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Alain Robbe-Grillet - O Ciúme

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  • Alain Robbe-Grillet

    O Cime

  • Ttulo Original: La Jalousie (1957) Traduo de Waltensir Dutra. Rio, Nova Fronteira, 1986

  • O AUTOR E SUA OBRA Romancista e cineasta francs, Alain

    Robbe-Grillet um dos principais representantes do Nouveau Roman. Sua obra notvel principalmente pelo cuidado com que so eliminadas da narrativa as indicaes que poderiam conduzir o romance a um resultado psicolgico muito evidente. Robbe-Grillet, apa-rentemente, contenta-se em justapor descries objetivas que traam, pouco a pouco, diante do leitor, quadros concisos. As fisionomias e os ges-tos que animam esses quadros parecem igual-mente observados pelo autor de maneira fria, sem que lhes d um significado mais amplo. Assim, aparentemente, todo o romance forma um nico jogo de cenas. Graas a essa tcnica, o escritor pretende sugerir a solido metafsica de suas personagens. Os acontecimentos e os caracteres s pouco a pouco so revelados e quase sempre de forma incompleta.

    O mundo no nem significativo nem

    absurdo. Ele , simplesmente. Este o postu-lado sobre o qual Robbe-Grillet baseia sua com-

  • cepo de romance. E, pois, ao aspecto das reali-dades externas que ele se atm. Certos crticos chegaram a afirmar que os romances de Robbe-Grillet nada mais so do que meras ilustraes de suas teorias.

    De qualquer forma, ningum nega sua

    perfeita maestria. O mrito no parece pequeno, sobretudo se se pensar no que sugere a atmosfera desses romances: a de um universo impenetrvel, cuja angstia o escritor sabe dominar com uma atitude de fria lucidez. Em longo artigo para o Dictionnaire de Littrature Contemporaine, Grillet afirma que o Nouveau Roman no uma teoria, mas sim uma busca: ... Longe de ditar regras, teorias, leis, para os outros ou para ns mesmos, nosso movimento uma luta contra formas demasiadamente rgidas que marcavam o romance.

    Natural de Brest, Normandia, onde nasceu

    a 18 de agosto de 1922, Robbe-Grillet foi criado e educado em Paris. Tendo recebido, em 1945, o equivalente ao doutorado em agronomia, transferiu-se para lugares exticos do Marrocos, Guin e Martinica, onde trabalhou como engenheiro agrnomo, especializando-se no

  • desenvolvimento de frutas tropicais. Depois de dez anos, abandonou a atividade cientfica e foi trabalhar como editor de livros numa importante editora francesa.

    J em seus primeiros romances: Les

    gommes (1953), Le voyeur (1955) e La jalousie (1957), Robbe-Grillet apresenta suas personagens unicamente por movimentos e palavras, sem explicaes nem incurses na vida interior. Assim, a forma no tem mais a funo de exprimir uma realidade conhecida, mas serve, acima de tudo, para descobrir novas realidades. A nfase dada descrio dos objetos define esses primeiros livros. As descries de Robbe-Grillet assemelham-se aos espaos e aos objetos da pintura moderna.

    Depois de publicar Dans les labyrinthe

    (1959) e Instantannes (1962), Robbe-Grillet passa a desenvolver nos romances seguintes uma nova linguagem, na qual h uma proliferao de nomes e pronomes utilizados para abalar todos os conceitos aceitos de realismo e verossimilhana. Em La maison de rendez-vous (1965), compe uma pardia dos

  • romances policiais exticos, cuja ao se passa em Hong Kong.

    A metafsica passa a um segundo plano,

    enquanto se reforam as virtudes formais entre o Nouveau Roman e a literatura de entretenimento. Em L'den et aprs (1971), Robbe-Grillet d incio a uma trilogia, que tem seqncia com Glissements progressifs du plaisir (1974) e Le jeu avec le feu (1975), na qual compara seu trabalho msica atonal de Schnberg. Finalmente, em um dos seus ltimos romances publicados, Project pour une rvolu-tion New York, tambm de 1975, constri um tema no qual a cor vermelha significa fogo, violao e morte.

    Em certa medida, a tcnica literria de

    Robbe-Grillet tem relao com suas atividades cinematogrficas. Ele foi o roteirista de O ano passado em Marienbad (1961), filme dirigido por Alain Resnais que marcou poca no cinema francs. Depois disso, escreveu e dirigiu L'immortelle (1963), Trans-Europe-Express (1966), L'den et aprs (1971), Glissements progressifs du plaisir (1974) e Le jeu avec le feu (1975).

  • Nota do revisor: A palavra francesa jalouise, que o tradutor optou utilizar a palavra gelosia na verso em portugus, tem impor-tncia fundamental na narrativa, tanto que d o ttulo obra no original e define uma estrutura interna ou externa. Definio tradicional: s.f. R-tula de fasquias de madeira com que se tapa o vo de uma janela; rtula, janela de rtula.. Mas tambm pode ser traduzida como persiana, assim como a imagem utilizada pelo ilustrador da capa da edio francesa, reproduzida na primeira pgina desta edio digital.

    Foi adicionada ao final do livro a planta da casa onde se desenvolve a histria (extrada da edio em ingls) que tambm ajuda a compreender melhor as descries feitas pelas personagens.

    * Agora a sombra da coluna - a coluna que

    sustenta o ngulo sudoeste do telhado - divide em duas partes iguais o ngulo correspondente da varanda. Essa varanda uma larga galeria coberta, que cerca trs lados da casa. Como sua largura igual na parte central e nas partes

  • laterais, o trao da sombra projetada pela coluna chega exatamente quina da casa; mas detm-se ali, pois apenas as lajes da varanda so alcanadas pelo sol, ainda demasiado alto no cu. As paredes, de madeira, da casa - isto , a fachada e a empena ocidental - ainda esto protegidas de seus raios pelo telhado (telhado comum casa propriamente dita e varanda). Assim, neste instante, a sombra da beirada do telhado coincide exatamente com a linha, em ngulo reto, que formam a varanda e as duas faces verticais da quina da casa.

    Agora, A... entrou no quarto, pela porta

    interna que d para o corredor central. Ela no olha pela janela escancarada, por onde, da porta, veria este canto da varanda. Voltou-se agora para a porta a fim de fech-la. Continua usando o vestido claro, de gola reta, muito justo, que vestia no almoo.

    Christiane, mais uma vez, lembrou-lhe que

    as roupas menos apertadas permitem suportar melhor o calor. Mas A... limitou-se a sorrir: o calor no a incomodava, conheceu climas muito mais quentes na frica, por exemplo - e sempre se deu bem. Alis, tambm no tem medo do

  • frio. Sente-se bem em qualquer lugar. Seus cabelos negros deslocam-se num movimento ondulante, sobre os ombros e as costas, quando ela volta a cabea.

    O grosso corrimo da balaustrada quase

    no tem mais pintura na parte superior. O cinzento da madeira aparece, estriado de pequenas fendas longitudinais. Do outro lado do corrimo, a dois bons metros abaixo do nvel da varanda, comea o jardim.

    Mas o olhar que, vindo do fundo do quarto,

    passa por cima da balaustrada s vai encontrar a terra, muito mais longe, do lado oposto do pequeno vale, entre as bananeiras da plantao. No se v o cho entre seus penachos espessos de grandes folhas verdes. No obstante, como o cultivo desse setor bastante recente, ainda se pode acompanhar distintamente a interseo regular das fileiras de mudas. Isso acontece tambm em quase toda a parte visvel da concesso, pois as reas mais antigas - nas quais a desordem passou agora a predominar - ficam situadas mais ao alto, do lado de l da encosta, ou seja, do outro lado da casa.

  • do outro lado, tambm, que passa a estrada, ligeiramente mais baixa do que a borda da plataforma. Essa estrada, a nica que d acesso concesso, marca o limite norte desta. Depois dela, uma estrada carrovel leva aos barraces e, ainda mais abaixo, casa, em frente qual um vasto espao livre, de inclinao muito reduzida, permite a manobra dos veculos.

    A casa est construda no mesmo nvel

    dessa esplanada, da qual no separada por nenhum alpendre ou galeria. Em seus trs outros lados, pelo contrrio, cercada pela varanda.

    A inclinao do terreno, mais acentuada a

    partir da esplanada, faz com que a parte central da varanda (que fica na fachada sul) seja pelo menos dois metros mais alta que o jardim.

    volta de todo o jardim, at os limites da

    plantao, estende-se a massa verde das bananeiras.

    Tanto direita como esquerda sua

    excessiva proximidade, juntamente com a falta de elevao relativa do observador colocado na varanda, impede que se distinga bem o

  • armamento das rvores; ao passo que, no fundo do vale, a disposio em fileiras ordenadas se impe primeira vista. Em certas reas de replantio muito recente - aquelas em que a terra avermelhada mal comea a ceder lugar folhagem - at mesmo fcil seguir a linha regular das quatro direes entrecruzadas, segundo as quais se alinham os troncos ainda novos.

    Esse exerccio no muito mais difcil,

    apesar do crescimento mais avanado, nas reas que ocupam a encosta fronteira: , com efeito, o lugar que se apresenta mais comodamente vista, aquele que oferece menos problemas de vigilncia (embora o caminho para chegar at l seja longo), aquele que se olha naturalmente, sem pensar, por uma ou outra das duas janelas, abertas, do quarto.

    Com as costas apoiadas na porta interna

    que acaba de fechar, A..., sem pensar, olha a madeira com a pintura gasta da balaustrada, mais perto dela o peitoril descascado da janela, e depois, ainda mais perto, a madeira lavada do soalho.

  • Ela d alguns passos no quarto e aproxima-se da pesada cmoda, cuja gaveta superior abre. Mexe nos papis, na parte direita da gaveta, incli-na-se e, para ver melhor o fundo, puxa-a um pouco mais em sua direo. Depois de procurar novamente, ela se ergue e fica imvel, com os cotovelos junto do corpo, os antebraos dobra-dos e escondidos pelo busto - segurando sem dvida uma folha de papel nas mos.

    Volta-se agora para a luz, para continuar a

    leitura sem cansar os olhos. Seu perfil inclinado no se move. A folha azul bem claro, no for-mato comum dos papis de carta, e conserva marcas bem visveis de ter sido dobrada em quatro.

    Em seguida, segurando a carta na mo, A...

    fecha a gaveta, caminha para a pequena mesa de trabalho (colocada junto segunda janela, contra a parede que separa o quarto do corredor) e senta-se logo diante da pasta com material de escrita, de onde tira uma folha de papel azul-claro - idntica primeira, mas virgem. Retira a tampa da caneta e, depois de um breve olhar para o lado direito (olhar que nem mesmo alcanou o meio do vo da janela, situado mais

  • atrs), inclina a cabea sobre a pasta, para comear a escrever.

    Os cabelos negros e brilhantes imobilizam-

    se, no centro das costas, que o estreito fecho metlico do vestido deixa ver um pouco mais abaixo.

    Agora a sombra da coluna - a coluna que

    sustenta o ngulo sudoeste do telhado - alonga-se, sobre as lajes, obliquamente parte central da varanda, diante da fachada, onde foram colocadas cadeiras para a noite. A extremidade do trao de sombra j quase alcana a porta de entrada, que marca o meio da varanda. Contra a empena oeste da casa, o sol ilumina a madeira a uma altura de aproximadamente um metro e meio. Pela terceira janela, que d para este lado, ele entraria portanto ligeiramente no quarto, se o sistema de gelosias no tivesse sido baixado.

    No outro extremo desse lado ocidental da

    varanda abre-se a copa. Ouve-se, pela sua porta entreaberta, a voz de A..., depois a do cozinheiro negro, loquaz e cantante, depois de novo a voz clara, medida, que d ordens para a refeio da noite.

  • O sol desapareceu atrs do contraforte rochoso que marca o fim da parte mais avanada do planalto.

    Sentada, de frente para o vale, numa das

    cadeiras de fabricao local, A... l o romance tomado de emprstimo na vspera, de que j falaram ao meio-dia. Ela continua a leitura, sem desviar os olhos, at que a luz se torne insuficiente. Ento levanta o rosto, fecha o livro - que coloca ao alcance da mo sobre a mesa baixa - e fica a olhar fixamente sua frente, para a balaustrada vazada e as bananeiras da outra encosta, logo invisveis na escurido. Ela parece ouvir o rudo, que vem de todos os lados, dos milhares de grilos da baixada.

    Mas um rudo contnuo, sem variaes,

    atordoante, onde no h nada a ouvir. Franck est de novo presente para o jantar,

    sorridente, falante, afvel. Christiane no o acompanhou desta vez: ficou em casa com a criana, que tinha um pouco de febre. No raro, atualmente, que seu marido venha assim sem ela: por causa da criana, por causa tambm dos problemas prprios de Christiane, cuja sade

  • se adapta mal a este clima mido e quente, por causa finalmente de aborrecimentos domsticos provocados pelo excesso de criados, mal dirigidos.

    Esta noite, porm, A... parecia esper-la.

    Pelo menos, havia mandado colocar quatro pratos. D ordem de tirar imediatamente aquele que no deve servir.

    Na varanda, Franck deixa-se cair numa das

    cadeiras baixas e solta uma exclamao - que se tornaria costumeira - sobre o seu conforto. So cadeiras muito simples, de madeira e tiras de couro, executadas segundo as indicaes de A... por um arteso do lugar. Ela se inclina para Franck, estendendo-lhe o copo.

    Embora j esteja agora completamente

    escuro, ela pediu que no se trouxessem os lampies, que - como diz - atraem os mosquitos. Os copos esto cheios, quase at a borda, de uma mistura de conhaque e gua gasosa, na qual flutua um pequeno cubo de gelo. Para no correr o risco de derramar o contedo com um movimento em falso, na total obscuridade, ela aproximou-se o mximo possvel da cadeira

  • onde Franck est sentado, segurando com cuidado na mo direita o copo que lhe destina com a outra mo, apia-se no brao da cadeira e se inclina para ele, a tal ponto que suas cabeas esto uma contra a outra. Ele murmura algumas palavras: um agradecimento, sem dvida.

    Ela se ergue com um movimento

    ondulante, apanha o terceiro copo - cujo contedo no tem medo de derramar, pois est menos cheio - e vai sentar-se ao lado de Franck, enquanto este continua a histria do caminho enguiado que comeou a contar desde a sua chegada.

    Foi ela mesma quem disps as cadeiras, esta

    noite, quando mandou traz-las para a varanda. A que indicou a Franck, e a sua, esto lado a lado, contra a parede da casa - as costas contra essa parede, evidentemente - sob a janela do escritrio. Ela tem assim a cadeira de Franck sua esquerda, e direita - mas um pouco mais frente - a mesinha onde esto as garrafas. As duas outras cadeiras esto colocadas do outro lado dessa mesinha, ainda mais para a direita, de maneira a no interceptar a vista que as duas primeiras tm sobre a balaustrada da varanda.

  • Pela mesma razo, a vista, essas duas ltimas cadeiras no esto voltadas para o resto do grupo: foram colocadas de vis, orientadas obliquamente para a balaustrada vazada e a vertente do vale. Essa disposio obriga as pessoas que nelas esto sentadas a acentuadas rotaes da cabea para a esquerda, se quiserem ver A... - sobretudo quem estiver na quarta cadeira, a mais distante.

    A terceira, que uma cadeira dobrvel, de

    lona estendida em tubos metlicos, ocupa uma posio claramente recuada, entre a quarta cadeira e a mesa. Mas foi esta, menos confortvel, que ficou vazia.

    A voz de Franck continua a contar os

    problemas do dia em sua fazenda. A... parece interessar-se. Estimula-o de tempos em tempos com algumas palavras que mostram sua ateno. Num momento de silncio, ouve-se o rudo de um copo colocado sobre a mesinha.

    Do outro lado da balaustrada, na direo da

    vertente do vale, h apenas o rudo dos grilos e a escurido sem estrelas da noite.

  • Na sala de refeies brilham dois lampies a querosene. Um est colocado na beirada do comprido aparador, prximo de sua extremidade esquerda; o outro, sobre a prpria mesa, no lugar vazio do quarto conviva.

    A mesa quadrada, pois o sistema de tbu-

    as suplementares (intil para to poucas pessoas) no foi usado. Os trs pratos ocupam trs dos lados, e o lampio, o quarto. A... est em seu lugar habitual; Franck est sentado sua direita - portanto, de frente para o aparador.

    No aparador, esquerda do segundo lam-

    pio (isto , do lado da porta, aberta, da copa), esto empilhados os pratos limpos que serviro durante a refeio. direita do lampio e atrs deste - contra a parede - um cntaro de cermica nativa marca o meio do mvel. Mais direita desenha-se, na pintura cinza da parede, a sombra ampliada e imprecisa de uma cabea de homem - a de Franck. No tem palet nem gravata, e o colarinho de sua camisa est desabotoado; mas uma camisa branca impecvel, de tecido fino de boa qualidade, cujos punhos duplos esto presos por abotoaduras de marfim, removveis.

  • A... usa o mesmo vestido do almoo. Franck quase brigou com a mulher por causa dele, quando Christiane criticou a sua forma quente demais para este pas. A... limitou-se a sorrir: Alis, no me parece que o clima daqui seja assim to insuportvel, disse ela encerrando o assunto. Se voc visse o calor que fazia, dez meses por ano, em Kanda! A conversa girou, ento, durante algum tempo, sobre a frica.

    O copeiro entrou pela porta da copa,

    segurando com as duas mos a sopeira cheia. Nem bem ele a coloca sobre a mesa, A... lhe pede que afaste o lampio do lugar do quarto conviva, cuja luz demasiado forte - diz ela - lhe fere os olhos. O copeiro segura o lampio pela asa e o leva para o outro lado da sala, para o mvel que A lhe indica com a mo esquerda estendida.

    A mesa fica portanto mergulhada na pe-

    numbra. Sua principal fonte de luz passou a ser o lampio colocado sobre o aparador, pois o outro - na direo oposta - est agora muito mais distante.

  • Na parede, do lado da copa, a cabea de Franck desapareceu. Sua camisa branca j no brilha mais, como ainda h pouco, sob a ilumi-nao direta. Apenas sua manga direita alcan-ada pelos raios, em trs quartos, por trs: o om-bro e o brao esto marcados por uma linha cla-ra e o mesmo acontece, mais alto, com a orelha e o pescoo. O rosto est quase colocado contra a luz.

    - No lhe parece que ficou melhor? -

    pergunta A voltando-se para ele. - Mais ntimo, sem dvida - responde

    Franck. Ele toma a sopa com rapidez. Embora no

    faa nenhum gesto excessivo, embora segure a colher de maneira conveniente e engula o lquido sem fazer barulho, parece utilizar, para essa modesta tarefa, uma energia e um entusiasmo desmesurados. Seria difcil precisar onde, exata-mente, ele se esquece de alguma regra essencial, em que ponto particular carece de discrio.

    Embora evite qualquer falta ostensiva,

    ainda assim seu comportamento no passa

  • despercebido. E, por oposio, leva a constatar que A..., pelo contrrio, terminou a sopa sem dar a impresso de ter se mexido - mas tambm sem chamar ateno com uma imobilidade anormal. preciso olhar para seu prato vazio, mas sujo, para nos convencermos de que no deixou de servir-se.

    A memria consegue, alis, reconstituir

    alguns movimentos de sua mo direita e de seus lbios, algumas idas e vindas da colher entre o prato e a boca, que podem ser considerados como significativos.

    Para maior certeza ainda, basta perguntar-

    lhe se no lhe parece que o cozinheiro salga demais a sopa.

    - No - responde ela. - preciso comer sal

    para no transpirar. O que, se pensarmos bem, no prova de

    maneira absoluta que a sopa de hoje tenha lhe parecido boa.

    Agora o copeiro leva os pratos. Torna-se

    impossvel, assim, observar de novo os vestgios

  • que sujavam o prato de A... - ou a ausncia de vestgios, se ela no tivesse se servido.

    A conversa voltou histria do caminho

    quebrado: Franck no comprar mais, no futuro, material militar usado. As ltimas aquisies causaram-lhe aborrecimentos demais; quando tiver de substituir um de seus veculos, ser por um novo.

    Mas ele est errado em querer confiar

    caminhes modernos aos motoristas negros, que os destruiro com a mesma rapidez, ou ainda mais depressa.

    - De qualquer modo - disse Franck -, se o

    motor novo, o motorista no ter de mexer nele.

    Ele devia, porm, saber que o contrrio: o

    motor novo ser um brinquedo ainda mais atraente, e o excesso de velocidade em estradas precrias, e as acrobacias ao volante...

    Confiado nos seus trs anos de experincia,

    Franck acha que h motoristas srios, mesmo

  • entre os negros. A... tem a mesma opinio, naturalmente.

    Ela absteve-se de falar durante a conversa

    sobre a resistncia comparada das mquinas, mas a questo dos motoristas provoca, de sua parte, uma interveno bastante longa, e categrica.

    possvel, alis, que ela tenha razo. Nesse

    caso, Franck deveria ter razo tambm. Os dois falam agora do romance que A

    est lendo, cuja ao se passa na frica. A herona no tolera o clima tropical (como Christiane). O calor parece mesmo provocar nela verdadeiras crises: - Esse tipo de coisa mental, principalmente - diz Franck.

    Faz em seguida uma aluso, pouco clara

    para quem no tenha sequer folheado o livro, ao comportamento do marido. Sua frase termina com saber prend-la ou saber aprend-la, sem que seja possvel determinar com certeza de que se trata, ou de quem. Franck olha para A..., que olha para Franck. Ela lhe dirige um sorriso rpido, logo absorvido pela penumbra. Compreendeu, pois conhece a histria.

  • No, seus traos no se alteraram. Sua

    imobilidade no assim to recente: os lbios ficaram paralisados desde as suas ltimas palavras. O sorriso fugidio devia ser apenas um reflexo do lampio, ou a sombra de uma mariposa.

    De resto, ela no estava mais voltada para

    Franck, naquele momento. Acabava de retornar posio normal e olhava diretamente para a frente, em direo parede nua, onde uma mancha escura marca o lugar da lacraia esmagada na semana passada, no incio do ms, no ms anterior talvez, ou em data mais remota.

    O rosto de Frank, quase contraluz, no

    revela a menor expresso. O copeiro entra para tirar os pratos. A...

    pede-lhe, como de costume, que sirva o caf na varanda.

    Ali, a escurido total. Ningum fala mais.

    O rudo dos grilos cessou. Ouvem-se apenas, aqui e ali, o grito rpido de algum carnvoro noturno, o zumbido sbito de algum

  • escaravelho, o choque de uma pequena xcara de porcelana que colocada sobre a mesa baixa.

    Franck e A... esto sentados nas mesmas

    cadeiras, encostadas parede de madeira da casa. ainda a cadeira de estrutura mecnica que continua desocupada. A posio da quarta cadeira ainda menos justificada, agora, no havendo mais vista para o vale. (Mesmo antes do jantar, durante o breve crepsculo, os espaos muito estreitos da balaustrada no permitiam que se visse realmente a paisagem; e o olhar, por sobre o corrimo, alcanava apenas o cu.) A madeira da balaustrada lisa ao tato, quando os dedos seguem o sentido dos veios e das pequenas fendas longitudinais. Uma zona escamosa vem em seguida; depois, de novo uma superfcie lisa, mas sem linhas de orientao agora, e ocasionalmente pontilhada de asperezas ligeiras da pintura.

    Durante o dia, a oposio de duas cores

    cinzentas - a da madeira nua e, um pouco mais clara, a da pintura que resta - desenha figuras complicadas, de contornos angulosos, quase dentes de serra. Na parte superior do corrimo, h apenas ilhas esparsas, ressaltadas, formadas

  • pelos ltimos restos da pintura. Sobre os balastres, pelo contrrio, so as regies descascadas, muito menores e geralmente situadas a meia altura, que constituem as manchas, em depresso, onde os dedos reconhecem as fendas verticais da madeira. No limite das placas, novas escamas de tinta deixam-se levantar facilmente; basta enfiar a unha sob a borda que se desloca e forar, dobrando a falange. A resistncia mal se sente.

    Do outro lado, o olhar, que se habitua

    escurido, distingue agora uma forma mais clara destacando-se contra a parede da casa: a camisa branca de Franck. Seus dois antebraos repousam totalmente nos braos da poltrona. O busto est inclinado para trs, contra o encosto.

    A cantarola uma msica de dana, cujas

    palavras permanecem ininteligveis. Mas Franck talvez as compreenda, se j forem do seu conhecimento, por t-las ouvido vrias vezes, talvez com ela. Talvez seja um de seus discos prediletos.

    Os braos de A..., um pouco menos ntidos

    que os de seu vizinho por causa do tom - apesar

  • disso, claro - do tecido, repousam igualmente nos braos da cadeira.

    As quatro mos esto alinhadas, imveis. O

    espao entre a mo esquerda de A... e a mo direita de Franck de dez centmetros, aproximadamente. O grito no muito alto de um carnvoro noturno, agudo e rpido, ressoa de novo, l no fundo do vale, a uma distncia incalculvel.

    - Acho que vou embora - diz Franck. - Nada disso - responde A... imediatamente.

    - cedo ainda. to agradvel ficar aqui, assim! Se Franck tinha vontade de ir-se, dispunha

    de um bom pretexto: sua mulher e seu filho, que esto sozinhos em casa. Mas fala apenas da hora matinal em que tem de levantar-se no dia seguinte, sem qualquer aluso a Christiane. O mesmo grito agudo e breve, que se aproximou, parece agora vir do jardim, bem perto da base da varanda, do lado leste.

    Como um eco, um grito idntico lhe

    sucede, vindo da direo oposta. Outros

  • respondem, mais alto, l na estrada; e mais outros ainda, nos baixios.

    Por vezes, a nota um pouco mais grave,

    ou mais prolongada. H provavelmente diferentes tipos de animais. No obstante, todos esse gritos se parecem; no que tenham um carter comum, fcil de precisar; trata-se antes de uma falta comum de carter: eles no parecem ser gritos de medo, ou de dor, ou ameaadores, ou ento de amor. So como gritos mecnicos, emitidos sem razo perceptvel, nada exprimindo, assinalando apenas a existncia, a posio e os deslocamentos respectivos de cada animal, cujo trajeto pela noite vo marcando.

    - Apesar disso - diz Franck -, acho que vou

    mesmo. A... no diz nada. No se mexeram, nem

    um, nem outro. Esto sentados lado a lado, reclinados no encosto da cadeira, com os braos estendidos sobre os descansos laterais. As quatro mos, numa posio parecida, mesma altura, esto alinhadas paralelamente parede da casa.

  • Agora a sombra da coluna sudoeste - no ngulo da varanda, do lado do quarto - projeta-se sobre a terra do jardim. O sol ainda baixo no cu, na direo do leste, atravessa o vale quase que horizontalmente. As fileiras das bananeiras, oblquas em relao ao eixo do vale, ficam bem distintas, de todos os lados, sob essa iluminao.

    Desde o fundo at o limite superior das

    rvores mais altas, do lado oposto quele em que se encontra a casa, a contagem das plantas bastante fcil; em frente da casa, sobretudo, graas ao pouco tempo de cultivo dessa rea.

    A depresso est limpa, aqui, na maior

    parte de sua largura: no resta, no momento, seno uma borda de mata de uns trinta metros, na beirada do plat, que se une ao flanco do vale por uma pequena elevao sem crista nem fenda rochosa.

    O trao de separao entre a zona inculta e

    o bananal no perfeitamente reto. uma linha quebrada, de ngulos que alternadamente avanam e recuam, cada ponta pertencendo a uma parcela diferente, de idade diferente, mas de orientao quase sempre idntica.

  • Bem em frente da casa, um grupo de

    bananeiras marca o ponto mais elevado atingido pela plantao nesse setor. A faixa que termina aqui um retngulo. O sol j no visvel, ou quase no , entre os penachos de folhas. No obstante, o alinhamento impecvel das bananeiras mostra que sua plantao recente e que nenhum cacho foi ainda colhido.

    A partir do grupo de plantas, o lado da

    vertente desse pedao desce, fazendo um leve desvio (para a esquerda) em relao inclinao mais acentuada. H trinta e duas bananeiras na fileira, at o limite inferior da faixa de terra.

    No prolongamento desta, para baixo, com a

    mesma disposio das linhas, uma outra faixa ocupa todo o espao compreendido entre a primeira e o pequeno riacho que corre no fundo. Compreende apenas vinte e trs plantas verticalmente. a vegetao mais avanada, apenas, que a distingue da precedente: a altura um pouco menor dos troncos, o entrelaamento das folhas e os numerosos cachos bem-formados. Alis, alguns cachos j foram cortados. Mas o lugar vazio do p cortado to

  • facilmente visvel quanto o seria a prpria bananeira, com seu penacho de grandes folhas, verde-claro, de onde sai a grossa haste vergada pelas frutas.

    Alm disso, em vez de ser retangular como

    a de cima, essa faixa tem a forma de um trapzio, pois a margem que constitui a borda inferior no perpendicular aos seus dois lados - a jusante e a montante -, paralelos entre si. O lado direito (isto , a jusante) tem apenas treze bananeiras, em lugar de vinte e trs.

    A borda inferior, finalmente, no retilnea,

    como no o o riacho: uma barriga pouco acentuada faz estreitar a faixa no meio de sua largura. A fileira mdia, que deveria ter dezoito plantas se fosse um trapzio verdadeiro, comporta assim apenas dezesseis.

    Na segunda fileira, partindo da extrema

    esquerda, haveria vinte e duas bananeiras (graas disposio em fileiras alternadas) no caso de uma faixa retangular. Teria tambm vinte e dois ps para uma faixa exatamente trapezoidal, sendo a reduo pouco perceptvel a uma

  • distncia to curta da base. E na verdade h ali vinte e duas plantas.

    Mas a terceira fileira tem apenas, tambm

    ela, vinte e duas bananeiras, em lugar das vinte e trs que comportaria novamente o retngulo. Nenhuma diferena suplementar introduzida, a esse nvel, pela curva da borda. O mesmo acontece com a quarta, que compreende vinte e um ps, ou seja, um a menos que uma linha de ordem par do retngulo fictcio.

    A curvatura do rio entra por sua vez em

    jogo a partir da quinta fileira: esta, com efeito, tambm tem apenas vinte e uma bananeiras, quando teria vinte e duas se fosse um trapzio verdadeiro, e vinte e trs, no caso de um retngulo (linha de ordem mpar).

    Esses nmeros so tericos, pois algumas

    bananeiras j foram cortadas rente ao cho, com o amadurecimento do cacho. So na realidade dezenove penachos de folhas e dois espaos vazios que constituem a quarta fileira; e, para a quinta, vinte penachos e um espao - ou seja, de baixo para cima: oito penachos de folhas, um espao vazio, doze penachos de folhas.

  • Sem nos ocuparmos da ordem em que se

    encontram as bananeiras realmente visveis e as bananeiras cortadas, a sexta linha d os nmeros seguintes: vinte e dois, vinte e um, vinte, dezenove - que representam, respectivamente, o retngulo, o trapzio autntico, o trapzio de beirada curva, os mesmos, por fim, depois da deduo dos ps abatidos para a colheita.

    Temos, para as fileiras seguintes: vinte e

    trs, vinte e um, vinte e um, vinte e um. Vinte e dois, vinte e um, vinte, vinte. Vinte e trs, vinte e um, vinte, dezenove, etc.

    Na ponte de troncos que atravessa o riacho

    no limite ascendente dessa faixa, h um homem agachado. um nativo, vestido com uma cala azul e uma camiseta sem cor, que lhe descobre os ombros. Est inclinado sobre a superfcie lquida, como se procurasse ver alguma coisa no fundo, o que no possvel, pois a gua, apesar de sua pouca profundidade, nunca suficientemente transparente.

    Naquela vertente do vale uma nica faixa

    estende-se desde o riacho at o jardim. Apesar

  • do ngulo bastante disfarado sob o qual se evidencia a inclinao, as bananeiras ainda so fceis de contar, do alto da varanda. Elas so com efeito muito novas nessa rea, replantadas recentemente. No s a regularidade perfeita, como tambm os caules no tm mais de cinqenta centmetros de altura, e as copas folhudas pelas quais terminam esto bem separadas umas das outras. Finalmente, a inclinao das linhas, em relao ao eixo do vale (cerca de quarenta e cinco graus), favorece tambm a enumerao.

    Uma fileira oblqua comea na ponte de

    troncos, direita, e chega at o canto esquerdo do jardim. Compreende trinta e seis bananeiras em seu comprimento. A disposio em linhas alternadas permite v-las com se estivessem alinhadas em trs outras direes: a princpio, a perpendicular primeira direo mencionada, depois duas outras perpendiculares entre elas igualmente, e formando com as duas primeiras ngulos de quarenta e cinco graus. Estas duas ltimas so portanto, respectivamente, paralela e perpendicular ao eixo do vale - e orla inferior do jardim.

  • O jardim, no momento, no passa de um quadrado de terra nua, recentemente lavrado, de onde surgem apenas algumas laranjeiras novas, pouco menos altas do que um homem, plantadas a pedido de A

    A casa no ocupa toda a largura do jardim. Assim ela fica isolada, de todos os lados, da

    massa verde das bananeiras. Sobre a terra nua, em frente empena

    oeste, projeta-se a sombra torta da casa. A sombra do telhado ligada sombra da varanda pela sombra oblqua da coluna do canto. A balaustrada forma ali uma faixa rendilhada, enquanto a distncia real entre os balastres pouco menor que a espessura mdia desses mesmos balastres.

    Eles so feitos de madeira torneada, com

    uma barriga no meio e duas salincias acessrias, mais estreitas, perto de cada uma das extremidades. A pintura, que desapareceu quase completamente na parte superior do corrimo, comea tambm a escamar-se nas partes mais cheias dos balastres; apresentam, em sua

  • maioria, uma grande zona de madeira nua a meia altura, na parte arredondada da salincia, do lado da varanda. Entre a pintura cinzenta que subsiste, desbotada pela idade, e a madeira que se tornou cinza pela ao da umidade, surgem pequenas superfcies de um marrom avermelhado - a cor natural da madeira - nos lugares onde esta ficou mostra em razo da queda recente de novas escamas. Toda a balaustrada deve ser repintada de amarelo-vivo: assim decidiu A

    As janelas de seu quarto ainda esto

    fechadas. Apenas o sistema de gelosias, que substitui os vidros, foi aberto ao mximo, dando assim ao interior uma claridade suficiente. A... est de p contra a janela da direita e olha por uma das frestas, para a varanda.

    O homem continua imvel, inclinado sobre

    a gua barrenta, sobre a ponte de tbuas cobertas de terra.

    Ele no se moveu sequer uma linha:

    agachado, a cabea abaixada, os antebraos

  • apoiados nas coxas, as duas mos pendentes entre os joelhos separados.

    frente dele, nas faixas de terra que

    margeiam o pequeno curso de gua em sua outra margem, numerosos cachos parecem maduros para o corte. Vrios ps j foram colhidos, nesse setor. Seus lugares vazios destacam-se com nitidez perfeita, na sucesso dos alinhamentos geomtricos. Mas, olhando melhor, possvel perceber o broto j crescido que substituir a bananeira cortada, a alguns decmetros do velho caule, comeando assim a perturbar a regularidade ideal das fileiras alternadas.

    O rudo de um caminho que sobe a

    estrada, sobre aquela vertente do vale, faz-se ouvir do outro lado da casa.

    A silhueta de A..., recortada em faixas

    horizontais pela gelosia, atrs da janela de seu quarto, agora desapareceu.

    Tendo chegado parte plana da estrada,

    logo abaixo de rebordo rochoso que interrompe o plat, o caminho muda de marcha e continua com um ronco menos surdo. Em seguida, seu

  • rudo decresce progressivamente, medida que se distancia para leste, atravs do mato queimado, entrecortado de rvores de folhagem dura, em direo concesso seguinte, a de Franck.

    A janela do quarto - a que fica mais perto

    do corredor - abre-se em duas metades. O busto de A... enquadrado pela janela. Ela diz bom dia com um tom alegre de algum que dormiu bem e acordou de bom humor; ou pelo menos de algum que prefere no mostrar suas preocupaes - se as tiver - e ostenta, por princpio, sempre o mesmo sorriso; o mesmo sorriso onde se lem, com a mesma facilidade, tanto a zombaria quanto a confiana, ou a ausncia total de sentimentos.

    Alm disso, ela no acordou agora.

    evidente que j tomou a sua ducha. Continua vestida com seu roupo matinal, mas seus lbios esto pintados, de um vermelho idntico ao natural, apenas um pouco mais firme, e sua cabeleira cuidadosamente tingida brilha luz clara da janela, quando, ao voltar a cabea, ela sacode as mechas ondeantes, pesadas, cuja massa negra recai sobre a seda branca dos ombros.

  • Ela se dirige para a grande cmoda, contra

    a parede do fundo. Entreabre a gaveta superior, para apanhar um objeto de pequenas propores, e volta-se para a luz. Na ponte de troncos o nativo agachado desapareceu. No se v ningum por perto. Nenhuma turma tem trabalho naquele setor, no momento.

    A est sentada mesa, pequena

    escrivaninha colocada junto parede da direita, a do corredor. Ela se inclina para a frente sobre algum trabalho minucioso e prolongado: cerzir uma meia muito fina, lustrar as unhas, desenhar a lpis alguma coisa muito pequena. Mas A... no desenha nunca; para cerzir uma meia, teria se colocado mais perto da luz; se tivesse necessidade de uma mesa para fazer as unhas, no teria escolhido essa mesa.

    Apesar da imobilidade aparente da cabea e

    dos ombros, vibraes abruptas agitam-lhe a massa negra dos cabelos. Por vezes ela ergue o busto e parece recuar para melhor julgar seu trabalho.

  • Com um gesto lento, leva para trs uma mecha, mais curta, que se soltou do penteado muito ondulante, e que a atrapalha. A mo demora-se ajeitando as ondulaes, sobre as quais os dedos afilados se desdobram, um aps o outro, com rapidez, mas sem brusquido, comunicando o movimento de um para o outro de maneira contnua, como se fossem arrastados pelo mesmo mecanismo.

    Novamente inclinada, ela retoma agora o

    trabalho interrompido. A cabeleira brilhante tem reflexos ruivos, na concavidade das ondas. Leves tremores, logo amortecidos, a percorrem de um ombro ao outro, sem que seja possvel ver mover-se, com a menor pulsao, o resto do corpo.

    Na varanda, de costas para as janelas do

    escritrio, Franck estava sentado em seu lugar habitual, numa das cadeiras de fabricao local. Apenas essas trs foram colocadas esta manh. Esto dispostas como de costume. As duas primeiras lado a lado sob a janela, a terceira um pouco afastada, do outro lado da mesa baixa.

  • A... foi pessoalmente buscar as bebidas, a gua gaseificada e o conhaque. Coloca sobre a mesa uma bandeja cheia, com as duas garrafas e os trs copos grandes. Tendo destampado o conhaque, volta-se para Franck e o olha, enquanto comea a servi-lo. Mas Franck, em vez de observar o nvel da bebida, que sobe, olha um pouco mais para o alto, para o rosto de A Ela prendeu o cabelo num coque baixo, cujas mexas hbeis parecem estar a ponto de desmanchar; alguns grampos escondidos devem, porm, segur-lo com mais firmeza do que parece.

    A voz de Franck solta uma exclamao:

    Ah! Chega! demais! ou ento: Pare! demais! ou Passou da medida, etc. Ele fica com a mo direita no ar, altura a cabea, com os dedos ligeiramente separados. A... comea a rir.

    - Voc devia ter dito antes! - Mas eu no estava vendo - protesta

    Franck. - Ora - responde ela -, no devia estar

    olhando para o outro lado.

  • Olham-se, sem nada acrescentar. Franck

    acentua o sorriso que lhe enruga os cantos dos olhos. Entreabre a boca, como se fosse dizer alguma coisa. Mas nada diz. Os traos de A..., meio de perfil, no deixam perceber nada.

    Depois de alguns minutos - ou talvez

    segundos - continuam ambos na mesma posio. O rosto de Franck, bem como todo o seu corpo, parecem imobilizados. Ele est vestido com um short e uma camisa caqui de mangas curtas, cujas tiras de pano nos ombros e os bolsos abotoados tm um ar vagamente militar, com as meias curtas de algodo rugoso, ele cala sapatos-tnis pintados de uma grossa camada de branco, que se quebra nos lugares onde a lona se dobra sobre o peito do p.

    A... serve a gua mineral nos trs copos,

    alinhados sobre a mesa baixa. Ela distribui os dois primeiros, depois, segurando o terceiro na mo, senta-se na poltrona vazia, ao lado de Franck. Este j comeou a beber.

    - Est bastante gelado? - pergunta A... As

    garrafas estavam na geladeira.

  • Franck concorda com um gesto de cabea e

    bebe um novo trago. - Pode-se colocar gelo, se voc quiser - diz

    A E, sem esperar uma resposta, chama o

    copeiro. Faz-se um silncio, durante o qual o

    copeiro deveria surgir na varanda, no canto da casa. Mas ningum aparece.

    Franck olha para A como se ela devesse

    chamar uma segunda vez, ou levantar-se, ou tomar qualquer deciso. Ela esboa uma expresso de aborrecimento, em direo balaustrada.

    - Ele no ouve - diz ela. - Seria melhor um

    de ns mesmos ir. Nem ela nem Franck se levantam do lugar.

    No rosto de A..., voltado de perfil para o canto da varanda, no h mais nem sorriso, nem espera, nem sinal de encorajamento. Franck

  • contempla as bolhas de gs coladas ao seu copo, que segura frente dos olhos, a uma distncia muito pequena.

    Um gole basta para mostrar que essa bebida

    no est bastante fresca. Franck no respondeu claramente ainda, embora j tenha bebido duas vezes. De resto, apenas uma garrafa estava na geladeira: a de gua mineral, cujo vidro esverdeado est manchado de um vapor ligeiro, onde a mo de dedos afilados deixou sua marca.

    O conhaque fica sempre no aparador. A...,

    que todos os dias traz o balde de gelo junto com os copos, no o fez hoje.

    - Ora - diz Franck -, no vale a pena. Para ir

    copa, o mais simples atravessar a casa. Transposta a porta, uma sensao de

    frescor acompanha a semi-obscuridade. direita, a porta do escritrio est entreaberta.

    Os sapatos de sola de borracha no fazem

    nenhum rudo nas lajes do corredor. A porta gira sem ranger sobre as dobradias. O cho do escritrio tambm de lajes quadradas. As trs

  • janelas esto fechadas e suas gelosias foram apenas entreabertas, para evitar que o calor do meio-dia penetrasse no aposento.

    Duas janelas do para a parte central da

    varanda. A primeira, a da direita, deixa ver pela fresta mais baixa, entre as duas ltimas lminas de madeira de inclinao varivel, a cabeleira negra - pelo menos, o alto da cabeleira.

    A est imvel, sentada bem ereta no

    fundo da poltrona. Ela olha para o vale, frente deles. Ela se cala. Franck, invisvel esquerda, cala-se tambm, ou ento fala em voz muito baixa.

    Enquanto o escritrio - como os quartos e

    o banheiro - do para os lados do corredor, este termina na sala de refeies, da qual no est separado por nenhuma porta. A mesa est posta para trs pessoas. A acaba, sem dvida, de mandar acrescentar um prato para Franck, pois no devia esperar nenhum convidado para o jantar.

    Os trs pratos esto dispostos como de

    costume, cada qual no meio de um dos lados da

  • mesa quadrada. O quarto lado, onde no h prato, o que fica a cerca de dois metros da parede nua, onde a pintura clara tem ainda a marca da lacraia esmagada.

    Na copa, o copeiro j est extraindo os

    cubos de gelo de suas frmas. Um balde cheio de gua, colocado no cho,

    serviu-lhe para aquecer a pequena cuba metlica. Ele levanta a cabea e d um grande sorriso.

    Ele deve ter tido apenas o tempo necessrio

    de ir receber as ordens de A..., na varanda, e voltar at aqui (pelo lado de fora) com os objetos necessrios.

    - A senhora disse para levar o gelo -

    anuncia ele no tom cantante dos negros, que destaca certas slabas acentuando-as de maneira exagerada, por vezes no meio das palavras.

    A uma pergunta pouco precisa sobre o

    momento em que recebeu a ordem, ele respondeu: Agora, o que no constitui uma indicao satisfatria. Ela pode ter lhe pedido isso quando foi buscar a bandeja, simplesmente.

  • S o copeiro pode confirmar isso. Mas ele

    no v, na interrogao malfeita, seno uma insinuao para que se apresse mais.

    - Eu j levo - diz ele, para que se tenha

    pacincia. Ele fala de maneira bastante correta, mas

    nem sempre consegue entender o que se quer dele. A..., porm, consegue fazer-se entender sem nenhuma dificuldade.

    Vista da porta da copa, a parede da sala de

    refeies parece sem manchas. Nenhum rumor de conversa chega da varanda, no outro extremo do corredor.

    esquerda, a porta do escritrio agora

    ficou escancarada. Mas a inclinao demasiado acentuada das lminas, nas janelas, no permite que se veja da porta o exterior.

    a uma distncia de menos de um metro

    apenas que surgem, nos intervalos sucessivos, em faixas paralelas separadas pelas faixas mais largas de madeira cinzenta, os elementos de uma

  • paisagem descontnua: os balastres de madeira torneada, a cadeira vazia, a mesa baixa onde um copo cheio est ao lado da bandeja com as duas garrafas, e por fim o alto da cabeleira negra, que se inclina nesse momento para a direita, onde entra em cena, por cima da mesa, um antebrao nu, de cor moreno-escura, terminando numa mo mais clara, que segura o balde de gelo. A voz de A agradece ao copeiro. A mo escura desaparece. O balde de metal brilhante, que logo se cobre de vapor, fica sobre a bandeja ao lado das duas garrafas.

    O coque de A..., visto de to perto, e por

    trs, parece muito complicado. muito difcil acompanhar, em seu entrelaamento, as diferentes mechas: vrias solues podem ser imaginadas para um lugar, e para outros, nenhuma.

    Em vez de servir o gelo, ela continua a

    olhar para o vale. Da terra do jardim, fragmentada em faixas verticais pela balaustrada, depois em faixas horizontais pelas gelosias, restam apenas pequenos quadrados que representam uma parte insignificante da superfcie total - talvez um tero do tero.

  • O coque de A no menos intrigante

    quando visto de perfil. Ela continua sentada esquerda de Franck. ( sempre assim: direita de Franck na varanda para o caf ou o aperitivo, sua esquerda durante as refeies na sala.) Ela est ainda com as costas voltadas para as janelas, mas agora dessas janelas que vem a luz. Trata-se aqui de janelas normais, dotadas de vidros: dando para o norte, elas nunca recebem o sol.

    As janelas esto fechadas. Nenhum rudo

    penetra o interior quando uma silhueta passa, l fora, frente a uma delas, acompanhando a casa a partir da cozinha e dirigindo-se para o lado dos barraces. Era, cortado altura das coxas, um negro de short, camiseta, um velho chapu mole, de passo rpido e ondulante, descalo provavelmente. Seu chapu de feltro, sem formas, desbotado, fica na memria e deveria servir para reconhec-lo logo entre os trabalhadores da fazenda. No obstante, isso no acontece.

    A segunda janela est situada mais distante,

    em relao mesa; ela obriga a um movimento do busto para trs. Mas ningum se delineia

  • nessa janela, seja porque o homem de chapu j a tenha ultrapassado, com seu passo silencioso, seja porque ele parou ou mudou de repente de rumo. Seu desaparecimento no surpreende, fazendo ao contrrio duvidar de sua primeira apario.

    - Esse tipo de coisa , principalmente,

    mental - diz Franck. O romance africano constitui, de novo, o

    assunto da conversa. - Fala-se de clima, mas isso no significa

    nada. - As crises de impaludismo... - H o quinino. - E a cabea tambm, que zumbe o dia

    inteiro. chegado o momento de interessar-se pela sade de Christiane.

    Franck responde com um gesto de mo:

    uma subida seguida de uma queda mais lenta, que se perde no vazio, enquanto os dedos se

  • fecham sobre um pedao de po colocado junto do prato. Ao mesmo tempo, o lbio inferior estendeu-se e o queixo indicou rapidamente a direo de A..., que deve ter feito uma pergunta idntica, pouco antes.

    O copeiro entra pela porta da copa,

    trazendo nas duas mos um grande prato fundo. A no fez os comentrios que o

    movimento de Franck deveria ter provocado. Resta um recurso: pedir notcias da criana. O mesmo gesto - ou quase - reproduz-se, terminando novamente com o mutismo de A

    - Sempre a mesma coisa - diz Franck. Em sentido inverso, atrs das janelas, passa

    de novo o chapu de feltro. A marcha ondulante, viva e descontrada ao mesmo tempo, no mudou. Mas a orientao contrria do rosto dissimula-o totalmente.

    Alm do vidro grosseiro, perfeitamente

    limpo, h apenas o ptio pedregoso, e, em seguida, subindo em direo estrada e beirada do plat, a massa verde das bananeiras. Em sua

  • folhagem sem matizes os defeitos do vidro desenham crculos mveis.

    Est como que esverdeada a prpria luz

    que ilumina a sala de refeies, os cabelos negros de voltas improvveis, a toalha sobre a mesa e a parede nua onde uma mancha escura, bem em frente do rosto de A..., ressalta sobre a pintura clara, lisa e montona.

    Para ver o detalhe dessa mancha com

    clareza, a fim de distinguir-lhe a origem, preciso aproximar-se muito de perto da parede e voltar-se para a porta da copa. A imagem da lacraia esmagada desenha-se ento, no integral, mas composta de fragmentos bastante precisos para no deixar qualquer dvida. Vrias partes do corpo, ou dos apndices, deixaram ali seus contornos, sem borres, e ficaram reproduzidos com uma fidelidade de um desenho anatmico: uma das antenas, duas mandbulas curvas, a cabea e o primeiro anel, a metade do segundo, trs patas de grandes propores. Vm, em seguida, restos mais imprecisos: pedaos de patas e a forma parcial de um corpo dobrado em ponto de interrogao.

  • nesta hora que a iluminao da sala de refeies mais favorvel. Do outro lado da mesa quadrada onde o prato ainda no foi colocado, uma das janelas, cujos vidros no tm qualquer vestgio de poeira, est aberta para o ptio, que se reflete numa das folhas.

    Entre as duas folhas da janela, bem como

    atravs da janela da direita que est semi-aberta, v-se, dividida em duas pela barra vertical, a parte esquerda do ptio onde a caminhonete coberta de lona est estacionada com o cap voltado para o setor norte do bananal. H sob a coberta uma caixa de madeira branca, nova, marcada de grandes letras negras, ao contrrio, pintadas com moldes.

    Na folha esquerda da janela, a paisagem

    refletida mais brilhante, embora mais escura. Mas deformada pelos defeitos do vidro, as manchas de verde circulares ou em forma de crescente, da cor das bananeiras, passeiam pelo meio do ptio na frente dos barraces.

    Cercada por um desses anis mveis de

    folhagem, o grande sed azul continua, apesar

  • disso, bem reconhecvel, bem como o vestido de A..., de p junto do carro.

    Ela est inclinada sobre a porta. Se o vidro

    estiver abaixado - o que provvel - A pode ter introduzido o rosto na abertura por cima dos assentos. Ela corre o risco de desmanchar o penteado contra as beiradas da janela e de ver seus cabelos se espalharem por cima do motorista, que continuou sentado ao volante.

    Este est novamente aqui para o jantar,

    afvel e sorridente. Ele se deixa cair numa das cadeiras de tiras de couro, sem que ningum a tivesse indicado, e pronuncia sua exclamao habitual sobre o seu conforto: - Como a gente se sente bem aqui!

    Sua camisa branca uma mancha mais clara

    na noite, contra a parede da casa. Para no correr o risco de derrubar o

    contedo com um movimento em falso, na obscuridade total, A... aproximou-se o mximo possvel da cadeira onde Franck est sentado, segurando com precauo na mo direita o copo que lhe destina. Apia-se com a outra mo no

  • brao da cadeira e inclina-se para ele, to perto que suas cabeas ficam uma contra a outra. Ele murmura algumas palavras: sem dvida um agradecimento. Mas as palavras perdem-se no barulho ensurdecedor dos grilos, que vem de todos os lados.

    mesa, onde a disposio dos lampies foi

    modificada de modo a iluminar menos diretamente os convivas, a conversao recomea, sobre assuntos familiares, com as mesmas frases.

    O caminho de Franck enguiou no meio

    da subida, entre o quilmetro - ponto em que a estrada deixa a plancie - e a primeira aldeia. Foi uma viatura da polcia que, passando por ali, parou na fazenda para avisar Franck. Quando este chegou ao local, duas horas depois, no encontrou seu caminho no ponto indicado, mas muito mais abaixo, pois o motorista havia tentado fazer pegar o motor em marcha r, com o risco de chocar-se contra uma rvore, numa das curvas.

    Esperar qualquer resultado, operando dessa

    maneira, , alis, absurdo. Foi preciso desmontar

  • todo o carburador, mais uma vez. Franck, felizmente, havia levado alguma coisa para comer, pois s voltou s trs e meia. Resolveu substituir o caminho o mais depressa possvel, e nunca mais - diz ele - compraria material militar usado: - A gente pensa fazer economia, mas isso custa, no final das contas, muito mais.

    Sua inteno adquirir agora um veculo

    novo. Ele ir pessoalmente ao porto na primeira oportunidade conversar com os concessionrios das principais marcas, para conhecer exatamente os preos, as vantagens diversas, os prazos de entrega, etc.

    Se ele tivesse um pouco mais de

    experincia, saberia que no se entregam mquinas modernas a motoristas negros, que as destroem com a mesma rapidez, ou mais ainda.

    - Quando pensa ir? - pergunta A - No sei... Eles se olham, voltados um para o outro,

    por cima do prato que Franck segura com uma

  • mo apenas, vinte centmetros acima do nvel da mesa.

    - Talvez na prxima semana. - Eu tambm preciso ir cidade - diz A... - Preciso fazer umas compras. - Ento eu levo voc. Partindo bem cedo,

    podemos estar de volta noite. Ele assenta o prato, sua esquerda, e

    prepara-se para servir-se. A... volta o olhar por cima do centro da mesa.

    - Uma lacraia! - diz ela com voz contida, no

    silncio que se seguiu. Franck ergue os olhos. Orientando-se em

    seguida pela direo indicada pelo olhar - imvel - de sua vizinha, ele volta a cabea para o outro lado, para a sua direita.

    Na pintura clara da parede, em frente de

    A..., havia um escutgero de propores mdias (com o comprimento de cerca de um dedo), bem

  • visvel, apesar da iluminao escassa. No momento, ele no se desloca, mas a orientao de seu corpo indica um caminho que corta a parede em diagonal: vinda do plinto, do lado do corredor, e dirigindo-se para o ngulo do teto. fcil identificar o animal graas ao grande desenvolvimento das patas, principalmente na parte posterior. Observando-o com mais ateno, distingue-se, no outro extremo, o movimento oscilante das antenas.

    A... no se mexeu desde a sua descoberta:

    muito ereta na cadeira, com as mos abertas pousadas sobre a toalha, de cada lado do seu prato.

    Os olhos, arregalados, fixos na parede. A

    boca no se fechou de todo, e talvez trema imperceptivelmente.

    No raro encontrar assim diferentes tipos

    de lacraias durante a noite, nessa casa de madeira j antiga. E essa espcie no das maiores, e est longe de ser a mais venenosa. A... procura controlar-se, mas no consegue deixar de olh-la, nem sorrir do gracejo feito a propsito de sua averso pelos escutgeros.

  • Franck, que nada disse, torna a olhar para A... Depois, levanta-se de sua cadeira, sem barulho, segurando o guardanapo. Enrola-o numa bola e se aproxima da parede.

    A... parece respirar um pouco mais

    depressa; ou, ento, uma iluso. Sua mo esquerda fecha-se aos poucos sobre a faca. As finas antenas aceleram a sua oscilao alternada.

    De repente, o animal curva o corpo e

    comea a descer diagonalmente na direo do soalho, com toda a rapidez de suas longas patas, ao mesmo tempo que o guardanapo feito bola cai sobre ele, com rapidez ainda maior.

    A mo de dedos afilados crispou-se sobre o

    cabo da faca; os traos do rosto, porm, no perderam nada de sua rigidez. Franck afasta o guardanapo da parede e, com o p, acaba de esmagar alguma coisa sobre o cho, contra o rodap.

    Um metro mais acima, aproximadamente, a

    pintura fica marcada de uma forma escura, um pequeno arco que se torce em ponto de interrogao, apagando-se um pouco de um lado,

  • cercada aqui e ali de sinais mais claros, e da qual A no afastou ainda o olhar.

    Desfeito totalmente o penteado, a escova

    desce com um rudo leve que lembra o sopro e a crepitao. Mal chegada embaixo, muito rapidamente, ela sobe em direo cabea, onde golpeia com toda a sua superfcie os cabelos, antes de deslizar de novo sobre a massa negra, cor de osso oval, cujo cabo, bastante curto, desaparece quase totalmente na mo que o segura com firmeza.

    Uma metade da cabeleira pende para trs, a

    outra mo traz para a frente do ombro a outra metade. Deste lado (o lado direito) a cabea se inclina, de modo a melhor oferecer os cabelos escova. Cada vez que esta cai, no alto, por trs da nuca, a cabea inclina-se mais ainda e se ergue em seguida com esforo, enquanto a mo direita - que segura a escova se afasta no sentido inverso. A mo esquerda - que segura os cabelos sem apert-los, entre o punho, a palma e os dedos - deixa-lhe por um instante passagem livre e se fecha, reunindo de novo as mechas, com um gesto seguro, completo, mecnico, enquanto a escova continua seu percurso at a ponta. O

  • rudo, que varia progressivamente de um extremo a outro, ento apenas uma crepitao seca e pouco forte, cujos ltimos estalos se produzem depois que a escova, deixando os cabelos mais longos, j vai tornar a subir fazendo a etapa ascendente do ciclo, descrevendo no ar uma curva rpida que a leva acima do pescoo, ali onde os cabelos ficam achatados na parte de trs da cabea e revelam a brancura de uma risca que os divide.

    esquerda dessa risca, a outra metade da

    cabeleira negra pende livremente at a cintura, em ondulaes suaves.

    Mais esquerda ainda, o rosto deixa ver

    apenas um perfil perdido. Mas, alm dele, a superfcie do espelho, que devolve a imagem do rosto inteiro, de frente, e o olhar - intil sem dvida para a fiscalizao da escovao - voltado para a frente, como natural.

    Assim os olhos de A... deveriam encontrar

    a janela escancarada que d para a empena oeste, frente qual ela se penteia diante da mesinha preparada para esse fim, munida em particular de um espelho vertical que reflete o olhar para trs,

  • na direo da terceira janela do quarto, a parte central da varanda e a vertente do vale.

    A segunda janela, que d para o sul, como

    esta ltima, est apenas mais prxima do ngulo sudoeste da casa; tambm ela est totalmente aberta. Mostra o lado da penteadeira, o pedao do espelho, o perfil esquerdo do rosto e os cabelos despenteados que caem livremente sobre o ombro, o brao esquerdo que se dobra para alcanar a metade direita da cabeleira.

    Como a nuca se inclina em diagonal para

    esse lado, o rosto encontra-se ligeiramente voltado para a janela. Sobre a placa de mrmore de raros veios cinza esto alinhados os potes e os frascos, de alturas e formas diversas. Mais adiante descansam um grande pente de tartaruga e uma segunda escova, esta de madeira, de cabo mais longo, que apresenta uma superfcie eriada de plos negros.

    A... deve ter acabado de lavar os cabelos,

    pois sem isso no se ocuparia, no meio do dia, em pente-lo. Interrompeu seus movimentos, tendo talvez terminado este lado.

  • No obstante, sem mudar a posio dos braos, nem mexer o busto, que ela volta de repente o rosto para o peitoril situado sua esquerda, para olhar a varanda, a balaustrada vazada e a vertente oposta do vale.

    A sombra retorcida da coluna que sustenta

    o ngulo do telhado projeta-se nas lajes da varanda em direo primeira janela, a da empena; mas est longe de alcan-la, pois o sol ainda permanece muito alto. A empena da casa est toda sombra do telhado; quanto ao segmento oeste da varanda, ao longo dessa empena, uma faixa ensolarada, de um metro de comprimento, mal se intercala entre a sombra do telhado e a sombra da balaustrada, no interrompida neste momento por nenhum corte.

    diante dessa janela, no interior do quarto,

    que foi colocada a penteadeira de mogno envernizado e mrmore branco, das quais h sempre um exemplar nessas habitaes de estilo colonial.

    A parte traseira do espelho uma placa de

    madeira mais grosseira, avermelhada igualmente, mas sem brilho, de forma oval, que tem uma

  • inscrio a giz da qual trs quartas partes esto apagadas. direita, o rosto de A..., que ela inclina agora para a esquerda a fim de escovar a outra metade da cabeleira, mostra um olho que se volta para a frente, como natural, para a janela escancarada e a massa verde das bananeiras.

    No final dessa ala oeste da varanda abre-se

    a porta externa da copa, que d acesso em seguida sala de refeies, onde o frescor se conserva durante toda a tarde. Na parede nua, entre a porta da copa e o corredor, a mancha formada pelos restos da lacraia mal se v, sob a incidncia horizontal da luz. A mesa foi posta para trs pessoas; trs pratos ocupam trs dos lados da mesa quadrada: o lado do aparador, o lado das janelas e o lado voltado para o centro da longa sala, cuja outra metade forma uma espcie de salo, depois da linha do meio, determinada pela abertura do corredor e a porta que d para o ptio, graas qual seria fcil dirigir-se aos barraces onde o capataz nativo tem seu escritrio.

    Mas da mesa, para se ver o salo - ou, por

    uma janela, o lado dos barraces - seria

  • necessrio ocupar o lugar de Franck: as costas voltadas para o aparador.

    Esse lugar est vazio, no momento. A

    cadeira, no entanto, est colocada no ponto certo, o prato e os talheres esto em seus lugares tambm; mas no h nada entre a beirada da mesa e o espaldar da cadeira, que tem mostra seu revestimento de palha grossa ordenada em cruz; e o prato est limpo, brilhante, cercado de todas as facas e garfos, como no incio da refeio.

    A..., que finalmente resolveu mandar servir

    o almoo sem esperar mais o hspede, j que ele no chega, sentou-se rgida e muda em seu lugar, diante das janelas. Essa posio contra a luz, cuja falta de comodidade parece evidente, foi escolhida por ela mesma de maneira definitiva. Ela come com uma economia de gestos extrema, sem voltar a cabea para a esquerda ou a direita, franzindo um pouco as plpebras como se procurasse descobrir alguma mancha na parede nua sua frente, onde a pintura imaculada no oferece, porm, a menor distrao ao olhar.

  • Depois de servir os hors-d'oeuvre e abstendo-se de mudar o prato intil do conviva ausente, o copeiro retorna de novo pela porta aberta da copa, trazendo nas mos um grande prato fundo. A nem mesmo se volta para lanar-lhe seu olhar de dona-de-casa. sua direita, sem nada dizer, o copeiro coloca o prato sobre a toalha branca. Contm um pur amarelado, provavelmente de inhame, do qual se eleva uma leve linha de vapor, que de sbito se curva, espalha-se, evapora sem deixar trao, para reaparecer logo depois, longa, fina e vertical, por sobre a mesa.

    No meio desta j est um outro prato

    intacto, no qual, sobre um fundo de molho marrom-escuro, esto enfileiradas, uma ao lado da outra, trs aves assadas, de pequeno formato.

    O copeiro retirou-se, silencioso como de

    costume. A..., de repente, decide deixar a parede nua e examina sucessivamente os dois pratos, sua direita e sua frente. Depois de apanhar a colher adequada, ela se serve, com gestos medidos e precisos: a menor das trs aves, depois um pouco de pur. Em seguida, toma o

  • prato que est sua direita e o coloca esquerda; a colher grande ficou l dentro.

    Ela comea, em seu prato, um meticuloso

    exerccio de cortar. Apesar da pequenez do objeto, como se se tratasse de uma demonstrao de anatomia, ela separa os membros, corta o corpo nos pontos de articulao, separa a carne dos ossos com a ponta da faca, segurando os pedaos com o garfo, sem apoiar de uma s vez, sem mesmo ter o ar de quem realiza um trabalho difcil ou pouco habitual. verdade que essas aves so freqentes no cardpio.

    Ao terminar, ela levanta a cabea e fica

    imvel de novo, enquanto o copeiro retira os pratos com os pequenos ossos marrons, depois os dois pratos, dos quais um contm ainda a terceira ave assada, a que era destinada a Franck.

    O prato deste permanece em seu estado

    primitivo at o fim da refeio. Sem dvida ele ficou retido, como no raro, por algum incidente ocorrido em sua fazenda, pois no teria perdido este almoo por uma indisposio eventual da mulher ou do filho.

  • Embora seja pouco provvel que o convidado venha agora, talvez A espere ainda o rudo de um veculo descendo a ladeira depois da estrada principal. Mas pelas janelas da sala de refeies, das quais pelo menos uma est semi-aberta, no chega nenhum ronco de motor, nem qualquer outro barulho, a essa hora do dia em que todo o trabalho se interrompe e em que os animais se calam, com o calor.

    A janela do canto tem as duas folhas

    abertas em parte, porm. A da direita est apenas entreaberta, de tal modo que oculta ainda sensivelmente a metade do vo da janela. A da esquerda, ao contrrio, est empurrada para trs at a parede, mas no totalmente: quase no se distancia, na realidade, da perpendicular ao plano do caixilho. A janela apresenta, assim, trs partes da mesma altura que so de largura aproximada: no meio da abertura, e de cada lado, uma parte envidraada, compreendendo trs vidraas. Numa, como nas outras, esto enquadrados os fragmentos da mesma paisagem: o ptio pedregoso e a massa verde das bananeiras.

    Os vidros esto perfeitamente limpos e, no

    da direita, a disposio das linhas levemente

  • modificada pelos defeitos, que do apenas certos matizes movedios s superfcies demasiado uniformes. Mas no vidro da esquerda, mais escuro embora mais brilhante, a imagem refletida francamente deformada, manchas verdes circulares ou em forma de crescente, da cor das bananeiras, passeiam no meio do ptio, na frente dos barraces.

    O grande sed azul de Franck, que acaba de

    estacionar ali, est tambm envolvido por um desses anis mveis de folhagem, bem como, agora, o vestido branco de A..., a primeira a descer do carro.

    Ela se inclina para a porta fechada. Se o

    vidro foi abaixado - o que provvel - A pode ter introduzido o rosto na abertura por cima dos assentos. Corre o risco de, ao se erguer, desmanchar o penteado contra as beiradas do teto do carro e de ver seus cabelos, que poderiam desmanchar-se ainda mais facilmente por terem sido lavados h pouco, derramarem-se sobre o motorista, que ficou ao volante.

    Mas ela se afasta inclume do carro azul,

    cujo motor que continua ligado enche agora o

  • ptio com um ronco mais intenso e, depois de um ltimo olhar para trs, se dirige sozinha, com seu passo firme, para a porta central da casa, que abre diretamente para a sala grande.

    Em frente a essa porta comea o corredor,

    sem qualquer separao do salo-sala de refeies. De cada lado desse corredor sucedem-se portas laterais; a ltima esquerda, a do escritrio, no est totalmente fechada. A folha da porta gira sem ranger nas dobradias bem lubrificadas; ela retoma em seguida sua posio inicial, com a mesma discrio.

    No outro extremo da casa, a porta de

    entrada, manejada com menos cautela, abriu-se e depois se fechou; em seguida o rudo leve, mas claro, dos saltos altos sobre o ladrilho atravessa a pea principal e se aproxima pelo corredor.

    Os passos detm-se porta do escritrio,

    mas a outra, que lhe fronteira, dando acesso ao quarto, que aberta e depois fechada.

    Posicionadas de maneira simtrica em

    relao s do quarto, as trs janelas do escritrio esto, nessa hora, com as suas gelosias fechadas

  • em mais da metade. O escritrio est assim mergulhado numa luz difusa que tira todo o relevo das coisas. As linhas so, porm, bem ntidas, mas a sucesso de planos no d mais nenhuma impresso de profundidade, de modo que as mos se estendem instintivamente para a frente do corpo, para reconhecer as distncias com maior segurana.

    Felizmente, o aposento no est muito

    cheio: arquivos e prateleiras contra as paredes, algumas cadeiras e por fim a macia mesa de gavetas que ocupa toda a regio compreendida entre as duas janelas que do para o sul, das quais uma - a da direita, a mais prxima do corredor - permite observar, pelas frestas oblquas entre as lminas de madeira, um corte da mesa e das cadeiras, na varanda, em riscas luminosas paralelas.

    Num canto da escrivaninha h uma

    pequena moldura incrustada de ncar, com uma fotografia tirada por um ambulante quando das primeiras frias na Europa, aps a estada na frica.

  • Frente fachada de um grande caf de estilo moderno, A... est sentada numa cadeira complicada, metlica, cujos descansos de braos e o espaldar, de espirais em arco, parecem menos confortveis que espetaculares. Mas A..., em seu jeito de se sentar nessa cadeira, mostra como de hbito muita naturalidade, evidentemente sem o menor relaxamento.

    Ela voltou-se um pouco para sorrir para o

    fotgrafo, como se o autorizasse a tirar esse instantneo. Seu brao nu, ao mesmo tempo, no modificou o gesto que fazia para descansar o copo na mesa, ao lado dela.

    Mas no foi com a finalidade de colocar

    gelo, pois ela no toca o balde de metal brilhante, que logo se cobre de vapor.

    Imvel, ela olha para o vale, frente deles.

    Ela se cala. Franck, invisvel esquerda, tambm se cala. possvel que ela tenha ouvido um rudo anormal, s suas costas, e que se prepare para algum movimento sem premeditao perceptvel, que lhe permita olhar por acaso em direo gelosia.

  • A janela que d para o leste, do outro lado da mesa do escritrio, no uma simples janela, com a abertura correspondente, no quarto, mas uma porta que permite sair diretamente na varanda sem passar pelo corredor.

    Essa parte da varanda batida pelo sol da

    manh, o nico do qual ningum procura proteger-se. No ar quase fresco que se segue ao amanhecer, o canto dos pssaros substitui o dos grilos noturnos, e a ele se assemelha, embora mais desigual, embelezado de tempos em tempos por outros sons um pouco mais musicais.

    Quanto aos pssaros, no se mostram mais

    do que os grilos, ficando escondidos sob os penachos de grandes folhas verdes, volta de toda a casa.

    Na rea de terra nua que separa a casa das

    bananeiras, e onde se erguem a intervalos iguais as laranjeiras novas - hastes magras enfeitadas de uma folhagem esparsa de cor escura -, o cho cintila com numerosas teias carregadas de orvalho, que aranhas minsculas teceram entre os torres, depois do trabalho.

  • direita, essa ponta de varanda chega extremidade do salo. Mas sempre ao ar livre, frente fachada do sul - de onde se domina todo o vale que servido o caf matinal. Na mesa baixa, junto da nica poltrona trazida pelo copeiro, j esto dispostas a cafeteira e a xcara. A... ainda no se levantou, a essa hora. As janelas de seu quarto ainda esto fechadas.

    Bem no fundo do vale, sobre a ponte de

    troncos que atravessa o riacho, h um homem ajoelhado, voltado para a vertente. um nativo, vestido com uma cala azul e uma camiseta, sem cor, que lhe deixa os ombros a descoberto. Est inclinado para a superfcie lquida, com se procurasse ver alguma coisa na gua barrenta.

    frente dele, na outra margem, estende-se

    uma faixa de terra em forma de trapzio, recurvada do lado da gua, onde todas as bananeiras foram colhidas em data mais ou menos recente. fcil contar os cepos, os troncos abatidos para o corte deixando lugar a um curto toco terminado por uma cicatriz em forma de disco, branca ou amarelada, dependendo de seu estado de frescor. Sua contagem por fileira d, da esquerda para a

  • direita: vinte e trs, vinte e dois, vinte e dois, vinte e um, vinte e um, vinte e um, vinte, vinte, etc.

    Bem ao lado de cada disco branco, mas em

    direes variadas, nasceu o broto substitutivo. Dependendo da precocidade do primeiro cacho, essa nova bananeira tem agora entre cinqenta centmetros e um metro de altura.

    A... acaba de trazer os copos, as duas

    garrafas e o balde de gelo. Ela comea a servir: o conhaque nos trs copos, depois a gua mineral, por fim trs cubos de gelo transparente que encerram em seu corao um feixe de agulhas prateadas.

    - Partimos bem cedo - diz Franck. - A que horas? - s seis, se voc quiser. - Oh! - Ficou assustada?

  • - No. - Ela ri, em seguida, depois de um silncio: - Pelo contrrio, muito divertido.

    Bebem em pequenos goles. - Se tudo correr bem - diz Franck -,

    poderemos estar na cidade l pelas dez horas e ter ainda bastante tempo antes do almoo.

    - Sem dvida, tambm prefiro assim - diz

    A Eles bebem em pequenos goles. Em seguida falam de outra coisa.

    Terminaram agora, tanto um como a outra, a leitura desse livro que os ocupa h algum tempo; seus comentrios podem portanto fazer-se sobre o conjunto do livro: isto , ao mesmo tempo sobre o fim e sobre antigos episdios (assuntos de conversas passadas) que esse final esclarece de um ngulo novo, ou aos quais acrescenta uma significao complementar.

    Nunca fizeram sobre o livro o menor juzo

    de valor, falando pelo contrrio dos lugares, dos acontecimentos, das personagens, como se se

  • tratasse de coisas reais: um lugar de que se recordassem (situado, alis, na frica), pessoas que teriam conhecido, ou cuja histria lhes tivesse sido contada. As conversas, entre eles, se abstiveram sempre de discutir a verossimilhana, a coerncia, ou qualquer qualidade da narrativa. Em compensao, com freqncia censuram aos prprios heris certos atos, ou certos traos de carter, como o fariam em relao a amigos comuns.

    Por vezes, deploram tambm os acasos da

    intriga, dizendo que isso no aconteceria, e constrem ento um outro desenvolvimeno provvel, a partir de uma hiptese nova, se isso no tivesse acontecido. Outras bifurcaes possveis surgem, em meio a esse caminho, e que levam todas a fins diferentes. As variantes so muito numerosas; as variantes das variantes, ainda mais. Parecem mesmo multiplic-las vontade, trocando sorrisos, entusiasmando-se com a brincadeira, sem dvida um pouco embriagados com essa proliferao...

    - Mas, por infelicidade, ele voltou mais

    cedo justamente naquele dia, o que ningum podia prever.

  • Franck varre assim, de um s golpe, as fices que construram juntos. De nada adianta fazer suposies contrrias, pois as coisas so como so: no se modifica nada da realidade.

    Bebem em pequenos goles. Nos trs copos,

    os pedaos de gelo agora desapareceram completamente. Franck examina o que resta do lquido dourado, no fundo do seu. Inclina-o para um lado, depois para o outro, divertindo-se em soltar as pequenas bolhas coladas ao vidro do copo.

    - No obstante - diz ele -, tudo comeou

    bem. - Volta-se para A... para tom-la por testemunha: - Partimos hora prevista e viajamos sem incidentes. Mal eram dez horas quando chegamos cidade.

    Franck parou. A... fala, como para

    estimullo a continuar: - E voc no tinha notado nada de anormal, no foi, durante toda a viagem?

    - Nada, absolutamente nada. De certa

    forma, teria sido melhor que o defeito aparecesse logo de sada, antes do almoo. No durante a

  • viagem, mas na cidade, antes do almoo. Isso me teria criado problemas para algumas de minhas compras, um pouco distantes do centro, mas pelo menos eu teria tido tempo de procurar uma oficina para fazer o conserto na parte da tarde.

    - Pois afinal no era nada srio - explicita

    A..., com um ar interrogativo. - No, absolutamente. Franck olha o copo. Ao final de um silncio

    bastante prolongado, e embora ningum lhe tenha perguntado qualquer coisa desta vez, ele continua suas explicaes: - No momento de comearmos a viagem de volta, depois do jantar, o motor no quis mais pegar. Era muito tarde, evidentemente, para tentar qualquer coisa: todas as oficinas estavam fechadas. No nos restava seno esperar o dia seguinte.

    As frases se sucedem, cada qual em seu

    lugar, encadeando-se de maneira lgica. O relato medido, uniforme, assemelha-se cada vez mais ao de depoimentos na justia, ou de um recitativo.

  • - Mesmo assim - diz A... , voc pensou a princpio que poderia consertar sozinho. De qualquer modo, voc tentou. Mas voc no grande coisa como mecnico, no mesmo?

    Ela sorri ao pronunciar estas ltimas

    palavras. Eles se olham. Ele sorri, por sua vez. Depois, lentamente, o sorriso se transforma numa espcie de esgar. Ela, em compensao, conserva seu ar de serenidade divertida.

    No obstante, Franck est habituado a

    fazer consertos improvisados, pois seu caminho est sempre enguiando...

    - Sim - diz ele -, comeo a conhecer aquele

    motor. Mas o carro no me causa problemas com muita freqncia.

    Na verdade, no deve ter havido nunca

    outro incidente com o grande sed azul, que quase novo.

    - Sempre tem de haver uma primeira vez -

    diz Franck.

  • Depois, aps uma pausa: - Foi falta de sorte, justamente nesse dia...

    Um pequeno gesto da mo direita - uma

    subida seguida de uma descida mais lenta - acaba terminando no seu ponto de partida, sobre a tira de couro que constitui o brao da poltrona. Franck tem um ar cansado; o sorriso no reapareceu desde o esgar de ainda h pouco. Seu corpo parece ter desabado no fundo da cadeira.

    - Falta de sorte, talvez, mas no um drama

    - recomea A... com um tom despreocupado, que contrasta com o de seu companheiro. - Se tivssemos algum meio de avisar, o atraso no teria nenhuma importncia. Mas com essas fazendas perdidas no meio do mato, o que se poderia fazer? De qualquer modo, foi melhor do que enguiar em plena estrada, no meio da noite!

    E foi melhor, tambm, do que um acidente.

    Trata-se apenas de um acaso sem conseqncias, uma aventura sem gravidade, um dos inconvenientes menores da vida nas colnias.

    - Acho que j vou - diz Franck. Detivera-se

    apenas de passagem, para deixar A... No quer

  • atrasar-se ainda mais. Christiane deve estar preocupada com o que pode ter acontecido e Franck tem muita pressa em tranqiliz-la. Ele levanta-se da cadeira, com um sbito vigor, e coloca sobre a mesa baixa o copo que esvaziou de um gole.

    - Adeus - diz A..., sem deixar sua poltrona -,

    e muito obrigada. Franck esboa um movimento com o

    brao, sinal convencional de protesto. A... insiste: - Claro que sim! H dois dias que eu estou lhe dando trabalho.

    - Pelo contrrio, estou desolado de lhe

    haver imposto uma noite naquele hotel horrvel. D dois passos, pra antes de tomar o

    corredor que atravessa a casa, e volta-se um pouco: - E perdoe-me por ser um mecnico to incompetente.

    O mesmo sorriso forado, embora mais

    rpido, passa-lhe pelos lbios. Ele desaparece no interior da casa.

  • Seus passos ressoam nos ladrilhos do corredor. Ele usava hoje sapatos de sola de couro, com seu terno branco, amarrotado pela viagem.

    Quando a porta de entrada, do outro lado

    da casa, se abriu e depois se fechou, A... por sua vez se levanta e deixa a varanda, pela mesma sada. Mas entra imediatamente no quarto, cuja porta fecha com o trinco atrs de si, fazendo bater a lingeta. No ptio, frente da fachada norte, o barulho de um motor que posto em movimento seguido logo pelo rudo, semelhante a um lamento agudo, de uma partida demasiado rpida. Franck no disse que tipo de conserto foi preciso fazer no carro.

    A... fecha as janelas do quarto que ficaram

    escancaradas toda a manh, baixa uma aps outra as gelosias. Vai mudar de roupa; e tomar uma ducha, sem dvida, depois da longa viagem que acaba de fazer.

    O banheiro se comunica diretamente com o

    quarto. Uma segunda porta d para o corredor; o trinco passado pelo lado de dentro, com um gesto decidido que faz bater a lingeta.

  • A pea seguinte, sempre do mesmo lado do

    corredor, um quarto, muito menor, que contm uma cama de solteiro. Dois metros adiante, o corredor termina na sala de refeies.

    A mesa est posta para uma nica pessoa.

    Ser necessrio acrescentar o prato de A Na parede nua, a marca da lacraia esmagada

    ainda perfeitamente visvel. Nada deve ter sido feito para apagar a mancha, com medo de estragar a bela pintura fosca, provavelmente no-lavvel.

    A mesa est posta para trs pessoas

    segundo a disposio habitual... Franck e A..., sentados em seus lugares, falam da viagem cidade que tm a inteno de fazer juntos, na semana seguinte, ela para diversas compras, ele para informar-se sobre o novo caminho que pretende comprar.

    J marcaram a hora da partida, bem como a

    da volta, calcularam a durao aproximada dos trajetos, o tempo de que disporo para seus negcios, levando-se em conta o almoo e o

  • jantar. No especificaram se tomaro essas refeies separadamente, ou se voltaro a encontrar-se para faz-las juntos. Mas a questo praticamente desnecessria, pois um nico restaurante oferece refeies decentes aos clientes de passagem. natural portanto que eles voltem a encontrar-se, sobretudo noite, pois devem retomar a estrada logo depois.

    natural igualmente que A queira

    aproveitar-se da ocasio para ir cidade, que prefira essa soluo ao caminho carregado de bananas, quase impraticvel para um percurso to longo, que prefira, alm disso, a companhia de Franck de um motorista nativo qualquer, por maiores que sejam as qualidades de mecnico por ela atribudas a este ltimo. Quanto s outras circunstncias que lhe permitem fazer o percurso em condies aceitveis, so incontestavelmente pouco freqentes, excepcionais mesmo, ou inexistentes, a menos que razes srias justifiquem uma exigncia categrica de sua parte, o que perturba sempre, mais ou menos, o bom andamento da fazenda.

  • Ela nada pediu desta vez, nem indicou a natureza exata das compras que provocavam seu deslocamento. No havia nenhuma razo especial a mencionar, desde que surgia a possibilidade de um carro amigo que a pegaria em casa e a traria de volta na mesma noite. O mais surpreendente, pensando bem, que uma ocasio semelhante j no se tivesse apresentado antes, algum dia.

    Franck come sem falar h alguns minutos.

    A..., cujo prato est vazio, com o garfo e a faca colocados em cima, lado a lado, que retoma a conversao, pedindo notcias de Christiane, a quem o cansao (devido ao calor, acredita ela) impediu vrias vezes de vir com o marido, nestes ltimos tempos.

    - Sempre a mesma coisa - responde Franck. - Sugeri que fosse at o porto conosco, para

    refrescar as idias. Mas ela no quis, por causa da criana.

    - Sem falar - observa A - que faz

    certamente mais calor no litoral.

  • - mais pesado, sim - concorda Franck. Cinco ou seis frases so trocadas ento sobre as doses respectivas de quinino necessrias l embaixo e aqui. Depois, Franck volta aos efeitos prejudiciais que o quinino produz na herona do romance africano que esto lendo. A conversa levada assim s peripcias centrais da histria em questo.

    Do outro lado da janela fechada, no ptio

    empoeirado onde o calamento desigual deixa aflorar zonas de seixos, a caminhonete tem a sua frente voltada para a casa. Excetuando isso, ela estaciona exatamente no lugar determinado: isto , ela enquadrou-se nos vidros inferior e mdio da folha direita da janela, contra o montante interno, com a pequena madeira da vidraa cortando horizontalmente sua silhueta em duas massas de importncia igual.

    Pela porta da copa, A... entra na sala de

    refeies, dirigindo-se para a mesa servida. Deu a volta pela varanda, a fim de falar de passagem com o cozinheiro, cuja voz cantante e loquaz soou apenas um instante atrs.

  • A trocou totalmente de roupa depois de ter tomado a sua ducha. Vestiu o vestido claro, muito justo, que Christiane acha que no convm ao clima tropical. Vai sentar-se em seu lugar, de costas para a janela, diante de um prato intacto, que o copeiro colocou para ela. Desdobra o guardanapo sobre o colo e comea a servir-se, levantando com a mo esquerda a tampa da travessa ainda quente, j atacada durante sua permanncia no banheiro, mas que ficou no centro da mesa.

    Ela diz: - A viagem me deu fome. Pergunta em seguida sobre os

    acontecimentos eventualmente ocorridos na fazenda durante sua ausncia. A frmula que emprega (o que h de novo) pronunciada com um tom ligeiro, cuja animao no simula qualquer ateno particular. Alm do que, no h nada de novo.

    A porm parece ter uma inusitada

    vontade de falar. Ela tem a impresso - diz - de que deveriam ter acontecido muitas coisas durante esse lapso de tempo, que, de sua parte, foi muito movimentado.

  • Tambm na fazenda esse tempo foi bem

    empregado; mas no se tratou seno da seqncia previsvel dos trabalhos em curso, que so sempre idnticos, com pouca variao.

    Ela mesma, interrogada sobre as notcias

    que traz, limita-se a quatro ou cinco informaes j conhecidas: a pista continua em reparos numa dezena de quilmetros depois da primeira aldeia, o Cap Saint-Jean estava atracado no cais esperando sua carga, os trabalhos do novo posto quase no progrediram desde mais de trs meses, o servio municipal de estradas deixa sempre a desejar, etc...

    Torna a servir-se. Seria melhor colocar a

    caminhonete no barraco, sombra, pois ningum deve utiliz-la no incio da tarde. O vidro grosseiro da vidraa corta a carroceria pela base, atrs da roda dianteira, com um recorte arredondado. Bem abaixo, isolado da massa principal por uma zona de terra pedregosa, um meio disco de metal pintado refratado a mais de cinqenta centmetros de sua localizao real. Essa pea estranha pode, alm disso, ser deslocada vontade, mudar de forma ao mesmo

  • tempo que de dimenses: ela aumenta da direita para a esquerda, reduz-se no sentido inverso, torna-se crescente na parte baixa, transforma-se num crculo completo quando ganha altura, ou ento ganha uma franja (mas uma posio de durao muito pequena, quase instantnea) com duas aurolas concntricas. Finalmente, com desvios bem maiores, ela se funde na superfcie matriz, ou desaparece, com uma contrao brusca.

    A quer tentar ainda algumas palavras.

    Mas no descreve o quarto onde passou a noite, assunto pouco interessante, diz ela, voltando a cabea: todo mundo conhece esse hotel, seu desconforto e seus mosquiteiros remendados.

    nesse momento que ela v o escutgero

    na parede nua sua frente. com uma voz contida, como para no assustar o animal, diz: - Uma lacraia!

    Franck levanta os olhos. Orientando-se em

    seguida pela direo indicada pelos olhos - que se tornaram fixos - de sua companheira, ele volta a cabea para o outro lado.

  • O animalzinho est imvel no meio da parede, bem visvel sobre a pintura clara, apesar da iluminao escassa. Franck, que nada disse, olha novamente para A... Depois levanta-se, sem rudo. A est to imvel quanto o escutgero, enquanto ele se aproxima da parede, com o guardanapo enrolado na mo como uma bola.

    A mo de dedos afilados crispou-se sobre a

    toalha branca. Franck afasta o guardanapo da parede e,

    com