

manutenção da publicação.

Irmão Henrique e o Aurora da Rua - Internet

Os moradores da comunidade contribuem não só com a vendagem do

produto, mas sim com toda a elaboração e construção do conteúdo, através

das oficinas de texto e arte. O jornal traz ao leitor por meio da criatividade, o

universo das ruas, a dura realidade das praças, viadutos, calçadas.

Eles também participam do Código de Conduta com a função de

estimular uma postura responsável e comprometida dos vendedores:

1. Ser vendedor é cuidar de si mesmo, respeitar os

demais e manifestar nas atitudes este respeito. É não usar o nome

do jornal para qualquer outro fim que não seja a venda.

2. O vendedor deve estar sóbrio, não podendo em

hipótese alguma estar sob efeito de álcool ou droga.

3. Todo vendedor é formado, treinado e acompanhado

pela equipe do jornal "Aurora da Rua" ou por instituições parceiras.

Page 28: Agradecimentos - WordPress.com · igreja que em um primeiro momento irá decepcionar o visitante. A Igreja da Trindade, construída em 1739 e reconstruída em 1888 em conseqüência

28

4. Como vendedor, desejamos resgatar nossa dignidade

através do trabalho e nos comprometer com nossa qualidade de

vida.

O jornal possui matérias diversificadas com uma abordagem sensível e

humanizada sobre o que acontece nas ruas, também o jornal compreende

quadros como Cartas da Rua, tirinhas animadas do Aurora e a Turminha da

Rua, Aurora Notícias e entre outros. Nomes como Vânia, Rute, Carlos Lima e

Vanessa, foram os que abriram portas e janelas para o sucesso do Jornal

Aurora da Rua.

Graduada em jornalismo, Vanessa Ive Pimenta nos conta o processo

de abertura do Jornal Aurora da Rua e as dificuldades:

“O jornal nasceu a partir da necessidade de oferecer uma possibilidade

de trabalho para as pessoas acolhidas na Comunidade da Trindade.

Normalmente os moradores de rua após serem acolhidos, conseguiam se

recuperar de suas fraquezas, resgatar a auto-estima e o gosto pela vida.

Porém, para dar continuidade ao processo de reintegração social era

imprescindível que eles vivenciassem a experiência do trabalho.

Mais do que isso, o trabalho seria a alavanca principal para eles

trilharem o caminho de volta para a sociedade. Hoje, se já é difícil conquistar

um espaço no mercado para quem tem uma base familiar e educacional,

imagina para aqueles que nem se quer tem um comprovante de residência.

Difícil empregar alguém desprovido de um lar, de experiências profissionais, de

uma formação educacional básica...

Além disso, ainda há o obstáculo do preconceito e da resistência em

contratar alguém cujo currículo e trajetória de vida foram manchados, em

muitos casos, pela passagem na prisão, em centros de recuperações de

dependência química, em casas de prostituição...

Enfim... Ao se deparem com essa barreira que a sociedade impõe em

relação à contratação de pessoas fora do padrão comum, os moradores de rua

sentiam-se impotentes, incapazes de mudarem os seus destinos. Por conta de

Page 29: Agradecimentos - WordPress.com · igreja que em um primeiro momento irá decepcionar o visitante. A Igreja da Trindade, construída em 1739 e reconstruída em 1888 em conseqüência

29

tudo isso, a Comunidade da Trindade teve a idéia de criar um espaço que

preenchesse essa lacuna do trabalho e pudesse oferecer a eles uma

oportunidade de trabalhar sem precisar justificar o seu passado, os seus erros,

sem precisar de moradia fixa e até mesmo de documentos. Dessa

necessidade, nasce o Aurora da Rua.”

A jornalista expõe dificuldades passadas, com a questão do trabalho

que se aliou ao problema de configuração da imagem do morador de rua feita

pela mídia e, por conseguinte, reproduzida pela sociedade.

- O único jornal de rua do Nordeste:

“Com o desejo de revelar as experiências vividas na Comunidade, com

a população de rua, no que diz respeito ao lado humano e belo dessas

pessoas, Henrique – irmão peregrino – sugeriu que o grupo criasse o seu

próprio veículo de comunicação. Ele já conhecia as outras experiências de

jornal de rua e acreditou que fosse possível implantar essa idéia aqui em

Salvador. Hoje, somos o 3º jornal de rua do Brasil e o único do Nordeste.

Nossa experiência é singular diante dos outros exemplares (são 111 no mundo

inteiro, conforme o INSP – International Network of Street Papers).

Jornal Aurora da Rua - Internet

Page 30: Agradecimentos - WordPress.com · igreja que em um primeiro momento irá decepcionar o visitante. A Igreja da Trindade, construída em 1739 e reconstruída em 1888 em conseqüência

30

Abrangência do Jornal:

"Porque somos o único jornal que contempla as três dimensões: o

conteúdo que fala exclusivamente sobre moradores de rua é produzido e

vendido por eles. Os frutos dessas experiências são enriquecedores e revelam

o potencial de transformação do ser humano.

A partir da produção do jornal, os leitores passaram a conhecer o outro

lado do universo das ruas. Quem imaginava que nas ruas haveria um estilo

próprio de se vestir, de preparar os alimentos, de amar, criar filhos e viver?

Existe uma vida muito além da fragilidade que nossos olhos “doentes”

conseguem ver.

E é buscando o viço, a força, a energia dessa vida que o jornal mantém

aceso o brilho de sua aurora. Quem lê o jornal possui em suas mãos um

conteúdo ímpar, especial, que não será encontrado em nenhum outro veículo

de comunicação, sobretudo, da grande mídia".

Vanessa os conta sobre o processo da elaboração do jornal, que

passou um ano, longo e extenso para definir em muitas reuniões a organização

e o estilo do jornal. O periódico teve a colaboração de voluntários de diferentes

áreas, após os diversos encontros, o jornal foi lançado no dia 24 de março de

2007.

No inicio com a novidade do jornal, não houve muitas dificuldades, os

atraia a atenção da mídia e dos leitores garantindo a divulgação do produto e o

equilíbrio das finanças.

- No decorrer do sucesso, as dificuldades:

“Hoje, sim, passamos por algumas dificuldades. Optamos por ser um

jornal independente, sem publicidades e patrocínios. A sobrevivência financeira

depende da venda do jornal pelos vendedores e pelos assinantes. O jornal é

vendido a 0,25 centavos para os vendedores, embora ele tenha um preço de

custo de 0,65 centavos.

Então, na verdade, o que cobre essa diferença e ajuda a manter as

despesas são as assinaturas. Há assinantes em todo o Brasil e em algumas

empresas de Salvador. Entretanto, gostaríamos de ter mais assinantes para

Page 31: Agradecimentos - WordPress.com · igreja que em um primeiro momento irá decepcionar o visitante. A Igreja da Trindade, construída em 1739 e reconstruída em 1888 em conseqüência

31

assim pode investir no jornal, sem precisar aumentar o seu preço. Nosso

desejo é nos tornar um veículo mensal e acreditamos que breve isso será

possível.

- Dificuldades em manter um número fixo de vendedores:

Há uma dificuldade em equilibrar a equipe de vendedores. O morador

de rua é, por natureza, inquieto. Gosta de se locomover na cidade, de não ficar

parado, transitar entre as ruas... Ele é essencialmente um homem urbano. Por

conta disso, é difícil encontrar moradores de rua que tenham o perfil do

vendedor de ponto fixo.

Para nós, seria uma boa estratégia ter uma barraca, um ponto fixo em

locais movimentados como a Praça da Piedade, do Campo Grande... Mas os

vendedores, em sua maioria, gostam de vender de forma avulsa e ambulante.

Esse jeito de viver fluído também se reflete na disposição para trabalhar.

É muito comum que eles passem um tempo sem vender o jornal por

estarem indispostos, desgostosos da vida... e depois quando recuperam a

auto-estima, retomam para as atividades normais.

Essa inconstância faz parte da trajetória de recuperação. O problema é

que sempre acabamos tendo uma equipe inconstante... Ora com 10

integrantes, outrora com 15... E assim vamos caminhando.”

Vanessa também ressalta que desde o inicio foi estabelecida uma

organização no jornal que funciona até hoje. Os moradores de rua que se

interessam em entrar na equipe, fazem a formação, pegam o material e

começam a vender. O jornal, por sua vez, elabora durante dois meses o

conteúdo jornalístico e todas as oficinas que fazem parte do processo de

produção.

- A participação dos moradores:

“No começo, houve aquele boom. Todos estavam movidos pela

sensação da novidade e queriam experimentar o trabalho de vendedor.

Tivemos uma equipe significamente grande e até hoje nunca batemos o

recorde das vendas realizadas entre o 1º e o 2º número do jornal.

Page 32: Agradecimentos - WordPress.com · igreja que em um primeiro momento irá decepcionar o visitante. A Igreja da Trindade, construída em 1739 e reconstruída em 1888 em conseqüência

32

Naquela época, também contávamos com a publicidade da mídia, o

que nos favorecia muito, pois isso fazia os moradores de rua acreditarem mais

ainda no projeto. Fora isso, não há muitas mudanças.

Mantemos sempre um número de vendedores que variam de 10 a 20.

Em relação à população externa, nós sempre tivemos uma boa receptividade.

Os moradores de rua adoram o jornal, o idolatram.

Dizem ser o “melhor da cidade”. Quando fazemos as oficinas de texto

debaixo dos viadutos, sempre somos surpreendidos pela recepção calorosa do

pessoal. Muitas vezes nem conhecemos as pessoas, mas elas já nos

conhecem e nos acompanham há muito tempo”.

“A idéia nasceu na Comunidade”. Assim destaca a jornalista ao

falar das edições:

“O jornal é uma ramificação da Comunidade. É como se ele fosse a

“mãe” do nosso projeto. E como toda “mãe”, sempre olha pelo “filho”. A nossa

sede fica vizinha à Comunidade.

A proximidade física reforça ainda mais a proximidade afetiva. Primeiro,

porque são os acolhidos da Trindade que se interessam, na maior parte, em

serem vendedores. Por iniciarem o processo de reinserção, sentem-se tocados

pela instância do trabalho.

E o jornal funciona muito bem como trampolim para outras

experiências. É uma espécie de transição para aqueles que estão ainda à

margem, mas com um novo estado de consciência cidadã, política, humana e

espiritual. O jornal serve para que eles começam a se acostumar com essa

idéia do compromisso, da responsabilidade.

É uma forma de inseri-los, aos poucos, no ritmo da vida social. Depois,

há muitas pessoas da Comunidade que fazem parte da nossa equipe enquanto

voluntárias. Dessa forma, a Comunidade está sempre presente durante as

reuniões, as festas, os encontros, as oficinas...

A equipe sempre recorre aos acolhidos da Comunidade para fazer

entrevistas, colher mensagens para As cartas das ruas, fazer oficinas de texto

Page 33: Agradecimentos - WordPress.com · igreja que em um primeiro momento irá decepcionar o visitante. A Igreja da Trindade, construída em 1739 e reconstruída em 1888 em conseqüência

33

e de arte, etc. É assim, a partir de encontros, que a Comunidade efetiva a sua

participação na elaboração de cada número”.

A jornalista enfatiza que para ser vendedor do jornal o único critério é a

força de vontade. Mesmo que não tenha documentação, não há empecilho

para fazer parte, pois se houvesse a exigência estariam se igualando ao

comportamento das demais empresas em relação à contratação de pessoas

em situação de rua.

“No geral, não temos problemas com os vendedores. Quem aparece na

sede já fez o primeiro passo. Alguma coisa mudou para que ele tomasse a

iniciativa de procurar o jornal. E isso já é um indício de que aquela pessoa, ao

menos, deseja mudar a sua realidade.

O problema é que o desejo apenas não é suficiente. Haverá muitos

obstáculos no caminho para realmente se estabelecerem como vendedores.

Primeiro, lidar com o dinheiro. Como poupá-lo, administrá-lo? Mais, como fugir

dos vícios? Ainda mais agora que se tem dinheiro nas mãos.

Como manter a serenidade diante dos dias ruins – aqueles em que se

vende tão pouco? São muitas questões que envolvem o vendedor na sua

profissão, sobretudo, para quem estava mergulhado em outro ritmo de vida: da

mendicância, da exclusão, da vulnerabilidade...

Por tudo isso, o jornal sempre precisa está atento ao bem estar dos

vendedores e acompanhá-los em todas as instâncias: pessoal, profissional,

amorosa, familiar, a saúde... Talvez seja por isso, por esse acompanhamento

dialógico e humano, que o jornal não enfrenta muitos problemas com os

vendedores”.

- A influência do Aurora da Rua na valorização dos moradores da

Trindade:

“Existem muitas formas de participar do jornal. Pode ser como vem

vendedor, “jornalista”, leitor, divulgador ou como fonte. Em todas essas

instâncias, é possível perceber os benefícios que o jornal oferece para os

moradores de rua.

Page 34: Agradecimentos - WordPress.com · igreja que em um primeiro momento irá decepcionar o visitante. A Igreja da Trindade, construída em 1739 e reconstruída em 1888 em conseqüência

34

Dessa forma, quando não são vendedores, os acolhidos da Trindade

também resgatam a auto-estima ao se verem no jornal como personagens de

histórias bonitas, cheias de lição de vida; ao se verem como gente, seres

humanos portadores de uma identidade, de desejos, sonhos e valores.

Depois, como leitores, também vivenciam a valorização. Lêem histórias

de parceiros, depoimentos de outras pessoas que partilham da mesma dor, da

mesma perda, da mesma esperança de dias melhores.

A descoberta de um novo caminho:

"E ainda há aqueles que se descobrem como jornalistas; que

descobrem suas habilidades desconhecidas por eles próprios. Uma das

maiores recompensas do trabalho do Aurora da Rua é ver como eles repensam

a sua condição de sujeito através dos textos; como percebem que ser morador

de rua não é motivo para vergonha, tristeza.

Passam a entender que eles fizeram (fazem) parte de uma trajetória de

perdas sucessivas, que após a perda de tantas coisas, também perderam a si

mesmo. Passam a ser mais generosos consigo mesmo; a se perdoarem; a

perdoarem seus pais, seus amores.

Passam a se perceber como um todo: um grupo imensurável de

pessoas que repetiram a mesma história; que foram desprovidos das mesmas

coisas. Assim, mudam o seu olhar diante da população a qual eles fazem

parte. Passam a ter um olhar mais sensível, mais humano.

E isso ajuda a diminuir o rancor pela sua própria condição de

marginalidade, transformando as frustrações e os desgostos em força e

perseverança para mudarem o futuro de suas histórias.

É difícil medir a valoração que o jornal atribuiu e atribui às pessoas da

Trindade e aos outros moradores de rua também. Porque até agora falamos do

valor humano, mas ainda há a descoberta do valor político enquanto sujeito de

direitos”.

- A rotina do Jornal Aurora da Rua:

Page 35: Agradecimentos - WordPress.com · igreja que em um primeiro momento irá decepcionar o visitante. A Igreja da Trindade, construída em 1739 e reconstruída em 1888 em conseqüência

35

“A cada dois meses, o jornal passa por tais processos de produção:

1º: Reunião de pauta: encontro com equipe de voluntários,

vendedores, simpatizantes ao projeto e moradores de rua. Nesta reunião, nós

decidimos a temática da edição; a pauta de cada editoria; os locais e os dias

em que serão realizadas as oficinas de texto e outros assuntos que estejam

pendentes.

2ª: Partimos para a execução do material: Os moradores de rua e

vendedores, aspirantes à jornalista, são convocados para dividir as tarefas de

produção. Cada um fica com uma parte. Por exemplo, na página 3 (Diversos de

Rua), uns fazem a entrevista (elaboram a pauta e vão atrás das fontes), outros

são destinados a coletar as fotografias.

Depois, esse material é levado à sede onde eu e Íris Queiroz

(jornalistas), sentamos com eles e começamos o processo de preparação do

texto.

Como o jornal é diagramado:

Na maioria dos casos, a página 3 é uma matéria ping-pong, o que

permite mais fidelidade ao trabalho dos nossos “jornalistas”, sem muita

intervenção nossa na escrita do texto, por ser uma matéria, em maior parte, de

transcrição de fala.

As páginas 4 e 5 (Matéria de Capa) requerem mais elaboração. Nós

coletamos os depoimentos e as impressões das oficinas de texto e depois

costuramos essas informações como se o produto final fosse uma colcha de

retalhos, buscando sempre manter a fidelidade ao sentimento e a expressão do

morador de rua.

Já a página 7, (Brilho do Aurora), é feita exclusivamente por algum

morador de rua ou vendedor. Ele (a) próprio faz a entrevista e produz o perfil.

Contudo, todo o material do jornal passa pelas mãos de profissionais, pelo filtro

dos critérios e dos aspectos jornalísticos, até chegar a etapa final, que é a

impressão na gráfica.

Enquanto realizamos essas etapas de produção, o trabalho diário do

jornal se resume em: atendimento e acompanhamento aos vendedores (é

importante sentar e tomar um cafezinho com eles, ouvi-los, conversar, dar

Page 36: Agradecimentos - WordPress.com · igreja que em um primeiro momento irá decepcionar o visitante. A Igreja da Trindade, construída em 1739 e reconstruída em 1888 em conseqüência

36

atenção); atendimento de visitantes, leitores e estudantes; divulgação das

assinaturas nas empresas; gerenciamento das assinaturas.

Além das atividades mais jornalísticas: produção dos textos, assessoria

de imprensa, manutenção das redes sociais, elaboração das dinâmicas das

oficinas de arte e de texto, fotografias da matéria; diagramação; correção de

texto, etc.”.

A integrante do Jornal Aurora da Rua, pontua que para o jornal se

manter, enfrenta dificuldades com o equilíbrio no setor financeiro, necessitando

de mais assinaturas para garantir a harmonia nas despesas e também o

equilíbrio da equipe de vendedores, pois a uma inconstância no número de

vendedores.

- Jornal Comunitário X Mercado:

“Normalmente, a experiência de um jornal comunitário, como o jornal

de rua, eleva a função social do Jornalismo e, por sua vez, dos jornalistas.

Difícil responder pelos outros jornalistas dedicados a essa área, mas posso

responder pela minha experiência e de alguns colegas que sinto comungarem

do mesmo sentimento.

Para ser um jornalista comunitário, é preciso sair do seu lugar comum e

ir à busca do diferente – do outro. É preciso aguçar todos os sentidos, porque

ver e ouvir não são suficientes para traduzir sentimentos que não lhes

pertence. Mais do que dialogar, é preciso estar no lugar desse outro.

Olhar com os olhos dele, sentir com o coração dele, tocar com as

mãos dele, lembrar com a memória dele. Porque nós, jornalistas comunitários,

somos porta-vozes de rostos sem nome. Somos ecos de um grito sufocado.

Por isso, é preciso despir-se.

Despir-se dos preconceitos:

Despir-se de conceitos, preconceitos, imagens e opiniões. É preciso

estar inteiro e pronto. Pronto para sentar no papelão; aceitar um alimento

oferecido (ainda que tenha vindo do lixo); para ouvir uma fala entrecortada por

Page 37: Agradecimentos - WordPress.com · igreja que em um primeiro momento irá decepcionar o visitante. A Igreja da Trindade, construída em 1739 e reconstruída em 1888 em conseqüência

37

soluços, silêncio e divagações; para enfrentar olhos transfigurados, sofridos;

para buscar o traço de humanidade que nos une – aquele que nos permite

dizer “somos iguais”.

Quais são os espaços jornalísticos em que podemos vivenciar tudo

isso? Poucos.

Bem, o mercado não está muito preocupado com o Jornalismo atuante

em comunidades. Mas, ainda assim, conseguimos se inserir no espaço da

grande mídia para mostrar o que se faz nos lugares à margem da cidade. Caso

fizéssemos uma pesquisa na internet sobre população de rua há 10 anos,

encontraríamos majoritariamente as palavras: mendicância, violência, morte,

drogas, etc.

Inserção política e dignidade:

Hoje, essas palavras continuam, mas ao lado delas aparecem: Política

Nacional da População de Rua, Pesquisa Nacional sobre a População de Rua,

III Encontro Nacional de População de Rua, II Marcha da População de Rua, 8º

café do presidente Lula com catadores e moradores de rua... Alguma coisa já

mudou. E isso indiscutivelmente se deve ao papel de nós, jornais comunitários,

que através de nossa influência política, nossa formação profissional,

conseguimos colocar essas pessoas no palco da arena política-cidadã.

Assim, de alguma forma, estamos influenciando a formação ideológica

de leitores e de nossos colegas profissionais também. E se não há valorização

nesse âmbito, sem dúvida, haverá naquele onde estão os verdadeiros

beneficiados – gente que aprendeu desde cedo, os valores mais genuínos da

vida, a agradecer e a perdoar, a driblar as dificuldades e ainda persistir sorrindo

como todo bom brasileiro”.

Vanessa lembra como uma matéria do "Aurora da Rua" fez com

que uma leitora encontrasse um novo significado para a palavra amor:

Page 38: Agradecimentos - WordPress.com · igreja que em um primeiro momento irá decepcionar o visitante. A Igreja da Trindade, construída em 1739 e reconstruída em 1888 em conseqüência

38

"Lembro de uma garota que me abordou para falar do número 8 sobre

Histórias de Amor. Ela havia descoberto nos moradores de rua o verdadeiro e

genuíno significado da palavra amor.

Se eles cujo vigor e beleza física foram usurpadas pela condição de

miséria, cuja precariedade material lhe poupa dos maiores prazeres da vida,

cuja exposição extrema lhe retira a privacidade que é essencial a qualquer

relacionamento; se eles, ainda assim, conseguem amar e manter uma relação

de 8 a 15 anos, é porque eles sim vivem e experimentam o verdadeiro amor:

aquele que rompe qualquer barreira.

Essa leitora havia lido diversas histórias de pessoas que mesmo nas

ruas conseguiram se casar e orgulham-se de suas certidões de casamento.

Casais que partilham todos os alimentos que conseguem, partilham o cobertor,

os espaços de proteção, as dificuldades, as dores e as pequenas alegrias.

Mas apesar de tudo isso, a verdadeira descoberta da leitora ainda foi

perceber que os moradores de rua são seres humanos que choram, sofrem,

riem, sonham e, sobretudo, amam".

Desta forma a Igreja da Trindade e o Jornal Aurora da Rua ajuda os

moradores de rua, como o vendedor de jornais Denivaldo Veloso, que passou

por uma dura realidade e hoje prossegue o curso da vida, longe dos vícios e

com metas a alcançar no futuro.

- Como cheguei na Trindade:

“A Comunidade da Trindade eu conheci através do projeto “Levanta Te

Anda” que atende a população em situação de rua dando suporte com oficinas,

acolhimento, onde projeto da assistência para população com a higiene como

banho, cortar cabelo, fazer barba. Também com programações educativas e

recreativas dando atendimento médico a população de rua, assistência social e

trabalha o lado espiritual, mas eu só tive um vinculo com a comunidade

mesmo, quando eu comecei a dormir na frente igreja”.

- Sua trajetória de vida nas ruas

Page 39: Agradecimentos - WordPress.com · igreja que em um primeiro momento irá decepcionar o visitante. A Igreja da Trindade, construída em 1739 e reconstruída em 1888 em conseqüência

39

Ao olhar no vazio, Veloso relembra todo seu passado nas ruas, ele

tinha tudo: casa, família, uma vida aparentemente normal. Mas perdeu tudo por

causa da adicção4, passando três anos da sua vida nas ruas.

“Eu praticamente não dormia. Já dormi na frente do SAC, também teve

uma época que dormi na praia da Preguiça, mas acordava às 03h00 da manhã

e ficava em frente ao SAC, guardando fila de identidade para ganhar um

trocado para o meu próprio sustento.

Passei a morar no local onde eu guardava fila. Esperava a merenda

que começava a partir às 18h00 e já ficava por ali mesmo, quando marcava

01h00 da manhã já estava de pé para guardar fila e às 05h00 eu já estava com

uns R$30,00 a R$ 40,00 conto na mão ao qual me facilitava o dia a dia em

relação à alimentação, mas naquele tempo eu sofria com a adcção e gastava

tudo com bebida e com as drogas”.

- As dificuldades:

“A maior dificuldade que um morador de rua encontra é a

discriminação. Nós não temos valor, não merecemos respeito, somos vigiados

quando entramos em um lugar. Também temos dificuldade em relação à

dormida, pois a mudança de clima atrapalha muito. Mas também existem

pessoas que ajudam durante a noite passando e oferecendo quentinhas, suco,

sopa, mingau. No dia seguinte temos que batalhar e muito”.

Segundo Veloso, a sociedade enxerga os moradores de rua como

ladrões, drogados ou coitadinhos. Também ressalta que são muitos motivos

que levam a uma pessoa ir morar nas ruas, não conseguindo sair da situação

por causa da auto-estima muito baixa e em consequência os vícios em drogas.

- A esperança:

4 Adicção: Condição de impotência em relação a uma droga; perda do auto-controle em

relação a bebida/droga.

Page 40: Agradecimentos - WordPress.com · igreja que em um primeiro momento irá decepcionar o visitante. A Igreja da Trindade, construída em 1739 e reconstruída em 1888 em conseqüência

40

“Muitas vezes eu tive esperança e esperava algo de Deus, mas muitas

vezes me sentia um derrotado, já não tinha mais esperança de nada, a minha

vida acabava e me acomodava com aquela situação. Sempre tive fé em Deus

que um dia iria melhorar, mas descobrir que essa melhora está dentro de nós

mesmos nas ações em mudar, em decidir fazer algo por nós mesmos”.

- Como a Comunidade da Trindade ajudou?

“A comunidade me deu todo o suporte que eu precisava, no momento

eu necessitava de um lugar para dormir, pois na rua a gente não dorme e sim

cochila e essa preocupação com a noite faz com que nossas forças fiquem

esgotadas durante o dia.

Também me deu moradia, alimentação e incentiva muito na minha

recuperação, isso é fundamental. Ajuda na parte espiritual trazendo a sensação

de estarmos mais jovens e deixa a gente mais acreditado com a vida,

levantando a auto-estima para ir atrás do nosso sustento e trabalho”.

Veloso também nos explicou como é a rotina na Trindade e no Aurora

da Rua:

“Cada dia é um dia diferente temos a segunda-feira que acordamos e

oramos no café da manhã e depois saímos para trabalhar. Durante o dia nós

trabalhamos no jornal, cada um tem uma função e assume a suas obrigações,

à noite nos reunimos para a nossa oração a o jantar.

No outro dia enfrentamos a batalha de novo, isso de segunda a quarta,

a quinta-feira é um dia comunitário acordamos participando com mutirão,

depois temos a oração com o café da manhã e continuamos com o mutirão o

dia todo.

Na sexta-feira voltamos a nossa atividade de vender o jornal, no

sábado temos um dia comunitário e no domingo é o dia do encontro fraternal

onde todo mundo se reúne e divide o pão e a comida com as orações”.

Hoje, Veloso possui perspectivas de futuro e deseja que a comunidade

da Trindade esteja sempre em crescimento, pois com este trabalho que é

Page 41: Agradecimentos - WordPress.com · igreja que em um primeiro momento irá decepcionar o visitante. A Igreja da Trindade, construída em 1739 e reconstruída em 1888 em conseqüência

41

exercido serve de incentivo para as outras pessoas e todo morador de rua que

chega à Trindade consegue sair dominando a própria vida.

“A minha vida hoje está retomada e estou bastante incentivado. Parei

meus estudos no 2º ano do 2º grau e vou retomar, eu sonho é fazer

comunicação, com intuito de ajudar o jornal Aurora da Rua. Voltei em ter a

esperança de construir algo na vida e que nada está perdido”.

Neste cenário percebemos a ajuda dos que tem a sensibilidade dos

principais valores humanos e o recomeçar a vida daqueles que já estavam

conformados com a situação desumana, isso traz uma reflexão de que vivemos

em uma sociedade que só pensa em si, só quer para si, praticando o

individualismo. Pelo número de pessoas que necessitam de um alimento, de

uma roupa, é desproporcional ao número de pessoas que doam e se doam

para ajudar espaços como a Comunidade da Trindade.

Ternura, Trindade de Ternura,

Trindade que acolhe o povo da rua.

Trindade, Ternura e amor,

Mistério desvendado por um povo sofredor

Com Ternura, a Trindade perdoa,

Ela não escolhe, a todos acolhe...

Acolhe perdoa e chama:

A Trindade com ternura nos ama!

É o Pai, é o Filho e o Santo Espírito...

Trindade de Ternura, mistério vivido...

Page 42: Agradecimentos - WordPress.com · igreja que em um primeiro momento irá decepcionar o visitante. A Igreja da Trindade, construída em 1739 e reconstruída em 1888 em conseqüência

42

Obrigado Deus Pai

Obrigado Deus Filho

Obrigado Santo Espírito,

Pela Ternura que nos tem concedido...

Trindade de Ternura, mistério vivido...

Poesia Trindade de Ternura

Page 43: Agradecimentos - WordPress.com · igreja que em um primeiro momento irá decepcionar o visitante. A Igreja da Trindade, construída em 1739 e reconstruída em 1888 em conseqüência

43

4 A Dignificação do Morador de Rua

Como foi visto nos capítulos anteriores, desde a sua fundação, a Igreja

da Trindade tem sido um local de transformação de realidades. Um lugar

abandonado, caindo aos pedaços e que resistiu a um incêndio, se transformou

décadas depois em um lugar de segurança e conforto para os que tanto

necessitam.

A iniciativa do Irmão Henrique ao acolher moradores de rua na

Trindade foi o sopro de esperança - que muitos acham perdida - para os

excluídos pela sociedade. Assim revertendo, mesmo que parcialmente, o

quadro de abandono e marginalização.

Segundo a Declaração Universal dos Direitos do Homem, que no seu

artigo 7 diz:

"Todos são iguais perante a lei e tem direito, sem qualquer

distinção, a igual proteção da lei. Todos tem direito a igual proteção

contra qualquer discriminação que viole a presente Declaração e contra

qualquer incitamento a tal discriminação".

A pergunta que paira no ar é a seguinte: Como os moradores de rua

são tratados? Como iguais? Com os mesmos direitos? E a vil discriminação a

que são expostos? A mesma que Carlos Lima e o Seu Gerson Boaventura

tanto frisaram nos seus depoimentos. Não somos uma sociedade justa e

democrática. O conceito de democracia que para muitos soa como um pretexto

político, para a grande maioria da população é um ideal ainda difícil de ser

concebido.

Somos democráticos a cada quatro anos. Colocamos os gestores do

dinheiro público nos seus cargos. Mas infelizmente o poder de retirá-los dos

seus cargos devido a alguma irregularidade só é possível ser feito pelos

próprios pares, ou seja, os políticos. E esse cenário desemboca na sociedade

em forma de marginalizados.

Page 44: Agradecimentos - WordPress.com · igreja que em um primeiro momento irá decepcionar o visitante. A Igreja da Trindade, construída em 1739 e reconstruída em 1888 em conseqüência

44

Vanessa Pimenta, nos contou em nossas entrevistas como o "Aurora

da Rua" consegue, com êxito, fomentar na mentalidade dos moradores em

situação de risco que trabalham como jornaleiros a dignidade do sustento

baseado no trabalho e como a auto-estima dos moradores que eram retratados

no jornal era facilmente recuperada:

"A minha primeira matéria do jornal foi sobre a relação entre moradores

de rua e animais de estimação. A fonte principal era Adilson – morador de rua

alcoólatra e com aparentes problemas mentais – que tinha um cachorro

chamado Lobo, verdadeiro guardião de suas noites.

Foi muito complicado entrevistá-lo, porque suas frases eram bem

desconexas e soltas. Adilson era um sujeito atormentado pelas suas próprias

frustrações e refugiava-se na bebida.

Enfim, consegui elaborar a matéria e Adilson mais Lobo foram capa do

jornal. Resultado: Adilson se transbordou de orgulho, emoção e felicidade ao

deparar-se com a sua imagem na capa, como ele mesmo disse: “tão bonito

assim...”. Adilson descobriu que “ainda” era gente.

De lá para cá, Adilson nunca mais bebeu. Hoje, ele tem a sua casa e a

sua esposa. Dois meses após a publicação dessa edição, Adilson apareceu na

sede, de paletó, bem arrumado, e me agradeceu por eu ter devolvido a vida a

ele. Fiquei emocionada.

Tinha valido à pena ficar quatro anos numa faculdade para poder

vivenciar aquele momento e ouvir isso de alguém. Na verdade, não fui eu que

devolvi a vida para Adilson. Foi a comunicação e todos os seus potenciais.

O jornalismo tem esse poder de destruir e construir imagens. Se bem

utilizado para “fazer o bem”, ele pode colher frutos de valores imensuráveis,

como o exemplo dos nossos leitores, que se surpreendem a cada edição".

Fatos como este, que relatam o resgate de uma pessoa, são

fundamentais no reforço do papel do "Aurora da Rua" relacionado ao universo

dos que lá trabalham ou são retratados em matérias. O que para muitos seria

Page 45: Agradecimentos - WordPress.com · igreja que em um primeiro momento irá decepcionar o visitante. A Igreja da Trindade, construída em 1739 e reconstruída em 1888 em conseqüência

45

um motivo para um mero bate-papo, - ser retratado em uma matéria de jornal -

se configurou em uma grande guinada na vida do Adílson.

São essas contribuições que fazem a diferença para uma pessoa

marginalizada. O fato de se sentir importante é vital no processo de

dignificação.

Seres humanos dotados de vontade para crescer e ávidos por uma

oportunidade que os façam refletir qual seria a condição para a sociedade

começar a enxergar com outros olhos, aqueles que em algum tempo tiveram

casa, família e de onde tirar o seu sustento.

O que tentamos neste livro, além de uma divulgação, o que é feito na

Trindade com o "Aurora da Rua". O acolhimento, o saciar da fome, o dormir

com teto, o banquete da alma. Nestas páginas o que foi escrito e relatado

foram as nossas experiências com pessoas que tem a mesma vontade: A de

serem vistas pela sociedade com outros olhos.

Resgatar a dignidade através do trabalho e com a acolhida um novo

sentido de "casa". Essa para nós foi a lição que a Trindade nos deu. Como

uma igreja abandonada virou o lar dos que não tinham um futuro. Ver os

jornaleiros do "Aurora da Rua" orgulhosos com seu colete e crachá de

identificação foi outra maravilhosa constatação.

Quem vende o jornal sabe que a sociedade enxerga com outros olhos

quem trabalha e luta pelo seu sustento. Um colete e um crachá, aliados a uma

proposta de amparo e dignificação se transformaram em bens preciosos para

pessoas que não tinham nenhuma posse de valor.

O valor do amanhã, da esperança e do orar agradecendo o dia de

trabalho que foi realizado. E tem gente que acha isso muito pouco. Pergunte

aos moradores da Trindade. Eles irão te responder com o sorriso nos lábios e

prontamente responder.

"Agora voltei a ser gente, sou trabalhador e tenho endereço fixo"

Page 46: Agradecimentos - WordPress.com · igreja que em um primeiro momento irá decepcionar o visitante. A Igreja da Trindade, construída em 1739 e reconstruída em 1888 em conseqüência

46

5 REFERÊNCIAS:

Blog da Comunidade da Trindade: www.comunidadedatrindade.blogspot.com

Site Jornal Aurora da Rua: www.auroradarua.org.br

Entrevistas: Carlos Lima, Denisval, Seu Gerson Boaventura, Vanessa Ive

Pimenta.

Imagens fotográficas: Jaqueline Vaz Gasparini e João Aguiar Neto - Internet