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    SOBRE A FUNDAO DO TERREIRO DO ALAKETO*

    Renato da Silveira**

    Ao lado das duas principais fontes dahistria africana (os documentos escritos

    e a arqueologia), a tradio oral aparececomo o conservatrio e o vetor do capital

    de criaes socioculturais acumuladaspelos povos considerados sem escrita:

    um verdadeiro museu vivo.J. Ki-Zerbo

    Fundar inovar. Jan Vansina

    Omito de fundao do terreiro do Alaketo, preservado na tradiooral da casa, narra que sua fundadora foi uma princesa chamada OtampOjar, originria do reino africano de Keto, que recebeu no Brasil onome cristo de Maria do Rosrio Francisca Rgis. Otamp Ojar teriasido seqestrada ainda criana, aos nove anos de idade, por soldados doexrcito daomeano, s margens de um rio situado nos fundos do reina-do de Ketu, juntamente com sua irm gmea, Obok ou Bok Mixbi,tendo sido em seguida vendidas a traficantes, com destino Bahia. Com-pradas no mercado de escravos e alforriadas aos 16 (ou 18) anos peloprprio orix Oxumar, na figura de um homem branco, rico, alto esimptico, teriam ento voltado frica, casando-se Otamp Ojar,

    * Este artigo foi inicialmente concebido como parte do processo para o tombamento doterreiro do Alaketo, pelo Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional

    (IPHAN), sendo em seguida revisto e adaptado para os padres desta revista.** Professor da Faculdade de Comunicao, do Programa Multidisciplinar de Ps-Graduaoem Cultura e Sociedade e do Programa de Ps-Graduao em Histria, todos da UFBA.

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    aos vinte e dois anos, com um certo Bab Lji ou Olji, nag de Ketu defamlia consagrada ao orix Oxal.1

    Aps o matrimnio, o casal teria voltado Bahia com o objetivo

    de fundar um candombl. Bab Lji adotou o nome de Joo PorfrioRgis pela parte do Brasil, e arrendou, por seis patacas anuais, umterreno na antiga Estrada do Matatu Grande, ali fundando um terreirodedicado a Oxssi, o Alaketo, e edificando o il Maroi Lji, casa deculto dedicada a Oxumar, onde at hoje so zelosamente mantidasessas tradies religiosas. A primeira filha do casal, nascida na Bahia echamada de Akobiod, tambm viria a receber o ttulo de Iy e tornar-se a segunda iyalorix da casa. Akobiod, por sua vez, teria um filhochamado Joo Francisco Rgis, cujo filho, Jos Gonalo Francisco Rgis,casou-se com Silvria Clemente de Jesus, Sili, a qual recebeu o ttulo deIy Merenund, tornando-se a terceira iyalorix da linhagem. Deste casalnasceu Dionsia Francisca Rgis, Ob Oind, a quarta iyalorix doAlaketo, que morreu centenria em 1953, tia-av e me-de-santo res-ponsvel pela formao da atual iyalorix da casa, Olga do Alaketo.2

    1 Nomes prprios ou comuns que passam do iorub ao fon perdem a vogal inicial. No casoda consoante R seguir-se a esta vogal, torna-se L no fon. Por exemplo, a rvore sagradairoko torna-se, no fon, loko.

    2 As tradies orais do Alaketo, pelo que sei, foram pela primeira vez extensamente registradasem texto escrito numa entrevista com Olga Francisca Rgis, mais conhecida por Olga doAlaketo, publicada pela revista Planeta em 1974 e assinada pelos jornalistas Lus ToledoMachado e Osvaldo Xidi. Em ambiente acadmico, essas tradies foram inicialmentedivulgadas no texto de Vivaldo da Costa Lima, A famlia-de-santo nos candombls jeje-nags da Bahia: um estudo de relaes intra-grupais, Salvador, Ps-Graduao emCincias Humanas da UFBA, 1977 (trata-se de uma edio facsmile, em tiragem limitada,da dissertao de Mestrado defendida em 1972, e s disponibilizada ao grande pblico em

    2003 pela Editora Corrupio). A parte relativa s tradies orais do Alaketo foi retomadaem Costa Lima, Naes-de-candombl, in Encontro de naes-de-candombl. Anaisdo Encontro realizado em Salvador, 1981 (Salvador, Ianam/CEAO-Universidade Fede-ral da Bahia, 1984), pp. 11-26, onde esto republicadas as informaes referentes aoAlaketo, porm com vrios erros de reviso inexistentes na dissertao. Nesta mesmapublicao se encontra o depoimento de Olga do Alaketo, Nao-Queto, pp. 27-33,sobre as origens de sua casa-de-santo. Na elaborao do presente artigo tambm foi levadoem considerao o trabalho de Teresinha Bernardo, que fez vrias entrevistas com Olga doAlaketo e outras pessoas do seu terreiro, antes de publicar o seu livro Negras, mulheres emes: lembranas de Olga de Alaketu, So Paulo/Rio de Janeiro, Educ/Pallas, 2003; e umtexto de Jlio Braga, Notcia sobre o terreiro do Alaketo, anexado documentao do

    arquivo da casa. Dona Olga assumiu a direo do Alaketo desde 1948, aos vinte e trs anosde idade, e a principal detentora das suas tradies orais. Em 7 de novembro de 2003 e5 de fevereiro de 2004, durante a instruo do processo de tombamento, tive a oportu-

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    No barraco principal do Alaketo encontra-se uma placa onde estregistrada a data de fundao do terreiro: 1636. Entretanto, outra data,1616, figura no citado depoimento de 1981. J na primeira entrevista a

    mim concedida, Dona Olga afirmou que seu candombl tem seiscentosanos. Podemos portanto, nas tradies do Alaketo, sentir segurana quantoaos personagens fundadores, mas incredulidade quanto a sua data de fun-dao. Visto que o mito habitualmente mistura fatos reais com dados ima-ginrios, infiltra-se na mente do pesquisador a dvida sobre por onde pas-sa a fronteira. Alm do mais, como se sabe, as tradies mais sujeitas auma reestruturao mtica so as que exprimem a gnese e portanto aessncia, a razo de ser de um povo.3 Teria o Alaketo efetivamente tal

    antiguidade, teria sido ele fundado por uma princesa, ou por uma rainha,como s vezes pretende Dona Olga? E como encarar a afirmao de queo prprio orix Oxumar teria miraculosamente interferido nessa histriae comprado as princesas para alforri-las logo em seguida?

    Sobre este obstculo cronolgico Vivaldo da Costa Lima escre-veu que preciso que no se pense que estes [...] anos so os nossos,do nosso calendrio [...] um tempo diferente do [...] tempo secular.

    um tempo de vida, um tempo de memria, um tempo de lembrana [...]puramente simblico. A tradio oral do Alaketo parece fundir, con-forme a classificao de Meihy, o tempo antigo, remoto, que escapada seqncia cronolgica, um tempo encantado, repleto de aspectoshericos e cheio de fora explicativa das futuras mudanas, com otempo dos acontecimentos, que leva em considerao fatos da reali-dade histrica que provocaram transformaes sociais.4

    nidade de entrevist-la e a outras pessoas da casa, entre elas sua filha Jocelina BarbosaBispo, Joj, e seu filho Jos Francisco Barbosa, Zequinha, o axogum da casa. O advogadodo terreiro, Florivaldo Caj de Oliveira Filho, teve a gentileza de me apresentar toda adocumentao antiga da instituio, abreviando o longo trabalho de garimpagem quenormalmente ocorre nesses casos. Aproveitei a oportunidade e solicitei a confirmaocuidadosa dos nomes dos personagens principais, visando corrigir os numerosos erros dereviso (alguns graves) que infestam a publicao do CEAO e a entrevista da Planeta.Por exemplo, Iy Obok Mixbi, a irm gmea de Otamp Ojar, tornou-se na publica-o do CEAO, no se sabe por que cargas dgua, a caricatural Iy Gogorix!

    3 Jan Vansina, La tradition orale et sa mthodologie, in J. Ki-Zerbo (org.), HistoireGnrale de lAfrique. Mthodologie et prhistoire africaine (Paris, Jeune Afrique/

    Unesco, 1984), vol. 1, p. 181.4 Cf. Costa Lima, Naes-de-candombl, p. 19. Jos Carlos Sebe Bom Meihy, Manualde histria oral, So Paulo, Edies Loyola, 2000, cap. 7.

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    Estas explanaes mais gerais podem ser proveitosamentecomplementadas com o simbolismo dos nmeros 6 e 16 na rea culturalde onde vieram os fundadores do Alaketo. Bernard Maupoil, na sua

    obra de referncia sobre o orculo de If, salientou a excelncia ou aeminncia do nmero seis na cultura jeje-nag: O nmero seis, jvimos, perfeito. Quando se contam as nozes [do If] dizendo b lu,b y, b cE , contam-se seis por seis [...] Seis evoca a idia de equilbrio,de paralelismo, de articulao [...] Encontramos freqentemente estaconcepo de seis como sendo a cifra perfeita. Ou, em outra frmula,o nmero simples e perfeito; em oposio, por exemplo, ao imperfeitonmero nove, smbolo de desperdcio de energia.5

    Por outro lado, dezesseis tambm um nmero sumamente impor-tante no simbolismo jeje-nag. Foram dezesseis os companheiros deOdudua que fundaram a nao iorub em If, dezesseis tambm o n-mero dos orixs mais importantes do panteo nag- iorub, sendo igual-mente o nmero dos grandes signos do orculo de If, que regia, naqueleperodo histrico, tanto a vida ritual e poltica, quanto a vida cotidiana dopovo daquela rea cultural.6 No projeto estratgico de defesa do imprio

    de Oy, o maior e mais poderoso de todos os Estados iorubs, o territrioera dividido em quatro cantos, cada um responsvel pela segurana dasua rea, um em cada ponto cardeal, os quais, por sua vez, subdividiam-seem outros quatro, perfazendo dezesseis, o nmero da estabilidade poltica.

    Neste contexto intelectual, por conseguinte, a contradio entreseiscentos anos, 1616 e 1636, no tem grande peso, pouco impor-

    5 Bernard Maupoil, La gomancie lancienne Cte des Esclaves, Paris, Institut

    dEthnologie, 1981 (orig. 1936), pp. 367-369 e 475. B lu, b y, b cE, conforme asconvenes do Alfabeto Fontico Internacional.

    6 A expresso nag-iorub vem sendo usada na literatura antropolgica como se fosseuma evidncia, mas exige explicao. No final do sculo XIX, com a diviso da fricapelas potncias ocidentais, o territrio iorub foi dividido ao meio, ficando a maiorparte na Nigria, sob dominao inglesa, e a menor parte na atual repblica do Benin,sob dominao francesa, sendo os primeiros, a partir de ento, chamados de iorubs, e osltimos chamados de nags. A expresso nag-iorub, introduzida no Brasil por PierreVerger, principalmente usada pelos franceses para designar a etnia como um todo e,embora no totalmente satisfatria, por falta de melhor ser adotada neste artigo. NoBrasil escravocrata, o termo nag designava a etnia como um todo. Uma explanao

    sobre a gnese dos termos iorub, nag e anag pode ser encontrada em Pierre Verger,Orixs: deuses iorubs na frica e no Novo Mundo , So Paulo, Corrupio/Crculo doLivro, 1981, pp. 12-15.

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    tando que nessas datas ainda no existissem nags de Ketu no Brasil, emesmo, no primeiro caso, nem sequer Brasil. O que valorizado aqui que 1616 composto por dois nmeros 16, e a soma dos algarismos que

    compem a data de 1636 dezesseis. O depoimento de 1981 ao CEAO Centro de Estudos Afro-Orientais da Universidade Federal da Bahia segue mais radicalmente ainda esta lgica, pois a fundao do Alaketoteria acontecido em 1616 e as meninas teriam voltado frica aos 16anos. Dona Olga conta inclusive, em outra entrevista, que foi iniciadapara Ians aos 16 anos, em 1940, quando, na verdade, tinha quinze,nascida que fora em 1925, mas o fez justamente porque o nmero 16 um foco de energia, atrai.7 Creio portanto que essas datas, antes de

    evocarem uma cronologia exata, documentada, para retomar a expres-so usada por Costa Lima, representam, alm naturalmente da valoriza-da idia de antiguidade, a idia de projeto perfeito, oportuno, de adequa-da adaptao aos princpios religiosos e aos fundamentos da tradiojeje-nag.

    Porm a pesquisa histrica e antropolgica vem obtendo algunsresultados que permitem hoje uma datao relativamente precisa, como

    veremos ao longo deste artigo. Costa Lima comeou a recolher a tradi-o oral do terreiro do Alaketo em 1960, durante o primeiro grandelevantamento dos terreiros baianos de candombl realizado sob osauspcios do CEAO. Trs anos depois, quando da sua visita a Ketu,entrevistou o alaketu de ento, Adebit, acompanhado do notvel dacorte, Abial Oj, os quais confirmaram as informaes obtidas na Bahia,e acrescentaram outras mais. 8 Adebit e Abial Oj ficaram agrada-

    7 Cf. Bernardo, Negras, mulheres e mes, pp. 131-132. 1940, segundo o depoimento deTia Delinha, que participou do mesmo barco de iniciao de Olga do Alaketo, e narra ofato com detalhes.

    8 Adewori Adegbit, quadragsimo oitavo alaketu, da linhagem Alapini, que havia subido aotrono em 1937. Cf. douard Dunglas, Contribution ltude du Moyen Dahomey(royaumes dAbomey, de Ktou et de Ouidah), tudes Dahomennes, n 19 (1957), p.35 e 43; e Montserrat Palau Mart, Le roi-dieu au Bnin, Sud Togo, Dahomey, Nigeriaoccidentale, Paris, ditions Berger-Levrault, 1964, pp. 50-56. O timo Ketu (e, porconseguinte, Alaketu) tido por oxtono (os ingleses inicialmente o transcreveram comoKetoo, depois Ketu, e os franceses Ktou), mas no Brasil uma longa tradio j o sedimentoucomo Keto, paroxtono, e conseqentemente Alaketo, mas na pronncia nativa as duas

    slabas so tnicas. Este artigo procurar respeitar os diferentes contextos culturais,grafando Ketu e alaketu quando indicar o reino e o rei africano, e Keto e Alaketo quandodesignar as tradies afro-baianas. De um modo geral, a transcrio de palavras africanas

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    velmente surpresos ao tomar conhecimento da memria do terreiro bai-ano do Alaketo e ratificaram que, nas suas prprias tradies orais,ficara registrado o fato de que os daomeanos raptaram, na poca do

    reinado do Alaketu Akibiohu (com H aspirado), pertencente linhagemreal Aro (pronuncia-se Ar), algumas pessoas de sua famlia, s mar-gens de um rio, nas cercanias da capital do reino. Dentre estas, estavauma neta de Akibiohu, filha do seu filho Ojeku. Reconheceram tambmo nome Ojar como contrao de Oja Aro, citando um prestigioso baba-la daquela linhagem chamado de Fatokpe Ojaro (pronuncia-se FatokpOdjar). 9

    A presena da famlia Aro na regio de Ketu j foi assinaladapela historiografia africanista em data bastante remota. Por volta daterceira dcada do sculo X da nossa era iniciou-se uma grande migra-o de parte da populao do reino iorubano de If para o oeste, embusca de novos territrios. Trs prncipes, netos de Odudua, o fundadorde If, lideraram esta marcha, dois dos quais fundaram os reinos de Oye Shab; o terceiro, nomeado S1ops1n (Xopax), fundou o reino de Ketu,a cerca de duzentos quilmetros de If (ver mapa). A capital do reino,

    chamada, conforme as tradies iorubanas, de Il-Ketu, s foi contudofundada pelo stimo Alaketu, Ed, por volta de 974, segundo clculosfeitos pelo historiador Robert S. Smith, grande especialista da rea.

    Estas populaes iorubs, embora mantendo sua forte identidadetnica tradicional, foram atravs dos sculos se misturando com as po-pulaes autctones, adquirindo cada uma delas um perfil cultural es-

    que ainda no entraram no nosso vocabulrio ser fontica. Felix AyohOmidire, pro-

    fessor da Obafemi Awolowo University Ile-Ife, pesquisador e professor de iorub doCEAO (de quem sou aluno), teve a gentileza de me esclarecer a respeito de um certonmero de questes no apenas fonticas, mas tambm semnticas, da lngua iorub(entrevista do dia 6 de fevereiro de 2004), e foi o meu guia para as tormentosas questesda lingstica iorubana.

    9 Costa Lima, A famlia-de-santo, pp. 26-29; e Naes-de-candombl, pp. 24-26.Akibiohu aparece na literatura especializada como Akebiohu, Akibiowu ou Akebioru,esta ltima transcrio tendo sido adotada por Costa Lima em 1977. No seu texto de1984, certamente por um erro de reviso, o nome do alaketu registrado como Akebirou.Nos citados textos de Costa Lima, Ojar aparece como contrao de Oj Ar em 1977(p. 28) e Oj Ar em 1984 (p. 25). Ojeku pronuncia-se Odjeku. Sobre Akibiohu e a

    histria de Ketu cf. douard Dunglas, Contribution, pp. 68-71; Geoffrey Parrinder,The story of Ketu, an ancient Yoruba kingdom, Ibadan, University Press, 1956, pp. 33-35; e Mart, Le roi-dieu au Bnin, p. 50.

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    pecfico. Os oys e shabs sofreram fortes influncias dos grupos tnicosvizinhos, principalmente do nup (conhecido na Bahia por tap) e do bariba(ou borgu). J os ketus, que passaram a ser chamados pelos povos da

    regio, juntamente com os shabs e demais iorubs do oeste, de nags ouanags, misturaram-se com os fons, seus vizinhos ocidentais, conhecidosna Bahia por jejes, influenciando-os poderosamente mas tambm sendomarcados por sua cultura, donde a expresso jeje-nag que designa entrens as tradies provenientes daquela regio fronteiria. A lngua dosketus e dos demais nags da regio, chamada pelos seus vizinhos de anag,tornou-se com o tempo mais prxima do fon e, naturalmente, tambmseus nomes, seus costumes, suas divindades, seu vocabulrio cotidiano,

    litrgico e ritual. Por isso os iniciados do Alaketo afirmam que sua casapertence ao culto nag-vodum, expresso que funde o subgrupo tnicoiorub s divindades do panteo fon.10

    Melville Herskovits j salientou a importncia dos nag-iorubs edos fons, bem como de todas as sociedades sem escrita da fricaOcidental, destacando-as entre todas as sociedades do mesmo gnero:

    Essas sociedades do oeste africano [...] so das maiores do mun-do grafo. Seu equipamento tecnolgico avanado, suas eco-nomias complexas, seus sistemas polticos sofisticados e suasestruturas sociais bem organizadas e administradas. Sua arte tor-nou-se famosa, seu folclore distingue-se por sua sutileza, e suamsica influenciou o estilo musical euro-americano [...] O focodessas culturas encontra-se, no entanto, na religio e em todas

    10 S1ops1n tambm transcrito na literatura africanista como Itcha-Ikpatchan ou Sho-Ipachan. Sobre a histria da regio cf. Samuel Johnson, The history of the Yoruba, from theearliest times to the beginning of the British protetorate, edited by Dr. O. Johnson, Lagos,Bookshops, 1921 (orig. 1897), pp. 2-16. Montserrat Palau Mart, Lhistoire des S1b1etde ses rois, Paris, Maisonneuve et Larose, 1992, pp. 57-111, e Le roi-dieu au Bnin, pp.18-61; Olmyiw Anthony Adk1y, Yorb: tradio oral e histria, So Paulo, Ter-ceira Margem, 1999, pp. 13-28; e Robert S. Smith, Kingdoms of the Yoruba, Londres,Methuen, 1969, passim e pp. 101-104 para as datas de fundao de Ketu. Na tradio oraldo Alaketo a expresso nag-vodum, mas na literatura antropolgica aparece comonag-vodunce, este ltimo termo indicando os iniciados ao culto vodum. Cf. YedaPessoa de Castro, Falares africanos na Bahia, um vocabulrio afro-brasileiro, Rio de

    Janeiro, Academia Brasileira de Letras/Topbooks, 2001, pp. 81-82; e Costa Lima, Aindasobre a nao de Queto, in Clo Martins e Raul Lody (orgs.), Faraimar, o caador trazalegria: Me Estela, 60 anos de iniciao (Rio de Janeiro, Pallas, 1999), p. 80.

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    as suas manifestaes: sistemas de crenas, viso do mundo eritual. A reside o mximo estmulo para o pensamento e a expres-so criadora e nisso se verifica a maior variedade na forma.11

    Acrescentemos que os rituais pblicos, no s nas sociedades detradio oral como no Antigo Regime europeu, tinham um carter sa-grado porque eram a constituio viva da sociedade, a revitalizao pe-ridica das instituies. Nesses eventos, todos os segmentos da socie-dade, grupos e indivduos destacados exibiam publicamente a prpriaidentidade, os smbolos e atributos do seu poder, do seu status, e eramsocialmente reconhecidos. O rito pblico era portanto, desde a Antigui-

    dade at o Antigo Regime, um dos locais privilegiados de legitimao daautoridade, de delegao do poder, de reproduo da estabilidade poltica.Do ponto de vista poltico, as sociedades, atravs da histria, funcionavamoficialmente como um conjunto estruturado de rituais dinsticos,corporativos e comunitrios, justamente porque o festival pblico era,por exelncia, o meio de comunicao de massa. O funcionamento des-sas grandes festas coletivas exigia entretanto uma grande variedade deespecialistas na produo da imagem, na administrao dos eventos e

    na transmisso de tradies espirituais, esportivas, musicais, teatrais. Acapacidade de produo de grandes ritos coletivos era portanto um dosfundamentos do poder antes do advento dos meios eltricos e eletrni-cos de comunicao de massa.12

    Na rea cultural iorub as artes do espetculo foram desenvolvi-das desde o sculo XIV, na corte dos alafins de Oy e nos grandesfestivais consagrados aos ancestrais. Durante o sculo XVII, a linha-

    11 Melville Herskovits, Antropologia cultural, S. Paulo, Editora Mestre Jou, 1969, vol. II,pp. 373-374. Isto no significa que Herskovits tenha sido um entusiasta da superiorida-de sudanesa, pois ele foi o primeiro a denunciar a subestimao da religiosidade africanaequatorial pela antropologia afro-brasileira: Dentro da rea do Congo encontram-sealgumas das mais complexas culturas da frica; e nenhuma indicao existe de quetivessem sido construdas com um material to fraco que, por si mesmas, houvessem decurvar-se ao contato com os sistemas da frica Ocidental. Cf. Herskovits, Pesquisasetnolgicas na Bahia, Salvador, Publicaes do Museu da Bahia, 1943, p. 100.

    12 A bibliografia sobre este tema j considervel, mas como ele, neste artigo, apenasincidental, indico como referncia o clssico de Claude Rivire, As liturgias polticas,Rio de Janeiro, Imago Editora, 1989.

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    gem Ologbin comeou a se destacar pela qualidade de sua mise-en-scne, seus figurinos e suas acrobacias. No final do sculo XVIII, du-rante o reinado do alafin Abiodun, desenvolveu-se em Oy um verda-

    deiro teatro profissional, com a multiplicao de companhias bemestruturadas, passando essa tecnologia da produo espetacular em se-guida para os demais reinos nag-iorubs. Em 1826, quando o capitodo exrcito ingls Hugh Clapperton viajou atravs do pas, constatouque todos os obs faziam-se acompanhar pelas suas prprias companhi-as, quando das suas sadas pblicas ou visitas ao imperador de Oy. Nocurso do sculo XIX, no bojo de uma vida social a cada dia maisurbanizada, essas produes espetaculares oficiais foram assumidas pelas

    festas profanas de puro divertimento e pelos ritos de passagem particu-lares, como nascimentos, aniversrios, casamentos e funerais. No portanto por acaso que os nags da Bahia contriburam decisivamentepara abrilhantar as festas no Brasil escravista, tornando, por exemplo, aprocisso do Senhor dos Martrios uma das mais espetaculares da cida-de, segundo nos conta Silva Campos, pela sua grande imponncia emdias idos, pelo seu luxo e extenso.13

    Segundo as tradies orais de Ketu, das cento e vinte linhagensque se engajaram na migrao, nove eram importantes famlias de If,porm durante o perodo inicial de implantao no novo territrio quatrodesapareceram sem deixar rastros, certamente dizimadas pelas guerrasde adaptao, restando as cinco que at hoje se revezam no poder:Alapini, Magbo (pronuncia-se aproximadamente Magb), Me1s1a (Mex),Mefu e a nossa Aro.14 A linhagem Aro portanto uma das famlias

    reais que fundaram o reino de Ketu e tm o direito constitucional deindicar por revezamento um candidato ao trono, eleito em seguida pelosoloy, membros do conselho de Estado. A segunda aldeia construda no

    13 Cf. Josette Rivallain e Flix Iroko, Yoruba: masques et rituels africains, Paris, Hazan,2000, pp. 110-111. E Joo da Silva Campos, Procisses tradicionais da Bahia, Salva-dor, Publicaes do Museu da Bahia/ Secretaria de Educao e Sade, 1941, p. 81. Aprocisso do Senhor dos Martrios era organizada pela irmandade homnima, cuja sedeficava na igreja da Barroquinha, um dos palcos dos acontecimentos analisados nesteartigo, como veremos na seqncia.

    14 A linhagem Mefu (Mfou na transcrio francesa de Dunglas, o autor que tem maisintimidade com as tradies orais de Ketu), aparece como Mefa em Palau Mart. Ketu,hoje, apenas uma provncia da Repblica do Benin.

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    novo territrio foi chamada de Aro, o que revela um destaque da linha-gem homnima no ato da sua fundao, e tornou-se local sagrado nastradies de Ketu, um dos espaos onde, atravs dos sculos, perfize-

    ram-se os complexos ritos de entronizao do Alaketu. Na aldeia deAro encontra-se a tumba real do Alaketu Ow, o segundo rei de Ketu,certamente desta linhagem. Os Aro tiveram portanto um papel destaca-do na fundao do reino de Ketu h mais de mil anos, e alguns dos seusmembros, em virtude das turbulncias da histria, vieram a encontrar-se, um belo dia, escravizados na Bahia.15

    Os primeiros ataques do exrcito daomeano ao reino de Ketu de-ram-se em 1788 e 1789, em pleno reinado de Akibiohu, que durou de 1780a 1795. Durante esta campanha os daomeanos saquearam inicialmentealgumas fazendas e aldeias, dentre as quais Krukruhunt. Em uma se-gunda investida, no conseguindo penetrar na capital defendida poruma dupla muralha e ostentando a famosa porta Idena, o mais brilhanteexemplo da arquitetura militar nag-iorubana prosseguiram sua devas-tao avanando mais para o serto. Gourg, ento comandante do fortefrancs de Uid, escreveu a este respeito em uma correspondncia data-

    da de 16 de julho de 1788: Os daomeanos foram contra os nags [...]estiveram a catorze dias de caminho em um pas nag, onde fizeram umagrande pilhagem. Em 17 de novembro: A ltima investida dos daomeanosfoi mais feliz, destruram inteiramente um pequeno pas de nags. Istoresultar em cativos. E em 28 de fevereiro do ano seguinte: O exrcitodo rei acaba de voltar. Foi para muito longe dentro das terras contra osnags; assegura-se que destruiu muitas aldeias, e nisso que se limita suavantagem, pois trouxeram poucos cativos.16

    15 Cf. Dunglas, Contribution, p. 24, 31, 43, 49 e 62. Parrinder, The story of Ketu, p. 13,17 e 23. Mart, Le roi-dieu au Bnin, pp. 51-56. Cf. tambm Smith, Kingdoms of theYoruba, pp. 67-70 e 101-104, onde encontramos as dataes mais precisas. Aro termi-nou tornando-se um ttulo importante em alguns dos conselhos polticos superiores dasociedade nag-iorub tradicional.

    16 A correspondncia de Gourg encontra-se em Pierre Verger, Fluxo e refluxo do trfico deescravos entre o golfo do Benin e a Bahia de Todos os Santos, dos sculos XVII a XIX,So Paulo, Corrupio, 1987, p. 222, com uma verso mais simplificada em Orixs,deuses iorubs na frica e no Novo Mundo, So Paulo, Corrupio/Crculo do Livro,

    1981, p. 12. Sobre a arquitetura militar iorubana: J. F. Ade Ijayi e Robert S. Smith,Yoruba warfare in nineteenth century, Cambridge/Ibadan, University Press/Institute ofAfrican Studies-University of Ibadan, 1964; e Mart, Le roi-dieu au Bnin, pp. 43-44.

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    Segundo os historiadores do reino de Ketu, neste ltimo ataquede janeiro de 1789 o exrcito daomeano saqueou e destruiu a cidade deIwoye (Iu-i), situada alguns quilmetros ao norte de Aro e cerca de

    vinte e cinco quilmetros a nordeste da capital, perto da fronteira doreino de Shab, j na regio das savanas que precedem o deserto doSaara (ver mapa).17 A cidade de Iwoye era um importante centrolitrgico regional, mesmo o alaketu no poderia ordenar a priso de umperseguido poltico que ali pedisse asilo, e parece ter sido um reduto dafamlia Aro; a me do alaketo Akibiohu era natural daquela cidade, Ojeku,o pai das gmeas seqestradas, bem como sua famlia, certamente mo-ravam l. Em resumo, a linhagem (ou o cl) Aro parece ter sido respon-

    svel ritual e militar pela regio nordeste do reino, onde a cidade deIwoye e a aldeia de Aro eram os centros mais importantes.18

    O rio prximo do qual as meninas foram raptadas poderia ser oYewa, em cuja margem esquerda Iwoye havia sido construda, numaregio no muito distante da sua nascente. Pode ter sido tambm umafluente do Yewa, donde a hesitao, nos depoimentos, entre rio e ria-cho. Esta localizao parece ser comprovada pela carta de Gourg, quando

    escreve que os daomeanos avanaram a catorze dias de caminho, oumuito longe dentro das terras dos nags, ou ainda pelo depoimento de

    17 Palau Mart, Lhistoire des S1b1, p. 16, quando traa as fronteiras do reino de Shab,coloca Iwoye fazendo limites, ao sul, com Ketu, porm dentro dos limites de Shab,conforme o mapa da pgina seguinte.

    18 A indefinio entre famlia, linhagem e cl exige um momento de reflexo, haja vista aindiferena dos historiadores do reino de Ketu pela questo. Primeira observao: a linha-gem um grupo familiar extenso que se identifica, como descendente por filiao unilinear,de um antepassado comum, sendo os membros da linhagem [...] capazes de estabelecersua relao genealgica com o ancestral fundador. J o cl um grupo formado por umaou vrias linhagens [...] animado por um esprito corporativo bem definido e deve ser abase de uma solidariedade ativa entre seus membros. O que o distingue da linhagem queesta ltima capaz de estabelecer sua ligao genealgica com o ancestral epnimo. Cf.Michel Panoff e Michel Perrin, Dictionnaire de lethnologie, Paris, Payot, 1973, verbe-tes clan e lignage. O caso de Ketu parece ser um hbrido que no se enquadra na teoria,linhagens com mais de um milnio de idade vo se subdividindo em ramos, que crescem etornam-se como que novas linhagens, e as prprias linhagens tornam-se como que cls,pois os seus antepassados no so mais identificveis, aparecendo ento a figura mtica deOd. Pode-se considerar tambm que uma s linhagem esteja em condies de formar umcl, desde que tenha territrio prprio e seja animada por um forte sentimento de solida-

    riedade corporativa. Pode ser tambm que as cinco linhagens reais de Ketu tenham forma-do o cl de Od. Por outro lado, Ojaro parece ser um ramo da linhagem Aro. A questoexige maiores investigaes e permanece aberta.

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    Olga do Alaketo de 1981, quando afirma que as gmeas foram pega-das na beira do rio de Minas Sant, que eram fundos do reinado deQueto. Na poca de Akibiohu, Ketu ainda no tinha sido visitado pelos

    europeus, sua capital ficava a uma centena de quilmetros do litoral, emum plat elevado, fora das grandes rotas comerciais, onde o homembranco chegou tardiamente, em 1851. Iwoye ficava mais distante ainda,nos fundos do reino, ou seja, na fronteira com Shab. 19

    A filha mais velha de Otamp Ojar foi chamada de Akobiod,que o nome que em Ketu se d ao primognito, de ambos os sexos,de um chefe caador, explica Costa Lima, a qual terminou sendo asegunda iyalorix do terreiro do Alaketo. Em A famlia-de-santo omesmo autor explica em nota: Em iorubAkobi (Acobi) quer dizer tero primeiro filho que, sendo homem, investido dos direitos daprogenitura. Ode (Od) se traduz por caador e tambm um outronome do orix Oxssi.20

    Luis Nicolau Pars, o melhor especialista nas tradies jejesbaianas, ofereceu-me, em comunicao pessoal, uma interpretao al-ternativa: na lngua fon, ako (pronuncia-se ak) significa cl, e vi signi-

    fica filho, Akobiod significando portanto, literalmente na lngua dos jejes,filho do cl de Od. Em qualquer das duas hipteses, inclusive porqueh influncia de uma lngua sobre a outra, Akobiod era a filha maisvelha de um dos chefes de um cl que tinha como antepassado mticoOd, o que, alis, referendado por Verger: Os nomes onde intervmum nome de orix indicam a pertena da famlia a seu culto. 21

    19 Olga de Alaketo, Nao-Queto, p. 27. A expresso rio de Minas Sant deve ser mais

    um erro de transcrio de um depoimento gravado. Dona Olga deve ter dito Mina Sant,mas mesmo assim esta nomenclatura deve ser encarada com reservas. Na lngua geralbaiana dos sculos XVIII e XIX, mina sant designava o subgrupo fanti ou santi, daetnia akan, que vivia na parte ocidental da Costa da Mina, em uma regio no muitoprxima de Ketu e, alm do mais, no litoral e no nos fundos do reinado. Sobre oprimeiro visitante branco a Ketu, Parrinder, The story of Ketu, p. 37.

    20 Costa Lima, Naes-de-candombl, p. 26 e A famlia-de-santo, p. 48, n. 96. EmEduardo Fonseca Jnior, Dicionrio Yorub (Nag) - Portugus, Rio de Janeiro, Civili-zao Brasileira, 1993, k1bi significa primognito. Oxssi, na verdade, um oriki deOd, um nome laudatrio, 1s11wus, que significa o caador (ou o guerreiro, ou o guardanoturno, ou o feiticeiro) popular. Cf. Verger, Orixs, pp.112-113. Aqui na Bahia este

    oriki tornou-se seu nome mais usado.21 Cf. tambm Pierre Verger Notion de personne et ligne familiale chez les Yoruba, in Lanotion de personne en Afrique noire (Paris, ditions du CNRS, 1981), p. 68; e Maximilien

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    Nicolau esclarece tambm que o cognome de Obok Mixbi sig-nifica, em fon, filho ou filha mais velha, decorrendo da fuso de mEx(pessoa idosa, ou mais velha) e vi (como vimos, filho). O que significa,

    concretamente, que Obok Mixbi foi a segunda das gmeas a nascer,portanto considerada a mais velha das duas.22 Permanece, entretanto, arespeito de Akobiod, a dvida seguinte: se ela era filha de Bab Lji,segundo a tradio oral do Alaketo consagrado a Oxal, no vejo comoele pode ter sido um chefe caador, dedicado a Od. Ele era um chefe,sem dvida, o seu ttulo Bab o indica, mas no era um caador. Arespeito da norma de filiao entre os nags, Verger escreveu: Asmulheres da famlia participam das cerimnias e podem se tornar elgn

    do orix da famlia paterna; mas, se forem casadas, o orix da famliado seu marido que ser o de seus filhos. Em uma situao excepcional,o prestgio da linhagem real Aro deve ter prevalecido na construo deuma nova tradio. O chefe-caador considerado deve ento ter sidoOjeku, o av de Iy Akobiod, provavelmente como um dos chefes docl Aro, talvez como chefe da linhagem Ojaro. 23

    Este detalhe importante porque a saudao feita a Oxssi

    caso especfico, com uma formulao diferente das demais saudaesaos orixs que permanece vigente em todas as casas de Keto baianas: ok Od, ok Ar, por vezes apenas Ok Ar, significando queprimeiro sada-se o antepassado mtico e, em seguida, a famlia quetrouxe seu culto para o Brasil. Segundo os historiadores de Ketu, comoresultado da campanha militar daomeana de janeiro de 1789, cerca deduzentos ketus foram vendidos aos traficantes, com uma maioria de

    Qunum, Au pays des fons: us et coutumes au Dahomey, Paris, Maisonneuve & Larose,1999 (orig.1936), p. 103 e cap. vi, Naissance et imposition des noms, particularmen-te pp. 114-115. Sobre a mudana de vi para bi, com licena da m palavra, a consoantefricativa labiodental sonora V, pela sua proximidade, transforma-se facilmente na oclusivabilabial sonora B.

    22 Sobre a primogenitura dos gmeos, ver Montserrat Palau Mart, Le nom et la personnechez les S1b1 (Dahomey), inLa notion de personne en Afrique noire, p. 323: ...Fazemparte desta classe os nomes dos gmeos, sempre previstos por pares, com indicaoprecisa do destinatrio, o mais velho ou o mais moo dos gmeos. Com complementoem nota: considerado o mais velho dos gmeos aquele que nasceu por ltimo.

    23 Sobre as normas de filiao sagrada, Verger, Orixs, p. 20; sobre as estruturas do poderno pas iorub ver P.C. Lloyd, The traditional political system of the Yoruba,Southwestern Journal of Anthropology, n 10 (1954), pp. 366-384.

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    habitantes de Iwoye, provavelmente muitos membros da linhagem (oudo cl) Aro. Dentre esses, algumas pessoas deviam deter conhecimen-tos rituais especializados, os desdobramentos baianos indicando que ha-

    via pelo menos uma iyalorix entre eles (creio que duas, como veremosem seguida). Esta saudao ritual refora portanto a tese de que perso-nalidades da linhagem Aro chegaram Bahia, aqui exercendo lideranaem funo da sua atribuio familiar ilustre e de sua qualificao ritual.

    Deste grupo deve ter sado a iyalorix que fundou o primeiro cul-to nag do Brasil, a meu ver Iy Adet, lembrada nas tradies da CasaBranca e do Ax Op Afonj. Iy Adet apontada por algumas ver-ses orais como a verdadeira fundadora do primeiro terreiro de Keto doBrasil, a primeira me-de-santo do antigo candombl da Barroquinha;nas demais verses, mais vagas, ela aparece apenas como uma das trsfundadoras. Segundo Felix AyohOmidire, Adta (pronuncia-se Adt) o nome de um Exu que guarda o alm da casa, o lado de fora. Ocontexto histrico e litrgico sugere que o Exu de Iy Adet era associa-do ao deus dos caadores, provavelmente seu protetor quando ele seaventurava pelo grande mundo exterior, o lado de fora da casa. Por

    outro lado, Exu tido pelas tradies orais de Ketu como um dos seusreis, com o nome de s1 Alktu, conhecido e cultuado na Bahia. Ele,alm do mais, freqentemente considerado como irmo de Oxssi ede Ogum, portanto da mesma famlia de orixs.

    Creio que Iy Adet possa ter sido a pessoa que ficou respons-vel pelas netas de Akibiohu aps o ataque a Iwoye. Os dados dispon-veis sugerem que grupos de mulheres e crianas deixaram a cidadequando da aproximao das tropas daomeanas, possivelmente procu-rando refgio na zona montanhosa onde ficam as nascentes do Yewa, ecado em uma emboscada prximo s suas margens. O Exu de IyAdet era o mais apropriado para proteger as meninas em uma partidacatastrfica para o perigoso mundo exterior, elas podem ter sido captu-radas juntas, atravessado o Atlntico no mesmo navio negreiro e per-manecido em contato na cidade da Bahia. S a ascendncia de umapersonalidade forte e influente poderia manter em crianas escraviza-

    das durante pelo menos sete, provavelmente nove anos, a fidelidade aseu meio de origem, j que, naquele momento, ainda no havia uma

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    comunidade nag significativa na Bahia. Em tese, Iy Adet, sacerdoti-sa pertencente linhagem Aro, fundou a primeira verso dos candom-bls de Keto baianos, um culto quase que domstico, instalado na sua

    residncia, em uma das artrias principais do bairro da Barroquinha, aRua da Lama (atual visconde de Itaparica), onde se cultuava Od, ocaador, e Exu, seu mensageiro. 24

    Relacionar Iy Adet ao Alaketo pressupe que a memria oraldeste ltimo pode ser proveitosamente integrada aos documentos escri-tos e orais que consegui reunir em vinte e um anos de pesquisas sobre afundao do candombl da Barroquinha, considerado o ancestral de to-dos os demais candombls de Keto antigos. verdade que as tradiesdo Alaketo no admitem essa primazia, no citando na prpria histrianem o candombl da Barroquinha nem Iy Adet. Porm os dados hojedisponveis indicam que a fundao dessas duas casas-de-santo foi inti-mamente relacionada. Um grande nmero de indcios e coincidncias, ocontexto histrico e litrgico sugerem que a implantao inicial na Bar-roquinha de um culto a Od, ancestral mtico dos fundadores do reino deKetu, foi promovida por personalidades da famlia Aro.

    Porm o candombl da Barroquinha, segundo as tradies oraisdos seus principais terreiros descendentes, era uma casa dedicada aoorix Air Intile, o que faz pensar no dispositivo de todos os grandescandombls baianos de Keto: roa dedicada a um orix, o onil, o se-nhor da terra, e barraco dedicado a um outro, o onil, o senhor da casa.Mas esta primazia de Air Intile tem uma origem que fica evidentemen-te exigindo explicao.25

    O que, por sua vez, exige um pequeno desvio pela antropologia epela histria da frica. A instituio do senhor da terra era muitocomum em toda a frica Ocidental. Durante sculos, os caadores que

    24 Edison Carneiro, Candombls da Bahia, Rio de Janeiro, Edies de Ouro, s/ data, p. 19,63 e 129; e Renato da Silveira, Jeje-nag, iorub-tap, aon-Efan, Ijex: processo deconstituio do candombl da Barroquinha - 1764-1851, Cultura Vozes, Petrpolis,vol. 94, n 6 (2000), pp. 80-100. Depoimento oral de Felix AyohOmidire, dia 6 defevereiro de 2004. Sobre Exu como rei de Ketu, ver Verger, Orixs, pp. 78-79.

    25 Sobre o nome do candombl da Barroquinha, Verger, Orixs, pp. 28-29. Sobre a alianaentre o onil e o onil nos candombls de Keto mais antigos, Costa Lima, A famlia-de-santo, pp. 26-28 e 46.

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    iam na vanguarda das migraes eram os primeiros ocupantes das no-vas terras, e portanto considerados seus legtimos senhores. Od, umdos mais populares deuses dos caadores na rea jeje-nag, como So

    Jorge (com quem foi sincretizado), um heri civilizador, derrota comsua astcia e destreza a serpente Arico, a ferocidade natural, desbravao mundo selvagem para fazer prosperar a vida em sociedade.26 Nocaso da terra j estar ocupada, os conquistadores reconheciam os direi-tos dos primitivos habitantes ao intitular o senhor deles de onl1 ou bal1,s vezes grafado bal1 (ayi-non na lngua fon), reservando-lhe umacoroa mais modesta chamada kr, podendo inclusive o soberano maisrecente pagar-lhe um tributo. O senhor da terra tanto era um ttulo do

    chefe local como da primeira divindade tradicionalmente cultuada pelapopulao nativa.27 Isto significa que Od foi o primeiro orix cultuadona Barroquinha, recebendo portanto o atributo de senhor da terra daBahia, o culto de Air Intile deve ter sido implantado depois, e logoveremos em que circunstncias ele pode ter ganho preeminncia, tor-nando-se o onil, o senhor da casa. Iy Akal, que foi provavelmentequem assentou entre ns os fundamentos de Air, pode tambm ter sido

    uma das vtimas do ataque cidade de Iwoye, a segunda iyalorix vindadaquela cidade. Verger escreveu que, em Ketu, dizem que o culto deAir veio de Shab, e, em Shab, dizem que veio de Ketu, o que fazpensar na zona fronteiria entre os dois, na cidade mais importante daregio naquele perodo, justamente Iwoye.28

    A virada do sculo XVIII para o XIX foi na Bahia uma poca deprosperidade que comearia em 1787, com o aumento da produo

    aucareira, e se prolongaria at 1821, quando comeou a grande crisecausada pela guerra de independncia. Pode ser assinalado tambm como

    26 Sobre todas as qualidades de Od, Verger, Orixs, p. 112. Sobre Arico, ver Olga doAlaketo, Nao-queto, comentado por Ordep Serra em guas do rei, Petrpolis/Riode Janeiro, Vozes/Koinonia, 1995, p. 219.

    27 Geoffrey Parrinder, La religion en Afrique Occidentale illustre par les croyances et pratiques des Yoruba, des Ew, des Akan et peuples apparents, Paris, Payot, 1950,cap. v; e Verger, Orixs, p. 17, 19 e 112.

    28 Pierre Verger, Notas sobre o culto aos orixs e voduns na Bahia de Todos os Santos, no

    Brasil, e na antiga Costa dos Escravos, na frica, So Paulo, Edusp, 1999, pp. 326-327: De qualquer modo teria havido relaes em torno de Aira Igbonan entre essasduas regies (Ketu e Shab). Igbonan uma das qualidades de Air.

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    um perodo de crescimento da populao nag-iorub baiana. No cursodo sculo XVIII tivemos por aqui alteraes demogrficas significativasna populao escrava e conseqentemente liberta, determinadas pelo cres-

    cente fluxo de escravos provenientes da Costa da Mina, jejes inicialmen-te, nags e iorubs das demais regies no sculo seguinte.29

    Essas trs dcadas de prosperidade so um dos panos-de-fundodessa histria de fundao, nossos personagens integram-se perfeita-mente a elas. Otamp Ojar e Iy Adet, se no fosse o importantedesempenho histrico que tiveram, teriam sido apenas mais duas escra-vas que aqui chegaram entre os milhares que, nessa poca, os negreirosque faziam o trfico da Costa da Mina despejaram no porto da cidadeda Bahia, uns para produzir riqueza, outros para servir aos beneficiadospela riqueza produzida. O senhor branco, rico, alto e simptico que com-prou e alforriou as meninas deve ter sido um comerciante enriquecidocom esta prosperidade. Segundo as tradies orais do Alaketo, comoele prprio, tal como Otamp Ojar, era filho de Oxumar, a serpen-te/arco-ris, selecionemos algumas das caractersticas deste orix, se-gundo Verger:

    Oxumar a mobilidade e a atividade [...] Ele representa tambma riqueza, um dos benefcios mais apreciados no mundo dosiorubs [...] o arqutipo das pessoas que desejam ser ricas; daspessoas pacientes e perseverantes nos seus empreendimentos eque no medem sacrifcios para atingir seus objetivos [...] Com osucesso tornam-se facilmente orgulhosas e pomposas e gostamde demonstrar sua riqueza recente.

    Selecionemos tambm alguns trechos dos mitos de Oxumar,conforme Reginaldo Prandi: Oxumar no tinha riquezas nem poder,mas consultou um adivinho que ensinou-lhe um ritual para tornar-se

    29 Vrios textos de Joo Jos Reis abordam a evoluo da demografia tnica africana daBahia neste perodo, e podem ser sintetizados pelo captulo 10 da edio revista eampliada do seu livro Rebelio escrava no Brasil: a histria do levante dos mals em1835, So Paulo, Companhia das Letras, 2003. Sobre os perodos de prosperidade e crise

    econmica ver Ktia M. de Queirs Mattoso, Bahia: a cidade do Salvador e seumercado no sculo XIX, S. Paulo/ Salvador, Hucitec/Secretaria Municipal de Educaoe Cultura, 1978, pp. 345 e 349-352.

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    Iniciada a Oxumar na regio de Ketu. Fundao Pierre Verger

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    rico e poderoso, e ele, depois de vrias peripcias, terminou ficandorico e respeitado. Alm do mais, Oxumar era o mais bonito e atra-ente moo do lugar, e acabou sendo coroado rei dos jejes. 30

    Temos ento, com a devida adaptao, o retrato de um emergen-te, o homem alto e simptico que comprou duas meninas africanas deeducao refinada para o servio domstico da prpria residncia desenhor recentemente enriquecido, e certamente para fazer parada daprpria riqueza, como diria o conde dos Arcos. Mas ele era um homemde bom carter, como registrou a memria oral, deve ter tratado bemdelas, alforriando-as quando se tornaram adultas, tornando-se por issoum aliado dos jeje-nags da Bahia, o rei dos jejes. Porm o fato histo-ricamente mais significativo neste aspecto da narrativa que um ho-mem branco passa a ser considerado nas tradies como filho deOxumar. No quadro tradicional comenta Verger a respeito da au-sncia de proselitismo entre os africanos como e por que as pesso-as poderiam exigir que um estrangeiro participasse do culto, no tendonenhuma ligao com o ancestral em questo?31 No nosso caso, umareligio originalmente de aldeia, de linhagem, onde o orix patrono

    um antepassado da famlia, comea a se transformar em uma religiouniversal, resultado da interpenetrao de civilizaes em um mundourbano dinmico e internacionalizado.

    Enquanto isso, na frica Ocidental, temos o outro pano de fundoda nossa histria: nas quatro primeiras dcadas do sculo XIX deu-se adesintegrao do imprio de Oy, a mais poderosa estrutura poltico-militar da rea cultural nag-iorub. A presso dos fundamentalistasislmicos do califado de Sokoto e logo do emirado de Ilorin pelo flanconorte-nordeste-leste, as guerras de retaliao dos baribas (ou borgus)pelo noroeste e a revanche do Daom pelo oeste, logo acompanhadaspor uma sucesso de guerras civis devastadoras, dilaceraram o pas,levando como escravos para a Bahia multides de iorubs de todos osquadrantes. portanto natural que o aumento da populao nag-iorubbaiana tenha provocado a emergncia de uma corrente de pensamento

    30 Verger, Orixs, pp. 206-207; Reginaldo Prandi, Mitologia dos orixs, So Paulo, Com-panhia das Letras, 2001, pp. 224-229.

    31 Verger, Orixs, p. 20.

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    favorvel a uma implantao mais consistente na Bahia escravista, aqual tornara-se, para muitos, terra menos problemtica do que o prpriopas natal. No momento em que nossos Aro fizeram a opo pela Bahia,

    estvamos no incio deste processo de desintegrao iorubana e emplena era de prosperidade baiana.

    Contudo, de 1805 a 1809 tivemos o famigerado conde da Pontecomo governador colonial, o qual desencadeou a partir de 1807 umaviolenta represso contra pequenos quilombos e calundus estabelecidosna periferia da cidade, mas tambm contra os j ento corriqueiros di-vertimentos africanos, e at mesmo contra curandeiras que prestavamseus bons servios a uma populao carente e desassistida, como foi ocaso de Me Nicssia, clebre curandeira crioula ativa na virada dosculo XVIII para o XIX. Evidentemente que este clima de perseguiodeve ter desencorajado qualquer iniciativa mais ousada de integraoda parte dos africanos, estimulando respostas igualmente violentas, comoa organizao de levantes armados. Neste mesmo ano de 1807, emplena era de prosperidade, comeou o ciclo de rebelies dos escravos elibertos da Bahia, que se prolongaria at 1835.32

    Porm a morte prematura do conde da Ponte em 1809 e o come-o do governo reformista e liberal do conde dos Arcos em 1810 abririamnovas perspectivas. O conde dos Arcos veio modernizar a Bahia aps atransferncia da famlia real portuguesa para o Rio de Janeiro, realizouuma administrao dinmica e empreendedora, conduzindo uma polticasocial de tolerncia com as tradies culturais dos africanos. Por clcu-lo poltico, verdade, mas para os jeje-nags o importante que a pos-tura do conde dos Arcos lhes abria um bom espao para a ao. Em1811 o conde tornou-se inclusive irmo honorrio da irmandade negrado Senhor Bom Jesus dos Martrios ou seja, tornou-se protetor deuma organizao legal que abrigava o grupo jeje-nag, a mesma que,

    32 Sobre o conde da Ponte, ver Joo Jos Reis, Escravos e coiteiros no quilombo doOitizeiro, in Joo Jos Reis e Flvio dos Santos Gomes (orgs.), Liberdade por um fio: Histria dos quilombos no Brasil (So Paulo, Companhia das Letras, 1996), pp. 333,341 e 351-369; e Rebelio escrava no Brasil, pp. 69-81. Sobre o ciclo de revoltas

    escravas, idem, caps. 3 e 4 e parte II. Sobre Me Nicssia, Jos lvares do Amaral, Resumo chronologico e noticioso da Provincia da Bahia desde o seu descobrimentoem 1.500, Salvador, Imprensa Official do Estado, 1922, p. 128.

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    segundo as tradies orais da Casa Branca e suas filiais, acobertou afundao do candombl da Barroquinha. E terminou arrastando, com opeso do seu prestgio, uma pequena multido de pessoas ilustres que

    tambm se tornaram irmos honorrios dos Martrios, criando assimuma conjuntura bem mais favorvel aos vos da imaginao.

    Conjuntura favorvel, mas, claro, com os limites prprios a umasituao colonial, estruturalmente opressiva e discriminatria: a partir de1815 o conde dos Arcos foi obrigado a tomar medidas restritivasantiafricanas que iam contra seus princpios polticos, pois contava coma intransigente oposio de um grupo de senhores de engenho doRecncavo baiano partidrio da linha dura, os quais pressionaram ogoverno central denunciando o que consideravam a brandura exces-siva, e perigosa, do conde governador. De qualquer maneira, a primeiraparte do governo do conde dos Arcos foi muito promissora para ousa-das iniciativas de reinveno de tradies e, mesmo na adversidade po-ltica, a irmandade dos Martrios (bem como, indiretamente, o grupo deafricanos) continuou a contar com sua rede de irmos honorrios pode-rosos, entre os quais estavam arcebispos, marechais-de-campo,

    desembargadores, brigadeiros, coronis, capites-mores e bares.33

    No nos esqueamos que a Barroquinha, desde o final do sculoXVIII, ia pouco a pouco se tornando um bairro negro predominantemente

    33 Sobre as administraes dos dois condes na Bahia, ver Coronel Ignacio Accioli deCerqueira e Silva, Memorias historicas e politicas da provincia da Bahia, Salvador,Imprensa Official do Estado, 1925: conde da Ponte, vol. iii, pp. 36-52 (com notas deBraz do Amaral nas pp. 226-233); conde dos Arcos, idem, pp. 53-59 e 63-72 (notas deBraz do Amaral em 235-261). Braz do Amaral, Recordaes Histricas, Porto,

    Typographia Economica, 1921, pp. 158-164; Sebastio Pagano, O conde dos Arcos ea revoluo de 1817, So Paulo, Companhia Editora Nacional, 1938. Cf. tambm L.F.de Tollenare, Notas dominicais, Recife, Secretaria de Educao e Cultura/Departamen-to de Cultura, 1978 (orig. 1817), pp. 229-232. Sobre o conde dos Arcos e outras pessoasilustres como irmos honorrios da irmandade negra dos Martrios, ver Silva Campos,Procisses tradicionais da Bahia, pp.79-80. Cf. tambm, sobre o conde dos Arcos e asrebelies escravas de sua poca, Reis, Rebelio escrava no Brasil, pp. 81-93.Um papersobre a administrao do conde dos Arcos: F. W. O. Morton, The governorship of thecount of Arcos in Bahia, 1810-1818: Enlightened despotism in an age of revolution,comunicao apresentada ao simpsio Late Colonial Brazil, Universidade de Toronto,Canad, 1986. A oposio entre os dois condes, enquanto representantes dos moderados

    e dos intransigentes, foi desenvolvida por Joo Jos Reis e Renato da Silveira no artigoViolncia e engenho poltico na Bahia do tempo dos escravos, Comunicaes doISER, vol. 5, n 21 (1986), pp. 61-66.

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    jeje-nag. A lgica de ocupao espacial dos africanos da Bahia lhesdesignou, por motivos bvios, os pores dos sobrados do atual centrohistrico, as reas depreciadas do termo ou as zonas mais remotas do

    rossio da cidade. Em verdadeiros bairros, como a Quinta das Beatas(hoje Cosme de Farias), ou em pequenos quilombos, como o Candeal, atendncia era a instituio, digamos assim, de pelo menos um culto auma divindade africana, o qual funcionava como uma espcie de centrocomunitrio, preenchendo diversas funes sociais, polticas, religiosas,assistenciais e festivas.

    Consta que na Barroquinha tambm residiram alguns tios mu-ulmanos importantes, e que na nossa j conhecida Rua da Lama che-gou a funcionar, sem falar no calundu de tia Adet, uma pequena mes-quita, alm de um clube islmico fundado por um irmo e um primo dopoeta Luiz Gama.34 Apesar da proximidade quase ntima das institui-es centrais, polticas, militares e eclesisticas do Estado colonial, aBarroquinha tornou-se um reduto jeje-nag-iorub, atraindo tanto ncle-os de resistncia que optaram pela luta armada contra o governo colonial,quanto grupos que colocaram em prtica uma consciente e deliberada

    poltica de integrao social. Todos usando como fachada poltica, oufrente oficial, a irmandade do Senhor Bom Jesus dos Martrios.

    Uma documentao que se encontra na Cria Metropolitana infor-ma que, em 1804, o casal Brgida Maria do Esprito Santo e Joo VazSilva, brancos pertencentes confraria de Nossa Senhora da Barroqui-nha, que havia concludo a construo da capela em 1726, encaminhoupetio Cria, visando colocar disposio da sua irmandade a rendaanual de 20 mil ris, proveniente do arrendamento de uma sorte de terraslivres sita por detrs da capela de N. S. da Barroquinha com sua moradade casas grandes de taipa [...] para [que] se mantenha acesa a lmpadado Santssimo Sacramento no altar de Nossa Senhora da Piedade e

    34 Sobre os muulmanos da Barroquinha, cf. Antonio Monteiro, Notas sobre negros malsna Bahia, Salvador, Ianam, 1987, pp. 45-46, 56, 66 e 86 (livro que deve, no entanto,ser abordado com extrema cautela, pois, apesar de Monteiro ter recolhido as tradiesorais dos mals baianos, sua obra comporta muitas imprecises). Calundu era um termo

    utilizado sobretudo no sculo XVIII para designar pequenos cultos de origem africanainstalados na periferia das nossas cidades. O termo candombl, ao que tudo indica, scomeou a ser utilizado no incio do sculo XIX.

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    Sagrada Famlia, ereto na citada capela. 35 Lembremos que o orago, ouseja, a imagem do padroeiro da irmandade de crioulos e africanos, fica-va precisamente no altar de Nossa Senhora da Piedade, eram os mem-

    bros da irmandade negra do Senhor Bom Jesus dos Martrios que zela-vam por ele desde 1764, mantendo-o asseado, decorado e aceso.36

    Em um segundo documento o juiz Francisco Ribeiro Pessoa acei-ta a doao do casal proprietrio, aparecendo nova descrio do terre-no, desta feita indicando a existncia de casa contgua mesma cape-la, alm da j citada morada de casas grandes de taipa. Em umterceiro documento, datado de 4 de julho de 1807, a doao finalmenteformalizada. Mas o arrendamento pode ter sido contratado informal-mente desde 1804, antes da autoridade bater o martelo, pode ter sido atuma sugesto dos prprios jeje-nags, que j investiam no altar de N.Senhora da Piedade e viam naquelas terras um espao natural para suaexpanso. O terreno, como se v pela sua descrio, era um prolonga-mento do quintal da igreja e certamente prximo, talvez contguo, casade Iy Adet. Tanto o terreno quanto o quintal da casa da iyalorixterminavam em um brejo que ficava no centro da depresso da Barro-

    quinha, tendo para o sul as grandes hortas cercadas do mosteiro de SoBento. Nessa morada de casas grandes de taipa pode-se supor queesteja a origem da arquitetura religiosa jeje-nag baiana, cujos templosso to diferentes dos seus homnimos africanos.

    Vamos agora rever cuidadosamente todas as peas do dossi,tomando como base as tradies orais, preenchendo os claros com umaarticulao de evidncias e indcios, com a antropologia dos jeje-nags,

    procurando situar o quadro obtido na conjuntura atlntica da virada dosculo, para tentar formular uma hiptese coerente, plausvel e funda-mentada.

    35 Agradeo a Luis Nicolau Pars o acesso sua transcrio deste preciosssimo documen-to, que se encontra na caixa 92 do Arquivo da Cria Metropolitana de Salvador. Aortografia foi atualizada.

    36 Silva Campos, Procisses tradicionais da Bahia, p. 78, mas este autor refere-se errone-amente ao altar de Nossa Senhora da Caridade. No Inventrio de Proteo ao Acervo

    Cultural. Monumentos do Municpio de Salvador, Salvador, IPAC, 1975, vol. 1, p. 81,a imagem de Nossa Senhora da Piedade, esculpida no sculo XVIII, de autor desconhe-cido.

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    A fundadora do terreiro do Alaketo, Otamp Ojar, seqestradaaos nove anos de idade em janeiro de 1789, deve muito provavelmenteter nascido em 1779, deve ter levado nove anos no cativeiro e alforriada

    com a idade de dezoito primaveras nos ultimssimos anos do sculo XVIII,digamos em 1798, voltando em seguida ao reino de Ketu.37 Iy Adetdeve tambm ter obtido a alforria nessa poca, ficando no Brasil comoliberta e fixando residncia na Barroquinha, onde fundou, em sua pr-pria casa, um culto a Od.

    Otamp Ojar casou-se em Ketu, segundo a tradio oral doAlaketo, aos vinte e dois anos, admitamos que em 1801, e deve tervoltado logo em seguida ao Brasil, porque sua primeira filha, Akobiod,era crioula, j nasceu na Bahia. Sabemos que a cultura africana emgeral atribui imenso valor progenitura e, em situaes normais, umcasal estabelecido logo tem um filho, o qual representa a consumaodo casamento. Este dado indica a provvel presena da comitiva dafamlia Aro, encabeada por Bab Lji, Otamp Ojar e Obok Mixbi,na Bahia, nos primeirssimos anos do sculo XIX, digamos por volta de1802. Otamp Ojar devia estar portanto, nesta data, residindo na Bahia,

    grvida de Akobiod e ritualisticamente preparada para fundar uma casado culto nag-vodum.

    O foco no incio do sculo XIX parece tambm ser corroboradopela conhecida certido de 1858, o mais antigo documento oficial doAlaketo. Este documento no se refere ao arrendamento das terras doMatatu Grande, como muitos crem, apenas atesta que neste momentoo terreno j pertence ao neto de Joo Porfrio Rgis, Joo Francisco

    37 Na entrevista da revista Planeta, Dona Olga afirma que Otamp Ojar foi alforriada aosdezoito anos, na entrevista do CEAO, dezesseis, mas este ltimo parece-me uma ciframais comprometida com a numerologia nag-iorub. Joo Jos Reis estima, para mea-dos do sculo XIX, que um escravo teria, em mdia, que trabalhar nove anos para sealforriar e que um senhor, em pouco mais de trs anos, recuperava o capital investido,ao colocar seu escravo no sistema de ganho. Aponta tambm o exemplo de um escravoalforriado gratuitamente por seu senhor, um padre, aps seis anos de trabalho. Umescravo, como se sabe, para trabalhar no ganho, precisaria ter uma formao profissio-nal, o que dificilmente pode ter sido o caso das duas gmeas que devem, portanto, tersido empregadas no servio domstico, como j sugeri. Registre-se tambm que as

    mulheres escravas eram mais freqentemente alforriadas do que os homens, por razesque no cabe discutir aqui. Sobre os rendimentos dos escravos e senhores no ganho, cf.Reis, Rebelio escrava no Brasil, pp. 352-353 e 399.

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    Rgis, filho primognito de sua filha Iy Akobiod, falecido em 1867, semespecificar contudo se ele possuidor ou proprietrio. Eis aqui, na ntegra,o que reza o documento intitulado Roa de Joo Francisco Rgis:

    A roa de Joo Francisco Rgis, sita na Estrada do Matatu, fre-guesia de Nossa Senhora das Brotas, tem dezesseis braas defrente [... ilegvel...] divide-se no nascente com Lucio Casimiro daFonseca Galvo, no poente com Lucas Ramos e os fundos com aQuinta das Beatas. Bahia, dezenove de junho de mil oitocentos ecinqenta e oito. Joo Francisco Rgis. E nada mais continhamas declaraes que me foram transmitidas. Brotas da B, 19 de

    junho de 1858 [assina o Aligr Ernesto dAlves Valle].38

    Por outro lado, Vansina, no seu j citado texto sobre a tradiooral, baseado em consistentes estudos estatsticos, sugere que a mdiadas geraes dinsticas africanas varia entre vinte e seis e trinta e doisanos, mas alerta que esta cronologia absoluta no deixa de ter seusperigos, devendo o pesquisador levar em considerao as enormesvariantes que podem ocorrer. Ora, a genealogia da dinastia do terrei-ro do Alaketo, bem estabelecida pela tradio oral e corroborada poralguns documentos cartoriais (ver diagrama genealgico anexo), apontavinte e cinco anos por gerao (oito geraes em dois sculos), indican-do ademais a mdia de quarenta anos para o mandato das suas cincoiyalorixs. Se, em 1858, o terreno pertencia ao neto do casal que inicial-mente o obteve, tudo aponta para a concomitante obteno das terrasda Barroquinha e do Matatu Grande, por volta de 1807, 1808. 39

    Em 1804, quando o arrendamento do terreno da Barroquinha veio

    baila, o violento governo do conde da Ponte ainda no havia comea-do, a ocasio parecia portanto propcia. Reinava na cidade da Bahiauma situao de relativa acomodao poltica, implantada desde mea-dos do sculo XVII, quando do incio da dinastia de Bragana e o fimdas invases holandesas, que no chegou a ser seriamente abalada pela

    38 Luis Nicolau Pars, que colaborou na pesquisa da documentao do Alaketo, encontrouno Arquivo Pblico do Estado da Bahia o testamento de Joo Francisco Rgis, datado de

    3 de abril de 1857, aberto em 26 de setembro de 1867, por ocasio do incio doinventrio.

    39 Olga do Alaketo j dirige sua casa h cinqenta e seis anos.

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    poltica centralizadora do Marqus de Pombal. A represso antiafricanadesencadeada pelo conde da Ponte visou a destruio dos pequenoscentros de autonomia, os arraiais dos documentos da poca, que cerca-

    vam o ncleo central da cidade, muitos deles integrados vida cotidiana eeconmica da capital e do seu Recncavo.

    A poltica repressiva comeou em fins de maro de 1807, 40 mes-mo ano em que se concluiu o processo a respeito da doao da renda doterreno da Barroquinha, porm a possibilidade oficial de arrendamentopara o fim previsto s se deu posteriormente, a 4 de julho. Ou seja, seat o incio de 1807 o arrendamento das terras da Barroquinha aindaparecia ser uma boa iniciativa, a partir de maro as casas de culto afri-cano passaram a ser especialmente visadas pela polcia do governadore a Barroquinha era muito prxima, poderia sofrer uma agresso a qual-quer momento. Desde este momento a conjuntura, por conseguinte, cau-sava preocupao e inspirava prudncia entre os africanos da Bahia.

    Quando, entre 1807 e 1808, os dois terrenos devem ter sido ar-rendados, o clima era de tenso na comunidade africana da Bahia. BabLji e Iy Otamp Ojar, nesta conjuntura, estavam decididos, primeiro,

    a obter um terreno distante do centro da cidade, e, segundo, a fundar umtemplo consagrado a Oxumar, no a Air Intile ou um outro orix qual-quer. Em resumo, este conjunto de dados aponta para trs focos dedivergncias potenciais no seio da comunidade jeje-nag da Bahia: olocal do novo culto, seu regente e sua hierarquia.

    Sobre o primeiro foco da tenso, preciso considerar que s coma aquisio de um terreno o culto inicialmente implantado por Iy Adet

    poderia deixar de ser domstico, permitindo uma maior participao dacrescente comunidade jeje-nag. A possibilidade de dispor de um terre-no portanto um momento importantssimo no processo de constituio,um salto no crescimento do culto organizado aos orixs em terras brasi-leiras.

    Lembremos que o bairro da Barroquinha era uma depresso nocentro de trs colinas, naquela poca composta na sua maior parte porterras devolutas, as ruas que vinham da cidade tornavam-se veredas no

    40 Reis, Escravos e coiteiros, p. 334.

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    meio do mato, o brejo ali existente, do qual tanto se queixou o minucioso(e preconceituoso) Vilhena, desvalorizava toda a rea:

    Um grande brejal, ou pntano, o qual [...] nasce no fundo dacerca do mosteiro dos beneditinos [...] este cheio de milharesde sevandijas, e rpteis, como cobras, e sapos peonhentssimos,e imundcies a monte; alm de que no vero ficam por muitaspartes charcos profundos, cuja gua apodrece com o calor, etodo ele evapora eflvios, que infeccionam a cidade, motivandosezes, e febres mortais; alm de outras enfermidades, em que aBahia pouco cede hoje s povoaes que temos em frica.41

    Alm do mais, afora os residentes nas ruas perifricas, no haviaoutro proprietrio no local, de modo que, mesmo um pequeno quintal decasa modesta poderia tornar-se bem grande, pelo usufruto de uma readepreciada. O arrendamento do terreno iria certamente atribuir aos jeje-nags um pequeno territrio bem prximo do centro da cidade, posioprivilegiada numa estratgia de integrao.

    Mas a proximidade do centro tambm contava com desvanta-gens. provvel que os membros da famlia Rgis tenham discordadoda opo pela Barroquinha por causa da proximidade do mosteiro deSo Bento, do palcio dos governadores e do solar do Berqu, o qualera, na virada do sculo XVIII para o XIX, residncia de um dosdesembargadores do Tribunal da Relao. Esta promiscuidade com al-gumas das instituies centrais do Estado e com a moradia de um dospoderosos da Bahia colonial pode t-los levado a procurar uma alterna-tiva mais segura, em um momento de violncia antiafricana. Mas creio

    que, como j sugeri, os partidrios da instalao no centro tinham umobjetivo deliberado, ou seja, integrar-se paulatinamente ao ciclo de fes-

    41 Lus dos Santos Vilhena, A Bahia no sculo XVIII, Salvador, Editora Itapu, 1969 (orig.1798-1799), vol. 1, pp. 162-163. O pntano da Barroquinha foi aterrado e toda a reaurbanizada na dcada de 1850. Cf. ris Silva Salles do Nascimento, O espao do terreiroe o espao da cidade: Cultura negra e estruturao do espao de Salvador nos sculos XIXe XX (Dissertao de Mestrado, Universidade Federal da Bahia, 1989), pp. 47-49 e 62;e Pedro de Almeida Vasconcelos, Salvador: transformaes e permanncias (1549-

    1999), Ilhus, Editus, 2002, pp. 245, 249. oportuno lembrar que rpteis eram animaissagrados nas religies tradicionais africanas, o prprio Oxumar podia aparecer sobforma de serpente.

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    tas oficiais da cidade, institucionalizar uma organizao africana de maiorporte, uma vez que a irmandade do Senhor dos Martrios j tinha seulugar socialmente reconhecido. At ento, todos os calundus coloniais

    tinham procurado instalar-se em reas distantes, nas matas e chcarasque cercavam a cidade, temendo a represso. Os jeje-nags que opta-ram pela Barroquinha mudaram bruscamente de estratgia, pretenden-do certamente tornar seu culto africano, com o tempo, visvel, social-mente aceito.

    H na tradio oral do Alaketo uma dupla hesitao a respeito doterreno onde foi fundado o terreiro: ele teria sido arrendado ou compra-do, por seis ou trs patacas? Sabemos que em 1858 o terreno do MatatuGrande j havia sido integrado ao patrimnio da famlia Rgis, mas creioque ele deve ter sido inicialmente arrendado, at mesmo seis patacasseria uma soma pequena, insuficiente para compr-lo. A pataca erauma moeda de prata, valia 320 ris. Seis patacas anuais (que me parecemais coerente com os preos da poca) no chegavam a dois mil ris.Comparando com os vinte mil ris anuais cobrados pelo arrendamentodo terreno da Barroquinha, o terreno do Matatu parece ter sido bem

    barato. O levantamento feito por Mrcia Santana, coordenadora do pro-jeto de tombamento do IPHAN, constata que a rea arrendada no eramuito grande, mas a rea efetivamente ocupada foi bem maior, o quepode explicar, ao lado da falta de benfeitorias e da distncia do centro dacidade, a pequena soma exigida no ato do arrendamento.42

    Alm da distncia do centro urbano, uma outra vantagem da Es-trada do Matatu Grande era a concentrao de africanos e casas decandombl pelas suas cercanias. Segundo a documentao antiga doAlaketo, o terreno, pelos fundos, limitava-se com a Quinta das Beatas,reduto de casas de culto angolanas e congolesas de implantao maisantiga. Segundo as tradies orais, existia na Quinta das Beatas umcemitrio angolano onde se realizava o culto de Tempo Kiamuilo, e, ao

    42 Como termo de comparao, entre 1805 e 1811, um escravo adulto do sexo masculinocustava de cento e cinqenta a cento e setenta e cinco mil ris, devendo-se considerarque este preo podia ser bem mais elevado se o escravo fosse profissionalmente qualifi-

    cado. Ktia de Queirs Mattoso, Ser escravo no Brasil, So Paulo, Brasiliense, 1988,pp. 77-96, sobre a evoluo no preo dos escravos, com tabela de moedas brasileiras eportuguesas da era escravista na p. 253.

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    longo do sculo XIX, os taps e nag-iorubs foram se instalando pelasvizinhanas, com destaque para os cultos de Orix Ok e dos ancestraisBab Gunuk e sua esposa Abak La, no local onde hoje se encontra a

    Avenida Bonoc. O terreiro do Alaketo deve ter sido o primeiro can-dombl nag a instalar-se na regio.43

    Mas a aquisio de um terreno coloca no s a questo da esco-lha do seu local, leva-nos ao segundo foco de tenses: a diviso espao-da-casa/espao-do-mato ensejava a aliana de dois patronos, o onil e oonil, Od e Air Intile ou Oxumar. Ningum discordava de que Odera o onil da Bahia, mas no deve ter havido acordo sobre quem deve-ria ser o onil.

    Como j comentei, Iy Akal pode ter vindo de Iwoye na mesmaleva que Iy Adet, ou pode ter chegado um pouco depois; visto que foiela quem provavelmente trouxe os fundamentos de Air, este orix podeportanto ter chegado ao mesmo tempo que Od, ficando em um segun-do plano devido ao prestgio do regente da linhagem Aro, mas, mesmoassim, assentado no quintal de Iy Adet ou nas suas cercanias; oupode ter chegado depois, ficando no segundo lugar pelo princpio da

    senioridade. Quando do arrendamento oficial do terreno da Barroqui-nha, a morada de casas grandes de taipa deve ter passado a abrigar oculto, tornando-se um il. Para os adeptos de Air Intile, ele era o leg-timo senhor da casa, o candidato natural a receber o ttulo de onil. MasOtamp Ojar estava no s determinada como preparada para ser aiyalorix deste novo terreiro, os anos passados em Ketu devem ter sidoinvestidos justamente na sua formao; ela deve ter sido seqestrada jcom um princpio de iniciao (que comeava aos sete anos no pasnag), continuando-a na Bahia com Iy Adet, e aprofundado-a quandoda volta frica; deve ter inclusive trazido consigo os fundamentos deOxumar, alm dos procedimentos necessrios sua evocao, certos

    43 Sobre a Quinta das Beatas, depoimento oral em 14 de maio de 1988 de Me AngelinaSantana, Cassind, j falecida; e Waldomiro Ferreira, nascido na Ladeira do Bonoc,filho da famosa me-de-santo Dorotia de Angola. Waldomiro, tambm j falecido, eracolaborador de Ceclia Moreira, iniciada no Il Maroketo e pesquisadora da Faculdade de

    Cincias Humanas da UFBa, a qual gravou uma entrevista com um importante depoi-mento seu. Ceclia teve a gentileza de me emprestar a citada fita, de onde obtive as maisconsistentes informaes sobre a Quinta das Beatas.

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    ingredientes vegetais, animais e minerais sem os quais a fundao doseu culto no seria possvel. Desacordo, portanto, em perspectiva.

    Porm este segundo foco de divergncias est organicamente

    ligado ao terceiro, a escolha da iyalorix do novo terreiro. A escolha deum onil implicaria imediatamente a ascenso da zeladora do seu culto auma posio de destaque, mas s o falecimento de Iy Adet poderiacolocar na ordem do dia a questo sucessria, ou seja, a ascenso daiyalorix do onil primeira posio da hierarquia. A estrutura das ci-ses que ocorreram nos terreiros baianos de Keto, quando da fundaodo Il Ax Iy Omi Iyamass, mais conhecido como terreiro do Gantois,e do Il Ax Op Afonj, sugere o que poderia ter acontecido naquelapoca na Barroquinha: quando do falecimento da iyalorix em funo,duas candidatas apresentam-se para a sucesso. O orculo de If deci-de por uma delas, e a preterida retira-se com sua famlia e seus aliadospara fundar uma nova casa. Creio mesmo que esta primeira ciso podeter oferecido o modelo para as seguintes.44

    Neste particular, outra questo extremamente importante o fato deOtamp Ojar ter sido consagrada iyalorix ainda muito jovem, na faixa dos

    vinte anos, esta deve ter sido uma poderosa fonte de divergncias, pois,tradicionalmente, s mulheres de uma certa idade poderiam chegar a talascendncia. Contudo, muitos jeje-nags no viviam mais naquele clima deestabilidade que propiciava as longas formaes, o momento era de crisegrave e exigia mais agilidade. De qualquer maneira, esta primeira iyalorixjovem acabou constituindo um precedente na Bahia, abrindo espao paraoutras jovens iyalorixs nos terreiros de Keto, como Me Menininha doGantois, iyalorix aos vinte e oito anos, e a prpria Olga do Alaketo, queassumiu a direo de sua casa aos vinte e trs anos de idade.45

    Na Barroquinha, 1812 foi um ano de grandes empreendimentos.Em 12 de agosto deste ano, aps solicitao dos mesrios da irmandade

    44 A data de fundao do Gantois controvertida, mas tal fato deve ter acontecido na dcadade 1860, enquanto que a do Ax Op Afonj conhecida, 1910. A hiptese com quetrabalho concentra os trs focos de tenso no mesmo momento, mas evidente que osAro podem ter se retirado para o Matatu antes da questo sucessria ter sido declarada, ou

    seja, nada impede que a questo do arrendamento tenha precipitado os acontecimentos.45 Sobre Me Menininha, Schuma Schumaher e rico Vital Brazil (orgs.), Dicionrio demulheres do Brasil:De 1500 at a atualidade, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2000, p. 354.

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    do Senhor Bom Jesus dos Martrios, o Conselho da Cmara de Verea-dores, depois da vistoria dos seus medidores, autorizou a construode um salo nobre contguo igreja, no terreno devoluto que lhe servia

    de quintal.46

    Podemos supor que, neste momento de obras, a moradade casas grandes de taipa deve ter sofrido reformas e adaptaes, edeve ter sido construdo o subterrneo que abrigava os pejis da casa deAir, ao qual, segundo as tradies da Casa Branca, tinha-se acessodisfarado pelo tronco de uma rvore oca.

    Ao mesmo tempo, semelhante dinamismo empreendedor anima-va a estrada do Matatu Grande. Distantes do centro, os membros dafamlia Rgis tomaram posse de um terreno frtil, com trs fontes deguas lmpidas, onde plantaram fundamentos trazidos da frica, trans-formando-o em um terreiro de Oxssi; a plantaram algumas rvoressagradas, dois ps de biriba que j morreram de velho, entre os quaisfoi assentado Ob Unlu, o primeiro Oxssi, antigo rei-caador divinizado;plantaram tambm um iroko (gameleira branca), do qual nasceu um outro,que hoje, gigantesco, domina a regio; plantaram hortas e rvores frutfe-ras de vrias espcies, preparando-se para viver sem privaes. No cen-

    tro do terreiro construram um barraco de taipa, com trinta e oito palmosde frente, o il Maroi Lji, templo dedicado a Oxumar, alm de outrasedificaes menores para o funcionamento do novo culto.47

    Tudo indica portanto que o final do governo do conde da Ponte foio momento do desfecho da ciso, e o incio do governo do conde dosArcos o momento de colocao das bases de duas distintas trajetrias

    46 Carlos Ott, A igreja da Barroquinha, in Anais do Arquivo Pblico do Estado da

    Bahia, Salvador, v. 45, 1981, p. 245 e 252, nota 7.47 Sobre as edificaes do Matatu, uma petio de 26 de novembro de 1956, existente no

    arquivo do Alaketo, endereada ao diretor de Arquivo Pblico do Estado da Bahia eassinada por Olga Francisca Rgis, recebe resposta da funcionria Carmem Pinto Barreto,a qual cita um documento de 16 de dezembro de 1868, onde se encontra uma descriodos bens, entre eles o stio do Matatu e alguns imveis. A memria oral perdeu o sentidoda expresso Il Maroi Lji, cheia de sugestes. Dona Olga afirma que Maroi oOxumar de Otamp Ojar e defende com convico que Mar nada tem a ver com Ar,tratando-se de uma coincidncia. Mesmo assim, desconfio que Maroi associa Maro(Mar) a y. Felix AyohOmidire, consultado a respeito, concorda, e lembra que Maroera uma aldeia prxima de Il-Ketu cujo bal1 participava do conselho de ministros do

    reino. Pode ser que Bab Lji tenha sido um chefe desta cidade, eventualmente tambmatacada pelos daomeanos. Neste caso, Il Maroi Lji pode significar a casa mar dasenhora Lji.

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    para os dois terreiros de Keto mais antigos da Bahia. Desde esta pri-meira ciso, o Alaketo permaneceu um candombl do povo de Ketu,mais precisamente, da linhagem Aro e seus aliados, ou, melhor ainda, da

    famlia Rgis pela parte do Brasil, enquanto que, na Barroquinha, co-meava um processo de abertura com grandes desdobramentos poste-riores, onde jejes e ketus se associariam a outros subgrupos tnicosprovenientes de vrias reas do territrio nag-iorub, entre outros, osoys, ijexs, egbs, ijebus, efans, que comearam a chegar Bahia emgrande nmero, a partir da dcada de 1820, trazendo novas tradieslitrgicas que se incorporariam s tradies baianas.

    Na dcada de 1830 haveria na Barroquinha uma grande reestru-turao, que associaria sacerdcios e divindades diversas em um scorpo poltico-religioso, sob a direo de Iy Nass, autoridade do pri-meiro escalo do declinante imprio de Oy. E na dcada de 1850, po-ca de predomnio na Bahia do grupo poltico do intolerante Visconde deSo Loureno, os nags seriam expulsos da Barroquinha quando da suaurbanizao, sendo o candombl invadido e profanado, instalando-se al-guns anos depois no Engenho Velho da Federao, onde at hoje se

    encontra. Enquanto isso o Alaketo, desde a dcada de 1810, j haviaencontrado seu lugar na estrada do Matatu Grande, onde se estabele-ceu para durar sculos.48

    48 A histria do candombl da Barroquinha foi contada no j citado artigo de minha autoria

    Jeje-nag, iorub-tap, aon Efan, ijex, e ser contada com mais detalhes no livro Ocandombl da Barroquinha: processo de constituio do primeiro terreiro baiano deKeto 1764-1851, em vias de concluso.

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    378 Afro-sia,29/30 (2003), 345-379

    1 O alaketu Akibiohu reinou entre 1780 e 17952 O nome cristo de Bab Lji era Joo Rgis segundo Dona Olga e Porfrio Rgis segundo

    Costa Lima, donde a opo por Joo Porfrio Rgis.3 Iy Otamp Ojar e Iy Obok Mixbi nasceram c. 1779. Iy Akobiod nasceu c. 1802.

    Os nomes das iyalorixs da casa esto em negrito.4 Chamado de Joo Rgis Filho na entrevista de Olga da Planeta, faleceu em 1867; seu

    testamento de 3 de abril de 1857, o inventrio de 1867; a abertura do testamento deu-se em 26 de setembro de 1867. Adiniano Rgis, segundo a memria oral, morreu cedo.

    5 Bab Olaxedum (segundo Olga e Jlio Braga, Bab Dod segundo Costa Lima) erafunileiro de profisso. Sua esposa Faustina Maria faleceu em 1 de novembro de 1872,com inventrio em 1873.

    6 Marcolino e Jos Thomaz eram sobrinhos de Joo Francisco Rgis e esto entre seusherdeiros.

    7 Maria Francisca era av de Dona Olga, neta de Gregrio Maquende, conhecido pai-de-santo de Angola; era irm-de-santo de Madalena, a qual era filha de Marcelina Obatossi,quarta iyalorix da Casa Branca.

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    8 Joo Nepomuceno aparece na entrevista da Planeta como Joo Rgis Neto, foibatizado em 27 de julho de 1873.

    9 Dionsia Ob Oind tem seu atestado de bito datado de 5 de dezembro de 1953; estetexto registra sua idade ao falecer, 110 anos, ou seja, ela teria nascido em 1843, mas isto praticamente impossvel, pois esta a poca do nascimento de sua me, Iy Merenund.Uma boa referncia a data de batismo de seu irmo, Joo Nepomuceno, como vimos,1873. Ela deve ter nascido por volta de 1863, esta data est mais de acordo com ocontexto.

    10 Tio de Olga, meio irmo de sua me Etelvina, filho de um segundo casamento de JooNepomuceno

    11 Etelvina, Iy keker do Alaketo, era sobrinha de Dionsia e me de Olga. Nasceu c.

    1903 e casou-se com a idade de 21 anos.12 Olga era sobrinha-neta de Dionsia e sua filha-de-santo, nasceu em 9 de setembro de

    1925 e assumiu a direo da casa em 1948.

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    Fontes bibliogrficas(dados completos na bibliografia que consta nas notas de p de pgina).

    RGIS, Olga Francisca. Nao-queto.

    COSTA LIMA, Vivaldo. A famlia-de-santo nos candombls jeje-nags da Bahia, p. 197.----Naes-de-candombl, pp. 24-26.BRAGA, Jlio, Notcia sobre o terreiro do Alaketo.MACHADO, Lus Toledo; XIDI, Osvaldo, Olga do Alaketo.

    Fontes primriasDoc. no identificado constando apenas o n de pgina (32), atestando que Joo Francisco

    Rgis, em 1858, proprietrio da roa do Alaketo, assinado pelo Aligt ou AligrErnesto dAlves Valle.

    Certido de batismo de Joo Nepomuceno Francisco Rgis em 1873, na freguesia deSantana, documento de 1938 atestado conforme original por Raimundo Nonato daSilva, tabelio do Primeiro Ofcio de Notas.

    Certido do Tabelionato do Primeiro Ofcio de Notas do inventrio de Joo FranciscoRgis de 1867; manuscrito de 1956 depositado no Arquivo Pblico do Estado da Bahia;com outro documento idntico, datado de 1964.

    Certido de bito de Dionsia, falecida em 5 de dezembro de 1953; Cartrio do RegistroCivil de Pessoas Naturais do Subdistrito de Brotas, sob n 7091, Livro do Registro debitos, n 34, fl. 13..

    Depoimentos oraisOlga do Alaketo, Jocelina Barbosa Bispo,Joj e Jos Francisco Barbosa, Zequinha,

    dias 7 de novembro de 2003 e 5 de fevereiro de 2004.