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Ano letivo 2014/2015 Características da poesia de Alberto Caeiro A. Plano semântico: A defesa da objetividade Nada existe para além daquilo que, de facto, é percetível para o ser humano, para além daquilo que percebemos através dos órgãos dos sentidos. Caeiro é o poeta do real e do objetivo. O predomínio da sensação sobre o pensamento O Homem deve renunciar ao pensamento, pois este implica que se deturpe o significado das coisas que existem, sem que seja necessário pensarmos nelas. Para Caeiro, só os sentidos contam, principalmente o olhar. Ele só se interessa por aquilo que capta pelas sensações. Nesta medida, é um sensacionista. Vive aderindo espontaneamente às coisas, tais como são, e procura gozá-las com despreocupada e alegre sensualidade. A comunhão total entre o Homem e a Natureza Caeiro identifica-se com a Natureza, vive segundo o seu ritmo, deseja nela se diluir, integrando-se nas leis do Universo. Considera que o ser humano deve submeter-se às leis naturais e não deve racionalizar processos que existem naturalmente (por exemplo, as ideias de vida ou de morte, que existem enquanto verdades absolutas). O paganismo Da ideia de comunhão absoluta com a Natureza resulta uma visão pagã da existência, que consiste na descrença total na transcendência; a única verdade é a sensação. B. Plano formal: Linguagem simples, que se aproxima do falar quotidiano, coloquial e natural. Léxico familiar, pobre e reduzido. Adjetivação quase ausente. Predomínio de substantivos concretos. Quase ausência de metáforas, metonímias ou sinestesias. Uso de comparações simples, que permitem a transformação do abstrato no concreto. Polissíndetos. Predominância das formas verbais no Presente do Indicativo e no Gerúndio (sugerindo simultaneidade e arrastamento). Predomínio da coordenação. Irregularidade estrófica. Verso livre. Ausência de rima. Aproximação à prosa. Ausência (aparente) de preocupações estilísticas. ************************ Alberto Caeiro representa a antítese de Fernando Pessoa ortónimo, o “remédio” para a sua ansiedade e para a sua angústia perante o mistério da existência, inacessível ao Homem. Para este heterónimo, a única via para atingir a felicidade é não pensar, é recusar a essência, para acreditar que apenas existe a aparência. Alberto Caeiro propõe uma “desculturalização”, na medida em que nega a visão da realidade, sujeita à análise do pensamento, defendendo que existir é, afinal, estar de acordo com as leis naturais.

Alberto Caeiro

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Page 1: Alberto Caeiro

Ano letivo 2014/2015

Características da poesia de Alberto Caeiro

A. Plano semântico:

� A defesa da objetividade Nada existe para além daquilo que, de facto, é percetível para o ser humano, para além daquilo que percebemos através dos órgãos dos sentidos. Caeiro é o poeta do real e do objetivo.

� O predomínio da sensação sobre o pensamento O Homem deve renunciar ao pensamento, pois este implica que se deturpe o significado das coisas que existem, sem que seja necessário pensarmos nelas. Para Caeiro, só os sentidos contam, principalmente o olhar. Ele só se interessa por aquilo que capta pelas sensações. Nesta medida, é um sensacionista. Vive aderindo espontaneamente às coisas, tais como são, e procura gozá-las com despreocupada e alegre sensualidade.

� A comunhão total entre o Homem e a Natureza Caeiro identifica-se com a Natureza, vive segundo o seu ritmo, deseja nela se diluir, integrando-se nas leis do Universo. Considera que o ser humano deve submeter-se às leis naturais e não deve racionalizar processos que existem naturalmente (por exemplo, as ideias de vida ou de morte, que existem enquanto verdades absolutas).

� O paganismo Da ideia de comunhão absoluta com a Natureza resulta uma visão pagã da existência, que consiste na descrença total na transcendência; a única verdade é a sensação.

B. Plano formal:

� Linguagem simples, que se aproxima do falar quotidiano, coloquial e natural. � Léxico familiar, pobre e reduzido. � Adjetivação quase ausente. Predomínio de substantivos concretos. � Quase ausência de metáforas, metonímias ou sinestesias. Uso de comparações

simples, que permitem a transformação do abstrato no concreto. � Polissíndetos. � Predominância das formas verbais no Presente do Indicativo e no Gerúndio

(sugerindo simultaneidade e arrastamento). � Predomínio da coordenação. � Irregularidade estrófica. � Verso livre. � Ausência de rima. � Aproximação à prosa. � Ausência (aparente) de preocupações estilísticas.

************************ Alberto Caeiro representa a antítese de Fernando Pessoa ortónimo, o “remédio” para a sua

ansiedade e para a sua angústia perante o mistério da existência, inacessível ao Homem. Para este heterónimo, a única via para atingir a felicidade é não pensar, é recusar a essência, para acreditar que apenas existe a aparência. Alberto Caeiro propõe uma “desculturalização”, na medida em que nega a visão da realidade, sujeita à análise do pensamento, defendendo que existir é, afinal, estar de acordo com as leis naturais.

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Ano letivo 2014/2015

Caeiro olhava “com uma formidável infância” (diz Fernando Pessoa). E por esta busca da infância podemos ver, desde já, neste heterónimo de Pessoa, uma intenção de renascer, de lutar contra o elaborado, o artificial, o falso, e um apelo ao reencontro da ingenuidade das crianças.

Uma afirmação atribuída por Álvaro de Campos a Alberto Caeiro foi esta: “Toda a coisa que vemos, devemos vê-la sempre pela primeira vez, porque realmente é a primeira vez que a vemos”. E acrescenta ainda Campos: “O meu Mestre Caeiro não era pagão: era o paganismo (...). Em Caeiro não havia explicação para o paganismo; havia consubstanciação.”

Ao definir o seu mestre Caeiro como o paganismo, Fernando Pessoa / Álvaro de Campos queria(m) significar um regresso às origens, em que a oposição sentir / pensar não existisse, e tudo quanto fosse fruto da razão e do pensamento fosse recusado.

Ora, como por aqui se vê (numa primeira leitura, direta e mais elementar), o mestre Caeiro aparece-nos como um ingénuo, um amante da simplicidade e da inocência, da natureza sem metafísica, da vida simples do campo. Não tendo mais que a instrução primária e escrevendo mal o português, entregava-se às sensações desprovidas de pensamento (a sensação é tudo – é saúde –, o pensamento é doença). É nisso que Caeiro se aproxima do guardador de rebanhos, integrando-se como ele na natureza, vagabundeando passivamente pelos espaços, fruindo a felicidade de cada coisa.

Apaixonado pelo presente (aceitar o passado ou o futuro seria atraiçoar a natureza), pelo concreto, pelo imediato, pela anulação da subjetividade, sempre preocupado com o olhar (sensações visuais), ele diz aceitar as coisas tal como se lhe apresentam, admirando a sua originalidade, diversidade e mobilidade – que é o que constitui, segundo ele, o seu signo de existir. E neste ponto reside toda a sua sabedoria.

Foi a dor de pensar, a mágoa do viver consciente, que levou Pessoa a admitir como mestre de si próprio e dos seus heterónimos a figura do instintivo Caeiro. Para este, pensar não é compreender, pensar anula a felicidade, é o instrumento da divisão do ser, da sua desintegração; pensar é sofrer, é virar as costas ao mundo e às sensações. A visão total perante o mundo, a desejada unificação só se obterá com a anulação do pensamento.

Caeiro propõe um regresso à inconsciência, ao pasmo essencial – gesto que, apesar da sua complexidade, se tende imediatamente a relacionar com essa espécie de paraíso-perdido que é o tempo da infância, encarado como tempo de uma pré-consciência feliz.

Mas esse regresso constitui um impossível para Pessoa, pelo que o heterónimo manifesta apenas uma intenção, um desejo de que assim seja – mas nunca poderá ser. A superação do problema que preocupa Pessoa não encontrará também através de Caeiro a solução ansiada.

A simplicidade de Caeiro é apenas aparente. Ele não é efetivamente o que afirma ser, mas antes alguém que aspira a ser a realidade que enuncia – o que constitui uma contradição mal disfarçada. Tudo com quanto depara é marcado pela argúcia (subtileza, agudeza de espírito) que o caracteriza, pela sua capacidade de observação, pela sua inteligência e racionalidade, resultando daí a formulação de constantes juízos de valor e uma sistematização de pensamento que culmina com afirmações do tipo “o único sentido íntimo das coisas / É elas não terem sentido íntimo nenhum”.

E é assim que toda a imagem de “grau zero” que esse heterónimo de Pessoa pretende transmitir soa como um disfarce. Caeiro, em suma, é um filósofo da não filosofia (nas palavras de Jacinto do Prado Coelho), é alguém que diz nada ter a ver com a metafísica, mas que se mostra, em cada momento, profundamente comprometido como ela. Ao negar toda a metafísica, já está a raciocinar, já está a construir uma nova metafísica: uma anti metafísica.

A sua linguagem é sobretudo abstrata, adaptada ao raciocínio, e nunca nela surge a descrição impressionista da realidade. O seu realismo ingénuo, paradoxalmente, desemboca sempre no raciocínio. Como poeta bucólico, Caeiro deveria basear a sua poesia na descrição visualista da natureza. Não só não o faz, mas a sua linguagem é adaptada à exposição de uma teoria anti metafísica. Querendo repudiar qualquer filosofia, Caeiro transformou-se num poeta filósofo, ou anti filósofo.