AGUIAR, J. Yo Vengo a Cantar Por Aquellos Que Caeron - Poesia Politica, Engajamento e Resistencia Na Musica Popular Uruguaia

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL

    Instituto de Filosofia e Cincias Humanas

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA

    Yo vengo a cantar por aquellos que cayeron

    Poesia poltica, engajamento e resistncia na msica popular uruguaia

    o cancioneiro de Daniel Viglietti

    1967 1973

    Jos Fabiano Gregory Cardozo de Aguiar

    Setembro 2010

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    Agradecimentos

    Ao Programa de Ps Graduao de Histria do Instituto de Filosofia e Cincias Humanas

    da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, seus professores e pessoal tcnico-

    administrativo.

    Ao professor, orientador, desde os primeiros passos da pesquisa na graduao das pocas

    do peridico O Americano at o final deste trabalho: Guazzelli, muchas gracias!

    Ao professor Enrique Serra Padrs, pelos toques, livros e todo el aguante para esta

    pesquisa.

    Aos familiares e amigos que deram suporte afetivo e estmulo nos momentos difceis.

    Aos queridos amigos no paisito, pelo acolhimento de sempre, pela imensa ajuda na

    pesquisa e nos contatos em Montevidu.

    A Don Viglietti e demais artistas uruguaios, por sua msica, sua luta e sua mensagem

    inspiradoras.

    Muito obrigado a todos!

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    No hay proceso social o de cambio poltico mudo.

    Necesariamente tiene voces, voces cantadas, voces escritas,

    voces firmadas. Todo ese perodo histrico de rebelin que

    existi en el Uruguay tuvo voces (...)

    Lo que ocurre es que los procesos histricos pasan y lo que

    sobrevive es un pensamiento, sea de tipo poltico o cultural,

    como el que abarca la cancin. Por eso t ests estudiando a

    partir de estos artefactos, porque es lo que queda.1

    1 VIGLIETTI, Daniel in: VESCOSI, Rodrigo. Ecos revolucionarios: Luchadores sociales. Uruguay 1968-73.

    Montevideo: Nos editorial, 2001, p. 445.

  • 3

    RESUMO

    O trabalho aborda a msica popular uruguaia e a relao dos artistas engajados em

    determinadas causas polticas e sociais, de carter revolucionrio, com o processo de

    escalada autoritria no pas durante o final da dcada de 60 e incio dos anos 70. A

    pesquisa, portanto, se refere msica como manifestao social e poltica durante o perodo

    que precede o golpe militar no Uruguai, mais especificamente o perodo de conformao do

    Estado autoritrio no pas, durante os governos de Pacheco Areco (1967-71) e Juan Maria

    Bordaberry (1972 - Junho de 1973). A anlise ser centrada no cancioneiro de Daniel

    Viglietti, suas canes e poesia, bem como sua atuao e militncia.

    Ser levada em considerao a tradio da poesia poltica rioplantese, denominada

    gauchesca, e a relao desta com o cancioneiro popular produzido no perodo acima

    proposto. Tal relao pode ser entendida como uma apropriao de um discurso radical j

    presente na poesia poltica desde o sculo XIX que ser utilizado pelos artistas engajados

    da dcada de 1960. Esta teria sido uma das estratgias de conscientizao e luta de setores

    artsticos organizados em torno de propostas de mudana na regio, em um primeiro

    momento, e de resistncia e denncia escalada autoritria, em momento posterior.

    Tambm ser realizada uma anlise do papel do intelectual artista e de sua relao com a

    sociedade civil e movimentos polticos no perodo.

    Por fim, ser feita a apresentao e anlise do cancioneiro de Daniel Viglietti com a

    inteno de compreender sua produo artstica a partir de temticas que se inseriam nos

    debates e discusses polticas do perodo e de sua relao com as propostas de

    transformao estrutural das sociedades latinoamericanas via reforma ou revoluo.

    PALAVRAS-CHAVE: msica popular uruguaia, artistas e intelectuais; poesia

    poltica;

  • 4

    ABSTRACT

    This project deals with the uruguaian popular music and the engaged artists relations with

    some of the social and political issues related with revolucionary causes, and the

    authoritarian escalade process in that country within the late 60's and early 70's. The

    research refers to music as a social and political manifestation during the period that

    preceds the military coup in Uruguay, more specificaly the period that the authoritarian

    State is raising, during Pacheco Areco's government (1967-71) and Juan Maria

    Bordaberry's government (1972 June of 1973).The analisys is focused in Daniel Viglietti,

    his songs and poetry, as well as his actuation and militancy.

    In this analysis the tradition of the political poetry of the Rio da Prata region, called

    gauchesca, will be considered, as well as its relation with the poetry and the popular artists

    work during the studied period. The relation between both can be understood as the

    apropriation of an authoritarian speech that already existed in the political poetry since the

    nineteenth century, and that was used by the engaged artists of the 1960 decade as one of

    the strategies of awareness and struggle for changes, at first, and later on as a strategy of

    resistence and denouncement.

    The research will also analyse the intelectual artist role and its relation with the civil society

    and political movements that took place in that period.

    Finally, the research analyses Daniel Viglietti's work as an intent to comprehend his artistic

    prodution and its relation with the political contest and transformation proposals then

    existing.

    Keywords: uruguaian popular music, artists and intellectual, political poetry

  • 5

    Sumrio

    INTRODUO ................................................................................................................ 7 1. CIELITO CIELO DE HIDALGO, CIELO DE BARTOLOM L HACE UN SIGLO QUE CANTA, Y NOSOTROS NO HACE UN MES....

    A POESIA POLTICA DA GAUCHESCA ............................................................................. 22

    1.1 A gnese da gauchesca e a tradio da poesia poltica no Prata ............................. 23

    1.1.1 Hidalgo O poeta dos gauchos artiguistas .......................................................... 24

    1.1.2 A Gauchesca durante a Guerra Civil .................................................................... 34

    1.1.3 A gauchesca, expresso da barbrie ou expresso literria nacional? ............... 41

    1.1.4 A gauchesca resiste ao sculo XX, j o gaucho .................................................... 48

    1.2 Cancioneiro popular e poesia gauchesca .................................................................. 53

    1.3 O cancioneiro popular uruguaio ................................................................................ 56

    1.4 A gauchesca revisitada apropriao ou aproximao de um discurso radical ..... 62

    2. INTELECTUAIS, CULTURA E REVOLUO A CANO POLTICA ................................ 69

    2.1 Contexto social, poltico e cultural dos anos 60 contracultura e revoluo ......... 73

    2.1.1 Uruguai: Cultura e sociedade ............................................................................... 80

    2.1.2 Cena musical - o rock uruguaio e o candombe beat ............................................ 85

    2.2 A cano poltica na Amrica Latina Argentina, Chile, Cuba, Uruguai .................. 91

    2.2.1 O Manifesto do Nuevo Cancionero argentino ..................................................... 93

    2.2.2 A Nueva Cancin Chilena ..................................................................................... 99

    2.2.3 O Festival da Cano de Protesta e a Nueva Trova Cubana .............................. 102

    2.2.4 Uruguai e a cano de propuesta um compromisso social .......................... 109

    2.3 Daniel Viglietti o desalambrador das conscincias .............................................. 113

    2.3.1 O intelectual engajado .................................................................................... 117

    2.3.2 Daniel Viglietti - Pensamento, reflexo e ao poltica ..................................... 123

    2.4. Militncia e represso ............................................................................................. 126

  • 6

    3. PAPEL CONTRA BALA NO PUEDE SERVIR, CANCIN DESARMADA NO ENFRENTA FUSIL - TEMTICAS E LETRAS DAS CANES DE DANIEL VIGLIETTI ..........................................139

    3.1 Escutando, cantado e interpretando a cano- anlise terica sobre a cano

    poltica - Temticas ........................................................................................................ 141

    3.1.1 Principais temticas arroladas nas canes De Viglietti .................................... 142

    3.2 Quien los llam? Antiimperialismo no cancioneiro de Daniel Viglietti ................ 142

    3.3 Temtica antioligrquica: reforma agrria, trabalho e explorao no campo ...... 150

    3.3.1 Trabalhadores rurais .......................................................................................... 150

    3.3.2 Reforma agrria ................................................................................................. 155

    3.3.3 Los chuecos se junten exdo rural e marginalidade.........................................163 3.4 Temtica da revoluo: luta armada, guerrilha, o homem novo e o papel das foras

    armadas .......................................................................................................................... 165

    3.4.1 Luta armada, guerrilha e revoluo ................................................................... 166

    3.4.2 O homem novo e a revoluo ............................................................................ 176

    3.4.3 Foras Armadas e revoluo .............................................................................. 182

    CONSIDERAES FINAIS .............................................................................................188 REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ...................................................................................192 REVISTAS E PERIDICOS .............................................................................................198 WEB STIOS ACESSADOS .............................................................................................199 DISCOGRAFIA DE DANIEL VIGLIETTI.............................................................................199 Anexo A Reproduo das capas dos discos de Daniel Viglietti 1963-1973 .................................200 Anexo B Referncias das canes de Daniel Viglietti 1963-1973 .................................................202

  • 7

    INTRODUO

    A dcada de 1960 na Amrica Latina foi um perodo particularmente rico na

    produo artstica e cultural - uma produo com um sentido determinado pelo

    engajamento e compromisso dos artistas em causas polticas e sociais. No cenrio musical

    se desenvolveu um movimento que buscava nos ritmos, instrumentos e potica, com o

    resgate do folclore (nacional ou regional), uma msica considerada autenticamente popular.

    Essa msica se revestiu, em determinados momentos, de um carter contestatrio, por

    vezes revolucionrio, em um momento politicamente peculiar e dramtico para a Amrica

    Latina, o do recrudescimento do papel coercitivo do Estado em muitos pases do

    subcontinente.

    Nesse contexto de lutas sociais e mobilizao, o engajamento do mundo artstico

    foi importante. Os artistas e o mundo da arte estavam ligados a questes consideradas

    cruciais para a conformao de uma sociedade que permitisse maior participao

    econmica, poltica, social e cultural para todos.

    A msica popular pode ser entendida, a partir de seu papel, em diversos mbitos de

    uma sociedade, como manifestao social, poltica e ideolgica dos agentes sociais em

    momentos especficos de sua histria.2 Os estudos relacionados msica em sua interface

    com aspectos polticos, sociais e culturais tm se constitudo como um prolfico campo de

    investigao histrica. Uma abordagem histrica que releve a relao entre sociedade,

    poltica e msica pode contribuir para a compreenso de certos elementos importantes de

    um dado perodo histrico.

    2 A msica associada aos ideais de transformao na sociedade contempornea remete Revoluo Francesa,

    onde se produziu um cancioneiro com uma funo social e poltica especfica. No incio do sculo XX, as

    vanguardas estticas de diversos pases europeus tiveram pontos de contato com o iderio revolucionrio dos

    movimentos operrios, principalmente aps o sucesso da Revoluo Russa. Na Espanha, segundo Hagemayer,

    esse processo se verifica na trajetria dos intelectuais da gerao de 1927. Muitos destes intelectuais

    participaram da articulao do cancioneiro antifascista durante a Guerra Civil Espanhola. Ver

    HAGEMEYER, Rafael Rosa. A Identidade Antifascista da Guerra Civil Espanhola. Tese de Doutorado em

    Histria- IFCH UFRGS, 2004, p. 302.

  • 8

    A pesquisa desenvolvida pretende analisar a msica popular enquanto elemento de

    mobilizao e contestao da sociedade civil em relao escalada autoritria do Estado no

    Uruguai durante o final da dcada de 1960 e incio da dcada de 1970..3 A temtica,

    portanto, se refere msica como manifestao social e poltica durante o perodo que

    precede o golpe militar no Uruguai, mais especificamente o perodo de conformao do

    Estado autoritrio no Pas, durante os governos de Pacheco Areco (1967-71) e Juan Maria

    Bordaberry (1972 - Junho de 1973) .4 A anlise ser centrada na msica popular uruguaia,

    no perodo que abrange os anos de 1967 a 1973 - momento de crise econmica, da atuao

    marcante dos movimentos sociais, polticos e sindicais organizados em torno de projetos de

    superao dos problemas estruturais do pas, por um lado, e da escalada do autoritarismo do

    Estado, da represso aos movimentos sociais e da violncia como elemento de paralisia e

    controle da sociedade, por outro.

    A msica popular, enquanto forma de contestao social e poltica e como elemento

    de mobilizao da sociedade civil uruguaia em um momento crtico para o Pas esteve

    associado a ideias, aes e posturas poltico-ideolgicas de grupos ou agentes sociais

    especficos, organizados politicamente, ou de parte da sociedade civil. No caso da presente

    investigao, o estudo da msica popular, das canes e temticas recorrentes nestas, bem

    como a trajetria de alguns compositores e intrpretes dessa msica pode proporcionar uma

    contribuio para o entendimento de certas condies polticas, sociais e culturais presentes

    na Amrica Latina, e em especfico no Uruguai no final da dcada de 1960 e incio de

    1970. Permite tambm analisar elementos comuns entre os movimentos musicais do

    Uruguai e pases vizinhos no perodo, e em que sentido esses movimentos convergiam no

    que se refere s lutas sociais das sociedades latino-americanas.

    importante, nesse sentido, ressaltar qual msica relevante para o trabalho bem

    como contextualiz-la no recorte temporal definido. A msica popular como hoje

    entendida, concebida e consumida, e especificamente o formato cano um produto do

    3 PADRS, Enrique Serra. Como el Uruguay no Hay: Terror de Estado e Segurana Nacional Uruguai

    (1968-1985): do Pachecato Ditadura Civil-Militar. Tese de Doutorado em Histria-IFCH-UFRGS. 2005. 2

    v. 4 VARELA, Gonzalo. De la Republica Liberal al Estado Militar. Crisis Poltica em Uruguay:1968-1973.

    Montevideo: Ediciones del Nuevo Mundo, 1988.

  • 9

    sculo 20. Sua criao e desenvolvimento se relacionam com a urbanizao e o surgimento

    das camadas populares e mdias nas grandes cidades. A msica surgiu como forma de

    entretenimento e lazer das massas urbanas se apresentando basicamente enquanto pea

    musical instrumental ou cantada, difundida por suporte escrito-gravado, como uma partitura

    ou fonograma, ou como parte de espetculos com apelo popular. A formao de um

    mercado musical data do incio do sculo 20, quando o alcance e a penetrao da msica

    popular se vincularam ao desenvolvimento tecnolgico e comercial da indstria fonogrfica

    associado ao desenvolvimento dos meios de comunicao de massas.5

    Tambm preciso compreender o papel dos poetas, compositores e intrpretes

    dessa msica nesse momento histrico das sociedades latino-americanas. Esses artistas

    engajados faziam msica com forte componente poltico e de crtica social. Esse discurso se

    inseriu, de certa forma, no marco da produo musical americana denominada de cano de

    protesto - movimento musical que se desenvolveu nos anos 60 e se relacionou com as

    transformaes polticas, sociais e culturais pelas quais passava parte das sociedades

    ocidentais nesse perodo. Essa msica, em sua forma discursiva, possua algumas

    caractersticas mais ou menos comuns: luta pela transformao da sociedade; crtica s

    instituies tradicionais e ao status quo; engajamento poltico; crena na revoluo. Esse

    engajamento do mundo artstico, em especial da msica, teve seus reflexos nos diversos

    pases latino-americanos, cada qual com suas especificidades e caractersticas prprias. No

    caso uruguaio esse cenrio apresentava diversas formas de manifestao, e a msica

    popular uruguaia teve repercusso e importncia na vida social, poltica e cultural do Pas.

    No Uruguai, msicos, poetas, intrpretes e compositores com uma formao

    musical e intelectual destacada, como Alfredo Zitarroza, Daniel Viglietti, duo Los

    Olimareos, Anibal Sampayo, Numa Moraes, entre outros, tiveram uma prolfica produo

    artstica e contriburam para a difuso da msica popular uruguaia. Produziram uma arte

    engajada, na qual o artista acreditava ter um papel poltico e um compromisso social

    definidos. Entende-se engajamento como a atuao do intelectual,6 no caso o artista, o

    5 Ver NAPOLITANO, Marcos. Histria & Msica. Belo Horizonte: Autntica, 2002, pp. 11-13.

    6 SARTRE, Jean-Paul. Que a literatura? So Paulo: Atica, 1994.

  • 10

    poeta, o cancionista, por meio de sua produo artstica a cano, a poesia colocada a

    servio das causas pblicas e humanistas. O artista engajado compreendia seu trabalho

    como um instrumento a servio da sociedade: a arte produzida tem sentido na medida em

    que proporciona ferramentas crticas para o entendimento do mundo e contribui na busca de

    caminhos para superao dos problemas dessa sociedade. Dessa forma, pode-se afirmar que

    havia um compromisso social entre os promotores da msica popular uruguaia nesse

    perodo, compromisso em que a arte, nesse caso a msica, se vinculava as questes

    prementes de sua poca. Os intelectuais e artistas engajados nesse trabalho tinham um papel

    poltico ativo perante a sociedade, e a msica seria sua contribuio, ainda que limitada,

    para a transformao desta: teria a funo de denncia das contradies e desigualdades

    existentes, bem como de conscientizao e mobilizao dos excludos. o entendimento da

    msica popular sob uma perspectiva politicamente contestadora, antiautoritria, de crtica

    social e revolucionria. A fuso de ritmos e gneros tradicionais e populares, como o

    candombe, a murga, os cielitos, huellas e milongas,7 com letras e composies de teor

    poltico e social contundentes poderiam ser estratgias deliberadas de aproximao entre o

    artista e a sociedade civil, mas tambm demonstravam o compromisso dos cancionistas

    (compositores e intrpretes) com a sociedade. As letras das canes remetiam aos

    problemas quotidianos do homem simples, do campo e da cidade, de suas agruras, do

    desemprego, das injustias sociais, em uma tradio j existente nesse cancioneiro.8

    7 Uma breve explicao sobre os ritmos e gneros citados:

    Candombe msica de percusso de origem afro-uruguaia. O ritmo acabou por se tornar uma manifestao cultural da populao negra que se radicou em bairros populares de Montevidu a partir do sculo XIX.

    Durante o sculo XX o candombe se difundiu, tornando-se um dos ritmos musicais mais populares do Pas.

    Durante o carnaval, as agrupaes que tocam o candombe se apresentam pelas ruas da cidade nas

    denominadas llamadas.

    Murga - A murga uma expresso artstica que combina msica, dana e teatro. No Uruguai, a murga

    combina elementos carnavalescos de tradio espanhola com os ritmos afro-uruguaios como o candombe.

    Durante o carnaval, as murgas, como tambm so chamados os grupos, se apresentam para o pblico em

    forma de competio. Com forte componente de crtica social, poltica e humor cido, as murgas uruguaias

    so expresso da cultura popular do pas.

    Estilos, cielito, cifras, milongas - so formas musicais executadas em violo por uma pessoa que canta - pode

    ser um pajador. Muito difundidas no Rio da Prata a partir do sculo XIX, tais formas no tem origem certa:

    teriam se formado a partir de influncias musicais ibricas, indgenas e, sobretudo, africanas ao longo do XIX

    e se consolidado - principalmente a milonga - como ritmos musicais de grande popularidade.

    Para detalhes sobre as origens da msica popular no Uruguai ver: AYESTARN, Lauro. El Folklore Musical

    Uruguayo. Montevideo: Arca, 1979. 8 Ver: HIDALGO, Bartolom. Cielitos y dilogos patriticos. Coleo Letras Nacionales. V. 10. Montevidu:

    Universidad de la Republic, 1969.

  • 11

    Tambm aprofundava outras temticas mais amplas, como a questo fundiria, a represso

    do Estado, a luta armada e a importncia da mobilizao popular para transformao social.

    Nesse perodo, a msica popular, usada como um instrumento de luta poltica e

    social, denunciou o autoritarismo que se conformava, transformando-se em um canal de

    manifestao de determinados setores da sociedade e sendo, dessa forma, apreendida. O

    papel que a msica popular assumiu no momento de escalada autoritria permite avaliar

    aspectos relacionados postura poltica e mobilizao e articulao de grupos sociais

    organizados e de alguns de seus quadros intelectuais - os artistas.

    A pesquisa tem por objetivo principal apreender as formas de atuao poltica de

    determinados quadros intelectuais - msicos, compositores, intrpretes e poetas vinculados

    msica popular - e sua relao com o Estado e com a sociedade. Partindo dessa premissa,

    pretende-se analisar a msica popular no Uruguai, seu impacto na sociedade, bem como seu

    papel enquanto instrumento de crtica poltica e social. Sero consideradas:

    a) As origens da poesia poltica e a influncia do cancioneiro produzido na Amrica

    Latina;

    b) A postura dos artistas em relao sociedade, suas convices e posies a respeito

    do seu tempo;

    c) O engajamento ou apoio aos movimentos sociais, agremiaes sindicais e

    estudantis, partidos polticos;

    d) A perspectiva poltica e ideolgica dos cancionistas e como ela influenciou o

    trabalho e a atitude destes diante da escalada autoritria no Pas;

    e) A anlise e o levantamento das msicas, temticas recorrentes e do seu contedo,

    assim como sua relao com as tenses sociais e polticas do perodo.

    Devido ao carter da msica, determinados aspectos terico-metodolgicos

    prprios desse tipo de fonte, suas possibilidades e limitaes enquanto documento, bem

    como os enfoques e abordagens possveis no uso da msica como fonte histrica, devem

    ser esclarecidos. Um breve levantamento das principais vertentes na pesquisa da msica

  • 12

    popular ser apresentado, levando-se em considerao aspectos gerais da temtica da

    msica popular nos reas de investigao pertinentes. Tambm sero apresentadas as

    possveis abordagens na utilizao da msica enquanto objeto e fonte na investigao

    historiogrfica. Por fim, sero debatidas questes terico-metodolgicas especficas do uso

    das canes e de seu estatuto enquanto fonte.

    A msica depende das condies sociais e culturais de um momento, alm das

    possibilidades tcnicas especficas, da sua historicidade - a possibilidade de apreender

    determinado perodo a partir da produo cultural deste. A msica, desde seus aspectos

    estritamente artsticos ou estticos at as possibilidades de sua produo e reproduo por

    tcnicas e inovaes tecnolgicas especficas tambm se d por condies externas a ela

    prpria, ou no diretamente vinculadas a sua prpria feitura, ao menos em parte. Devido ao

    seu carter perene e universal, a msica pode ser reapropriada, transformada, ressignificada

    por outras geraes, setores sociais e polticos, e adquirir outros sentidos e significados, que

    podem diferir muito de seu contexto ou texto inicial. De qualquer forma, uma manifestao

    ou produo artstica e musical tambm, e principalmente, produto de seu tempo e das

    condies materiais, sociais e culturais disponveis para sua realizao em determinado

    momento histrico.

    Portanto, possvel afirmar que as canes possuem uma concretude especfica, e

    podem ser apreendidas pela relao que possuem com um momento histrico e com os

    agentes histricos envolvidos nesse momento. Disso advm um importante aspecto na

    relao com a histria: alm do valor esttico inerente as diversas formas de arte, a msica

    pode ser apreendida pelo valor documental e testemunhal que possui, podendo, ainda, ser

    entendida como vestgio de um determinado perodo histrico e fonte que permite uma

    aproximao com determinado aspecto do passado. Mas como fazer essa relao entre

    histria e msica? Uma aproximao possvel pode ser estabelecida por uma histria social

    da msica. Com essa abordagem, entende-se que a msica, como outras formas de arte, s

    tem razo de ser na sociedade, como produto desta, a partir da relao entre criador e meio,

    entre cancionista e seu entorno, com a mediao arte/sociedade, produo artstica e mundo

    que a envolve. A produo artstica resultado de uma ampla gama de relaes sociais,

  • 13

    culturais, polticas e econmicas que ocorrem em uma determinada sociedade em um

    determinado momento histrico. Uma abordagem sobre este objeto, a msica, levando em

    considerao os estudos musicolgicos e histricos possibilitaria compreender o trabalho

    artstico em sua insero na sociedade, bem como entender a msica como uma ao

    dotada de sentido social, e aportar questes valiosas enquanto uma forma de aceder a uma

    determinada realidade. No caso da interseo msica-histria, pode-se assinalar um

    problema fundamental: como relacionar a esteticidade de uma obra de arte, no caso a

    cano, frente a sua historicidade, ou seja, o valor esttico inerente obra confrontado com

    seu valor documental, enquanto testemunho de uma realidade passada9.

    Uma alternativa possvel para solucionar esse problema entre os campos da

    musicologia e da histria social aponta para os estudos interdisciplinares, com aportes de

    diversos campos do conhecimento resultando em novas temticas, que por sua vez

    demandam outras abordagens, enfoques e metodologia. Samuel Claro Valds enuncia que:

    El estudio de la msica de todos los tiempos arroja luz sobre el acontecer

    social, poltico, religioso, econmico, cultural o costumbrista de una

    poca determinada, y se transforma en una importante disciplina aliada de

    la historia a quien nutre de puntos de vista que tradicionalmente salvo honrosas excepciones el historiador no ha tomado en cuenta10

    Claro Valds aponta para a contribuio da musicologia na interseo entre histria

    e msica: um aporte ao conhecimento do homem e seu comportamento na sociedade ao

    longo do tempo. Na relao com a histria, afirma que a produo musical est entre as

    aes humanas ao longo do tempo. Usar a msica como uma evidncia histrica uma

    abordagem que permite fazer um recorte analtico a partir de um ponto de vista humano,

    cultural, artstico e histrico.11

    Sobre os problemas terico-metodolgicos na abordagem

    msica e histria a relao com as demais cincias humanas permitiu uma amplitude

    disciplinar que produziu maior contanto da histria com reas como a musicologia,

    sociologia, lingustica, como fontes metodolgicas. J as cincias sociais se aproximaram

    9 MUSRI, Ftima Graciela. Relaciones conceptuales entre musicologia e historia: anlisis de una

    investigacin musicolgica desde la teoria de la historia. Revista Musical Chilena (online). Jul. 1999, vol. 53.

    n 192, p. 13-26. ISSN 0716-2790. http://www.scielo.cl/scielo.php . Acesso em 07/04/2008. 10

    CLARO VALDS. "La musicologa y la historia. Una perspectiva de colaboracin cientfica" (discurso de

    incorporacin como acadmico de nmero del Instituto de Chile), Boletn de la Academia Chilena de la

    Historia, N 87, 1976, pp. 53-96. 11

    Ibidem.

  • 14

    da historia para aprender a operativizar a dimenso temporal, indispensvel na

    compreenso dos processos sociais:

    La msica que omos se va a entender entonces como producto de acciones

    humanas contextualizadas histrica y culturalmente. La comprensin de los

    procesos histrico-musicales necesitar de la bsqueda de relaciones

    mltiples entre los hombres, con el/los grupo/s socio-culturales, la

    dimensin micro y macro temporal, su produccin y comunicacin

    musicales. Esto lleva directamente a la revisin y ampliacin de enfoques,

    de las fuentes documentales que se consideran y las metodologas que se

    emplean12

    .

    O autor aponta para a importncia dos estudos da msica latino-americana para a

    histria da regio na medida em que as pesquisas possibilitem abordar aspectos sociais,

    polticos, religiosos, econmicos de um determinado perodo. Para Merino, a msica pode

    ser apreendida por sua prtica, ou seja, pelos elementos que compem o fazer musical, as

    prticas musicais, entre estas o texto. O texto musical que "debe estudiarse en el contexto

    de su produccin, circulacin y recepcin en la sociedad, a fin de alcanzar una

    comprensin musicolgica integral de la obra creativa".13

    Nesse caso, ressalta-se a

    importncia do contexto para a compreenso do objeto. Contexto que pode ser analisado

    considerando o ambiente musical do pas ou regio, o mbito cultural, os aspectos sociais

    polticos e ideolgicos de uma sociedade.

    No caso especfico dos trabalhos de pesquisa acadmicos, atualmente, h uma

    tendncia em buscar articulao interdisciplinar entre as reas de Cincias Humanas

    (Histria, Sociologia, Antropologia), Letras e Comunicao. Dentro desse contexto,

    Napolitano assinala que a grande contribuio dos historiadores seja a de fazer avanar

    os estudos de maneira interdisciplinar, alm de renovar o ndice de temas ligados

    histria da msica popular, incorporando novos eventos, novas fontes e novos problemas.

    14

    Essa tendncia procura relacionar as diversas reas de produo de estudos sobre

    msica popular, com objetivo de produzir um campo slido e prolfico de investigao.

    12

    MUSRI, 1999. 13

    MERINO, Luis. "Hacia la convergencia de la musicologa y la etnomusicologa desde una perspectiva de la historia", RMCh, XLIII/172 (julio-diciembre), 1989, pp. 41-45. 14

    Ibidem, p. 150.

  • 15

    Tambm ressalta as peculiaridades terico-metodolgicas da msica enquanto fonte e como

    objeto de estudo. Dentro dessa perspectiva de esforos interdisciplinares de investigao,

    acrescentam-se os trabalhos da International Association for the Study of Popular Music

    (IASPM), que rene pesquisadores da msica de diversas reas e pases. Seu ramo latino-

    americano foi criado em 2000, reunindo pesquisadores da msica popular de diversas

    reas.15

    Entre os trabalhos apresentados em congresso, que tratam da msica popular

    uruguaia na dcada de 1960, tm-se os trabalhos de Denise Milstein.16

    Em artigo, Milstein

    realiza um ensaio comparativo entre os processos de escalada autoritria no Brasil e no

    Uruguai e as "respostas" da sociedade civil e dos cantautores da msica popular a esse

    quadro em ambos os casos na dcada de 1960. Ela prope uma anlise comparativa entre

    os movimentos musicais no Brasil e no Uruguai, buscando aproximaes e diferenciaes

    entre as propostas musicais e postura dos cantautores, assim como sua relao com o

    Estado em cada pas. A anlise, no entanto, acaba por apresentar os processos polticos de

    cada pas e apontar para o surgimento de uma arte engajada no perodo sem realmente

    construir as pontes comparativas entre ambos. Essa insuficincia visvel principalmente

    no que se refere comparao dos momentos da escalada autoritria em cada pas (distintos

    na dcada de 1960), na anlise comparativa dos movimentos musicais e na relao entre

    arte e poltica na sociedade brasileira e uruguaia durante os anos 60.

    No Uruguai, os trabalhos sobre msica popular podem ser divididos em: estudos de

    cunho folclrico - pesquisas de campo realizadas por musiclogos especializados e

    pesquisadores diletantes durante a dcada de 1950; biografias dos principais nomes da

    15

    No marco dos estudos na Amrica Latina o objetivo da IASPM contar con una red que incorpore y aglutine de manera activa a los investigadores de cualquier disciplina dedicados al estudio de la msica

    popular en Amrica Latina, sean ellos latinoamericanos o no. La rama agrupa a cerca de 250 investigadores

    de Amrica Latina, EE. UU., Canad, Gran Bretaa, Espaa, Francia e Italia dedicados al estudio de las

    msicas populares latinoamericanas, con especial nfasis en las msicas urbanas y mediatizadas, presentes y

    pasadas (...)En cuanto a la extensin disciplinaria de la rama, ella congrega a estudiosos de la musicologa,

    la etnomusicologa, la educacin musical, la historia, la antropologa, la sociologa, los estudios literarios y

    el periodismo, entre otras, formando una extensa red interdisciplinaria necesaria para los estudios de un tipo

    de objeto de estudio diverso como el de la msica popular. Esta diversidad se ha expresado en seis congresos

    internacionales (el primero de ellos, fundacional): La Habana 1994, Santiago 1997, Bogot 2000, Mxico

    2002, Ro de Janeiro 2004, Buenos Aires 2005 y La Habana 2006. Ver: http://www.hist.puc.cl/historia/iaspmla. 16

    MILSTEIN, Denise. Interaciones entre Estado y musica popular bajo autoritarismo en Brasil y Uruguay. In:

    Anais do V Congresso Latino-americano da Associao Internacional para o Estudo da Msica Popular. Rio

    de Janeiro, 21 a 25 de junho de 2004. Acesso em internet: http://www.hist.puc.cl/historia/iaspmla.html. Ver

    tambm: MILSTEIN, Denise & DONAS, Ernesto. Cantando la ciudad. Montevidu: Nordan, 2003.

  • 16

    msica popular; trabalhos que definem essa msica enquanto movimento ou corrente,

    sobretudo a partir dos anos 80; compilaes, guias e listas de obras musicais, discografia, e

    de artistas da msica popular. O intento de definir o Canto Popular Uruguaio (CPU)

    ocorreu quando da reabertura poltica no pas na dcada de 1980.17

    Poetas, jornalistas,

    msicos e pesquisadores reunidos no marco das associaes e oficinas surgidas nesse

    perodo passaram a buscar uma definio para o fenmeno da msica popular no Pas. O

    sentido dessa definio tinha diferentes motivaes. Uma de vis eminentemente poltico,

    vinculado ao momento pelo qual passava o Pas, a saber: processo de reabertura poltica

    aps a frustrada tentativa de legitimao da ditadura cvico-militar com a elaborao de

    uma nova constituio para o pas, que foi plebiscitada e rejeitada pela populao uruguaia.

    Outra com sentido de resgate histrico tendo elemento orientador a poesia poltica e social

    tributria do cancioneiro da gauchesca. Por ltimo, a busca de uma definio do que seria o

    CPU possua um vis organizacional: reunir em associaes, grupos de estudo e oficinas,

    cantores, pesquisadores, msicos, estudantes e pblico interessado na msica popular.18

    Esses trabalhos, realizados por jornalistas, estudiosos da msica popular, msicos,

    musiclogos, possuem perspectiva histrica ao utilizar as questes polticas e sociais do

    perodo estudado como contexto para as problemticas especficas das obras. No entanto,

    esto mais comprometidos em definir o movimento musical e suas caractersticas, e marcar

    a importncia da msica popular uruguaia.

    Entre os trabalhos especificamente acadmicos no campo das Cincias Humanas, e

    seguindo a linha da presente investigao, ao menos no que se refere temtica, o enfoque

    nas relaes entre Estado, sociedade e msica, destaca-se o artigo de Sara Lopez, em que a

    autora apresenta, de forma concisa, a atuao poltica de diferentes ramos da cultura no

    Uruguai, como teatro, cinema, literatura e msica.19

    Ela defende que houve um novo

    alinhamento poltico e ideolgico dos intelectuais uruguaios que ocorreu como resposta ou

    17

    Ver: BENAVIDES, Washington. Definiciones: Canto Popular. Canto Popular. Ano 1, n. 1, Montevidu,

    agosto de 1983. p.9. Ver tambm artigo sobre a formao do Taller Uruguayo de Musica Popular:TUMP: Revista Nueva Viola., Ano 1- Montevidu , abril 1984, p. 31. 18

    Nesse perodo surge o TUMP- Taller Uruguayo de Musica Popular, constudo em 05/12/1983 e ADEMPU-

    Asociacin de la Msica Popular del Uruguay. 19

    LPEZ, Sara. La cultura toma partido. In: Revista Encuentros. Centro de Estudios Interdisdisciplinarios

    Latinoamericanos. Facultad de Humanidades y Ciencias de la Educacin. Universidad de La Repblica. N. 7.

    Montevidu: Fundacin de Cultura Universitaria. Julho, 2001, pp. 45-63.

  • 17

    resistncia a interveno, censura e represso estatal s instituies artsticas do pas

    durante o final da dcada de 1960. Aponta para o binio 1968/69 como de fundamental

    importncia para entender a construo de um novo espao poltico onde os intelectuais

    vinculados ao campo artstico passaram a atuar. Espao de atuao poltico-ideolgica de

    artistas de diversos ramos agrupados com objetivos de conformao de uma pauta social e

    poltica possvel de definir como de esquerda. Uma esquerda heterodoxa - marxistas,

    anarquistas, esquerda independente, cristos progressistas - mas que, diante do processo

    de deteriorao das condies socioeconmicas e de recrudescimento das medidas de

    carter restritivo as liberdades civis, se une em torno de um projeto alternativo para o pas.

    Ela vincula o movimento artstico e cultural do pas ao contexto de crise social, apontando

    para o novo papel poltico-ideolgico incorporado pelos quadros intelectuais em um

    momento de crescente autoritarismo estatal. Excetuando este estudo e os trabalhos mais

    amplos sobre a msica popular uruguaia na dcada de 1960, verifica-se uma lacuna no que

    se refere aos estudos mais sistemticos no mbito acadmico das possveis implicaes

    poltico-ideolgicas da msica popular uruguaia e de seus produtores e promotores. Uma

    abordagem do perodo em questo dentro do marco das relaes entre msica, poltica e

    sociedade possui, portanto, relevncia.

    O documento, includas as fontes audiovisuais, deve ter sua anlise realizada a

    partir de uma crtica sistemtica que d conta de seu estabelecimento como fonte histrica

    (datao, autoria, condies de elaborao, coerncia histrica do seu testemunho) e do

    seu contedo (potencial informativo sobre um evento ou processo histrico) 20

    .

    Em relao aos usos de fontes fonogrficas, alguns aspectos devem ser

    considerados, em que o parmetro verbal da cano fundamental para sua realizao

    como objeto musical e, desde que a cano se tornou objeto de pesquisa das Cincias

    Humanas, entender a articulao letra-msica na produo de sentido das canes tem

    sido um dos principais desafios para o pesquisado21

    .

    20

    NAPOLITANO, Marcos. Ibid., p. 266. 21

    NAPOLITANO, Marcos. A Histria depois do papel. In: PINSKY, Carla Bassanesi (org). Fontes

    Histricas. 2 ed. So Paulo: Contexto, 2006, p. 238.

  • 18

    Sobre a seleo do material, algumas premissas, para no incorrer no erro de se

    fazer uma escolha para anlise a partir da sensibilidade musical, gosto pessoal ou acuidade

    crtica do pesquisador, devem ser ponderadas. Levando em considerao as dificuldade e

    limitaes que essa seleo pode induzir, deve-se escolher um corpo documental coerente

    com os objetos do estudo em questo.

    As seguintes fontes fonogrficas foram escolhidas para a investigao:

    composies, poesias musicadas e interpretaes, na forma de canes, de msicos

    considerados, at hoje, referenciais para a msica popular no Uruguaie que tiveram

    importante atuao no recorte temporal da pesquisa. Levando-se em considerao a

    proposta deste estudo, optou-se pelo cancioneiro do msico Daniel Viglietti. Viglietti, sua

    obra e sua trajetria, possuem caractersticas que podem ser analisadas, comparadas e

    relacionadas ao contexto em que se inserem devido sua atuao perante a sociedade e o

    Estado. So critrios para tal escolha: a) sua representatividade no perodo proposto e

    posterior; b) a produo artstica no perodo, em dimenso e qualidade de suas obras; c) o

    fato de ter iniciado a carreira artstica na primeira metade dos 60; d) a utilizao de gneros

    musicais populares latino-americanos; e) a perseguio e/ou represso poltica - censura e

    proibio de venda, porte ou audio de suas canes, de apresentaes pblicas e

    veiculao radial e televisiva - sendo preso e por fim, exilado. Ser considerada, portanto, a

    obra artstica geral desse artista no recorte temporal proposto na pesquisa, ou seja, sua

    produo de meados da dcada de 1960 at o incio da dcada de 1970.22

    Daniel Viglietti

    iniciou sua produo musical em 1963. Seus estudos sobre a msica erudita e popular, e sua

    parceria musical com poetas como Mario Benedetti, fizeram de Viglietti uma das figuras

    proeminentes da msica popular uruguaia. Tambm trabalhou em programas de rdio e

    televiso e colaborou com notas, entrevistas e reportagens em diversos peridicos. Foi

    preso em 1972 por motivaes poltico-ideolgicas, causando comoo no Uruguai e

    22

    Levantamento da produo discogrfica dos cantores por disco/ano no Uruguai: Alfredo Zitarrosa El Canto de Zitarrosa (1965), Canta Zitarrosa (1966), Del Amor Herido (1967), Yo S Quien Soy (1968), Simple

    (1968), Che Vive (1968), Zitarrosa 4 (1969), Canta Zitarrosa (1969), Del Amor Herido(1969), Milonga

    Madre (1970), Simple (1970), Coplas del Canto (1971), Indito (1971), Zitarrosa en el Per (1972), A los

    Compaeros (1972), Adagio en Mi Pas (1973). Daniel Viglietti Seis Impresiones para Canto y Guitarra (1963), Hombres de Nuestra Tierra (1965), Canciones para el Hombre Nuevo" (1968), Canto Libre (1969),

    Canciones Chuecas (1971), Trpicos (1973). Los Olimareos Los Olimareos (1962), Nuestra Razon (1967), Canciones con Contenido (1967), Cielo del 69 (1969), Todos Detrs de Momo (1970), Que Pena

    (1971), Del Templao (1972), Rumbo (1973).

  • 19

    demais pases onde tinha sua obra reconhecida. Exilou-se em 1973, regressando ao pas em

    1984.

    A anlise especfica da discografia e das letras de Viglietti foi relacionada

    discografia geral de outros artistas relevantes no perodo com intuito de compor um

    panorama mais amplo do cenrio musical dos anos 60 no Uruguai e na Amrica. Foram

    utilizados peridicos que circulavam na poca: reportagens, notcias e entrevistas sobre a

    temtica e os artistas. Tambm se utilizou entrevistas realizadas com crticos, estudiosos e

    artistas sobre a produo artstica do perodo - os depoimentos foram usados como

    complemento s demais fontes. O suporte sonoro utilizado para anlise das canes foi o

    fonograma, unidade de gravao de msica, ou fala, ou efeito sonoro. Para este estudo,

    devido s dificuldades e s limitaes ao acesso do material fonogrfico escolhido,23

    diversos formatos foram usados: long playing (LP), compact disc (CD), ou em formatos de

    som digital como o MP3.

    Foi usada a discografia do artista do perodo que abarca seus primeiros trabalhos at

    o incio da ditadura civil-militar no Pas, a saber: de 1963 a 1973; foram analisadas em

    torno de 63 canes de seis discos produzidos e lanados nesse perodo no Uruguai. Esta

    escolha se deve ao fato de que os trabalhos dos artistas terminavam sendo divulgados fora

    do Pas, como coletneas ou compilaes que reuniam canes de diversos discos,

    escolhidas com critrios igualmente variados. Esses fatores terminam limitando as

    possibilidades de analisar uma obra em sua totalidade, dentro da organicidade que uma

    proposta de trabalho possui. Entretanto, analisar as obras lanadas no pas tambm permite

    arrolar as obras pelos selos que operavam no Uruguai e gravavam os artistas na poca, e

    verificar a vendagem das obras no pas.

    As canes foram agrupadas de acordo com temticas recorrentes nos trabalhos que

    podem auxiliar na definio das propostas sociais e polticas dos artistas e vincular as

    mesmas nos debates presentes na sociedade uruguaia. Elucida-se desde j que as canes

    sero analisadas quanto a letra, ou seja, interessa o carter literrio e o contedo poltico

    23

    No formato long playing (LP) a principal dificuldade foi encontrar as obras dos artistas no perodo. Existem

    catlogos disponveis com as obras e canes, mas apesar da catalogao no existem arquivos discogrficos

    completos e o acesso a estes discos fica limitado pesquisa em lojas especializadas e sebos. No formato

    compact disc (CD), encontraram-se compilaes e selees de canes que pretendem abarcar a completude

    do trabalho dos artistas escolhidos e tambm algumas das obras completas do perodo, remasterizadas. O

    formato MP3, por questes de acessibilidade, foi o mais utilizado para a investigao.

  • 20

    destas. Os aspectos poticos e musicais foram considerados de forma secundria, na medida

    em que forem relevantes para os objetivos deste estudo.

    Por fim, foi feito estudo de caso especfico com letras de canes mais significativas

    de acordo com os eixos temticos apresentados. A ideia foi analisar canes em cada uma

    das temticas arroladas, tendo como objetivo comparar letras e temticas entre si.

    Com a anlise bibliogrfica e investigao das fontes realizadas, algumas premissas

    que orientam a pesquisa puderam ser apontadas. Partindo do pressuposto que houve um

    processo violento, seja no sentido poltico, social e econmico, que radicalizou o confronto

    entre parte da sociedade uruguaia e o Estado e exps as contradies sociais existentes

    nesse perodo, pretende-se assinalar que:

    a) Houve uma resposta de diversos setores da sociedade ao processo de escalada

    autoritria.

    b) Essa resposta crescente represso estatal ocorreu em diferentes instncias, em

    campos mltiplos de atuao da sociedade.

    c) Entre esses campos multifacetados, o mundo da arte teve relevante atuao na

    luta poltica e social do perodo.

    d) Os artistas engajados nessa luta entendiam que possuam um papel social e

    poltico definido, como agentes histricos ativos que poderiam auxiliar para a

    transformao de uma determinada realidade. Por meio de sua produo, portanto,

    eles poderiam contribuir para tal transformao.

    A dissertao subdividi-se em trs captulos nos quais se pretendeu atingir os

    objetivos propostos. No primeiro captulo, so analisadas as origens da poesia poltica na

    regio do Prata no sculo XIX, com o objetivo de mapear o surgimento do cancioneiro de

    cunho social e politico denominado de gauchesca.Essa perspectiva de anlise da formao

    e elaborao da gauchesca auxiliou na compreenso de determinados elementos

    caractersticos do discurso poltico presente no cancioneiro rioplatense e na compreenso

    dos gneros e estilos musicais produzidos no perodo, os quais fizeram e fazem parte da

    tradio musical e potica dos pases platinos e do sul do Brasil ainda hoje.

    O segundo captulo tem como objetivo compreender o papel dos intelectuais e

    artistas no mbito das relaes polticas e no contexto social e cultural do final dos anos 60.

  • 21

    Nesse sentido, adotou-se a noo de engajamento artstico para definir a categoria de

    poetas, intrpretes, msicos, escritores, cineastas, diretores de teatro e atores, que, em

    associao ou individualmente, tiveram sua produo artstica organicamente associada ao

    engajamento poltico. Dessa forma, associado a essa noo de intelectual artista, agrega-se

    a ideia de engajamento artstico o intelectual fruto de seu tempo e das contradies de sua

    sociedade. feita tambm uma anlise do desenvolvimento da msica popular uruguaia na

    dcada de 1960 e sua relao com a escalada autoritria no Uruguai. Pretende-se com isso,

    aferir as formas com que a represso estatal incidiu sobre os diversos setores da sociedade

    uruguaia, em especial sobre o movimento artstico-musical no Pas, sendo possvel, ainda,

    apreender sobre as relaes poltico-ideolgicas presentes na construo do denominado

    Canto Popular Uruguaio24

    no final da dcada de 1970, a qual teve sua gestao nos anos 60.

    No terceiro captulo, realiza-se a anlise das canes do artista escolhido. Pretende-

    se abordar o perodo a partir de um recorte temporal do trabalho, levando-se em

    considerao dois momentos: o marco poltico-social que iniciou com o perodo do

    denominado Pachecato at o golpe de Estado de 27 de junho de 1973; e a trajetria

    profissional do artista, principalmente no que se refere ao incio de sua carreira como cantor

    e intrprete, divulgao de suas canes nas rdios e, sobretudo, aos seus primeiros

    trabalhos fonogrficos.

    Dessa forma, o recorte temporal se amplia para o incio da dcada de 1960. Com

    isso pretende-se verificar se houve alguma relao entre o trabalho artstico e as

    transformaes sociais e polticas pelas quais passava a sociedade uruguaia, e se ocorreram

    modificaes significativas no trabalho e na atuao do artista nesse momento. Para isso,

    foi realizada uma anlise comparativa das canes durante esse perodo, com o objetivo de

    relacionar a discografia e as canes com o perodo estudado. Por fim, pretende-se agrupar

    e categorizar as msicas por temticas, vinculando-as com o recorte temporal realizado.

    24

    Ver FABREGAT, Aquiles & DABEZIES, Antonio. Canto Popular Uruguayo. Buenos Aires: El Juglar,

    1983, pp. 9-10. Ver tambm: PETRONIO ARAPI, Tabar. Las Voces del Silencio: Historia de Canto

    Popular -1973-1984. Montevideo: Fonam, 2006.

  • 22

    1. CIELITO CIELO DE HIDALGO, CIELO DE BARTOLOM L HACE UN SIGLO QUE CANTA, Y NOSOTROS NO HACE UN MES....

    A POESIA POLTICA DA GAUCHESCA

    La cancin poltica tiene em Uruguay un temprano desarrollo. Los cielitos y dilogos patriticos de Bartolom Hidalgo inauguran el

    gnero en los incios mismos de la poesia y la historia uruguayas. Mario Benedetti

    25

    O primeiro captulo trata das origens da poesia poltica na regio do Prata no sculo

    XIX, com o objetivo de mapear o surgimento do cancioneiro de cunho social e poltico

    denominado de gauchesca.

    A poesia poltica se inseriu no marco dos processos de independncia da Amrica

    espanhola, em um primeiro momento, como instrumento de crtica ao Antigo Regime, de

    mobilizao da populao contra as tropas realistas e, sobretudo, como elemento

    propagandstico. Aps as independncias, a gauchesca serviu como arma de propaganda

    nas guerras civis entre faces polticas rivais que lutavam em ambas as margens do Prata.

    Foi usada, nesse perodo, para denunciar os abusos cometidos pelos grupos rivais e marcar

    as posies de cada grupo no marco das lutas polticas de meados do sculo XIX. Tambm

    foi poesia com contedo de denncia social e valorizao da figura do gaucho com Jos

    Hernandez e sua obra. No final desse sculo, a produo literria vinculada tradio

    gauchesca passou a ser considerada parte da identidade e da cultura rio-platense. A

    gauchesca, antes identificada como expresso de uma cultura brbara e arcaica, que se

    direcionava para os setores mais pobres da populao rural, passava a fazer parte do

    patrimnio cultural nacional.

    O objetivo desse captulo ser, portanto, apreender como as origens da poesia

    poltica e da tradio literria da gauchesca se inseriram nas propostas musicais dos artistas

    e poetas uruguaios na dcada de 1960. Esse propsito possibilitou estabelecer pontos de

    anlise para validar algumas premissas.

    A primeira premissa aponta para o uso da gauchesca que, em suas formas literrias

    e musicais e, sobretudo no contedo poltico presente no cancioneiro, foi retomada e

    25

    BENEDETTI, Mario. Daniel Viglietti: Desalambrando. Montevidu: Seix Barral, 2007, p. 59.

  • 23

    renovada na dcada de 1960, por intelectuais, poetas, cantores, que reivindicaram essa

    tradio em seu vis crtico e como instrumento de conscientizao. Como pretende-

    sesalientar nos prximos captulos, os artistas e intelectuais envolvidos na produo

    literria e musical dos anos 60, entendiam essa produo como parte de um processo de

    emancipao e de reorganizao das foras polticas e sociais inseridas dentro das

    mudanas estruturais por que passavam os pases latinos-americanos em meados do sculo

    XX. queles entendiam ter uma funo de militncia, resistncia, denncia,

    conscientizao e inseriram sua produo artstica como um elemento nesse processo de

    lutas e mobilizao de parte das sociedades latino-americanas. O uso da tradio de poesia

    poltica atendia, portanto, a objetivos polticos e ideolgicos26

    , que muitas vezes se

    sobrepunham aos objetivos estticos e artsticos presentes na poesia ou na cano. Dentro

    dessa perspectiva, procura-se defender a premissa de que a arte, no caso a msica, no

    podia estar dissociada das questes prementes das sociedades latino-americanas, no caso

    deste trabalho, do Uruguai. A ltima premissa trata do cunho ideolgico do uso da tradio

    potica e musical da gauchesca. Assim, prope-se que, durante a dcada de 1960, houve

    um processo de renovao da produo de cultura poltica de esquerda reformista ou

    revolucionria , e que tal processo se estendeu e ganhou fora nas artes, sobretudo na

    msica, na literatura, no teatro e no cinema. Um dos objetivos dessa produo artstica seria

    de dilogo com as massas, de utilizar o teatro, o cinema, a literatura e a cano como um

    instrumental para auxiliar na tomada de conscincia da classe trabalhadora. E a arte,

    includa a msica, seria um instrumento importante nesse processo de conscientizao.

    1.1 A gnese da gauchesca e a tradio da poesia poltica no Prata

    A associao entre a tradio da gauchesca, da poesia poltica no Prata, com o

    movimento musical da dcada de 1960, sobretudo a msica engajada, permite entender

    26

    O entendimento de ideologia que ser usado ao longo da dissertao se refere ao que Norberto Bobbio

    define como significado fraco do termo onde: as ideologias so sistemas de ideias conexas com a ao, que compreendem tipicamente um programa e uma estratgia para a sua atuao e destinam-se a mudar ou defender a ordem poltica existente. Tem, alm disso, a funo de manter conjuntamente um partido ou outro grupo empenhado na luta poltica (Carl J. Friedrich, Man and his government, New York 1963, p. 89). A esta noo de ideologia estaria contraposta a concepo originria desenvolvida por Marx - o significado forte - entendida como falsa conscincia das relaes de domnio entre as classes. Ver: BOBBIO, Norberto, MATEUCCI, Nicola, PASQUINO, Gianfranco. Dicionrio de Poltica. Vol.1. 11 ed, Braslia:

    UNB, 1998, pp. 584-599.

  • 24

    como uma tradio existente pode ser revisitada e reinterpretada, num processo de

    apropriao dessa tradio que adquire um novo sentido. Para tentar sustentar essa assertiva

    sero analisadas a tradio do cancioneiro da gauchesca nas lutas polticas do rio da Prata,

    no sculo XIX, e a importncia dos cielitos do poeta oriental Bartolom Hidalgo nesse

    processo. Essa tradio foi revisitada pelos artistas da msica popular na dcada de 1960,

    que utilizaram o cancioneiro tradicional rioplatense e os aspectos estticos e o carter

    poltico da gauchesca em suas canes. O uso desse cancioneiro no ocorreu ao acaso, mas

    correspondeu a uma dupla funo que pode ser identificada como usar a tradio de forma

    revolucionria: primeiro, reivindicar uma tradio j existente e com grande aceitao para

    divulgar uma mensagem ou ideia - a poesia gauchesca parte da identidade cultural

    rioplatense; segundo, significava renov-la usando um novo discurso, discurso das diversas

    correntes de esquerdas do perodo, em uma apropriao do tradicional para fins mais

    vinculados a projetos de transformaes social e poltica. Para verificar essa possibilidade,

    sero apresentados aspectos da formao da poesia gauchesca e sua insero nas contendas

    polticas do sculo XIX, desde sua elaborao primeira, inaugurada pelo poeta Bartolom

    Hidalgo, at a obra mestra que representa o gnero, o Martin Fierro, de Jos Hernandez.

    Tambm sero apontadas as principais caractersticas da gauchesca e sua relao com os

    perodos histricos em que esse cancioneiro foi produzido27

    .

    A produo do cancioneiro denominado gauchesca remonta ao perodo colonial

    da regio platina, mas foi durante o processo das emancipaes coloniais e, posteriormente,

    com a construo das naes no Prata durante o sculo XIX28 que essa poesia da gauchesca

    27

    Sobre sua obra ver: AYESTARN, Lauro. La Primitiva Poesia Gauchesca el Uruguay: 1812-1838.

    Montevidu: El Siglo Ilustrado. 1950. Ver tambm: El folklore musical uruguayo. Montevidu: Arca, 1979.

    Ver tambm: RAMA, Angel. Los gauchipoliticos rioplatenses. Montevidu: Arca, S/D. 28

    Sarmiento, ao fazer a descrio dos tipos campeiros na primeira parte do Facundo - Originalidade e Caracteres argentinos: o rastreador, o vaqueano, o gacho malo, o cantor - descrevia o povo do interior

    como sendo apreciador da msica, da dana e da poesia. As danas e cantos populares eram bastante

    difundidos entre a populao do campo, como aponta Sarmiento ao comentar sobre as duas formas

    tradicionais de poesia e baile: a vidalita e o cielito que eram formas de canto popular com coros, acompanhado de guitarra e tamboril cujo ritmo responde a multido, (...) o metro popular em que se

    cantam os assuntos do dia, as canes guerreiras: o gacho compe versos que canta e o populariza pela

    associao que seu canto exige. Em sua viso do homem rural e de seus hbitos e costumes que considerava brbaros e atrasados , Sarmiento tentava comprovar, ao analisar os cantos e danas populares do campo, a rudeza e o estado primitivo do gaucho, que deveria ser erradicado para dar lugar ao argentino

    civilizado. Sobre o gaucho cantor, era a verso platina do bardo ou trovador da Idade Mdia que se move de

    pago em pago, cantando seus versos quase sempre em troca de um teto para dormir, de um assado para comer

    ou de uma taa de vinho para beber. Vivia de seu canto, narrando a vida do campo, suas paisagens, cantando

  • 25

    ganhou vigor. A tradio desse cancioneiro tinha razes histricas na regio - tal

    cancioneiro possua difuso entre a populao em bailes, reunies, em ranchos, galpes e

    bolichos, era cantado nos acampamentos militares e rodas de fogn durante as campanhas

    de independncia. Em forma de folheto, impresso em peridicos ou passado via oral, a

    gauchesca era popularmente bailada e cantada atravs dos poemas conhecidos como

    cielitos, dilogos e vidalitas.29

    As poesias cantadas foram, sobretudo, usadas como canal de

    divulgao das ideias e projetos de grupos e faces polticas e como elemento de

    mobilizao para luta, como fator de resistncia em momentos de reveses ou derrotas nas

    batalhas.

    1.1.1 Hidalgo O poeta dos gauchos artiguistas

    A independncia da Banda Oriental foi marcada por disputas entre realistas

    defensores dos interesses metropolitanos, portenhos e seu projeto centralizador,

    portugueses e brasileiros interessados na ampliao das fronteiras em direo a bacia do

    Prata. Aps o movimento de 1810, as diferenas entre os portos de Buenos Aires e

    Montevidu se acirraram. Enquanto a elite mercantil montevideana, interessada em fazer

    deste porto uma alternativa para o comrcio na regio, manteve-se leal a metrpole ibrica,

    seus heris pampeanos injustiados, seus caudilhos, suas aventuras e desgraas, idealizando a vida de

    revoltas, de barbries e de perigos em que esses homens estavam submersos. Segundo Sarmiento, faziam sua

    poesia de uma maneira simples, at mesmo ingnua e infantil: o cantor est fazendo candidamente o mesmo trabalho de crnica, costumes, histria, biografia que o bardo da Idade Mdia; e seus versos seriam

    recolhidos, mais tarde, como os documentos e dados em que se haveria de apoiar o historiador futuro, se a

    seu lado no estivesse outra sociedade culta com superior inteligncia dos acontecimentos, que aquela que o

    infeliz desdobra em suas rapsdias ingnuas. A poesia deste gaucho bardo era o retrato de sua rudeza e primitivismo: era pesada, montona e irregular, narrativa e com imagens tomadas da vida campeira,

    improvisada, ordinria e quase sem versificao. Tais poetas e poesias, no entanto, reconhecia Sarmiento,

    eram muito populares e tinham acolhida entre a populao rural e mesmo das cidades, e algumas

    composies, admitia, tinham seu mrito e revelavam inspirao e sentimento. Ver: SARMIENTO, Domingo

    Faustino. Facundo: civilizao e barbrie no pampa argentino. Porto Alegre: Ed. Universidade

    /UFRGS/EDIPUCRS, 1996. 29

    Segundo Becco, o cielito nasceu de uma necessidade coletiva, como um modo simples de pronunciamento

    de projetos e ideias, mas tambm de denncias e crticas. Sua origem histrica remonta, sem preciso, ao ano

    de 1810. O cielito floresceu con la Patria y su grito de libertad, con la misma pasin que surgan en el decir comprensivo del cantor. Aquellas piezas cuyo estribillo marcaba Cielo, cielito, cielo, tenan por lo general un singular y agitado aire de lucha, que daba em su poca la vibracin comunicativa y la alegra picaresca

    (...) Su primera certificacin como texto aparece em 1813,cuando los patriotas cantaban con guitarra

    algunos cielos frente a las murallas de Montevideo. Anos depois, o cielito apareceria em sua primeira verso musical, escrita em 1916, e descrita como coreografia em 1818. BECCO, Jorge Horacio. Cielitos de la Patria.

    Buenos Aires: Plus Ultra, 1985, p. 6.

  • 26

    a populao da campanha apoiou Artigas30

    que, em 1811, derrotou as tropas realistas no

    campo, iniciando o cerco ao porto de Montevidu. Com a chegada de tropas luso-

    brasileiras,31

    e sem o apoio portenho, Artigas acabou se retirando da campanha oriental. Em

    1812, as milcias artiguistas voltaram ao teatro dos conflitos, dessa vez com a presena dos

    portenhos que queriam desalojar os realistas de Montevidu. A proposta federalista e

    autonomista de Artigas era contrria ao projeto centralizador levado a cabo pela elite

    bonaerense que, alm disso, temia o carter popular do programa artiguista. Esse impasse

    permaneceu at a tomada de Montevidu pelas foras de Artigas, em 1815. Na defesa do

    federalismo, Artigas foi apoiado pelas provncias do litoral argentino - contraponto ao

    centralismo encabeado desde Buenos Aires. Executando seu programa social, Artigas

    iniciou uma reforma agrria a partir do Reglamento de 1815. O Reglamento consistia na

    distribuio de terras e gado aos pobres do campo - gauchos, ndios, escravos libertos,

    mulatos recursos expropriados dos grandes proprietrios. As medidas tambm coibiam o

    30

    Jos Gervasio Artigas (1764-1850) mobilizou para a luta a populao pobre da campanha oriental do

    Uruguai com um programa social e poltico radical. Artigas pertencia a famlia de propriedades modestas e,

    devido a essa condio, exerceu diversas atividades: fora contrabandista de gado na regio e, posteriormente,

    se integrou ao Corpo de Belendengues - milcia que vigiava as fronteiras e reprimia o contrabando e outras

    atividades. Sua formao intelectual diferia da maioria dos lderes polticos que encabearam as

    independncias no Prata: de homem comum do campo, no frequentou escolas regulares ou universidades na

    Europa. Artigas possua caractersticas que eram tpicas das lideranas caudilhescas: experincia nas lides

    campeiras, conhecimento do territrio, prestgio pessoal entre a populao do campo. Sua experincia como

    auxiliar do funcionrio espanhol Felix de Azara no final do sculo XVIII influenciou seu programa social:

    Azara defendia uma diviso de terras na forma de pequenas e mdias propriedades, com a diversificao da

    produo agrcola, em detrimento das grandes estncias ganaderas. 31

    A poltica joanina, centralizadora, expansionista, era oposta aos projetos de independncia na Banda

    Oriental, principalmente no que se refere ao projeto de Artigas e seu reformismo social e econmico que

    ameaava os interesses dos proprietrios de terras brasileiros na regio. Para barrar tal projeto, os portugueses

    invadiram a Banda Oriental aps acordo com os realistas espanhis sitiados em Montevido. No se pode

    esquecer que, devido amplitude da reforma proposta por Artigas, que inclua a redistribuio de terras entre

    a populao pobre da campanha, muitos dos grandes proprietrios platinos tambm apoiaram a presena lusa

    na regio. As polticas efetuadas por Artigas foram consideradas uma ameaa grave a estrutura fundiria

    baseada na grande propriedade e na pecuria, incidindo diretamente sobre os interesses da elite fundiria

    portenha, dos terratenentes espanhis malos europeos - e estancieiros orientais peores americanos. Em 1816, aps acordo entre Buenos Aires e a Corte portuguesa, iniciava-se uma nova invaso a Banda Oriental.

    Tropas mercenrias vindas da Europa tomaram Montevidu com apoio da elite comercial da cidade e dos

    estancieiros orientais assustados com as reformas que Artigas havia iniciado. As lutas se prolongaram at

    1820, quando a Banda Oriental foi anexada ao Brasil com o nome de Provncia Cisplatina. Artigas, aps uma

    srie de derrotas no litoral argentino, acabou por se exilar no Paraguai, onde morreu. Para as relaes entre a

    independncia das provncias do antigo Reino do Rio da Prata e as disputas polticas no Rio Grande de So

    Pedro durante o sculo XIX ver: GUAZZELLI, Csar Augusto Barcellos. O Horizonte da Provncia: a

    Repblica Rio-Grandense e os Caudilhos do Rio da Prata (1835-1845). Tese de doutorado. UFRJ (mimeo),

    1998.

  • 27

    contrabando e abate clandestino aos rebanhos, bem como limitavam as atividades

    comerciais de estrangeiros nos centros porturios.

    Dentro desse processo, a poesia gauchesca adquiriu um espao importante como

    elemento de divulgao do discurso artiguista. Ela foi utilizada durante a campanha

    artiguista na Banda Oriental pelos partidrios e seguidores do general, e teve seu grande

    expoente no poeta Bartolom Hidalgo (1788-1822). A poesia de Hidalgo foi fundamental

    como veculo de divulgao do projeto artiguista:

    Adems de la forma de los documentos, el discurso artiguista consolida

    un espacio a travs de otro vehculo, el del gnero gauchesco, y en alianza

    con otro protagonista: Bartolom Hidalgo. Hidalgo es, no el primero en

    escribir poesa gauchesca, pero s el primero en definir sus lmites, y por

    lo tanto, en constituirla como gnero. Su gesto fundador abre una brecha

    definitiva que pone en tela de juicio los conceptos de cultura y de nacin.

    La figura de Hidalgo, est ligada indisolublemente a la de Artigas, y de

    alguna manera ambos representan dos caras del mismo proyecto

    nacional.32

    O poeta Bartolom Hidalgo, nascido em Montevidu no ano de 1788, foi um dos

    pioneiros na elaborao da gauchesca, tendo ativa participao na campanha artiguista

    entre 1811 e 1815 - foi secretrio, comissrio de guerra, administrador, oficial de

    tesouraria, diretor de Correios.33

    Seus primeiros cielitos, poesia combativa e revolucionria,

    foram compostos durante o cerco de Montevidu pelas tropas artiguistas, com objetivo de

    incitar a luta e a resistncia. Hidalgo utilizava a poesia poltica e a msica como um

    elemento mobilizador, um instrumento instigador, e como um discurso de coeso para os

    grupos envolvidos nos conflitos:

    Los cielitos y los dilogos son composiciones que buscan difundir el

    proyecto nacional artiguista, cada uno en distintas facetas. Los cielitos

    tienen un claro carcter de apelacin a la lucha anticolonial, y se difunden

    oralmente o en papeles que circulan entre la tropa, durante el sitio de

    Montevideo. Los dilogos no tienen el carcter de apelacin inmediata a

    la lucha, sino que remiten a las circunstancias internas de organizacin de

    las provincias y difunden la nocin de federalismo y democracia social

    del proyecto artiguista.34

    32

    TORRES, Maria Ins. Discursos Fundacionales: Nacin y Ciudadania. In: ACHUGAR, Hugo: Uruguay:

    Imaginarios Culturales. Montevideo: Trilce, 2000, p. 127. 33

    Ibidem, p.128. Ver tambm a crnica de Leon Pomer sobre Hidalgo em: POMER, Leon. Dilogo com a

    sombra de um poeta crioulo. In: Amrica: Histrias, delrios e outras magias. So Paulo: Brasiliense, 1980,

    pp. 96-101. 34

    TORRES, p. 128.

  • 28

    Um importante aspecto das lutas de independncia na regio remete ao programa

    poltico social de Artigas e a seus depositrios, a populao da campanha. O projeto

    artiguista se inseriu no marco das lutas emancipatrias na regio, porm com caractersticas

    que o distinguiam dos demais por incluir em seu programa os setores sociais mais

    necessitados da campanha rioplatense. Marginalizada no processo de criao do Estado

    Nacional em ambas as margens do Prata, alienada dos meios de produo, enquadrada e

    vigiada pelas autoridades institudas, essa populao foi constantemente atingida pelos

    conflitos polticos na regio. Artigas dispunha desse grupo no s como um contingente de

    combatentes, como faziam outros caudilhos, mas tambm vislumbrava a incluso social,

    poltica e econmica desses na base de seu projeto poltico - mobilizar e dialogar para esse

    gauchaje era premissa para execuo de tal projeto. Diante da necessidade de mobilizao

    das massas rurais e legitimao para executar seu projeto, Artigas lanou mo de um

    discurso que buscava na palavra escrita, por um lado, proclamaes, instrues, oraes,

    convocatrias, regulamentos, e na oralidade popular, por outro, os elementos legitimadores

    de sua ao poltica e militar. Nesse caso, a produo e a consolidao da gauchesca

    atenderam uma demanda poltico ideolgica:

    Cuando Bartolom Hidalgo elige la forma del cielito para su poesia revolucionaria, recurre a una forma tradicional de vasta repercusin

    popular. Elegir el cielito como forma significaba, en primer lugar, reivindicar lo popular (...) pero elegir el cielito es tambin privilegiar lo performativo en la representacin de la nacin, no porque los cielitos de

    Hidalgo fueran bailados o cantados, sino porque su propia forma evoca

    esta representacin.35

    O discurso expresso atravs da gauchesca foi pea-chave no processo de divulgao

    das ideias e mobilizao social para luta poltica. O uso da gauchesca como discurso

    poltico possua um duplo aspecto esttico-ideolgico a ser ressaltado: era popular desde o

    ponto de vista da forma como era apresentado, mas tambm o era por sua divulgao - a

    poesia cantada compreendida pela populao pobre e iletrada. Assim, o aspecto

    revolucionrio expresso na gauchesca estaria na emergncia de um novo sujeito presente

    no discurso nacional, correlato com o que emerge no programa artiguista - o gaucho:

    35

    TORRES, p. 128.

  • 29

    Hidalgo no solo apela, entonces, al protagonismo del gauchaje a travs de la oralidad de

    los cielitos, sino a travs de la alusin a una actividad en la cual el gauchaje es

    protagonista.36

    O discurso artiguista, atravs da gauchesca, buscava atingir, com uma

    linguagem inteligvel, as camadas iletradas da campanha, os negros, mestios, indgenas e

    demais grupos sociais que continuavam excludos do processo de emancipao colonial e

    da organizao dos Estados nacionais no Prata. Conclamar o gaucho no apenas fazia da

    estratgia de mobilizao militar para a luta emancipacionista, mas a forma como fora feita

    essa mobilizao fazia do gaucho o destinatrio do programa poltico apresentado. Hidalgo,

    ao lanar mo dos cielitos tambin se presenta siempre como representante de una

    colectividad, en este caso, de los criollos artiguistas en la lucha independentista. La figura

    de gaucho cantor que representa Hidalgo es la de una especie de intelectual orgnico

    que habla por y para una comunidad. 37

    Comunidade contemplada em um programa em

    que o gaucho seria protagonista e parte integrante da construo da nao.

    Aps a derrota de Artigas pelas foras unitrias, a ordem se restabeleceu na

    Banda Oriental a partir da juno dos interesses da elite fundiria e da elite mercantil

    montevideana. Terminava a experincia mais radical das independncias do Prata - a

    construo das naes na regio seria feita sem a participao da populao que apoiou e

    lutou junto a Artigas. Junto com Artigas, Hidalgo derrotado, e sua palavra relegada no

    processo de construo da nao: la gauchesca, en especial la de Hidalgo, que es la del

    ciclo artiguista, se constituye as en el primer testimonio de la historia de los vencidos.38

    Hidalgo, como mulato, pobre, artiguista, poeta popular que rompe com as tradies da

    literatura letrada, tambm sofre essa perda: El presupuesto del gnero, para Hidalgo, es

    una diferencia, una marginalidad, una carencia (falta de libertad, falta de igualdad, falta

    de justicia) y su respuesta es siempre una denuncia.39

    Se o projeto social de Artigas foi derrotado e o gaucho marginalizado, o discurso,

    no entanto, continuou a perpassar o imaginrio social da populao oriental. Assim como

    no Martin Fierro, de Jose Hernandez, a gauchesca foi, e ainda , para a populao da

    36

    Ibidem, p. 129. 37

    Ibid., p. 132. 38

    Ibid., p. 132. 39

    Ibid., p. 135.

  • 30

    campanha, el tono adecuado para cantarse a s mismas.40

    Esse tom adequado era devido,

    em parte, ao carter de testemunho presente nos cielitos: Segundo Torres, nas

    circunstncias de enunciao dos cielitos, a nfase estaria em estabelecer fatos de forma

    como se fossem um relato. Essa forma de relatar determinados fatos - seja uma batalha,

    uma contenda poltica, um episdio decisivo ou pitoresco representaria a aliana entre

    uma voz letrada Hidalgo e uma oralidade subalterna os gauchos. Nesse aspecto,

    estaria parte da fora revolucionria presente nos cielitos de Hidalgo.

    Mesmo que no se considere a associao entre cultura letrada e cultura popular

    como elemento central para entender o significado poltico dos cielitos durante a campanha

    artiguista, importante salientar que os cielitos, enquanto discurso poltico, eram uma

    forma de dialogar com a populao da campanha com uma linguagem prxima a ela.

    Usar, portanto, um veculo de divulgao de ideias que tivesse ampla difuso entre os

    prprios interlocutores da mensagem era tambm estratgia de ao poltica.

    Essa estratgia pode ser apreendida em um cielito de Hidalgo escrito

    provavelmente durante a invaso de Lecor na Banda Oriental em agosto de 1816, chamado

    Cielito Oriental: 41

    El portugus con afn

    Dicen que viene bufando;

    Saldr con la suya cuando

    Vea Rey Dom Sebastin.

    Cielito, cielo que s,

    Cielito locos estn,

    Ellos vienen reventando,

    Quin sabe si volvern!

    Dicen que vienen erguidos,

    Y muy llenos de confianza;

    Veremos en esta danza

    Quines son los divertidos.

    Cielito, cielo que s,

    Cielo hermoso y halageo,

    Siempre ha sido el Portugus

    Enemigo muy pequeo.

    Ellos traen facas brillantes,

    Espingardas muy lucidas,

    40

    VISCA, Arturo. In: Hidalgo: Cielitos y Dialogos Patrioticos. Montevidu: Universidad de La Republica,

    1969, p. 8. 41

    Ibidem, p. 17-19.

  • 31

    Bigoteras retorcidas

    Y burriqueiros bufantes.

    Cielito cielo que s,

    Portugueses no arriesguis,

    Mirad que habis de fugar,

    Y todo lo perderis.

    Vosso Prncipe Regente

    Nau e para conquistar,

    Nasceu s para falar,

    Mais aqu ya he differente (sic).

    Analisando o cielito de Hidalgo, observa-se que uma de suas principais

    caractersticas denotar o inimigo de forma burlesca e irnica diminuir o oponente e

    retratar o mesmo de forma bufa. Nesse cielito, o inimigo portugus ridicularizado - vienen

    bufando - e iro voltar pequenos - ou nem voltaro - quien sabe si volvern! derrotados

    em combate. Os portugueses, para vencer a batalha, tero que esperar o rei D. Sebastio,

    fina ironia que alude ao rei desaparecido em batalha no norte da frica em 1578, e a lenda

    em torno a sua volta a Portugal, o sebastianismo. Os soldados portugueses que vienen

    erguidos y llenos de confianza, vo danar conforme a msica dos orientais. O cielito

    torna a minimizar o inimigo muy pequeo suas armas e comandantes. Interessante a

    burla que imita, de forma grotesca, o sotaque e a expresso literal de palavras portuguesas

    nau (no), vossos, deiyar (deixar), cooceis (conheceis) filhos, mulheres produzindo o

    efeito de se dirigir ao inimigo diretamente e de ironizar sua forma de falar, como nos

    trechos abaixo:

    Cielito cielo que s,

    Fidalgos ya vos estendo,

    De tus pataratas teys

    Todito el mundo lleno.

    Vosa seora Carlota

    Dando pbulo a su furia

    Quiere fazeros injuria

    De pensar que sois pelota.

    (...)

    Queris perder vossa vida,

    Vossos filhos mulheres,

    E deiyar vosos quehaceres

    E minina querida?

    (...)

  • 32

    Qu cosa pudo mediar

    Para fazeros sahir

    E a nossas terras venir

    Con armas a conquistar?

    (...)

    A vosso Prncipe Regente

    Enviadle pronto a dizir

    Que todos vais a morrer

    E que nau le fica yente.

    Cielito cielo que s,

    Cielito de Portugal,

    Vosso sepulcro va a ser

    Sem duvida Banda Oriental.

    A Deus, Deus faroleiros,

    Portugueses mentecatos,

    Parentes dos maragatos,

    Ynsignes alcobiteiros.

    Cielito cielo que s,

    El Oriental va con bolas,

    Mirad Portugueses que hay

    Otro D. Pedro Cebolas.

    O cielito tambm se caracteriza pelas advertncias ao adversrio se forem com

    seus exrcitos tero que fugir, tudo iro perder, iro temer, morrer e seu sepulcro ser a

    Banda Oriental. Junto com as ameaas ainda h um questionamento: o que os fez sair de

    seus quehaceres, deixar seus filhos e mulheres para tentar conquistar terras alheias? O

    cielito faz aluso ao prncipe regente D. Joo VI e a princesa Carlota Joaquina, que tinham

    interesses em anexar a Banda Oriental ao domnio luso-brasileiro o primeiro um

    falastro que nada conquistar, pois lutar contra os orientais differente, e princesa se

    atribui a injuria e a fria, qualidades nada nobres ou valorosas. Seguindo a diminuio do

    adversrio, os portugueses so chamados de mentecaptos, desumanos, infelizes,

    alcoviteiros e parentes de maragatos.42

    42

    Aqui se pode apenas inferir o significado do improprio comparando o termo maragato com seu uso no Rio Grande do Sul durante a Revoluo Federalista (1893-1895). O termo maragato foi utilizado para designar os

    federalistas, partidrios de Gaspar Silveira Martins, em sua maioria estancieiros da regio da campanha

    riograndense, fronteira ao Uruguai e Argentina. Entre os quais destacam-se os irmos Gumercindo e Aparicio

    Saravia, caudilhos que lideraram grupos armados, las montoneras, em ambos os lados da fronteira na virada

    do sculo XIX para o XX. O termo maragato era usado de forma pejorativa pelos republicanos rio-grandenses

    para designar seus inimigos que haviam se exilado na Uruguai e de l organizavam um exrcito para invadir o

    Rio Grande do Sul, tal como um exrcito estrangeiro. Esse termo acabou sendo incorporado pelos rebeldes

    que, junto com o leno vermelho, passou a ser uma forma de identificao dos federalistas.

  • 33

    Por fim, insufla os orientais valentes van con bolas, ou seja, com o instrumento

    usado pelos gauchos, as boleadeiras, termo que pode significar tambm valentia, coragem,

    destemor, associado com a expresso bolas, testculos, colhes - a derrotar os portugueses

    assim como Pedro Antonio de Ceballos, ou como ironiza o cielito, D. Pedro Cebolas o fez,

    numa aluso ao Vice-rei do Prata no perodo colonial, que invadiu o Brasil meridional em

    1777. De forma geral, pode-se observar que tal discurso presente no cielito serve como

    manifesto contra a presena lusitana na regio, reforada aps a chegada da corte no Brasil

    em 1808.

    Para boa parte da crtica sobre a literatura gauchesca, Hidalgo inaugurou o gnero e

    serviu como norte criador para boa parte do que foi posteriormente produzido. Os artifcios

    que Hidalgo utilizou para compor suas poesias foram usados por outros poetas, mesmo que

    com objetivos diferentes. Fez poesia para o gaucho, escrevendo como se fosse um gaucho

    o que demonstra uma estratgia que ser apresentada a seguir sobre o propsito poltico da

    poesia gauchesca, de comunicar e passar uma mensagem ou discurso como interlocutor

    legtimo do grupo ao qual se dirigia. Para isso apresentar-se como um igual emprestava

    autenticidade palavra enunciada. Hidalgo era intelectual urbano, homem letrado, e usava

    um artifcio que foi amplamente usado por poetas que o precederam na gauchesca: ao

    iniciar um cielito atribua os versos a um homem simples, do campo, que seria o narrador

    dos fatos versados, tal como aparece no Cielito Patritico IV que compuso un gaucho

    para cantar la accin de Maip:43

    No me neguis este da

    Cuerditas vuestro favor,

    Y contar en el Cielito

    De Maip la grande accin.

    Cielo, cielito que s,

    Sobre a origem do termo existe uma verso que aponta para uma regio da Espanha denominada maragatera.

    O povo dessa regio ibrica teria costumes condenveis- vagabundos e ladres de gado - e seriam considerados como uma espcie de ciganos - talvez da o carter pejorativo do termo maragato. No Uruguai,

    esse termo pode ter sido usado ainda no incio do sculo XIX para denominar os habitantes da cidade de San

    Jose, que fora colonizada por espanhis advindos de uma comarca chamada Maragatera, regio da

    Extremadura - rea fronteiria entre Espanha e Portugal. Os colonos que viviam nessa regio acabaram sendo

    denominados maragatos, carregando o carter negativo do termo.

    No caso do cielito de Hidalgo, pode-se inferir que essa denominao teria o mesmo aspecto negativo que

    carregava no Rio Grande do Sul - o inimigo seria ladro, vagabundo, vil, arredio, assim com supostamente

    seria o povo da maragatera e seus descendentes. Sobre a possvel origem do termo maragato no Rio Grande

    do Sul. Ver: ORNELAS, Manoelito. Gauchos e Beduinos: origem etnica e formao social do Rio Grande do

    Sul. Porto Alegre: Jos Olympio. S/D. 43

    VISCA, pp. 23-28.

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    Cielito de Chacabuco,

    Si Marc perdi el envite

    Osorio no gan el truco.

    (...)

    Pero bien ayga los indios!

    Ni por el diablo aflojaron,

    Mueran todos los gallegos,

    Viva la Patria, gritaron.

    (...)

    Cielito, cielo que s,

    Americanos, unin,

    Y dganle al rey Fernando

    Que mande otra expedicin.

    Ya espaoles, se acab

    El tiempo de un tal Pizarro,

    Ahora como se descuiden

    Les ha de apretar el carro.

    A diferena entre Hidalgo e outros poetas da gauchesca era que seu compromisso

    com a populao pobre, expresso em sua poesia, estava diretamente vinculado ao processo

    de independncia da Banda Oriental e, principalmente, ao projeto revolucionrio de Jos

    Artigas. Nesse projeto, o gaucho no era apenas um miliciano a servio de seu caudilho em

    uma montonera, mas o principal beneficirio das mudanas pretendidas por Artigas.

    1.1.2 A Gauchesca durante a Guerra Civil

    Ayestarn identifica dois perodos de produo da poesia gauchesca no sculo XIX.

    O primeiro momento, inaugurado por Hidalgo tem como marco o processo de

    Independncia e as posteriores guerras civis.44

    Nesse momento, a poesia teria carter

    eminentemente poltico, primeiro como discurso de mobilizao dos gauchos de Artigas,

    depois como arma de faces polticas rivais, chegando ao auge com o fim da Guerra

    Grande (1839-1851). Os grandes nomes desse perodo, alm de Hidalgo, seriam Hilrio

    Ascasubi e Manuel de Araucho. O segundo perodo se difere do primeiro pela perda da

    funcionalidade estrita da gauchesca como arma poltica e de sua elevao como categoria

    artstica, com Estanislao del Campo e sua obra Fausto, com Antonio Lussich e seu livro

    44

    AYESTARAN, p. 13.

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    Los T