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Água e ar como suportes de imagens
Rodolfo Caesar / UFRJ
Resumo: continuação do artigo intitulado 'O som como imagem' (ECA/USP - 2012), agora adentrando pela materialidade de dois dentre os ‘quatro elementos’, apresentando-os como aptos e fundamentais para a contrução de imagens sonoras e visuais, exemplarmente auxiliados pelo dispositivo de repetição por excelência: o loop. Palavras-chave: loop, imagem sonora, imagem visual, Narciso, Eco.
A notação como suporte de loops
“Antes de se tornar melodia, [o sillon fermé] surgiu como um truque, um efeito sonoro. Mas de efeito passou a causa, e veículo de descoberta. Esta reside em
uma diferença simbólica: a diferença entre a espiral e o círculo. Acontece que a máquina de corte de discos é uma mecânica que
desenha seu próprio símbolo.” (Schaeffer, 1952, p.39)
Costuma-se atribuir às formas musicais contrapontísticas ocidentais uma dívida causal
à existência de um suporte técnico notacional, a escrita musical (Taylor 2001), sem a
qual dificilmente teríamos as fugas de Bach ou a instalação de Janet Cardiff, no
Inhotim (reproduzindo a polifonia de quarenta vozes composta por Thomas Tallis em
1575). As imitações canônicas na música ocidental, ou o velho Frère Jacques, por
exemplo, não parecem manifestar qualquer desejo de ocultar a repetitividade de seu
procedimento composicional, facilitado pela - mas nesse caso não necessariamente
dependente - da escrita.
Esse suporte não parece ter sido imprescindível no caso do Frère Jacques, pois sua
formulação poderia facilmente resultar de um jogo independente da notação gráfica.
De acordo com Albert B. Lord em The singer of tales (Lord 1960), em tempos pré-
letrados a repetição oral, com função mnemotécnica, garantiu a sobrevivência de sua
literatura (avant la lettre...!). Para estudiosos do letramento, como Walter Ong (Ong
1982) e Eric Havelock (Havelock 1986), a repetição presente já nos poemas pré-
homéricos serviria como procedimento de fixação na memória: o suporte técnico ao
alcance de quem tivesse massa cinzenta - eis o suporte. Se a simplicidade das linhas
melódicas do Frère Jacques prescindem de um suporte mnemônico extra-corpóreo,
tal não foi o caso das quarenta vozes elizabetanas.
No século XIV, expressamente graças à escrita notacional que então se desenvolvia, o
compositor Guillaume de Machaut (ca. 1300 - 1377) grafou o - possivelmente -
primeiro loop instrumental da História em Ma fin est mon commencement. Trata-se de
uma nítida sugestão composicional oferecida pelo novo meio de suporte. É mais fácil
aceitar a ideia de que esse loop tenha sido concebido graças ao recurso da fixação da
escrita musical na pauta. A linha do cantus nos quatro compassos iniciais...
...ressurge revertida nos quatro compassos finais da linha do tenor (em palíndromo),
...dizendo a mesma coisa: "meu fim é meu começo".
Se no caso Machaut for arriscado lançar uma hipótese contrária à noção de que sua
'inspiração' proviria diretamente do meio técnico com que lidava, outros exemplos
contemporâneos da Ars Subtilior serão indubitáveis, tais como a partitura de Baude
Cordier (1380-1440) para a canção Tout par compas suy composés:
Talvez loops inéditos, interessantes e ainda mais arquetípicos serão um dia
descobertos pela Arqueologia das Mídias... O que importa se Machaut ou Cordier não
tiverem sido os primeiros a se servir do dispositivo par excellence muito antes que ele
se tornasse popular? A questão que nos importa é sobre o relacionamento entre a
materialidade do suporte e a 'ideia', ou a 'informação'. (Kittler 1986) (McLuhan 1967).
Importa sabermos que já antes do surgimento das tecnologias apropriadas do século
XX, o loop se manifestara, permitindo-nos identificar que no ewig infinito no final
d'A Canção da Terra (1911) Gustav Mahler1 expressaria uma 'inspiração' baseada em
repetições possibilitadas por outro tipo de suporte. Nesse caso: os panoramas e
zootrópios. (Caesar 2008c)
Loops visíveis
A pesquisa mergulhou em busca de traços da repetição na produção artística,
dispensando as repetições padronizadoras, do tipo que se encontra em ornamentação,
concentrando-se em 'repetições como próprias ao tema'. A mais antiga que consegui
encontrar está na pintura de Masaccio conhecida como o 'Pagamento do Tributo':
1 Aqui, como disse Schaeffer: 'de efeito passa-se a causa'.
A cena se divide em três partes: uma central, focada no grupo em que o único ponto
de fuga incide na figura do Cristo (cercado por um redondo loop de apóstolos e o
coletor de impostos), aparentemente discutindo o pagamento do tributo religioso.
Cristo e Pedro apontam para o lado esquerdo, onde se vê, ao fundo, uma segunda
presença de Pedro, que extrai - da boca de um peixe aparentemente acabado de pescar
- a moeda com que irá pagar a taxa. À direita de Cristo, no grupo central, o coletor
aponta para o lado direito, onde será visto outra vez - confirmado por seu traje menos
austero e inconfundível par de pernas - com Pedro. Curiosas pernas que, de frente ou
de costas, apresentam contorno idêntico: copy & paste no Quattrocento.
Além da perspectiva espacial, existe aqui uma outra, de ordem temporal, em que a
cena central inaugura uma sequência como se para ilustrar o diálogo: "Cristo, cadê o
pagamento?" "Calma, veja ali Pedro pescando um peixe com dinheiro dentro..." O
olhar segue o gesto até Pedro com o peixe à esquerda, voltando de passagem pelo
círculo dos apóstolos no centro, grupo esse que - para o olhar - tem a força motriz de
uma roda d'água, para atravessar toda a tela em busca do desenlace à direita: Pedro -
representado pela terceira vez - pagando ao cobrador - pela segunda. Segundo o
artista e pesquisador Milton Machado (em conversas), este quadro é precursor das
Histórias em Quadrinhos. Hipótese confirmada pelo cenário de fundo da terceira cena,
tão destacado verticalmente do restante. Poderia, também, na minha opinião,
representar a antecipação de uma dinâmica circular que não se limita à que emana do
grupo em torno de Jesus Cristo, mas propõe a dinâmica do próprio olhar, do centro
para os lados, e de volta.
Há uma complexidade temporal que não deixa o percurso se extinguir na terceira
parte, pois não há, de fato, ordem exata para o acompanhamento dessa narrativa: se
devemos começar pela direita ou pela esquerda. Note-se que a ordem direcional de
leitura ocidental - a linha horizontal da esquerda para a direita - ainda não tinha se
estabelecido convencionalmente no senso comum do século XV, tendo se
desenvolvido lentamente após a invenção da imprensa, por Gutenberg, nesse século.
O letramento, na época, era raro mesmo entre nobres2.
Outras curiosidades circulares: essa parábola sobre circulação de mercadoria só é
relatada no evangelho de Mateus (17:27), que, além de apóstolo, desempenhou o
trabalho de coletor de taxas. Existe a hipótese de que Masaccio o tenha representado
naquele personagem vestido de rosa, na extrema direita no grupo. Um jeito de
aparecer - diz também alguém na wikipedia - pois seria nesse personagem que se
retratou o próprio Masaccio. Na Bíblia a história é contada estressando uma certa
antecipação: Pedro é abordado pelo coletor que pergunta: Teu mestre não paga o
imposto?"
Narciso e Eco
Um extraordinário caso de simetria impediu a felicidade de Narciso e Eco. O rapaz
cronicamente atado à reprodução de uma mesma imagem visual, e sua pretendente
Eco à de uma imagem sonora3. É de se crer que Narciso & Eco pudessem ter sido os
precursores mitológicos do tape-delay. Diz o mito que a ninfa Eco, condenada a viver
sem o dom da fala, repetia os últimos sons a ela endereçadas. Assim, quando Narciso
gritava: ‘Onde está você?’ Ele ouvia de volta: ‘...você? ...você?..’.
2 p. ex.: o primeiro monarca letrado na Inglaterra: Henrique I (1068-1135), e o arquiduque Rodolfo I de Habsburgo (1218-1291), um dos primeiros príncipes capazes de ler e escrever. 3 Sobrevive Narciso numa relação institucionalmente replicada nos dias de hoje, em que setores da academia permitem a formação de núcleos que, de uma só vez, dedicam-se a analisar e sintetizar a mesma substância. (Caesar, 2009)
Este é um Echoplex valvulado, inventado no século XX para colocar em loop toda a
música pop até hoje. Seu funcionamento, conforme se pode ver, é garantido por meio
da leitura repetida de um anel de fita magnética – garantia de repouso vocal para a
ninfa - enquanto houver eletricidade.
"Contempla, à beira, os seus olhos, estrelas gêmeas, a cabeleira digna de Apolo e de Baco,
a face impúbere, o pescoço ebúrneo, a grácil boca e o rubor à nívea candura mesclado;
e admira tudo aquilo que o torna admirável. Sem o saber, deseja a si mesmo e se louva,
cortejando, corteja-se; incendeia e arde. Quantos beijos irados deu na falaz fonte! Quantas vezes querendo abraçar a visão,
na água os braços mergulhava achando nada! Não sabe o que está vendo; mas ao ver se abrasa, e o que ilude os seus olhos mais o incita ao erro.
Por que, em vão, simulacro fugaz buscas, crédulo?" Ovidio
trad. (de Carvalho 2010)
Esta é uma pergunta oportuna: por que buscar, crédulo Narciso, o fugaz simulacro?
Ou: por que buscas, Narciso, ó simulacro fugaz? Pois é a isso que se resume a
imagem refletida de Narciso: uma cópia sem o original: exatamente conforme a noção
proposta por Mario Perniola para designar a imagem produzida pelos meios de
comunicação de massa: "não possui original - trata-se de uma construção artificial que
não possui protótipo." (Perniola 2000)
Não são também simulacros os sons emitidos por Eco, que, gratuitamente
reproduzindo aquilo que, descontextualizado, perde a condição de 'original', apenas
projeta uma nova imagem? Em um mundo engatinhando na construção das imagens
visuais que fundamentaram sua posterior proliferação, Narciso protagoniza
primeiramente o que hoje nós vivenciamos no dia-a-dia: a relação com os simulacros,
esses resultados da inscrição de algo sobre um suporte que se desliga do original. O
suporte água, talvez o mais interessante de todos, manifesta toda a dinâmica que lhe é
própria: tremula, dissolve ou reproduz em esplendor cópias fiéis - e pode ter sido
nesse breve instante que Narciso, ignorando ser uma cópia, apaixonou-se pelo que viu
- quiçá por alguém que ele acreditou viver debaixo da água. (Se foi assim, então nem
era narcisista).
A repetição de Eco acontece no ar, essa espécie de buffer que nós, humanos,
costumamos ignorar como tal, confundindo invisibilidade com inexistência. O ar não
é sólido, mas, assim como a água, é matéria, e enquanto tal portador de imagens,
dinamizadas como na memória buffer dos computadores.
Não é de estranhar que alguns setores da música eletroacústica pesquisem a
instantaneidade como um cão mordendo seu próprio rabo? A materialidade do ar é
contrária a qualquer noção de instante: o que existe é uma multiplicidade de instantes
percebidos como tal, porém diferentes do momento de sua geração. Tudo o que é
percebido, o é depois de ocorrido. Tudo termina - em sua essência - para que possa,
uma vez transposto o espaço, ao custo do tempo, nascer em nossa percepção. A
imagem sonora de Eco para Narciso era real, mas pode ter sido um mero efeito sonoro
espacial, um eco natural, de um som que não proveio de outro corpo:
"Mesmo depois de entrar na morada infernal, ele se olha no Estige. As suas irmãs Náiades choraram, ofertando-lhe os cachos cortados;
as Dríades choraram; Eco ressoou, e preparavam já a pira e as tochas fúnebres;
corpo nenhum havia [grifo meu]. No lugar acharam uma flor, cróceo broto entre pétalas brancas."
Ovidio trad. (de Carvalho 2010)
É exatamente a falta de um corpo material que reforça a noção de uma materialidade
da imagem.
“A imagem da mãe morta de Stephen Dedalus produzida no mar, no verdume, nos sargaços – uma imagem que se apresenta na água, não como o reflexo de Narciso, na
superfície lisa e espelhada , mas no mar em sua potência de movimento, em sua 'maré sombria’ (Didi-Huberman 2010) [1992]– em ondas que soam como as do mar bravio
que Bentinho vê nos olhos de Capitu – olhos de ressaca – esses mares de águas que trazem e que tragam imagens.”
(Liliza Mendes, Água – Ser e Suporte da Imagem Deslizante, 2012)
Bibliography Caesar, Rodolfo. “Loops Institucionais.” Anais do XIX Congresso da Anppom. Florianopolis: UDESC, 2010. —. “O loop como promessa de eternidade.” Anais do XVIII Congresso da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-‐graduação. Salvador, 2008c. de Carvalho, Raimundo Nonato Barbosa. Metamorfoses em tradução. Relatório, Pós-‐graduação em Letras Clássicas, USP, São Paulo: USP, 2010. Didi-‐Huberman, Georges. O que vemos, o que nos olha. 2a. São Paulo: Editora 34, 2010. Havelock, Eric A. The Muse Learns to Write. Reflections on Orality and Literacy from Antiquity to the Present. New Haven: Yale University Press, 1986. Kittler, Friedrich A. Gramphone, Film, Typewriter. New York: Writing Science, 1986. Lord, Albert B. The singer of tales. Vol. 1. Harvard: Harvard University Press, 1960. McLuhan, Marshall. The Medium is the Massage: An Inventory of Effects. 1a. New York: Bantam Books, 1967.
Mendes, Liliza. “ Água – Ser e Suporte da Imagem Deslizante.” Monografia, Escola de Belas Artes, UFMG, Belo Horizonte, 2012. Ong, Walter J. Orality and literacy. The technologizing of the world. 1 vols. Londres: Routledge, 1982. Perniola, Mario. Contra a comunicação. 1. Tradução: Luisa Raboline. Vol. 1. 1 vols. São Leopoldo, RS: Unisinos, 2006. —. Pensando o ritual: sexualidade, morte, mundo. Vol. 1. São Paulo: Studio Nobel, 2000. Taylor, Timothy D. Strange sounds. Music, Technology & Culture. Londres: Routledge, 2001.