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01-03-2018 Sociedade Alargar o conceito até o descaracterizar? A ofensiva capitalista à Economia Social O sector da Economia Social cobre realidades cada vez mais díspares. Objecto de engenharias neoliberais que afectam os seus princípios e modos de funcionamento, revelou-se permeável a desvios que vão dos ataques ao emprego com direitos para os seus trabalhadores até à corrosão das funções sociais do Estado. Recuperar as missões e os traços que a distinguem permitirá desenvolver as suas potencialidades e contribuir para uma economia com lógicas plurais. Mas isso implica reverter alterações recentes, como a que ocorreu no Código Cooperativo. PIERRE MARIE * A Economia Social ganhou protago- nismo e está na moda em Portugal e na União Europeia. Este conceito ocupa hoje um lugar de destaque na comu- nicação social e florescem encontros, con- gressos e seminários sobre o tema. Em No- vembro de 2017, o Conselho Nacional da Economia Social organizou assim o 1. 9 Con- gresso Nacional da Economia Social. As reco- mendações do congresso sublinharam a ne- cessidade de «lançar programas de fomento da Economia Social que contribuam para a promoção da igualdade, da saúde e do em- prego e para a fixação das populações» 111. No ensino superior, multiplicam-se as forma- ções e as pós-graduações dedicadas à Eco- nomia Social. As estatísticas comprovam um crescimento deste sector no país. Segundo os dados da Conta Satélite da Economia Social relativos ao ano de 2010, o sector juntava 55 383 entida- des, representando 5,5% do total de emprego remunerado e 2,8% do valor acrescentado brutoP 1 . Em 2013, as 61 268 entidades da Economia Social representavam 6,0% do em- prego remunerado e mantinham o peso equi- valente no valor acrescentado bruto nado- nal 131 . Este crescimento de 10,6% do número de entidades entre 2010 e 2013 comprova o seu desenvolvimento enquanto a crise econó- mica e a recessão afectavam o país. No entanto, apesar da progressão recente deste sector económico e da sua visibilidade na comunicação social, permanece ainda uma ambiguidade sobre o essencial: o que engloba realmente a Economia Social? Ape- sar de o ordenamento jurídico português re- conhecer apenas a noção de Economia So- cial, a confusão encontra-se alimentada pelo uso de vários conceitos que não cobrem rea- lidades idênticas: Terceiro sector Empresas sociais, Sector não lucrativo, Economia so- lidária, Sector social... De igual modo, existe um aproveitamento político da noção de Economia Social que ameaça a sua essência. Com o uso crescente deste termo para defi- nir realidades diferentes, a Economia Social corre o risco de deixar de ser uma realidade distinta. Beneficiando desta confusão, existe uma tendência para a colonização deste sec- tor - que se define como não lucrativo - pelo modo de gestão capitalista. A legislação portuguesa Desde 2013, a Lei de Bases da Economia Social define as entidades pertencentes a este sector: cooperativas, associações mutu- alistas, misericórdias, fundações, instituições particulares de solidariedade social, associa- ções culturais, recreativas, desportivas e de desenvolvimento local e as entidades dos subsectores comunitário e autogestionário definidos pela Constituição 141. Em 2013, o sector era composto por uma grande maio- ria de associações com fins altruísticos (57 196), seguiam-se as cooperativas (2117), as entidades dos subsectores comunitário e au- togestionário (877), as fundações (578), as misericórdias (389) e as associações mutu- alistas (111) 151. O ordenamento jurídico português con- fere urna base legal e constitucional à Eco- nomia Social. A Constituição da República Portuguesa, fruto do processo revolucioná- rio, garante a coexistência de três sectores de propriedade dos meios de produção: o público, o privado e o cooperativo e socia1 181, do qual fazem parte as organizações de soli- dariedade social desde a revisão constitucio- nal de 1997.A Lei de Bases de 2013 permitiu esclarecer a composição deste sector e atri- buiu-lhe a denominação de Economia Social. Em 2009, a criação da Cooperativa António Sérgio para a Economia Social - em substi- tuição do INSCOOP criado em 1976 - deu uma nova representação às diversas famílias que constituem o sector. Segundo o ordenamento jurídico portu- guês, as entidades da Economia Social são norteadas por princípios orientadores es- senciais. Procuram o interesse geral ao con- ferir o primado às pessoas e a objectivos so- ciais, pondo em prática valores de solidarie- dade, igualdade e responsabilidade parti- lhada Caracterizam-se por uma gestão de- mocrática e pela participação livre dos seus membros no controlo democrático das de- cisões de gestão. As entidades da Economia Social representam um sector económico autónomo, em relação ao Estado e às em- presas capitalistas. Finalmente, estas espe- cificidades na gestão traduzem-se pela re- cusa do lucro. No caso de existir excedente, este deve ser afecto à prossecução dos fins da Economia Social e nunca representa um rendimento de um capital investido. A institucionalização recente da Econo- mia Social não deve esconder a longa trajec- tória histórica das organizações que a com- põem. As entidades da Economia Social têm as suas raízes no século XIX nos movimen- tos críticos ao capitalismo e às suas conse- quências. As cooperativas, as associações de classe e as mútuas são o fruto da mobiliza- ção dos trabalhadores para criar mecanis- mos de protecção e de sobrevivência. Diver- sas correntes revolucionárias e reformistas - como o marxismo, o anarquismo ou o cris- tianismo social - viram nestas organizações ferramentas para delinear alternativas eco- nómicas e sociais. Segundo Rui Namorado, a essência histórica das entidades da actual Economia Social encontra-se nessa «atitude de resistência à lógica dominante»r1. As cooperativas representam um elo forte entre as entidades da Economia Social. Li- gado às organizações de trabalhadores, desde a Rochdale Society of Equitable Pio- neers, fundada em 1844, o cooperativismo forneceu uma base importante para a insti- tucionalização da Economia Social. A Aliança Cooperativa Internacional, instituição fun- dada em 1895, definiu a identidade coope- rativa que tem por base a adesão voluntária e livre (o princípio da «porta aberta»), a ges- tão democrática (enraizada no princípio de um voto por cooperador), a autonomia e in- dependência, e o interesse pela comunidade. O termo Economia Social apareceu em França nos anos 1970 para melhor definir estas entidades e foi popularizado pelos tra- balhos de Henri Desroches. Tratava-se de dar um nome a uma realidade já existente, assente na organização dos trabalhadores numa base democrática e de solidariedade. Em Portugal, as cooperativas constituíram o núcleo fundador da Economia Social com a publicação do Código Cooperativo em 1980, que permitiu reconhecer as especificidades das cooperativas em relação às outras socie- dades comerciais. Após 1974, as mobilizações sociais durante o processo revolucionário tiveram como con- sequência uma explosão do número de coo- perativas e associações. Entre 1974 e 1981, o número de cooperativas no país passou de 950 a 3617 181. A institucionalização progres- siva da Economia Social em Portugal propi- ciou um enquadramento legal a organizações antigas. Apesar da sua diversidade, as entida- des da Economia Social baseiam-se em me- canismos democráticos e representam as- sim um potencial de alternativas para pensar uma economia ante em outros fundamen- tos que não o lucro capitalista. Um sector em risco O actual entusiasmo pela Economia So- cial em Portugal e na União Europeia acar- reta um risco para os fundamentos de base destas entidades. O potencial de alternativas que representam as cooperativas, as asso- ciações e as outras entidades da Economia Social encontra-se em perigo de ser neutra- lizado. A visibilidade recente do sector nos meios de comunicação social, mas também nos discursos políticos e empresariais, tem como consequência uma integração da Eco- nomia Social nos cânones de gestão da eco- nomia capitalista. Reflecte a sua condição de «subalternidade no seio do capitalismo», reto- mando a expressão de Rui Namorado 191. O recente crescimento do número das enti- dades da Economia Social e a sua maior visi- bilidade aconteceram num panorama econó- mico marcado pela crise das dívidas sobera-

Alargar o conceito até o descaracterizar? A ofensiva capitalista à ... · Economia Social organizou assim o 1.9 Con-gresso Nacional da Economia Social. As reco-mendações do congresso

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01-03-2018

Sociedade

Alargar o conceito até o descaracterizar?

A ofensiva capitalista à Economia Social O sector da Economia Social cobre realidades cada vez mais díspares. Objecto de engenharias neoliberais que afectam os seus princípios e modos de funcionamento, revelou-se permeável a desvios que vão dos ataques ao emprego com direitos para os seus trabalhadores até à corrosão das funções sociais do Estado. Recuperar as missões e os traços que a distinguem permitirá desenvolver as suas potencialidades e contribuir para uma economia com lógicas plurais. Mas isso implica reverter alterações recentes, como a que ocorreu no Código Cooperativo.

PIERRE MARIE *

AEconomia Social ganhou protago-nismo e está na moda em Portugal e na União Europeia. Este conceito

ocupa hoje um lugar de destaque na comu-nicação social e florescem encontros, con-gressos e seminários sobre o tema. Em No-vembro de 2017, o Conselho Nacional da Economia Social organizou assim o 1.9 Con-gresso Nacional da Economia Social. As reco-mendações do congresso sublinharam a ne-cessidade de «lançar programas de fomento da Economia Social que contribuam para a promoção da igualdade, da saúde e do em-prego e para a fixação das populações»111. No ensino superior, multiplicam-se as forma-ções e as pós-graduações dedicadas à Eco-nomia Social.

As estatísticas comprovam um crescimento deste sector no país. Segundo os dados da Conta Satélite da Economia Social relativos ao ano de 2010, o sector juntava 55 383 entida-des, representando 5,5% do total de emprego remunerado e 2,8% do valor acrescentado brutoP1. Em 2013, as 61 268 entidades da Economia Social representavam 6,0% do em-prego remunerado e mantinham o peso equi-valente no valor acrescentado bruto nado-nal131. Este crescimento de 10,6% do número de entidades entre 2010 e 2013 comprova o seu desenvolvimento enquanto a crise econó-mica e a recessão afectavam o país.

No entanto, apesar da progressão recente deste sector económico e da sua visibilidade na comunicação social, permanece ainda uma ambiguidade sobre o essencial: o que engloba realmente a Economia Social? Ape-sar de o ordenamento jurídico português re-conhecer apenas a noção de Economia So-cial, a confusão encontra-se alimentada pelo uso de vários conceitos que não cobrem rea-lidades idênticas: Terceiro sector Empresas sociais, Sector não lucrativo, Economia so-lidária, Sector social... De igual modo, existe um aproveitamento político da noção de Economia Social que ameaça a sua essência. Com o uso crescente deste termo para defi-nir realidades diferentes, a Economia Social

corre o risco de deixar de ser uma realidade distinta. Beneficiando desta confusão, existe uma tendência para a colonização deste sec-tor - que se define como não lucrativo - pelo modo de gestão capitalista.

A legislação portuguesa

Desde 2013, a Lei de Bases da Economia Social define as entidades pertencentes a este sector: cooperativas, associações mutu-alistas, misericórdias, fundações, instituições particulares de solidariedade social, associa-ções culturais, recreativas, desportivas e de desenvolvimento local e as entidades dos subsectores comunitário e autogestionário definidos pela Constituição141. Em 2013, o sector era composto por uma grande maio-ria de associações com fins altruísticos (57 196), seguiam-se as cooperativas (2117), as entidades dos subsectores comunitário e au-togestionário (877), as fundações (578), as misericórdias (389) e as associações mutu-alistas (111)151.

O ordenamento jurídico português con-fere urna base legal e constitucional à Eco-nomia Social. A Constituição da República Portuguesa, fruto do processo revolucioná-rio, garante a coexistência de três sectores de propriedade dos meios de produção: o público, o privado e o cooperativo e socia1181, do qual fazem parte as organizações de soli-dariedade social desde a revisão constitucio-nal de 1997.A Lei de Bases de 2013 permitiu esclarecer a composição deste sector e atri-buiu-lhe a denominação de Economia Social. Em 2009, a criação da Cooperativa António Sérgio para a Economia Social - em substi-tuição do INSCOOP criado em 1976 - deu uma nova representação às diversas famílias que constituem o sector.

Segundo o ordenamento jurídico portu-guês, as entidades da Economia Social são norteadas por princípios orientadores es-senciais. Procuram o interesse geral ao con-ferir o primado às pessoas e a objectivos so-ciais, pondo em prática valores de solidarie-

dade, igualdade e responsabilidade parti-lhada Caracterizam-se por uma gestão de-mocrática e pela participação livre dos seus membros no controlo democrático das de-cisões de gestão. As entidades da Economia Social representam um sector económico autónomo, em relação ao Estado e às em-presas capitalistas. Finalmente, estas espe-cificidades na gestão traduzem-se pela re-cusa do lucro. No caso de existir excedente, este deve ser afecto à prossecução dos fins da Economia Social e nunca representa um rendimento de um capital investido.

A institucionalização recente da Econo-mia Social não deve esconder a longa trajec-tória histórica das organizações que a com-põem. As entidades da Economia Social têm as suas raízes no século XIX nos movimen-tos críticos ao capitalismo e às suas conse-quências. As cooperativas, as associações de classe e as mútuas são o fruto da mobiliza-ção dos trabalhadores para criar mecanis-mos de protecção e de sobrevivência. Diver-sas correntes revolucionárias e reformistas - como o marxismo, o anarquismo ou o cris-tianismo social - viram nestas organizações ferramentas para delinear alternativas eco-nómicas e sociais. Segundo Rui Namorado, a essência histórica das entidades da actual Economia Social encontra-se nessa «atitude de resistência à lógica dominante»r1.

As cooperativas representam um elo forte entre as entidades da Economia Social. Li-gado às organizações de trabalhadores, desde a Rochdale Society of Equitable Pio-neers, fundada em 1844, o cooperativismo forneceu uma base importante para a insti-tucionalização da Economia Social. A Aliança Cooperativa Internacional, instituição fun-dada em 1895, definiu a identidade coope-rativa que tem por base a adesão voluntária e livre (o princípio da «porta aberta»), a ges-tão democrática (enraizada no princípio de um voto por cooperador), a autonomia e in-dependência, e o interesse pela comunidade.

O termo Economia Social apareceu em França nos anos 1970 para melhor definir

estas entidades e foi popularizado pelos tra-balhos de Henri Desroches. Tratava-se de dar um nome a uma realidade já existente, assente na organização dos trabalhadores numa base democrática e de solidariedade. Em Portugal, as cooperativas constituíram o núcleo fundador da Economia Social com a publicação do Código Cooperativo em 1980, que permitiu reconhecer as especificidades das cooperativas em relação às outras socie-dades comerciais.

Após 1974, as mobilizações sociais durante o processo revolucionário tiveram como con-sequência uma explosão do número de coo-perativas e associações. Entre 1974 e 1981, o número de cooperativas no país passou de 950 a 3617181. A institucionalização progres-siva da Economia Social em Portugal propi-ciou um enquadramento legal a organizações antigas. Apesar da sua diversidade, as entida-des da Economia Social baseiam-se em me-canismos democráticos e representam as-sim um potencial de alternativas para pensar uma economia ante em outros fundamen-tos que não o lucro capitalista.

Um sector em risco

O actual entusiasmo pela Economia So-cial em Portugal e na União Europeia acar-reta um risco para os fundamentos de base destas entidades. O potencial de alternativas que representam as cooperativas, as asso-ciações e as outras entidades da Economia Social encontra-se em perigo de ser neutra-lizado. A visibilidade recente do sector nos meios de comunicação social, mas também nos discursos políticos e empresariais, tem como consequência uma integração da Eco-nomia Social nos cânones de gestão da eco-nomia capitalista. Reflecte a sua condição de «subalternidade no seio do capitalismo», reto-mando a expressão de Rui Namorado191.

O recente crescimento do número das enti-dades da Economia Social e a sua maior visi-bilidade aconteceram num panorama econó-mico marcado pela crise das dívidas sobera-

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SÓNIA GODINHO . Synergía (tríptico) (2017) . www.soniagodinho.com

nas e pelas políticas de austeridade financeira. A pressão sobre estas organizações culminou na sua integração nas políticas para a regula-ção do mercado de trabalho. Segundo Marga-rida Antunes, existe um risco de descaracteri-zação do sector, no caso de este se tornar um «instrumento político e de política económica quer em políticas de emprego associadas à fle-xibilização e à precarização dos mercados de trabalho quer no exercício das funções sociais do EstadoPq. Estes programas tiveram como objectivo a inserção no mercado de trabalho de grupos específicos, acções de formação e a promoção de programas de criação do pró-prio emprego.

As organizações da Economia Social fo-ram incluídas nesses programas que visam a criação do próprio emprego e que têm como público-alvo preferencial os chama-dos NEET (Not in Education, Etnployment or Training), o acrónimo que se generalizou na União Europeia para definir os jovens que não se encontram em formação nem inte-grados no mercado de trabalho. O «Pro-grama de Apoio ao Empreendedorismo e à Criação do Próprio Emprego» do Instituto do Emprego e Formação Profissional (IEFP) permite a criação de organizações da Econo-mia Social e o recurso ao microcrédito. Outro exemplo é o programa COOPJOVEM da CA-SES destinados a jovens desempregados que querem criar o seu emprego.

Este uso das entidades da Economia So-cial em políticas públicas de cariz liberal acompanha-se de discursos e narrativas que tendem a apagar o seu fundamento colec-tivo e promover uma «narrativa do empre-endedorismo individual»1111, estabelecendo uma ponte com a economia capitalista. A no-

ção de «empreendedorismo social» traduz esta evolução. A IES - Social Business School, instituição baseada em Cascais, desenvol-veu vários projectos neste sentido, como o «Mapa de Inovação e Empreendedorismo So-cial» que estabeleceu um inventário de «ne-gócios inovadores», bem como o «Laborató-rio de Investimento Social» que visa criar tí-tulos de impacto social para financiar inicia-tivas com um «potencial retorno financeiro» através de capital privado.

No âmbito dos fundos estruturais euro-peus «Portugal 2020», o programa Portu-gal Inovação Social visa apoiar «Iniciativas de Inovação e Empreendedorismo Social». O programa retoma a noção do Empreende-dorismo Social que contribui para apagar a dimensão colectiva das organizações ao fun-damentar a ideia de «negócios sociais» e de «empresas sociais» que não têm uma defi-nição clara. A figura do empreendedor, cuja ideia de negócio vem responder a uma ne-cessidade social de forma inovadora, tende a apagar a dimensão colectiva que está no cen-tro da Economia Social.

A instrumentalização da Economia Social tem consequências concretas para a gestão das suas entidades. Estas mudanças são mais perceptíveis no caso das cooperativas, núcleo fundamental para a construção da Econo-mia Social em Portugal, e vêm afectar o seu modo de gestão. A criação do Código Coope-rativo em 1980 permitiu reconhecera especi-ficidade destas empresas que se caracterizam por uma gestão de natureza associativa. Po-rém, em raso de lacuna, o Código Cooperativo remete para o Código das Sociedades Comer-ciais como direito subsidiário e dentro delas para o regime das Sociedades Anónimas.

A recente modificação do Código Coope-rativo, aprovada em Julho de 2015 com os votos da então maioria Partido Social De-mocrata (PSD)/Partido Popular - CDS-PP e do Partido Socialista (PS), marcou uma mu-dança importante para as cooperativas. A Lei n2119/2015 introduz duas alterações de peso: a possibilidade de ter membros inves-tidores e a possibilidade do voto plural nas cooperativas. Estas duas alterações repre-sentam uma ruptura com a essência histó-rica das cooperativas. Os membros investi-dores poderão assim ser eleitos nos órgãos sociais das entidades, bem como gozar de voto plural. Lembramos que o princípio que confere a cada cooperador um voto é um dos pilares da gestão democrática das coo-perativas. Na Assembleia da República, es-tas modificações foram justificadas pela ne-cessidade de alcançar uma maior competi-tividade das cooperativas com a entrada de investidores exteriores. Esta nova versão

do Código Cooperativo conduz a uma apro-ximação aos modos de gestão capitalista e desvirtua a organização cooperativa, base para a Economia Social em Portugal.

Existe assim uma instrumentalização po-lítica do termo de Economia Social pela eco-nomia dominante, com vista a integrar estas organizações nos moldes da economia capi-talista e uniformizar os seus modos de ges-tão. Como referiu Jean-Louis Laville, «o neo-capitalismo propõe uma reintegração da as-sociação. Limita o seu alcance político para fazer dela um "capitalismo sem fim lucra-tivo"»1121. O reconhecimento da Economia Social no ordenamento jurídico português oferece uma base legal para defender estas organizações. Torna-se urgente recuperar a dimensão política e subversiva inerente à Economia Social e cumprir assim a sua «vo-cação de altematividade»1131. a

* Doutorado em História Contemporânea pela

Universidade de Coimbra e Universidade de Caen.

[1] Congresso Nacional da Economia Social, Recomendações, 2017. [2] Instituto Nacional de Estatística, Cooperativa António Sérgio para a Economia Social, Conta Satélite da Economia Social - 2010, Edição 2013. [3] Destaque, «Conta Satélite da Economia Social 2013», Instituto Nacional de Estatística, 20 de Dezembro de 2016. [4] Diário da República, Lei n.° 30/2013, n.° 88/2013, Série 1 de 8 de Maio de 2013. [5] Destaque, op. cít.. [6] Assembleia da República, Constituição da República Portuguesa, Artigo 82°. 171 Rui Namorado, «Compreender a economia social», em Economia Social em Acção, Almedina, Coimbra, 2014, p. 12. [8] Fernando Ferreira da Costa, Educação Cooperativa (Actuação do lnscoop num Contexto Evolutivo e Participado), Instituto António Sérgio do Sector Cooperativo, Lisboa, 1982, p. 13. [9] Rui Namorado, «Para uma economia solidária - a partir do caso português», Revista Crítica de Ciências Sociais, 84, 2009, p. 69. [10] Margarida Antunes, «A Economia Social e o mercado de trabalho: Reflexões no quadro do modelo económico europeu», Economia Social em Textos - 2, Centro de Estudos Cooperativos e da Economia Social, Coimbra, 2017, p. 30. [11] Adriano Campos e José Soeiro, A Falácia do Empreendedorismo, Bertrand Editora, Lisboa, 2016, p. 143. [12] Jean-Louis Laville, Politique de l'association, Editions du Seuil, Paris 2010. [13] Rui Namorado, op. cit., 2014, p. 12.

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ciedade de mercado: «Não tente avançar passo a passo. Defina claramente os seus objectivos e aproxime-se deles por meio de sal-

tos em frente qualitativos, a fim de que os interesses categonáis

não tenham tempo de se mobilizar e de o enlamear. A velocidade

é essencial, nunca poderá avançar demasiado depressa. Uma vez começada a aplicação do programa de reformas, não volte a parar

enquanto ela não estiver terminada: os tiros dos seus adversários perdem precisão quando têm de visar um alvo que se mexe sem

parar». Emmanuel Macron? Não, Roger Douglas, em Novembro de 1989, na Nova Zelândia. Apresentava nessa altura as receitas da contra-revolução liberal que o seu país acabava de experimentar111.

Quase trinta anos depois, o presidente francês retoma todas as velhas manhas desta «estratégia do choque». Caminhos-de-ferro, função pública, hospital, escola, direito do trabalho, fiscalidade do capital, imigração, audiovisual público («a vergonha da República»):

para onde olhar e como resistir quando, usando o pretexto da ca-tástrofe que aí vem, ou da dívida que explode, a engrenagem das «reformas» é posta em andamento a grande velocidade?

Os caminhos-de-ferro? Um relatório confiado a um compa-dre moderniza o inventário das preces liberais até então in-tendidas (fim do estatuto dos ferroviários, transformação da empresa SNCF numa sociedade anónima, encerramento das linhas deficitárias). Cinco dias depois da sua publicação, está já em marcha uma «negociação» para disfarçar o diktat que se pretende impor aos sindicatos. Com efeito, convém beneficiar,

sem tardar, do clima de desmobilização política, de divisão sindi-cal e de desespero dos utentes face aos atrasos, aos acidentes, à vetustez das linhas e ao elevado preço dos bilhetes. É aqui que está a «urgência de agir» de que fala o ministro dos Transportes. Quando a oportunidade surge, «nunca poderá avançar dema-

siado depressa», já Roger Douglas insistia. O governo francês conta também com as fake neves dos

grandes meios de comunicação social para espalhar «elemen-

tos de linguagem» favoráveis aos seus projectos. A ideia — mal lançada, logo repetida — de que «a SNCF custa mil euros a cada

francês, mesmo aos que não usam o comboio», faz aliás lem-brar, a ponto de as confundirmos, a famosa frase de que «cada francês pagará 735 euros para apagar a divida grega», que, em

2015, contribuiu para a asfixia financeira de Atenas. Por vezes a verdade irrompe, mas demasiado tarde. Várias

«reformas» das pensões foram justificadas pelo aumento geral da esperança de vida. No entanto, um estudo oficial acaba de concluir que, «para as gerações de 1951 e seguintes», isto é, para 80% da população francesa, «o tempo médio esperado passado na reforma deverá diminuir um pouco, por compara-

ção com a geração de 1950»121. Significa isto que acaba de se inverter um progresso histórico. Os nossos tímpanos não foram martirizados com este género de informação. E, nesta frente, Macron não parece pensar que haja «urgência de agir»...

[11 Cf. Le Grand Bond en arrière. Comment !'ordre s'est imposé au monde, Agone, Marselha, 2012120041. [21 «L'âge moyen de départ à la retraite a augmenté de 1 an et 4 mois depuis 2010», Études et Résuttats, n.° 1052, Direction de la recherche, des eludes, de l'évaluation et des statistiques (Drees), Ministere de la santé, Paris, Fevereiro de 2018.

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