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PÉRICLES PRADE A LÂMINA 1963 EDITORA

Ah! a lâmina

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PÉRICLES PRADE

A LÂMINA

1963

EDITORA

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A LÂMINA 1963

É sobre a imagem evocada do feiticeiro que o contra-encanto

exerce a sua influência. Maurice Bouisson

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A LÂMINA

À querida Áurea Prade, minha mãe.

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TÁBUA

EXPLICAÇÃO PRÉVIA (FALTA PROFESSOR ESCREVER)

ESPELHOS PARTIDOS

SEI QUE ESTOU SÓ

CORAÇÕES DAS FLORES

GESTO DO LEÃO

AVE OU PEDRA?

INOCÊNCIA

À SOMBRA DA VERDADE

AINDA CRIANÇA

SEM BÚSSOLAS

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ESPELHOS PARTIDOS

Sombra gorda e torta cobre o campo. Perto de mim o elefante levanta a tromba como se quisesse murmurar lírica canção. Minhas mãos procuram sua imensa planície de carne cinzenta e ritmo de cascos ouço na manhã. Retiro o suor de seu corpo que se estende longo e intenso. Estou sentado no banco de origem polaca e a madeira podre canta elegias de mofo. Seu humilde formato range sob meu peso. Levanto e com gesto cruel cuspo nos olhos vesgos do animal. Apanho grossa taquara cor-de-noite, e percorro o circo riscando a tenda úmida com largas pinceladas de barro branco. Ponho as mãos no bolso depois desta cerimônia. Pulo três cercas para beber água no rio. Pássaros de rabo-tesoura passeiam,

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acompanhando a agonia do vento que se oferece brando sobre a água límpida de fresca sabedoria. Espremo as espinhas com o cansaço da tarde. Sinto-me o próprio elefante obeso e lento. Ah! Que morno prazer sentir nas mãos escorrer o sangue transparente da fonte. Olho para meu interior de espelhos partidos e me vejo branco no arquipélago construído pela imaginação do pensamento manso.

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SEI QUE ESTOU SÓ

Sei que estou só, não há

luas nem serenatas e os olhos da tarde estão secos.

Vejo somente meus dedos desenhando aves malditas na água.

Rasgo as folhas da árvore mística e sonolenta e fabrico o navio infantil mais veloz do mundo. Sigo sua trajetória rumo ao desconhecido. Também sou navio neste momento de espumas quentes. Gosto dele porque tem uma lagartixa tranquila como passageira sem segredos. Gosto porque é somente navio sem ilusões e esperanças, soberano à margem do sol que se aproxima da morte.

Cresce o crepúsculo e não diviso mais a figura tragicômica de meu herói verde, eterno navio.

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Minha casa é longa e se assemelha a um quarto cor de bronze.

Moro com alguém que possui olhos de gato e ama a noite. Seus cabelos de feiticeira percorrem o universo em chagas de seu corpo de subterrâneos e cansaços. Odeio seus mascotes: escorpião de porcelana e chocalho de zinco.

Minha casa é longa e se assemelha a um quarto cor de bronze.

Preciso voltar e meus pés murchos procuram o caminho. Conhecem todos os arbustos e todas as passagens.

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CORAÇÕES DAS FLORES

Meus pés sentem o cheiro

da terra vasta e altiva. Amam as flores que brotam no chão e odeiam as urtigas que provocam manchas enormes e vermelhas.

Ouço a gralha rir,

estridente e vou até a sua direção para chamá-la de boba. Vejo que não há gralha, nem risos e volto o rosto para os olhos do inimigo acenando sempre azul.

Agora a marcha tem o ritmo do coração e pulsa febril em busca de uma carícia, de uma rosa. Não importa ser a carícia uma rosa ou a rosa uma carícia, se elas existem para o meu prazer.

Preciso delas, agora que ao meu redor permanecem as folhas, as flores, as árvores, os pássaros e os animais.

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Há um noturno dentro de mim sangrando sempre. Basta o sol caminhando, mas caminhando. Tudo o que é estático me desagrada. Tudo o que é imóvel me dá náuseas.

Pergunta-me a consciência:

─ Gostas daquela flor parada perto dos musgos?

Ainda não sei, mas ela vive, sente, tem coração. E como são extraordinários os corações das flores!

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GESTO DO LEÃO

Neste instante paro.

Desaparecem as idéias de flor e coração. À minha frente o leão de

longa juba avança a passos leves. Sinto-o apalpar estas vestes intranquilas, arranhar a carne transformada em geometrias de sangue.

Olho-o como se olhasse para um imperador egípcio. Levanto minhas mãos, não como duas pirâmides, mas com delicadeza, segurando os pêlos de seu volumoso pescoço. Um canto oriental murmuro e o animal volta o corpo como se soubesse que força estranha me habita.

Tiro do bolso o lenço bordado em verde e o deslizo sobre as peregrinas feridas, surgidas do inconsequente gesto do leão.

Esqueço o incidente e continuo marchando através da floresta. Penso na vida, nos mistérios, nas verdades.

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Lembro-me agora de Tennessee Williams ao dizer, pela boca de Sebastian Venable, que “a verdade existe no fundo de um poço sem fundo”. Que importa, se ela existe? O essencial, neste mundo, é que as coisas tenham existência, mesmo absurda.

Estou cansado de inquirir os homens. As respostas têm sentido até o ponto em que o conhecimento pode apreendê-las. Depois disto, tudo é fumaça.

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AVE OU PEDRA?

Necessito fazer uma

experiência com o outro lado do muro, o muro do humano, com seus musgos, sua outra natureza. Pedir aos pássaros informações sobre a existência, a origem da ternura.

Poderão as aves desvendar algum mistério?

─ Estranho pássaro, enorme maldição mancha o homem? Por que o ódio confirma sua presença em quase todos os diálogos, como um câncer? Por que as coisas muitas vezes são ásperas, violentas ou mesmo horríveis? O homem é possuído realmente pelo fantasma da moral? Por que a maioria desistiu de ser criança? A infância não é mais flor, canção ou lago? Por que esconder as mãos, os pés, os olhos, o corpo, se tudo deve ser puro como a superfície da fonte?

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Ah! o milenar silêncio! Tu também não respondes?

Afirmam somente os que não compreendem o sublime no enigmático: os pássaros não falam! Mas, para falar, há necessidade de bocas?

Queria ao menos, estranho pássaro, que transmitisses negação ou assentimento através dos olhos ou do nervosismo de tuas penas. Permaneces calado e altivo. Permaneces indiferente, quase imperial. És ave ou pedra?

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INOCÊNCIA

Eu, o ingênuo, pensava

encontrar em ti um pouco de esperança. Tudo se desmorona, até os

pássaros se organizam para a destruição. Será inevitável a destruição, mesmo que os homens fabriquem um panorama de ternura? Perguntar sobre a face da terra é cruel.

Tudo transparece em forma de longas punhaladas e as pessoas não querem ser feridas, embora os animais, nesta imperturbável floresta, a todo momento percorram seu vasto mundo com flechas no lombo ou tiro no tímido coração.

Ferir também é fatal para o conhecimento do ser. Não há necessidade do sangue viscoso ou transparente. Basta que alguém se levante, mostre o corpo ou a consciência e diga: ai, falaram de mim, esta inocente criatura.

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Talvez somente a feiticeira possa gerar com os símbolos algo novo, descobrir os abismos e os enganos, mostrar a natureza do universo com seus enormes olhos de gata a percorrer a noite no barco de bússolas podres e interminável cheiro de tristeza.

Preciso encontrá-la. Os homens e os pássaros me decepcionaram com o improviso de suas aparências.

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À SOMBRA DA VERDADE

Feiticeira?, dirão os

homens. Para muitos não passa de mito, mas tem natureza profética que emociona aos que procuram, como eu, a ternura na indiferença dos homens.

− Ó de casa! Ó de casa! Aqui estou com a minha

bagagem, o corpo dolorido de tanto andar pela floresta, tua companheira clara e escura, alerta e sonolenta.

Aqui estou voltado para o imprevisto e o amor, arma de íntima batalha.

Aqui estou para perguntar. Para feri-la, talvez.

Estou certo de que cada palavra poderá ser navalha, mas reconheço tuas

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mãos de seda e a sábia experiência de fugir das coisas que machucam.

Odeio teus mascotes. Odeio todos os mascotes, pois eles representam a ausência de algo que deveria existir em nós, a fé, a verdade ou mesmo a violência e suas sutilezas.

Mas não te odeio, feiticeira, porque a noite em parte mora em ti com reveladora potência. Amo a noite biblicamente. Ela revela, com pormenores construídos à sombra da verdade, o que o mundo ainda tem de bom.

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AINDA CRIANÇA

Procura tua força, feiticeira,

na certeza de ouvir o que espero, na ânsia, na antecipação do gozo das respostas.

Eu fugi destas árvores, desta imensa e solitária floresta para indicar ao fora de rumo o caminho que não conduz à tristeza, para brotar nos homens a paz como semente e não como explosão. Volto mais desorientado que nunca, sempre poeta e ainda criança.

Caminhei longas e empedradas ruas, amei a doença nos mendigos, percorri a noite como temporada em dor no paraíso, conheci o circo e os ásperos mistérios do elefante, inquiri os pássaros, fiz do leão um amigo, senti nas mãos o sangue das fontes, conversei com a humanidade e o meu interior de farpas.

Voltei indiferente depois desta aventura pelo mundo, sabendo que tudo

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decepciona quando não há respostas para as perguntas mais simples.

Aprendi: o importante é mentir, ser falso, egoísta e vaidoso. Dizer a verdade é comprometer, oferecer é antecipar a ruína, não evidenciar a inteligência é perder terreno e amar um verbo ridículo. Quisera ser um grande ridículo e que o universo todo fosse assim.

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SEM BÚSSOLAS

A destruição é um enorme

navio, exato demais para ser ridículo, cruzando os homens em sua natureza vertical com o imperturbável conhecimento da fatalidade rumo à angústia e ao desespero total.

─ A angústia, disse a feiticeira, tenho eu de não poder responder às perguntas mais claras.

Do impulso que brota do meu enigma e da minha sombra, direi isto apenas:

─ Queda é a grande definição do mundo. Falhar é o verbo que soa melhor porque é um vício. E neste reconhecimento floresço quase perdida. Olho-me criança também, como se estivesse num determinado ponto, no círculo universal da dor e do mistério. Tudo nasce antegozando o cansaço. Até a ternura está se

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tornando áspera. O vazio permanece no homem como água transparente. O vazio permanece no homem como sangue sujo. O que poderás criar na infância de teu corpo e voz? Não sei. Deves ser raiz e flor ao mesmo tempo. Deves crer em ti, no teu núcleo, no teu nó, na tua força. Sei que horrível trajetória força o caminho dos que crêem. Mas permanecer suspenso, sem bússolas, numa enorme espiral, é imperdoável.

Antes de desaparecer, certa de que a palavra expressa tudo, entre lábios assinalou:

─ A verdade, menino, é a lâmina, seu interior e corte.

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