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AINDA SOBRE O REQUERIMENTO DE FALÊNCIA PELA FAZENDA PÚBLICA Tese XLI Congresso Nacional de Procuradores de Estado Autor: Max Möller Email: [email protected] Procurador do Estado do Rio Grande do Sul 1

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AINDA SOBRE O REQUERIMENTO DE FALÊNCIA PELA FAZENDA PÚBLICA

Tese XLI Congresso Nacional de Procuradores de Estado

Autor: Max Möller

Email: [email protected]

Procurador do Estado do Rio Grande do Sul

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RESUMO

O presente trabalho trata da possibilidade do requerimento de falência por parte da

Fazenda Pública na cobrança do crédito tributário. Tal legitimidade vem sendo historicamente

negada pelo Superior Tribunal de Justiça. O trabalho examina as razões dessa negativa e as

alterações legislativas e jurisprudenciais que determinam a necessidade de alteração do

posicionamento do STJ, até mesmo para conferir coerência a suas próprias decisões.

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AINDA SOBRE O REQUERIMENTO DE FALÊNCIA PELA FAZENDA PÚBLICA

Max Möller1

INTRODUÇÃO

Desde os anos 70, a partir de célebre parecer editado por Fábio Konder Comparato para o Estado do São Paulo, discute-se acerca da legitimidade da Fazenda Pública, baseada em certidão de dívida ativa, requerer a falência de devedor tributário. Entre argumentos contrários e favoráveis, há mais de 40 anos debate-se sobre o tema e, não obstante a alteração de vários entendimentos jurídicos, modelos legislativos e situações fático-econômicas, não houve uma alteração na negativa de legitimidade à Fazenda Pública para o pedido de falência.

Ainda prevalecem os argumentos contrários, no sentido da ausência de interesse do credor com privilégio, da incompatibilidade entre o regime falimentar e o art. 187 do CTN, que exclui a Fazenda Pública do concurso de credores; do entendimento de que o Fisco não poderia utilizar a falência como forma de coação, na linha dos argumentos de vedação à sanção política; da incompatibilidade do credor tributário escolher quais os casos requererá a falência com a igualdade que deve pautar a conduta da Administração, assim como de que a Administração tributária conta com a execução fiscal, instrumento poderoso e apto a efetivar a cobrança do crédito tributário.

Não obstante o entendimento dominante, verifica-se uma profunda alteração no ordenamento jurídico, na jurisprudência e nas próprias condições de mercado e sociais que trazem consistentes e importantes argumentos em favor da legitimidade do credor tributário para o requerimento da falência. São exemplos claros dessas alterações a nova regulação da falência pela Lei n. 11.101/2005, que modifica profundamente a legitimidade ativa e reduz consideravelmente o privilégio do crédito tributário; o avanço da jurisprudência e a consolidação de entendimentos como o de que, embora não se sujeite ao juízo universal, o produto da arrematação na execução fiscal deve ser remetido à falência; o da possibilidade do crédito tributário habilitar-se no quadro de credores, renunciando a seu “privilégio”; a vedação ao condicionamento do pagamento de tributos para a impressão de documentos fiscais em caso de dívidas vultosas com o Fisco, assim como importantes precedentes no sentido de viabilizar o combate aos devedores contumazes, que fazem da inadimplência tributária o seu diferencial de concorrência (Recurso Extraordinário n. 550.769/2013).

Nessa linha, destaca-se a pressão do próprio corpo social, onde a sociedade empresarial organizada pede a correta repressão à conduta empresarial irresponsável, assim refletida no inadimplemento deliberado e contumaz. Essa nova postura social tem refletido,

1Procurador do Estado do Rio Grande do Sul, Doutor em Direito pela Universidade de Burgos – Espanha. 3

no âmbito jurídico, no destaque ao dever estatal de proceder a uma cobrança efetiva, que não apenas arrecade, mas viabilize a concorrência leal. E tal garantia constitucional à livre concorrência, certamente não é alcançada com a mera cobrança formal a partir das ferramentas previstas na execução fiscal.

Esse novo cenário parece determinar condições próprias ao overruling, qual seja, a revisão do entendimento – principalmente no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, no sentido do reconhecimento a viabilidade jurídica do requerimento de falência com base no crédito tributário. Na atualização do entendimento consagrado, adequando-o, às alterações legislativas e sociais envolvendo o uso do direito de empresa e suas relações com o fisco e a concorrência. Principalmente, na compatibilização da jurisprudência com a lógica da lei de falências, que claramente busca a preservação da empresa viável e a garantia social que representa; mas da mesma forma reconhece o dano social que pode ser causado pela empresa inviável e irresponsável; que ao mesmo tempo em que causa pesados prejuízos ao erário, promove danos irreversíveis à concorrência que procura seguir pela ótica da licitude e regularidade fiscais.

É sobre estes importantes argumentos e a necessidade de atualização que nos dedicaremos em seguida, visando tratar da compatibilidade da cobrança do crédito tributário com a legitimação para a o pedido falimentar.

1. A construção do juízo de ilegitimidade da Fazenda Pública ao pedido de falência

A ausência de legitimidade para a Fazenda Pública requerer a falência de empresa devedora nasce até mesmo por uma questão de lógica sistêmica. Analisando o modelo então estabelecido para o processo falimentar, as normas contidas no Código Tributário Nacional, ou mesmo em relação à importância da tributação nas relações concorrenciais da época, efetivamente não seria lógico a admissão da Fazenda Pública como parte legítima ao requerimento da falência.

Quando dos primeiros precedentes afirmando a ilegitimidade da Fazenda Pública tínhamos óbices variados a tal reconhecimento. O primeiro deles, contido na própria lei falimentar, então regida pelo Dec. 7.661/45. Segundo tal diploma, a falência constituía muito mais um instrumento destinado ao próprio falido do que a terceiros. Tanto que dispunha sobre legitimidade (art. 8º) sempre pela ótica do empresário em dificuldades ou sócios da sociedade empresária. A falência como forma de coação ao pagamento do débito ou que visasse a

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retirada do mercado do empresário insolvente era prevista apenas de forma excepcional, no art. 9º do Dec. 7.661/45. 2

A redação que tratava da legitimidade para o pedido de falência, embora não autorizasse a Fazenda Pública, tampouco a proibia. Em relação aos credores dotados de privilégio, mencionava apenas o caso do credor com garantia real, exigindo que este renunciasse ao seu privilégio para requerer a falência. Enfim, mesmo o Dec. 7.661/45 não proibia que o credor privilegiado requeresse a falência; apenas exigia o fim de seu privilégio.

Já no caso do Fisco sequer era necessária a preocupação, porquanto em vigor (ao menos a partir de 1953) – com interpretação literal – o art. 187 do CTN. 3 Segundo determinava a regra citada, a cobrança judicial do crédito tributário não é sujeita a concurso de credores ou habilitação em falência, recuperação judicial, concordata, inventário ou arrolamento.

De acordo com a interpretação que lhe era conferida, o crédito tributário em execução não estava sujeito a concurso de credores. Logo, até bem pouco tempo, não haveria interesse arrecadatório no pedido de decretação de falência pela Fazenda Pública, porquanto caso a execução estivesse em curso, não era afetada pela decretação posterior da falência. Também a anterioridade da falência ao crédito tributário permitia a penhora no rosto dos autos do feito falimentar, não causando nenhum prejuízo ao Fisco. Nesse caso, obviamente, não haveria que se questionar o interesse no pedido de falência, que era preexistente.

O que se quer destacar, na verdade, é que o crédito tributário, por força do art. 187 do CTN era praticamente imune à falência. Logo, ao não participar do concurso de credores, evidente a ausência de interesse da Fazenda Pública para requerer a falência. Caso o fizesse, a toda evidência, seria no intuito exclusivo de prejudicar o devedor ou mesmo de agregar novo elemento à cobrança. Isso caso considerado, por óbvio, a exclusiva lógica da arrecadação.

1.1. Os primeiros pedidos e a formação dos precedentes

E é exatamente neste contexto que os primeiros argumentos em favor da legitimação da Fazenda Pública surgem. Já preocupados com a falta de eficácia da execução fiscal – em

2 Art. 9º A falência pode também ser requerida: I - pelo cônjuge sobrevivente, pelos herdeiros do devedor ou pelo inventariante, nos casos dos arts. 1º e 2º, nº I; II - pelo sócio, ainda que comanditário, exibindo o contrato social, e pelo acionista da sociedade por ações, apresentando as suas ações; III - pelo credor, exibindo título do seu crédito, ainda que não vencido, observadas, conforme o caso, as seguintes condições: a) credor comerciante, com domicílio no Brasil, se provar ter firma inscrita, ou contrato ou estatutos arquivados no registro de comércio; b) o credor com garantia real se a renunciar ou, querendo mantê-la, se provar que os bens não chegam para a solução do seu crédito; esta prova será feita por exame pericial, na forma da lei processual, em processo preparatório anterior ao pedido de falência se êste se fundar no artigo 1º, ou no prazo do artigo 12 se o pedido tiver por fundamento o art. 2º; c) o credor que não tiver domicílio no Brasil, se prestar caução às custas e ao pagamento da indenização de que trata o art. 20.

3Art. 187. A cobrança judicial do crédito tributário não é sujeita a concurso de credores ou habilitação em falência, recuperação judicial, concordata, inventário ou arrolamento.

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1970! – os célebres argumentos apresentados por Fábio Konder COMPARATO seguem a linha da necessidade de utilização do pedido de falência como uma espécie de reforço da cobrança, principalmente agregando-lhe a possibilidade da sanção penal. Se os credores privados podem lançar mão dessa alternativa, também o crédito com privilégio deveria poder. Segundo o autor:

“[...] a teimosia dos fatos vem patenteando, quotidianamente, que a perspectiva do imediato desapossamento e da indisponibilidade global do seu patrimônio, combinada com a ameaça de um inquérito judicial sobre sua atividade pregressa, como preliminar de ação penal por crime falimentar, representa formidável constrição à vontade do devedor inadimplente, malgrado o fato de se dizer e repetir – a meu ver irrefletidamente [...] – que a falência não é meio de cobrança.”4

Tal como observam Aline França CAMPOS e Rodrigo Almeida MAGALHÃES, COMPARATO defendia claramente que o processo de falência era um processo de interesse exclusivo do credor. Assim, como credor, não haveria qualquer problema da Fazenda Pública utilizar-se do processo de falência a fim de, primeiro, exigir do devedor o depósito elisivo e, posteriormente, fazer contra ele recair o peso de uma condenação criminal por eventual crime falimentar.5

A preocupação, no caso, era a de agregar mais um método ao processo de cobrança, utilizando-se das particularidades da ameaça das sanções previstas no processo falimentar e, inclusive, dos transtornos oriundos do processo de falência. Diversamente do que seria de se esperar, sendo este o objetivo o alvo dos pedidos deveriam ser os devedores solventes.

A eliminação das atividades de empresas que se limitavam a acumular débitos, gerando graves prejuízos tributários, sociais e concorrenciais não constituiu argumento central das discussões, sendo apenas lembrado nas manifestações de J. NETTO ARMANDO, quando já afirmava que “apenas a completa cessação das atividades de tais pessoas seria meio eficaz de combate ao seu inqualificável comportamento tributário para com o Estado.”6

Entretanto, as decisões mais importantes em relação ao tema – porquanto objeto de grande discussão no Superior Tribunal de Justiça – não são deste período; mas dos anos 90. Entretanto, utilizam toda a argumentação forjada pela doutrina constituída duas décadas antes.

Muito embora inicialmente a tese tenha sido recepcionada pelo Superior Tribunal de Justiça, através do julgamento do REsp 10.660-MG, em 1996, parece ser a revisão deste entendimento pelo REsp 138.868-MG o marco fundamental na consolidação da

4COMPARATO, Fábio Konder. Falência – legitimidade da fazenda pública para requerê-la. Revista dos Tribunais. São Paulo: Revista dos Tribunais, n. 442, agosto, 1972.

5 CAMPOS, Aline França e MAGALHÃES, Rodrigo Almeida. A legitimidade ativa no processo falimentar: a Fazenda Pública e o credor com garantia real à luz da Lei 11.101/2005. FONTE INTERNET 6 ARMANDO. J. Netto. Falência de contribuinte a requerimento do fisco. Revista dos Tribunais. São Paulo:Revista dos Tribunais, n. 451, maio, 1973.

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jurisprudência sobre o tema, principalmente em razão do voto condutor da lavra do Ministro Ruy ROSADO. A partir do entendimento consolidado no REsp 138.868-MG houve outras tentativas de alteração de entendimento, mas jamais derrubada a construção nele deduzida.

Segundo o voto condutor evidenciava-se no caso concreto o claro intuito de utilização do processo de falência como meio de agregar novos meios de cobrança à execução fiscal. Algo, diga-se, que COMPARATO, no citado parecer, jamais fez questão de esconder. Da mesma forma, verificava-se na situação fática a utilização do pedido de falência de forma indiscriminada, como etapa do processo de cobrança de dívidas tributárias realizadas pelo Estado de Minas Gerais. Tal modus operandi, ademais de um evidente desvirtuamento do processo de falência, acabava trazendo algumas incongruências jurídicas, além de problemas, inclusive de ordem operacional, aos processos de execução e falimentar. Conforme registra o voto condutor:

“(...) no sistema onde a falência pode decorrer do simples inadimplemento e não da insolvência, caberia ao administrador, verificada a impontualidade e extraída a certidão da dívida, requerer a falência do devedor; a quantidade dessas situações poderia levar ao caos, econômico e tributário, mas deixar ao administrador a escolha daqueles que poderão ser ou não submetidos à falência talvez seja ainda pior.”

Há, portanto, uma clara inconformidade com o desvirtuamento do processo de falência, que é mais direcionado ao devedor solvente, de modo a forçá-lo a efetuar o depósito elisivo; o que violaria a lógica da ação falimentar, que possui a função de viabilizar a correta extinção da pessoa jurídica. Verifica-se, ainda, a preocupação com o problema operacional que a adoção desta postura pelo Fisco poderia levar, ante a grande quantidade de executivos fiscais, que implicaria no congestionamento e até mesmo a inviabilidade das varas de falência. Há, por fim, apreensão em relação à possibilidade de desvio de poder, e abuso na discricionariedade, uma vez que – na ausência de critérios claros para a utilização da ação falimentar - o Fisco poderia utilizar o pedido para prejudicar ou perseguir determinado contribuinte.

A estes argumentos, somam-se outros três de ordem técnico-processual, quais sejam:

- lei de falências (arts. 8º e 9º do Decreto-lei n. 7661/45, enumerando aqueles que podem requerer a quebra, não incluiu entre eles a Fazenda Pública.

- ao regular a relação entre a cobrança da dívida ativa e a falência, a Lei n. 6830/80, no seu art. 29, excluiu a Fazenda Pública do concurso de credores.

- por fim, no seu art. 38, a Lei 6830/80 determina que “a discussão judicial da dívida ativa só é admissível em execução, na forma desta lei, salvo as hipóteses de mandado de segurança, ação de repetição de indébito e ação anulatória do ato declarativo da dívida.

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Após alguns anos, em 2003 a questão retorna à apreciação do Superior Tribunal de Justiça no julgamento do REsp 164.389-MG 2003. Demonstrando que a matéria estava longe de ser pacífica, vem o recurso fundamentado com base na divergência de entendimentos dos Tribunais de Justiça dos Estados do Rio Grande do Sul e de São Paulo.

A importância do precedente, contudo, ademais do acirrado debate travado entre os votos, está no fato de que a situação que embasava o pedido de falência pela Fazenda Pública era completamente distinta do precedente anterior. No caso, não obstante também oriundo do Estado de Minas Gerais, o objetivo não era mais a instituição de modo de cobrança através da utilização do depósito elisivo do processo de falência. A empresa recorrida, conforme descrito no voto vencido, tratava-se de devedor contumaz, que deveria ser retirada do mercado como forma de evitar maiores lesões ao Fisco e preservar a concorrência.

Conforme destacou o voto vencido do Ministro CASTRO FILHO, o objeto no caso era a cessação das atividades de empresa que, constantemente autuada, praticava concorrência desleal. A medida deveria servir como forma de impedir a perpetuação de fraudes.

Entretanto, o voto inicial do Ministro CASTRO FILHO acabou vencido pelos dois votos que lhe sucederam. O primeiro, do Ministro RUY ROSADO que, não obstante o caso distinto, repetira os argumentos do julgamento do REsp 138.868-MG, com acréscimo de que a falência não pode ser utilizada como forma de saneamento do mercado.

O voto desempate, da lavra do Min.Antonio de PÁDUA RIBEIRO, retomou o argumento formal sobre a existência da Lei de Execução Fiscal como única forma de cobrança por parte da Fazenda Pública, uma vez que esta já constituía “privilégio” suficiente, verbis:

Não se pode, pois, admitir que, dispondo de procedimento próprio – e privilegiado – para a cobrança de sua dívida ativa, o Estado venha a postular medida que afeta tão gravemente a saúde da empresa privada, como meio de cobrar uma dívida constante de título por ele mesmo elaborado e que estampa um quantum por ele mesmo definido. Ademais, a certidão de dívida ativa não é título sujeito a protesto, com o qual se poderia estabelecer a impontualidade do comerciante ou, até mesmo, garantir a este uma última oportunidade para quitar o débito. É bem verdade que, tal como consignado no acórdão recorrido, conforme transcrição levada a efeito neste voto, os atos do recorrido poderiam ser amoldados à hipótese do inciso I, do art. 2.º da Lei de Falências. Porém, como dito, a Fazenda Pública dispõe de meios específicos para reaver seu crédito, inclusive com o uso de medidas cautelares que se fizerem necessárias, como a de arresto.

Ainda, parece-nos importante destacar a repetição também de argumento decisivo no julgamento do REsp 138.868-MG, trazido pelo Min. RUY ROSADO e repetido pelo Min. Antônio de PÁDUA RIBEIRO, relativo à vinculação da ação de cobrança, ponto ao qual adiante retornaremos:

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Porém, é muito relevante a reflexão que fez o Ministro Ruy Rosado de Aguiar, logo no início de seu voto: “Se ao Estado é dado requerer falência, isso não é uma possibilidade, é um dever. Se o Estado requerer a falência de todos os seus devedores, será o caos; se tiver o direito de escolher uns devedores e não outros, será um caos pior” De fato, escolher sociedades devedoras atenta contra os princípios da ordem econômica, encarecidos pela recorrente.

Resta-nos, nesse iter de formação de precedentes, o exame do REsp 287.824-MG, o qual tem seu exame concluído em 20/02/2005, ou seja, ainda sob a égide do Decreto-lei n. 7661/45. No caso, chama a atenção o fato de que a discussão envolvia também o direito da Fazenda Pública efetuar o protesto da CDA, ou seja, valer-se de instrumento de cobrança próprio do direito privado. 7 Outrossim, é fato importante que compunham a turma de julgamento os Ministros Teori Albino ZAVASCKY e Luiz FUX, hoje integrantes do Supremo Tribunal Federal. O recurso especial, novamente do Estado de Minas Gerais, acabou desprovido em razão de argumentos já utilizados em decisões anteriores, trazidos todos pelo Relator, Min. Francisco FALCÃO. Dentre eles, inovou em relação à falta de lógica ou interesse da Fazenda Pública em requerer a falência, verbis:

De fato, afigura-se absolutamente ilógica a possibilidade do requerimento de falência, porquanto equivaleria a um verdadeiro paradoxo. É que basta imaginar que a Fazenda Pública requeira a falência e logo após a sua decretação informe ao Juízo que o seu crédito não se sujeita ao concurso universal, nos termos do dispositivo supracitado.

Ademais da remissão ao artigo 38 da LEF, bem como da retomada da coação moral para obtenção do depósito elisivo, mais um argumento no acórdão é digno de registro para que seja analisada sua coerência dentro do ordenamento. Trata-se aqui, da necessidade do legitimado para a falência não possuir privilégio e, ainda, da possibilidade de, no caso de crédito tributário, o responsável pela sua cobrança renunciar tal privilégio, que seria irrenunciável.

Por outro lado, quanto à legitimação ordinária para ajuizar o pedido de falência, verifica-se que a regra geral impõe para este fim que o credor seja quirografário, ou seja, desprovido de qualquer preferência ou privilégio, o que revela a impossibilidade de submeter o crédito tributário à renúncia dessas qualidades, porquanto goza de privilégio ex vi legis, sendo certo igualmente que o agente tributário não possui poderes para dele dispor, porquanto o crédito tributário é irrenunciável.

7 Conforme o acórdão recorrido: "FALÊNCIA - FAZENDA PÚBLICA ESTADUAL - CDA - PROTESTO ESPECIAL - DESCABIMENTO. Não cabendo à Fazenda Pública requerer a falência do comerciante, impróprio o protesto especial da certidão de dívida ativa, previsto no art. 10 do Decreto-Lei n. 7.661/45" .

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Temos, portanto, aqui, mais dois interessantes argumentos a serem acrescentados dentre aqueles que sustentam a impossibilidade do requerimento de falência pela Fazenda Pública: - a incoerência da Fazenda Pública requerer a falência e depois alegar a não sujeição de seu crédito à falência e - a indisponibilidade do privilégio de não submissão à falência, sendo vedado ao agente responsável pela cobrança a renúncia.

Assim, a estes dois novos, somam-se os já arrolados: - não inclusão no rol do art. 8º e 9º do DL 7661/45; - “vedação” do art. 29 da LEF, que exclui a Fazenda Pública do concurso de credores, não submetendo a execução fiscal à falência; - incongruência com o art. 38 da LEF, que limita os casos de discussão da CDA à execução e a outros poucos incidentes; - utilização da falência como forma de coação com finalidade exclusiva de obtenção do depósito elisivo e – a utilização do pedido de falência apenas em casos identificados pelo agente responsável pela cobrança, e não em todos os casos, o que caracterizaria tratamento discriminatório.

Todos, diga-se, sólidos e jurídicos argumentos, onde verifica-se principalmente uma preocupação com a observância de um procedimento padrão por parte da Fazenda Pública, de forma a garantir uma igualdade em relação aos procedimentos de cobrança.

Entretanto, tal entendimento – assim como toda a argumentação que o sustenta – ainda que pudesse estar de acordo com sua utilização social e jurídica em seu início, hoje demonstra-se defasado sob qualquer ângulo que se o observe. Tanto em relação à correta resposta social a ser dada pelo direito, impossibilitando a prática do mal social sob o amparo de brechas legislativas ou jurisprudenciais, ou mesmo pela ótica jurídica do exame de coerência em relação às decisões emanadas pelo próprio Superior Tribunal de Justiça e Supremo Tribunal Federal em relação a matérias diretamente relacionadas. Por fim, há necessidade clara de adequação dos julgados à própria lógica atualizada dos feitos falimentares trazida pela Lei 11.101/11, que alterou significativamente os conceitos e objetivos do processo falimentar.

2. Das razões em favor do reconhecimento da legitimidade da Fazenda Pública para o requerimento da falência.

2.1. Lei 11.101/05 e a legitimidade da Fazenda Pública para o requerimento da falência

A inovação em relação à lógica observada nos processos falimentares consagrada pela edição da Lei 11.101/05 será, portanto, o primeiro “fato novo” a ser analisado neste estudo, porquanto é a partir dela que se inicia uma substancial alteração no entendimento do Superior Tribunal de Justiça em alguns pontos envolvendo a execução fiscal e o processo de falência e recuperação judicial. Essa alteração, entretanto, parece observar um processo

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gradativo, de modo que também é chegada a hora de revisão do entendimento relativo à legitimidade da Fazenda Pública para o requerimento da falência.

Considerando-se a desatualização do Decreto-lei n. 7661/45, em vigor por mais de 60 anos, era imperioso ao direito empresarial a edição de nova normativa a fim de atualizar a regulação sobre os procedimentos de concordata e falência, ou seja, da possibilidade de recuperação e extinção da empresa. Conforme apontado pela doutrina especializada já não mais compatível com a visão contemporânea da empresa a adoção de uma lógica formalista e de um direito falimentar que privilegiasse o mero interesse do credor, que comumente utilizava-se do processo de falência com o único objetivo de obter o depósito elisivo. Ou seja, como mero instrumento de cobrança.8 Veja-se que em relação à Fazenda Pública, este foi um dos argumentos decisivos para o reconhecimento de sua ilegitimidade para o requerimento da falência, uma vez que já contava com a execução fiscal.

A partir do advento da Lei 11.101/05 há não apenas um marco regulatório novo, mas toda uma rama principiológica envolvendo a proteção da entidade empresarial, até mesmo porque a concepção social de empresa em 2011 era já bem distinta daquela existente em 1945.

Pois talvez a principal alteração em relação ao modelo anterior, temos no princípio da preservação da empresa, consagrado em vários dispositivos da Lei n. 11.101/05, principalmente a partir da recuperação judicial. A parte relativa à recuperação judicial é amplamente direcionada a viabilizar a situação de crise econômica do devedor, permitindo a manutenção da fonte produtora, os empregos gerados, os interesses dos credores, reconhecendo sua função social e a necessidade de proteção ao empreendedor e à atividade econômica. Na fase de recuperação essa política é evidente no stayperiod (art. 6º caput), onde suspensos os processos contra o devedor por até 180 dias; a novação das obrigações pela aprovação do plano (art. 59); nos estímulos a novos financiamento e manutenção do fornecimento de bens e serviços durante a recuperação judicial (art. 67), evitando a inviabilização da atividade produtiva; na proibição da retirada de bens essenciais da empresa durante o stayperiod(art. 49, §3º ), na alienação de estabelecimento sem sucessão tributária (art. 60, parágrafo único); na manutenção do devedor no controle da empresa recuperanda(art. 64), etc. Mesmo na falência, há a clara presença do princípio da preservação da empresa, quando se permite a alegação da possibilidade de recuperação judicial como matéria de defesa (art. 95) ou mesmo da preferência de alienação do passivo produtivo de forma conjunta, de modo a permitir que outro siga na atividade produtiva, preservando de certa forma a atividade produtiva da empresa (art. 140). A transição do foco do processo falimentar/recuperação para a função social ao invés do exclusivo interesse do credor fica evidente no art. 58, §§ 1º e 2º), quando prevê a possibilidade de o juiz impor a recuperação, ainda que sem a concordância de credores dissidentes (Cram down).

8Conforme Douglas Cavalini de SOUZA: “No que tange as disposições do processo falimentar, procurou a lei atender aos princípios da celeridade e da economia processual, perdendo o caráter de cobrança, não dificultando as exigências para a sua decretação. Alterou-se também, a ordem de classificação dos créditos, passando os créditos com garantia real, normalmente oriundos das instituições financeiras, para um privilégio logo abaixo dos créditos trabalhistas. Com isso objetivou-se dar maior segurança aos fornecedores de créditos, e com isso reduzir as taxas de empréstimo bancário.” (Os avanços da nova lei de falências http://www.ambitojuridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=2724)

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Entretanto, o princípio da preservação da empresa vigora não em relação a qualquer empresa, mas em relação às empresas viáveis, ou seja, empresas que demonstrarem a possibilidade de renovarem suas práticas e passarem a operar demonstrando interesse e possibilidades de superar a crise financeira que atravessam. Não se pode permitir, por óbvio, o princípio da preservação da empresa (e as normas que o instrumentalizam) aplicado a empresa que continua a demonstrar-se inviável. Prova disso é a exigência da aprovação de plano de recuperação em assembléia de credores (art. 58), acompanhado de regularidade fiscal, comprovada a partir de celebração de parcelamentos de todos os créditos tributários da empresa em recuperação (art. 57).9

E de forma bastante coerente, como forma de consagração do princípio da preservação da empresa viável, a Lei n. 11.101/05prevê ou princípio que não lhe é oposto, mas complementar, qual seja, o da retirada do mercado da empresa inviável. Conforme explicam João Pedro SCALZILLI, Rodrigo TELLECHEA e Luis Felipe SPINELLI, isto ocorre porque não é possível manter uma empresa a qualquer custo, “pois quando os agentes econômicos que exploram a atividade não estão aptos a criar riqueza e podem prejudicar a oferta de crédito, a segurança e o tráfico mercantil, devem ser retirados do mercado o mais rápido possível, para o bem economia como um todo.”10

No caso, a partir da Lei n. 11.101/05, havendo a possibilidade de uma empresa ser

viável, não estará ela sujeita a falência. Não estará, inclusive, sob a ameaça de um credor que utiliza a falência como meio de buscar a satisfação de forma mais rápida, não importando o dano social que cause. Mesmo na impossibilidade do pagamento, possui a empresa viável a possibilidade da recuperação judicial, inclusive como matéria de defesa a ser alegada.

Dessa forma, será requisito da falência não apenas a inadimplência de título, mas o

juízo de inviabilidade da empresa. E, nesse caso, do ponto de vista econômico, a falência não é má de todos os aspectos. Isto porquanto os meios de produção serão realocados àqueles agentes que tenham efetiva capacidade de gerar riqueza.11 Do mesmo modo, a retirada da empresa inviável impede que esta continue a ser financiada por seus credores e, no caso do crédito tributário, pela sociedade em geral.

Nessa linha, em relação ao crédito tributário deve sempre ser considerada uma

agravante. Quando diante de uma empresa manifestamente inadimplente, verifica-se que os credores privados podem proteger-se dela através da restrição ao crédito. Como não há obrigação de vender para a empresa inviável, bastaria ao credor privado não agravar seus prejuízos através da cessação dos negócios com a mesma. No caso do crédito tributário – principalmente no caso dos tributos envolvendo o consumo, como o ICMS - não há possibilidade de impedir que a empresa pratique o fato gerador. Logo, a empresa insolvente poderá acumular tanto débito tributário quanto for capaz, financiando sua inviabilidade de mercado com tributos. Permite-se, dessa forma, que a sociedade em geral acabe financiando a empresa insolvente que, mantida no mercado, somente aumentará seu passivo e prejudicará a concorrência leal.

9Art. 57. Após a juntada aos autos do plano aprovado pela assembléia-geral de credores ou decorrido o prazo previsto no art. 55 desta Lei sem objeção de credores, o devedor apresentará certidões negativas de débitos tributários nos termos dos arts. 151, 205, 206 da Lei no 5.172, de 25 de outubro de 1966 - Código Tributário Nacional. 10 Objetivos e Princípios da Lei de Falências e Recuperação de Empresas 11KRUGMAN, Paul; WELLS, Robin.Introdução à economia. Trad. Helga Hoffmann. Rio de Janeiro: Elsevier, 2007. p. 395-408.

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Dessa forma, da mesma forma em que a Lei n. 11.101/05 traz importante

instrumental no sentido de garantir a preservação da empresa, verifica-se que este princípio – tal como acima arrolado – está diretamente vinculado às empresas que se demonstrarem viáveis, possuindo claros requisitos e prazos para tal. A outra face do princípio da preservação da empresa viável está na imediata retirada da empresa inviável, de modo que reconhecido pela Lei n. 11.101/05, os danos sociais causados pelas empresas inviáveis, cuja manutenção produz como único efeito a absorção de seus prejuízos pelos credores; o que apenas é potencializado no caso do crédito tributário, ante a ausência de restrição ao crédito e o custeio social da inadimplência tributária.

Logo, evidente a intenção do legislador quando amplia o rol de legitimados ao

pedido de falência para qualquer credor, pois reconhece que, no caso da empresa não ter condições de provar viabilidade, deve ter sua extinção de forma regular, de forma a evitar a produção de maiores danos. Em outras palavras, porque já não cumpre seu papel de produtor de riqueza social, mas constitui potencial produtor de prejuízo social.

Se de um lado há evidente prejuízo envolvendo os credores da empresa inviável, o

qual determina a ampliação do rol de legitimados para – caso comprovada sua inviabilidade – ser regularmente extinta, tem-se ainda que a manutenção de empresa inviável gera, também, graves danos à concorrência. Esta, diga-se, constitucionalmente tutelada pelo art. 146-A. Assim ocorre porquanto uma empresa economicamente inviável – que já opera sem nenhum compromisso com a satisfação de seus compromissos, principalmente os tributários – permite participar do processo de disputa pelo mercado em condições absolutamente desiguais com empresas viáveis e socialmente responsáveis, que tem na qualidade de seus produtos e serviços seu diferencial de mercado. Logo, parte do mercado que poderia estar sendo ocupada por empresa socialmente responsável passa a ser ocupada – transitoriamente – por empresa que faz do não pagamento de tributos e credores seu “diferencial de mercado.”

Tal situação já fora claramente apreendida no julgamento do REsp164.388/MG, no

voto vencido de seu então Relator, Ministro CASTRO FILHO, quando analisou a legitimidade da Fazenda Pública para o pedido de falência, ainda antes da Lei n. 11.101/05:

“Entendo, pessoalmente, que o fim primordial do requerimento de quebra pela Fazenda Pública poderá não ser, necessariamente, só a obtenção da satisfação de seus créditos. Poderá ter por objeto também a cessação das atividades de pessoas constantemente autuadas, cujos débitos nunca são saldados no executivo fiscal, por não se conseguir encontrar bens suficientes à penhora; pessoas que fraudam constantemente o Fisco e seguem a exercer atividade mercantil sem que a Fazenda possa impedir que pratiquem o comércio, em concorrência até desleal com as empresas fiéis cumpridoras de suas obrigações tributárias. Ou, ainda, a possibilidade de condenação por crime falimentar e, assim, de verdadeira restrição ao exercício do comércio, por pessoas que reiteradamente constituem sociedades comerciais, via de regra por quotas de responsabilidade limitada, fazem figurar seu nome nos cargos administrativos, realizam totalmente o capital social (pelo menos ao que declaram), operam durante certo tempo, não pagam os impostos e fazem desaparecer a empresa, constituindo outra sociedade comercial, quase

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sempre com o mesmo objeto da anterior, em fraude aos credores. É de se concluir, portanto, que o requerimento de "quebra", embora não seja isso seu fim precípuo, poderá agasalhar, também propósitos moralizantes.”

A lógica da legitimação da Fazenda Pública não está, portanto, na facilitação dos meios de cobrança, mas nos danos sociais que podem ser causados por empresas inviáveis. Danos, registre-se, que acabam prejudicando não apenas a concorrência, mas que ao fim acabam sendo rateados pelos credores, mormente pela sociedade, uma vez que o crédito tributário tem sua constituição vinculada exclusivamente à atividade do contribuinte, sem a possibilidade de restrição pela Fazenda Pública.

É exatamente pelo reconhecimento da necessidade de preservação das empresas viáveis e o reconhecimento dos graves danos econômicos e sociais que podem ser causados pelas empresas inviáveis é que a nova Lei de Falências e Recuperação de Empresas protege de forma clara as primeiras e elimina qualquer restrição a que o credor peça a retirada das empresas inviáveis. Linha, inclusive, já defendida por NETTO ARMANDO, desde os primórdios da discussão sobre a legitimação da Fazenda Pública, quando afirmava que “apenas a completa cessação das atividades de tais pessoas seria meio eficaz de combate ao seu inqualificável comportamento tributário para com o Estado.”12

Aliás, é exatamente nesta linha a alteração de posicionamento do Supremo Tribunal Federal quando da apreciação de matéria tecnicamente muito mais grave, qual seja, a envolvendo sanção política. No caso, julgado no RE 550.769 STF e onde ponderado o direito de livre empresa em relação à livre concorrência, tamanha a necessidade de retirada da empresa do mercado que se autorizou o fechamento sancionatório – punição administrativa – ou seja, muito mais grave que o pedido judicial de extinção regular, tal como ocorre na falência.

Conforme destacado no RE 550.769, a inadimplência planejada constitui uma situação anormal, sendo adjetivada pelo voto do Min. LEWANDOWSKI como “macrodelinquencia tributária reiterada”. Conforme entendeu o Supremo Tribunal Federal, não seria admissível dentro de um regime ordinário de operação de empresas a oneração dos demais, com o aproveitamento de um pela constituição deliberada de passivo tributário. Tal prática permitiria que empresas sólidas, ao invés de possuírem um diferencial positivo, acabem sofrendo uma concorrência desleal de empresas constituídas com a finalidade específica de acumular dívidas antes da dissolução. Sofrem, não apenas com a perda do mercado, mas, ao fim e ao cabo, com a repactuação social do passivo tributário gerado, que retorna na forma de novos tributos.

Esse reconhecimento jurisprudencial, diga-se, acabou sendo incorporado pelo legislador, evidenciando a nova lógica relativa à preservação de empresas trazida pela Lei n. 11.101/05, qual seja, manter o quanto possível as empresas viáveis e retirar, o quanto antes possível, as empresas manifestamente inviáveis. E nenhum lugar melhor para tal exame que o

12 ARMANDO, J. Netto. Falência de contribuinte a requerimento do fisco. Revista dos Tribunais. São Paulo: Revista dos Tribunais, n. 451, maio, 1973.

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processo judicial – falimentar ou de recuperação – onde a empresa poderá demonstrar claramente a circunstancialidade ou não de sua situação de debilidade econômica, inclusive como garantia de todos os credores. Nessa linha, evidente que quanto maior a legitimidade, mais de acordo com a lógica da nova Lei de Falências e Recuperação de Empresas.

2.2. Recepção parcial dos novos critérios da Lei n. 11.101/05 pelo Superior Tribunal de Justiça

Ainda que não tenha reconhecido, até agora, a legitimidade da Fazenda Pública para o requerimento da falência, desde antes da promulgação da Lei n. 11.101/05 já admitia o Superior Tribunal de Justiça a conversão do executivo fiscal em habilitação na falência. Desde 2007, com o REsp 967626, há entendimento consolidado no Superior Tribunal de Justiça no sentido de que o credor tributário poderia habilitar seu crédito na falência. Para tal, deverá abrir mão da execução fiscal de modo a evitar dúplice cobrança. Conforme manifestado no voto condutor do REsp 967626/2007:

“Certo é que, optando por uma forma de cobrança do crédito tributário, o ente público perde a faculdade de utilizar a outra possível. O que não se admite é uma dupla garantia, que permitia ao Fisco ajuizar a execução fiscal e, ao mesmo tempo, pedir a habilitação de seu crédito no processo de falência.”

Na mesma linha, o REsp1103405/MG/2009 reconhece a possibilidade de habilitação do crédito tributário na falência como “prerrogativa da Fazenda Pública”, ainda que mantendo o entendimento sobre a impossibilidade de requerimento da falência, verbis:

PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO. APRESENTAÇÃO DE CRÉDITOS NA FALÊNCIA. PRESTAÇÃO DE CONTAS APRESENTADA PELO SÍNDICO. CRÉDITOS TRIBUTÁRIOS DE PEQUENO VALOR. HABILITAÇÃO. CASO CONCRETO. POSSIBILIDADE. 1. Não viola o art. 535 do CPC o acórdão que soluciona a controvérsia com base em fundamento prejudicial ao ponto sobre o qual não houve enfrentamento no âmbito do Tribunal de origem. 2. Os arts. 187 e 29 da Lei 6.830/80 não representam um óbice à habilitação de créditos tributários no concurso de credores da falência; tratam, na verdade, de uma prerrogativa da entidade pública em poder optar entre o pagamento do crédito pelo rito da execução fiscal ou mediante habilitação do crédito. 3. Escolhendo um rito, ocorre a renúncia da utilização do outro, não se admitindo uma garantia dúplice. Precedentes. 4. O fato de permitir-se a habilitação do crédito tributário em processo de falência não significa admitir o requerimento de quebra por parte da Fazenda Pública.(...)

Previsão dos artigos 29 da LEF e 187 do CTN

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No caso, o próprio Superior Tribunal de Justiça, nos vários julgados admitindo a habilitação do crédito tributário na falência reconhece de forma inequívoca a relativização dos artigos 29 da LEF e 187 do CTN em relação ao feito falimentar. Ainda que disponham que o crédito tributário não se sujeita à falência, acabam relativizando-o sob duas formas distintas. A primeira, permitindo que a Fazenda Pública exeqüente abra mão da prerrogativa prevista nos artigos 29 da LEF e 187 do CTN e opte pela habilitação no crédito falimentar.

Cumpre lembrar que a chamada “renúncia ao privilégio da execução própria”, que não se sujeita à falência prevista no art. 187 do CTN foi reduzida a norma praticamente inócua do ponto de vista material pelo próprio Superior Tribunal de Justiça. Isto porquanto, em vários julgados, consolidou o entendimento de que não obstante a possibilidade de prosseguimento da execução fiscal, o produto da alienação de bem penhorado na execução fiscal deverá serremetido ao Juízo falimentar para que seja ali realizado o concurso de credores. Logo, há que se concluir que, materialmente, a execução fiscal estará, sim, sujeita a concurso de credores e ao juízo falimentar. Neste sentido:

PROCESSUAL - EXECUÇÃO FISCAL - MASSA FALIDA - BENS PENHORADOS - DINHEIRO OBTIDO COM A ARREMATAÇÃO - ENTREGA AO JUÍZO UNIVERSAL - CREDORES PRIVILEGIADOS.

I - A decretação da falência não paralisa o processo de execução fiscal, nem desconstitui a penhora. A execuçãocontinuará a se desenvolver, até à alienação dos bens penhorados. II - Os créditos fiscais não estão sujeitos a habilitação no juízo falimentar, mas não se livram de classificação, para disputa de preferência com créditos trabalhistas (Dl. 7.661/45, Art. 126) III - Na execução fiscal contra falido, o dinheiro resultante da alienação de bens penhorados deve ser entregue ao juízo da falência, para que se incorpore ao monte e seja distribuído, observadas as preferências e as forças da massa.

(REsp 188148/RS, Corte Especial, Rel. Min. Humberto Gomes de Barros, j. 19/12/2001)

Aliás, a inocuidade do “privilégio” contido no art. 187 do CTN é reconhecido pelo Superior Tribunal de Justiça ao afastar qualquer juízo de inércia por parte do exequente na execução fiscal, entendendo que praticamente nada mais lhe cabe senão aguardar o desfecho do feito falimentar. Neste sentido:

TRIBUTÁRIO. EXECUÇÃO FISCAL. PENHORA NO ROSTO DE AÇÃO DE FALÊNCIA. PRESCRIÇÃO INTERCORRENTE. INOCORRÊNCIA. DESFECHO DO PROCESSOFALIMENTAR. DEVER LEGAL IMPUTADO AO EXEQUENTE. INÉRCIA INEXISTENTE.PRECEDENTES. FUNDAMENTAÇÃO CONSTITUCIONAL. IMPOSSIBILIDADE DE EXAMEPOR ESTA CORTE SUPERIOR. REQUISITOS DA PRESCRIÇÃO: LAPSO TEMPORAL EINÉRCIA DO CREDOR.

1. A jurisprudência desta Corte reconhece a prejudicialidade doprocesso falimentar para a satisfação do crédito tributário, vistoque a penhora dos

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valores no rosto nos autos da falência, ou ahabilitação do crédito fazendário no mesmo processo, impõe à FazendaPública uma única atitude: aguardar o término da ação de falência.2. A paralização da ação de execução fiscal por determinação legalou judicial obsta a fluência do prazo prescricional, mormente quandoa culpa pela paralização não pode ser imputada ao credor.Precedentes.(...)4. A caracterização da prescrição requer a ocorrência do lapsotemporal associado à efetiva inércia do exequente, de modo que a leide falência ou a decisão judicial, longe de disciplinarem questãoatinente ao prazo prescricional, estabelecem relação direta com orequisito de atuação do credor, inviabilizando sua atividade noprocesso.Agravo regimental improvido. (AgRg no REsp 1393813/RS, 2ª Turma, Rel. Min. Humberto Martins, j. 13/05/2014)

Pois conforme relatado na evolução das discussões sobre a legitimidade da Fazenda Pública para o requerimento de falência, verifica-se que um dos entraves colocados para negar-lhe legitimidade é exatamente a existência dos artigos 29 da LEF e 187 do CTN, que obrigavam a Fazenda Pública ao rito “privilegiado” da execução fiscal, demonstrando a incompatibilidade de participar do processo falimentar. O que ocorre, neste caso, é que tal argumento é superado pelo próprio Superior Tribunal de Justiça, que não apenas termina com o alegado “privilégio” do art. 187 do CTN, porquanto reduzido a prerrogativa formal já que produto desta acaba submetendo-se ao concurso de credores. Tanto que considera essa paralização como ato inimputável como inércia ao credor. Outrossim, assume o entendimento consolidado de que a Fazenda Pública pode participar do processo de falência habilitando seu crédito. Mais que isso, que tal opção constitui “prerrogativa do credor”, apenas não podendo ser cumulada com a execução fiscal, que deverá ser extinta (ou não utilizada).

2.3. Art. 38 da LEF e o direito de defesa do executado

Outro argumento utilizado para a negativa de legitimidade à Fazenda Pública temos no artigo 38 da LEF. Segundo o entendimento alegado, haveria necessidade de proposição de execução fiscal de modo a viabilizar a discussão do crédito pelo contribuinte via oposição de embargos. Entretanto, não custa lembrar que o próprio art. 38 confere uma série de outras possibilidades, com as mesmas prerrogativas ao crédito em discussão, qual seja, a suspensão da exigibilidade do crédito.

Aliás, tal não seria de modo algum empecilho ao requerimento da falência porquanto, além das várias ações previstas no ordenamento cuja suspensão da exigibilidade do crédito inviabilizaria o pedido de falência, o próprio requerimento tampouco impediria o manejo de qualquer discussão do crédito, seja pelo contribuinte, seja pelo Síndico (caso aceito o pedido).

Com todo o respeito ao argumento, mas o direito tributário permite um extenso aparato ao contribuinte para discussão do crédito tributário contra o qual não se conforme, seja este na via administrativa como na via judicial. Não parece condizente com o modelo

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jurídico atual o argumento de que a não utilização da execução fiscal inviabilizaria os embargos e, portanto, o direito de defesa do devedor.

Muito pelo contrário, cada vez mais a LEF demonstra sua desatualização quando condiciona a abertura do prazo de defesa do executado à penhora, permitindo absurdos como o do executado vir a discutir matéria de fato 15 ou 20 anos após sua ocorrência, ou seja, quando finalmente localizados bens de seu patrimônio. Tal modelo já fora recentemente abandonado pelo Código de Processo Civil que já há algum tempo deixou de exigir a penhora para início do prazo de embargos, proporcionando muito mais segurança jurídica e menos transtornos à execução. Assim, exigir a penhora como viabilização de defesa parece argumento que não apenas contraria a menor oneração da execução, a lógica de segurança jurídica, mas o próprio ordenamento, que permite a mais ampla defesa ao executado, inclusive com a controvertida exceção de pré-executividade (a qual também deveria ser regulada em atualização da LEF).

Por fim, ao admitir a habilitação do crédito tributário na falência, a conseqüência/requisito estabelecida pelo Superior Tribunal de Justiça é a impossibilidade de manutenção ou utilização da execução fiscal, o que resultaria na evidente substituição dos embargos por discussão do crédito na falência. Nesse caso, o argumento de prejuízo de defesa em razão da supressão dos embargos parece superado pelo próprio STJ.

2.4. O argumento da discricionariedade no pedido de falência

Dentre os argumentos contrários à legitimidade da Fazenda Pública, certamente um dos mais eloqüentes e contundentes, refere-se a afirmação do Min. Ruy ROSADO, já nos primeiros julgados sobre o tema, no sentido de que conferir legitimidade à Fazenda Pública para requerer a falência importaria em conferir-lhe discricionariedade incompatível com a igualdade que deve permear a conduta da administração tributária em relação ao contribuinte. Como formulado pelo próprio julgador no REsp 164.388/MG:

“Se ao Estado é dado requerer falência, isso não é uma possibilidade, é um dever. Se o Estado requerer a falência de todos os seus devedores, será o caos; se tiver o direito de escolher uns devedores e não outros, será um caos pior.”

O argumento, pode-se dizer, ademais de eloqüência, afina-se com a lógica do direito tributário em geral, onde o elemento “vontade” não tem lugar, seja em relação à conduta do contribuinte, seja na conduta da Administração tributária. É um direito de extremo garantismo, que deve ser pautado pelo estritos ditames da lei, principalmente em relação à disponibilidade do mesmo.

Entretanto, há várias atualizações e considerações que devem ser feitas a tal argumento, a qual já não mais se coaduna ao modelo jurídico hoje encontrado, principalmente em relação à cobrança do crédito tributário.

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Inicialmente, parte do pressuposto da falência como direito potestativo do Estado, o que não ocorre. A falência constitui a forma regular de requerer a extinção da pessoa jurídica, absolutamente regulada por lei e sujeita a uma série de requisitos legais. No caso atual Lei n. 11.101/05, tal como já visto, para que se requeira a falência deve restar demonstrada a inviabilidade econômica da empresa. Não havendo esta demonstração, o pedido será indeferido. Mesmo não tendo condições de efetuar o depósito elisivo – tal como antes ocorria – há a possibilidade de, sendo a crise econômica momentânea, utilizar-se o devedor da recuperação judicial, inclusive com um amplo instrumental protetivo de preservação das empresas viáveis.

Logo, a partir da Lei n. 11.101/05, no mínimo, verifica-se que a falência não poderá ser utilizada contra todos os devedores de crédito tributário, tal como o argumento retórico - mas ad terrorem! – sugere. O pedido de falência por parte da Fazenda Pública, à evidência, deverá ser analisado caso a caso, não mais tendo o condão de ser utilizado como ferramenta de cobrança; mas com seu escopo único: o encerramento das atividades da empresa.

Conforme acima demonstrado, as situações dos devedores fiscais não são iguais. Logo, o tratamento que lhes é dispensado – não pelo Estado, mas pela lei - também não é. Assim é o caso, por exemplo, de empresa que possui expressivo débito e que reiteradamente deixa de saldar tributos – vencidos e vincendos. Conforme acima tratado, seus credores/fornecedores podem deixar de lhe fornecer produtos, porquanto atuam sob o regime privado. Entretanto, desde que pratique atividade econômica, tal empresa praticará novos fatos geradores, que só fará aumentar o débito tributário.

Nesse caso, qual a alternativa ao Fisco?? Aguardar que outro credor peça a falência, para então poder habilitar-se como autorizado pelo STJ?

Nesse contexto, não estamos aqui a tratar de qualquer discricionariedade, mas de juízo técnico de cobrança e de impedir dano tributário e concorrencial maior. A ação técnica da cobrança é definida não por mera liberalidade, mas como juízo técnico e fundamentado de ação considerando a conduta e situação econômica do devedor.

Deve restar bem claro, sob pena de violação de prerrogativas técnicas da advocacia; a grande diferença entre discricionariedade e escolha técnica. A primeira caracteriza-se como vontade livre - e, no direito, inclusive, livre de uma justificativa -, posto que dentro de margens geralmente “políticas” e não sindicáveis autorizadas pelo ordenamento. Por sua vez, o juízo técnico está relacionado às possibilidades do exercício e do conhecimento de um mister, ou seja, não é livre, mas sempre justificado e sindicável pela técnica própria de determinado ofício. Em nosso caso, o direito.

Exemplo claro desta aplicação podemos verificar na própria execução fiscal. Nem todas as execuções fiscais seguem o mesmo iter. Tem o representante técnico da Fazenda Pública a possibilidade de se utilizar, em ordem diversa, das diversas possibilidades de diligências previstas na LEF e CPC. Isto, evidentemente, atendendo critérios técnicos que lhe permitem buscar a melhor efetividade em relação àquele devedor. Veja-se que, em nenhum momento, exige-se, a observância de uma ordem ou roteiro no sentido de determinar as

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mesmas medidas, na mesma ordem, a todos os executados. Nem por isso, diga-se, se está diante de discricionariedade ou de impessoalidade.

Em sentido mais amplo, e diretamente ligado a casos de falência e juízo técnico – inclusive com a análise de conveniência e efetividade –o próprio Superior Tribunal de Justiça tem entendimento assente sobre essa possibilidade quando analisou a questão da habilitação do crédito tributário na falência. Nos vários julgados sobre o tema, entendeu pela possibilidade da Fazenda Pública optar pela cobrança pelo prosseguimento da execução ou pela utilização do juízo universal.

Essa questão técnica é claramente destacada no voto do Ministro CASTRO MEIRA, quando do exame da matéria no REsp 967626-RS/2006, onde registra que:

“No juízo de ponderação acerca da habilitação ou não do crédito no concurso universal, a Fazenda deverá sopesar as circunstâncias do caso concreto, mas só a ela cabe fazer esse juízo, os arts. 187 do CTN e 29 da LEF não representam um óbice a ser imposto pelo Poder Judiciário.”

Por fim, evidente que, por se tratar de ato técnico e justificado, qualquer desvio de finalidade é passível de responsabilização; algo que, no caso da falência, não deveria estar restrito ao Poder Público, mas a qualquer credor – público ou privado – que pretenda utilizar-se do requerimento de falência com finalidade distinta da legal, uma vez que constituiria evidente abuso de direito.

2.5. Irrenunciabilidade do privilégio

Outro interessante argumento, mas que segue exatamente o mesmo raciocínio do item acima abordado,refere-se à impossibilidade do pedido de falência em razão da irrenunciabilidade do privilégio do crédito tributário. Segundo tal tese, não estaria ao alcance do titular da ação o direito de renunciar ao privilégio do crédito, posto que público e ausente expressa autorização para tal.

Entretanto, pelas mesmas razões acima trazidas, parece já superado ante os próprios precedentes do Superior Tribunal de Justiça. Veja-se que o STJ já consagrou o entendimento da possibilidade de habilitação. Essa habilitação demandaria a extinção da execução fiscal, por conseqüência, a renúncia do privilégio.

AGRAVO REGIMENTAL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. COMERCIAL E PROCESSO CIVIL. FALÊNCIA. HABILITAÇÃO DE CRÉDITO TRIBUTÁRIO. POSSIBILIDADE. AUSÊNCIA DE OBRIGATORIEDADE DE PROPOSITURA DE EXECUÇÃO FISCAL. ADMISSIBILIDADE DE OPÇÃO DA VIA ADEQUADA AO CASO CONCRETO. 1. A jurisprudência desta Corte Superior se firmou na vertente de que os arts. 187 do CTN e 29 da LEF (Lei 6.830/80) conferem, na realidade, ao Ente de Direito Público a prerrogativa de optar entre o ajuizamento de execução fiscal ou a habilitação de crédito na falência, para a cobrança em juízo dos créditos tributários e equiparados. Assim, escolhida uma via judicial, ocorre a renúncia com relação a outra, pois não se admite a

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garantia dúplice. 2. Agravo regimental a que se nega provimento. (AgRg no Ag 713217/RS, Rel. Min. Vasco Della Giustina, j. 19/11/2009)

No caso, a matéria já foi examinada reconhecendo-se o juízo técnico para optar pela habilitação ao invés da execução fiscal. Em nenhum momento estará a Fazenda Pública dispondo do crédito tributário, mas buscando a melhor alternativa para sua cobrança. Nas palavras do próprio STJ, exercendo sua “prerrogativa de optar entre o ajuizamento de execução fiscal ou a habilitação de crédito na falência”.

2.6. Coação moral

A coação moral tem sido apontada como mais um argumento visando a negativa de legitimidade da Fazenda Pública para a falência. Fazendo justiça a seu surgimento, os casos onde surgem refletem efetivamente situações onde o propósito de utilização dos pedidos de falência eram exclusivamente o de obter o depósito elisivo, ou seja, pressionar o devedor. Tais casos diga-se, deveriam ser coibidos não apenas por parte da Fazenda Pública, mas por qualquer credor privado.

Conforme aponta o Ministro CASTRO MEIRA (REsp 967626-RS/2006):

Frise-se que a possibilidade de o Fisco vir a habilitar um crédito seu em processo de falência que já se encontra em curso não significa que também poderia ele vir a requerer a quebra do devedor. O pedido de falência por parte do Fisco não é de ser admitido, já que serviria de instrumento de coação moral para satisfação de dívida tributária.

O desvirtuamento do pedido de falência, contudo, foi sistematicamente restringido a partir da Lei n. 11.101/11, que abandona um juízo meramente formal, mas busca a necessidade de um critério material para a decretação da quebra. Mesmo sem efetuar o depósito, a parte não terá necessariamente sua falência decretada. Aliás, nestes casos entendemos a clara necessidade de condenação por abuso de direito. O que não se admite, entretanto, é a presunção de abuso, tal como ocorre na negativa de legitimidade pela possibilidade de coação moral.

2.7. Ausência de bilateralidade na constituição do crédito tributário

Por fim, como último dos argumentos contrários à legitimidade da Fazenda Pública para o pedido de falência está o da ausência de bilateralidade na constituição do crédito tributário. Tal argumento, diga-se é apontado geralmente de forma a tratar como um privilégio à Fazenda Pública, que não seria cumulável com a legitimação à falência.

Ocorre que exatamente nos casos onde necessário o pedido de falência – o de empresas inviáveis -, a ausência de bilateralidade na constituição do crédito tributário constitui um ônus, e não um privilégio.

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Explica-se. Diversamente do credor privado – e mesmo do credor com garantia real – a Fazenda Pública não pode impedir o devedor de praticar o fato gerador. Ou seja, não pode negar a prática do fato gerador, permitindo que constitua um passivo tributário tão grande quanto conseguir.No caso de empresas em grave crise financeira e cuja inviabilidade é diagnosticada, não há, tal como no âmbito privado, a possibilidade de negar crédito. Se isso não é tão grave nos impostos sobre a renda e patrimônio, constitui situação de extrema gravidade em relação ao consumo, tal como o ICMS. O endividamento desproporcional cumulado com o não recolhimento sistemático de tributos permite: a) caso não repasse ao consumidor o tributo, que a empresa concorra em situação desleal com seus concorrentes; b) caso repasse, que tenha lucro acima da concorrência, apropriando-se do crédito fiscal. Em nenhum caso é necessário o lastro econômico para garantir a dívida fiscal, que ao fim e ao cabo será custeada pela sociedade.

Por fim, vale sempre o registro de que o ICMS é sujeito a lançamento por homologação. Logo, na grande maioria dos casos, o título é formado com informações sobre as quais não cabe nenhuma discussão fática, porquanto provenientes – no caso do imposto informado – de descrição dos fatos geradores confessadas pelo próprio contribuinte.

2.8. A falência seria benefício exclusivo do credor privado

Muito embora a Lei n. 11.101/2005 tenha excluído qualquer qualificação de credor para a legitimação ao requerimento de falência – referendando os critérios de preservação da empresa viável e retirada imediata da empresa inviável – ainda subsiste, dentre a resistência na exclusão legitimidade da Fazenda Pública, o argumento no sentido de que esta legitimidade estaria restrita aos credores privados, ainda que nenhuma restrição tenha feito a lei neste sentido. Somente possível entender, neste caso, pela interpretação de que a falência seria instrumento restrito ao âmbito privado.

Ocorre que também recentemente o Superior Tribunal de Justiça editou acórdão

emblemático onde afasta claramente esse entendimento segmentado de absoluta separação

entre o público e privado. Mais ainda, o faz em caso envolvendo a cobrança da dívida ativa e

utilização de meios eminentemente comuns na esfera privada. Assim o faz não em razão da

compatibilidade ou utilidade para o ente o público, mas com base na eficácia do meio, onde

sua utilização no âmbito privado legitima que também o ente público possa dele utilizar-se.

Este o caso do protesto judicial da certidão de dívida ativa, previsto pela Lei n. 9.492/97 e

cujo entendimento de legalidade é assentado no REsp1.126.515. Conforme a ementa do

acórdão, entendeu o STJ que:

“No regime instituído pelo art. 1º da Lei 9.492/1997, oprotesto, instituto

bifronte que representa, de um lado,instrumento para constituir o devedor em

mora e provara inadimplência, e, de outro, modalidade alternativa 22

paracobrança de dívida, foi ampliado, desvinculando-se dostítulos

estritamente cambiariformes para abranger todose quaisquer ‘títulos ou

documentos de dívida’”.

Aduziu que:

“A Lei 9.492/1997 deve ser interpretada em conjunto com o contexto

histórico e social. De acordo com o "II Pacto Republicano de Estado por um

sistema de Justiça mais acessível, ágil e efetivo", definiu-se como meta

específica para dar agilidade e efetividade à prestação jurisdicional a

"revisão da legislação referente à cobrança da dívida ativa da Fazenda

Pública, com vistas à racionalização dos procedimentos em âmbito judicial e

administrativo".13

13 PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. PROTESTO DE CDA. LEI 9.492/1997. INTERPRETAÇÃO CONTEXTUAL COM A DINÂMICA MODERNA DAS RELAÇÕES SOCIAIS E O "II PACTO REPUBLICANO DE ESTADO POR UM SISTEMA DE JUSTIÇA MAIS ACESSÍVEL, ÁGIL E EFETIVO". SUPERAÇÃO DA JURISPRUDÊNCIA DO STJ. 1. Trata-se de Recurso Especial que discute, à luz do art. 1º da Lei 9.492/1997, a possibilidade de protesto da Certidão de Dívida Ativa (CDA), título executivo extrajudicial (art. 586, VIII, do CPC) que aparelha a Execução Fiscal, regida pela Lei 6.830/1980. 2. Merece destaque a publicação da Lei 12.767/2012, que promoveu a inclusão do parágrafo único no art. 1º da Lei 9.492/1997, para expressamente consignar que estão incluídas "entre os títulos sujeitos a protesto as certidões de dívida ativa da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e das respectivas autarquias e fundações públicas". 3. Não bastasse isso, mostra-se imperiosa a superação da orientação jurisprudencial do STJ a respeito da questão. 4. No regime instituído pelo art. 1º da Lei 9.492/1997, o protesto, instituto bifronte que representa, de um lado, instrumento para constituir o devedor em mora e provar a inadimplência, e, de outro, modalidade alternativa para cobrança de dívida, foi ampliado, desvinculando-se dos títulos estritamente cambiariformes para abranger todos e quaisquer "títulos ou documentos de dívida". Ao contrário do afirmado pelo Tribunal de origem, portanto, o atual regime jurídico do protesto não é vinculado exclusivamente aos títulos cambiais. 5. Nesse sentido, tanto o STJ (RESP 750805/RS) como a Justiça do Trabalho possuem precedentes que autorizam o protesto, por exemplo, de decisões judiciais condenatórias, líquidas e certas, transitadas em julgado. 6. Dada a natureza bifronte do protesto, não é dado ao Poder Judiciário substituir-se à Administração para eleger, sob o enfoque da necessidade (utilidade ou conveniência), as políticas públicas para recuperação, no âmbito extrajudicial, da dívida ativa da Fazenda Pública. 7. Cabe ao Judiciário, isto sim, examinar o tema controvertido sob espectro jurídico, ou seja, quanto à sua constitucionalidade e legalidade, nada mais. A manifestação sobre essa relevante matéria, com base na valoração da necessidade e pertinência desse instrumento extrajudicial de cobrança de dívida, carece de legitimação, por romper com os princípios da independência dos poderes (art. 2º da CF/1988) e da imparcialidade. 8. São falaciosos os argumentos de que o ordenamento jurídico (Lei 6.830/1980) já instituiu mecanismo para a recuperação do crédito fiscal e de que o sujeito passivo não participou da constituição do crédito. 9. A Lei das Execuções Fiscais disciplina exclusivamente a cobrança judicial da dívida ativa, e não autoriza, por si, a insustentável conclusão de que veda, em caráter permanente, a instituição, ou utilização, de mecanismos de cobrança extrajudicial. 10. A defesa da tese de impossibilidade do protesto seria razoável apenas se versasse sobre o "Auto de Lançamento", esse sim procedimento unilateral dotado de eficácia para imputar débito ao sujeito passivo. 11. A inscrição em dívida ativa, de onde se origina a posterior extração da Certidão que poderá ser levada a protesto, decorre ou do exaurimento da instância administrativa (onde foi possível impugnar o lançamento e interpor recursos administrativos) ou de documento de confissão de dívida, apresentado pelo próprio devedor (e.g., DCTF, GIA, Termo de Confissão para adesão ao parcelamento, etc.). 12. O sujeito passivo, portanto, não pode alegar que houve "surpresa" ou "abuso de poder" na extração da CDA, uma vez que esta pressupõe sua participação na apuração do débito. Note-se, aliás, que o preenchimento e entrega da DCTF ou GIA (documentos de confissão de dívida) corresponde integralmente ao ato do emitente de cheque, nota promissória ou letra de câmbio. 13. A possibilidade do protesto da CDA não implica ofensa aos princípios do contraditório e do devido processo legal, pois subsiste, para todo e qualquer efeito, o controle jurisdicional, mediante provocação da parte interessada, em relação à higidez do título levado a protesto. 14. A Lei 9.492/1997 deve ser interpretada em conjunto com o contexto histórico e social. De acordo com o "II Pacto Republicano de Estado por um sistema de Justiça mais acessível, ágil e efetivo", definiu-se como meta específica para dar agilidade e efetividade à prestação jurisdicional a "revisão da legislação referente à cobrança da dívida ativa da Fazenda Pública, com vistas à racionalização dos procedimentos em âmbito judicial e administrativo". 15. Nesse sentido, o CNJ considerou que estão conformes com o princípio da legalidade normas expedidas pelas Corregedorias de Justiça dos Estados do Rio de Janeiro e de Goiás que, respectivamente, orientam seus órgãos a

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É de ser registrado que no caso de protesto estamos tratando de medida

exclusivamente de cobrança da dívida, uma vez que os efeitos da mora já se fazem sentir

automaticamente no crédito tributário. Assim, é permitido à Fazenda Pública dele utilizar-se

tão somente em razão de seu interesse de cobrança. Com mais razões, portanto, deveria haver

a legitimação da Fazenda Pública para o pedido de falência, uma vez que o objetivo deste não

é a cobrança, mas a cessação do dano tributário e a preservação da concorrência.

3. A existência de possíveis critérios para o requerimento de falência pela Fazenda Pública

Superada a possibilidade de utilização do requerimento de cobrança como modo alternativo de cobrança ou meio para pressionar o devedor a efetuar o depósito elisivo - pratica esta já vedada pelo Superior Tribunal de Justiça e tecnicamente abolida pelo sistema da Lei n. 11.101/2005 – restaria verificar se possível a existência de um critério para o requerimento de falência, caso legitimada a Fazenda Pública.

A prática judicial tem demonstrado que, principalmente no caso dos Estados, não há grandes vantagens relativas à cobrança para que a Fazenda Pública requeira a falência de devedor, mormente ante os critérios da Lei n. 11.101/2005. O fundamento maior para o reconhecimento de tal legitimidade, conforme já apontado, estará na prevenção ao aumento do dano tributário – suportado pela sociedade e pelo novo rateio da arrecadação perdida, ou seja, pelos bons pagadores – além do dever social de proteção da concorrência; ambos tutelados legislativa e constitucionalmente.

Outrossim, mesmo a discricionariedade técnica – porquanto fundamentada - deverá observar critérios que serão objeto desta justificativa, permitindo que o respeito à legalidade, transparência e a igualdade que deve pautar a conduta da administração em qualquer de seus atos. Evidentemente, a igualdade de tratar de forma distinta os contribuintes que se colocam em situação desigual.

Nessa linha, propomos como critério a utilização de instrumentos que visam exatamente a proteção ao dano tributário e à concorrência legal, ambos conformes aos

providenciar e admitir o protesto de CDA e de sentenças condenatórias transitadas em julgado, relacionadas às obrigações alimentares. 16. A interpretação contextualizada da Lei 9.492/1997 representa medida que corrobora a tendência moderna de intersecção dos regimes jurídicos próprios do Direito Público e Privado. A todo instante vem crescendo a publicização do Direito Privado (iniciada, exemplificativamente, com a limitação do direito de propriedade, outrora valor absoluto, ao cumprimento de sua função social) e, por outro lado, a privatização do Direito Público (por exemplo, com a incorporação - naturalmente adaptada às peculiaridades existentes - de conceitos e institutos jurídicos e extrajurídicos aplicados outrora apenas aos sujeitos de Direito Privado, como, e.g., a utilização de sistemas de gerenciamento e controle de eficiência na prestação de serviços). 17. Recurso Especial provido, com superação da jurisprudência do STJ. (REsp 1125515/PR, 2ª Turma, Rel. Min. Herman Benjamin, j. 03/12/2013).

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ditames da Lei n. 11.101/2005. Propomos, assim, como critério, a utilização de elementos como a Recuperação Judicial e os Regimes Especiais de Fiscalização.

A primeira, conforme já tratado, parte integrante da Lei de Falências e Recuperação Judicial, propõe critérios de diagnóstico da saúde financeira e viabilidade da empresa, podendo ser utilizada, inclusive, como matéria de defesa. Em relação aos débitos tributários, prevê hipótese especial de parcelamento do crédito tributário, devendo os entes editarem leis que prevejam condições diferenciadas. Nesse caso, não tendo a empresa com dívida tributária relevante demonstrado condições de adimplir com parcelamento/benefício, certamente teríamos um critério legal – já previsto na própria lei de falências - para o requerimento de falência.14

Já no que se refere à proteção à concorrência e prevenção do dano tributário, temos em muitos casos critérios claramente definidos para enquadramento e combate aos chamados devedores contumazes, quais sejam, aqueles que reiteradamente não cumprem com suas obrigações tributárias, colocando em risco a satisfação da obrigação tributária e a concorrência.

Para configuração de tal situação, porquanto grave, há necessidade de edição de lei com clara definição destes critérios. No caso do Estado do Rio Grande do Sul, por exemplo, foi editada a Lei n. 13.711/2011, a qual prevê como critério para enquadramento no Regime Especial de Fiscalizaçãoo comprovação cumulativa de: a) deixar de recolher ICMS declarado, em 8 dos últimos 12 meses, b) créditos inscritos em dívida superior a 38.500UPFs e c) tiver créditos que ultrapassem 30% de seu patrimônio conhecido ou 25% de seu faturamento anua declarado em GIA.15

14Art. 68. As Fazendas Públicas e o Instituto Nacional do Seguro Social – INSS poderão deferir, nos termos da legislação específica, parcelamento de seus créditos, em sede de recuperação judicial, de acordo com os parâmetros estabelecidos na Lei no 5.172, de 25 de outubro de 1966 - Código Tributário Nacional.Parágrafo único. As microempresas e empresas de pequeno porte farão jus a prazos 20% (vinte por cento) superiores àqueles regularmente concedidos às demais empresas. (Incluído pela Lei Complementar nº 147, de 2014) CTN 155, §3º. Lei específica disporá sobre as condições de parcelamento dos créditos tributários do devedor em recuperação judicial. (Incluído pela Lcp nº 118, de 2005) § 4o A inexistência da lei específica a que se refere o § 3o deste artigo importa na aplicação das leis gerais de parcelamento do ente da Federação ao devedor em recuperação judicial, não podendo, neste caso, ser o prazo de parcelamento inferior ao concedido pela lei federal específica. (Incluído pela Lcp nº 118, de 2005) 15Art. 2º O contribuinte será considerado como devedor contumaz e ficará submetido a Regime Especial de Fiscalização, conforme disposto em regulamento, quando qualquer de seus estabelecimentos situados no Estado, sistematicamente, deixar de recolher o ICMS devido nos prazos previstos no Regulamento do Imposto sobre Operações Relativas à Circulação de Mercadorias e sobre Prestações de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação − RICMS. § 1º Para efeitos deste artigo, considera-se como devedor contumaz o contribuinte que: I - deixar de recolher o ICMS declarado em Guia de Informação e Apuração do ICMS − GIA −, em oito meses de apuração do imposto nos últimos doze meses anteriores ao corrente; II - tiver créditos tributários inscritos como Dívida Ativa em valor superior a 38.500 UPFs-RS, decorrente de imposto não declarado em GIA, em oito meses de apuração do imposto nos últimos doze meses anteriores ao corrente; ou III - tiver créditos tributários inscritos como Dívida Ativa em valor que ultrapasse: a) 30% (trinta por cento) do seu patrimônio conhecido; ou b) 25% (vinte e cinco por cento) do faturamento anual declarado em GIA ou em Guia Informativa − GI−. § 2º Não serão considerados devedores contumazes, para os termos a que se refere o “caput” do art. 2.º, as pessoas físicas ou jurídicas, titulares originários de créditos oriundos de precatórios inadimplidos pelo Estado e suas autarquias, até o limite do respectivo débito tributário constante de Dívida Ativa. § 3º Não serão computados para os efeitos deste artigo os débitos cuja exigibilidade esteja suspensa nos termos do Código Tributário Nacional

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Veja-se que o enquadramento é restrito a tributos lançados por homologação, ou seja, onde há confissão de dívida do contribuinte, não havendo nenhuma discussão sobre matéria fática. Outrossim, a confissão é acompanhada da necessidade de uma situação reiterada de inadimplemento.

Nesse caso, a permanência por determinado período no Regime Especial de Fiscalização, sem que a empresa inadimplente passasse a adequar sua conduta tributária que produz dano vultoso ao erário, geralmente utilizando do inadimplemento como diferencial de concorrência; poderia então ser critério para o pedido de falência.

Veja-se que em ambos os critérios sugeridos não há qualquer violação à impessoalidade, transparência, legalidade ou igualdade. Outrossim, não há qualquer confronto com a Lei de Falências e Recuperação Judicial. Ao contrário, a legitimação da Fazenda Pública conflui para o atendimento dos objetivos da Lei.

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CONCLUSÕES

1. Há, na formação do entendimento inicial do Superior Tribunal de Justiça sobre a legitimidade da Fazenda Pública ao requerimento de falência, importantes e sólidos argumentos para a negativa.

2. Houve, efetivamente, a utilização de requerimentos de falência com o exclusivo propósito de obtenção do depósito elisivo, o que vem a confirmar os argumentos denegatórios da legitimidade.

3. Com o passar do tempo e diante dos julgados nesse iter, muitos dos argumentos utilizados à época já não mais se justificam. Mais que isso, passam a ser contraditórios com a própria jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça.

4. Não há mais como sustentar os privilégios da execução fiscal em relação à falência quando há uma retirada de sentido do art. 187 do CTN por decisões que determinam a remessa do produto da alienação ao juízo falimentar e que submetem o crédito tributário ao concurso de credores dentro da falência. Tal é o nível da iniquidade da execução fiscal ante a falência que a suspensão desta sequer é considerada inércia para fins de prescrição.

5. A irrenunciabilidade do “privilégio da execução fiscal” não pode ser sustentada como argumento quando admitida a habilitação do crédito tributário na falência, tal como já consolidado pelo Superior Tribunal.

6. Houve, também, no período, considerável modificação legislativa. A partir da Lei n. 11.101/2005 a falência deixa de ser decretada por mero requisito formal (ausência do depósito elisivo). Surge ao feito falimentar a clara possibilidade de recuperação de empresas viáveis – inclusive como alegação de defesa – através da recuperação judicial e o amplo aparato disponibilizado ao empresário em dificuldades. Entretanto, vem como corolário da mesma lei, a necessidade de eliminação da empresa inviável, que apenas gera danos sociais em seu processo de quebra e afeta claramente a concorrência. Altera, outrossim, a legitimidade para o pedido de falência, eliminando qualquer requisito ao credor, além da materialidade econômica que deverá ser demonstrada.

7. Na questão da preservação da concorrência e na preservação do patrimônio público, surge a falência como medida absolutamente coerente com o dever de cobrar tributos, preservando as empresas que cumprem suas obrigações e evitando graves danos ao erário com a acumulução de vultosos passivos tributários durante o período de quebra.

8. Há clara evolução da jurisprudência no sentido de permitir ao crédito público contar com a eficiência de meios privados, como no caso do protesto. Com mais argumentos

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na legitimação à falência, onde os argumentos vão muito além do critério de cobrança, mas na preservação do dano fiscal e da concorrência.

9. Abundam no ordenamento os critérios viáveis para serem utilizados pela Fazenda Pública, tais como os casos de permanência por período longo em Regime Especial de Fiscalização ou o descumprimento do próprio plano de Recuperação Judicial no âmbito tributário, sempre com clara demonstração de inviabilidade econômica da empresa.

10. É mais que chegada a hora de evolução da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça no sentido de reconhecer a legitimidade da Fazenda Pública ao requerimento de falência, inclusive como forma de coerência aos recentes julgados aqui trazidos.

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