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Alcácer, Terra de Deusas _______________________________________________________________________ _____________________________________________________________________________________________________ Gabinete de Arqueologia do Município de Alcácer do Sal, 2008 1

Alcácer, Terra de Deusas - cm-alcacerdosal.pt · “Vénus” é a deusa do amor e da beleza na mitologia romana equivalente à deusa “Afrodite” na mitologia grega. O símbolo

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Ficha Técnica: Título: ALCÁCER DO SAL – TERRA DE DEUSAS Coordenação – Vereação do Pelouro da Cultura. Concepção: - Gabinete de Arqueologia para o Dia Internacional da Mulher Autores: Esmeralda Gomes, Marisol Aires Ferreira e António Rafael Carvalho Grafismo e paginação – GIRP Cartografia elaborada pelo autor, sobre bases digitais do Google Earth 2008 e do Earth Explorar 5.0, da Motherplanet.com Edição – CMAS (distribuição gratuita)

“Breve Estudo Dedicado a todas as Mulheres do Município de Alcácer do Sal.”

As mulheres como “Deusas” sempre existiram em Alcácer

ao longo dos séculos, mas unicamente em rituais íntimos e partilhados de sedução.

Em contexto islâmico, a mulher torna-se sagrada. As “Deusas” com culto oficial, só em contexto romano, a

começar na “Alma” da Urbe Salacia e terminando nas esposas dos imperadores divinizados.

Alcácer do Sal, 8 de Março de 2008

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APRESENTAÇÃO

Escrever sobre a mulher não é tarefa fácil, ainda mais quando

é nosso objectivo resgatar de um passado de 2 000 anos o quotidiano feminino em Alcácer e estando cientes que os testemunhos mais antigos foram “filtrados” através da perspectiva masculina em épocas em que a mulher tinha um papel deveras limitador.

A investigação sobre o quotidiano das mulheres ao longo dos séculos tem sido um campo esquecido de investigação, contudo actualmente assiste-se ao relançar da problemática, quase sempre liderada por investigadoras.

Será que existe um discurso no feminino? Por questão de metodologia, vamos deixar de parte esta

problemática e aceitar o desafio que é escrever sobre as mulheres alcacerenses, ao longo de fases marcantes da nossa história local.

O desafio foi aceite pelo nosso gabinete de arqueologia e o resultado encontra-se disponível nas páginas seguintes para usufruto dos alcacerenses, em especial das mulheres.

Mulheres ou Homens, somos acima de tudo cidadãos de um concelho em que vale a pena viver.

Vamos, pois, dar voz aos autores latinos, aos muçulmanos e à documentação arqueológica, como passaporte para um passado, onde o quotidiano, apesar de povoado por deuses, não seria muito diferente do nosso!

Vereadora do Pelouro da Cultura e Desporto

Isabel Cristina Soares Vicente

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Vénus de Willendorf, Museu de História Natural de Viena

A DEUSA/MULHER

Uma das deusas mais importantes e

veneradas foi sem dúvida a “Deusa-Mãe”. A “Deusa-Mãe” representava a vegetação,

a fecundidade da terra, a fertilidade humana e dos animais. Personificava a criação, a regeneração da vida, a materialização da mulher.

A mulher sempre teve um papel importante na sociedade, devido à dádiva de poder dar vida a outro ser, de o alimentar e de o cuidar e proteger, por isso a sobrevivência do

grupo dependia dela. As formas femininas foram representadas de várias maneiras, em

pequenas figuras de osso, de barro cozido, de pedra, pintadas e gravadas nas paredes. Muitas dessas representações não são propriamente a forma humana mas sim o triângulo púbico feminino, que referencia a porta para a vida, a fertilidade.

As figuras femininas exageradas mostram que a gordura podia ser interpretada como um sinal de saúde e portanto de beleza, pois uma mulher bem alimentada teria mais possibilidades de gerar filhos sãos e de os alimentar. Aliás, a primeira menstruação só surgia quando as adolescentes atingissem a gordura necessária comprovando que elas seriam seres férteis com segurança.

Todos estes símbolos sexuais representavam a força da vida graças à qual se assegurava a existência da tribo. Engendrar e dar à luz devia conferir à mulher a materialização deste acto transcendental.

Daí a semelhança com a “Magna Mater” que representa o mistério e o milagre da vida perante a morte, cuidando também de seus filhos, depois de mortos, acolhendo-os no seu seio, na terra, porque a Mãe Terra é quem sustenta a vida e a regenera num ciclo sem fim.

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Em tempos recuados, na “era” do matriarcado, herdava-se o trono através da mãe ou da irmã, por isso é que muitos reis se casavam com filhas ou irmãs.

Os reis sacerdotes tinham o dever atrair a chuva, por isso foram instituídos matrimónios sagrados com as deusas da fertilidade.

“Astarté”, a deusa fenícia, estava relacionada com o culto à mãe terra, ao amor, à fertilidade e era a progenitora de todos os seres vivos.

“Tanit”, a deusa cartaginesa, estava associada à lua, à fertilidade e era representada por um símbolo em forma de triângulo.

“Vénus” é a deusa do amor e da beleza na mitologia romana equivalente à deusa “Afrodite” na mitologia grega. O símbolo ♀ (um círculo com uma pequena cruz equilateral) é a representação simbólica do espelho de Vénus ou o símbolo abstracto desta deusa. Este símbolo representa a feminilidade, sendo usado na biologia para definir género feminino.

A condição de mulher é a etapa da vida após a sua infância. A palavra mulher pode ser usada para designar o ser feminino ou especificamente para marcar a diferença entre menina e mulher. Em muitas culturas têm ritos de passagem para simbolizar a chegada da maturidade ou até mesmo o costume de realizar uma celebração especial para um determinado aniversário, geralmente entre 12 e 21 anos, como o baile de debutante (altura em que ela se estreia na vida social), geralmente realizado no aniversário dos 15 anos.

Em determinadas culturas existe uma forte ligação entre a honra da família com a virgindade feminina, assim, referir-se a uma mulher solteira como mulher, pode implicar a suposição de que ela já tenha tido uma experiência sexual, o que seria um insulto para a sua família.

A Organização das Nações Unidas (ONU) em 1975 designou o dia 8 de Março como o Dia Internacional da Mulher.

Este dia é comemorado devido aos “primeiros” protestos protagonizados pelas mulheres, no dia 8 de Março de 1857, que exigiam melhores salários e condições de trabalho e no dia 8 de Março de 1908 que também se manifestaram exigindo novamente melhores salários, redução de horário e ao direito de voto. Para

Fonte: MNI, Http://atuleirus.weblog.com.pt

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além destes dias específicos, as mulheres manifestaram-se em outros anos pelos seus direitos.

Inicialmente, este dia era um símbolo político celebrando a luta da mulher pela sua liberdade, mas perderia esta vertente para se tornar num dia, em que se manifesta a simpatia ou a amor pela mulher.

As mulheres com as suas lutas, manifestações, conseguiram aquilo que só era dado ao homem, a liberdade de ser simplesmente pessoa.

A mulher tem o direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal, à igualdade e a ser livre de todas as formas de discriminação, à liberdade de pensamento, à informação e à educação, à privacidade, à saúde e à protecção desta, à escolha conjugal e planejar a sua família, decidir ter ou não filhos e quando tê-los, aos benefícios do desenvolvimento científico, à liberdade de reunião e participação política e direito a não ser submetida a torturas e a maus tratos.

A mulher é aquele ser que pensa com o coração, que actua pela emoção e vence por amor. Pode viver um milhão de emoções num só dia e transmiti-las com um só olhar. Vive talvez em busca da perfeição e buscando sempre desculpas para aqueles que ama.

Que concebe no seu ventre outro ser, que dá à luz e que fica cega diante a beleza de seus filhos. Que ampara e ensina para a vida, sendo sempre mãe galinha.

Que se arranja e se perfuma ainda que o seu amor não repare nesses detalhes.

Esconde as suas dores, encontrando sempre forças para dar consolo a quem se acercar do seu ombro.

Ser mulher é chorar de alegria e muitas vezes sorrir com tristeza, é cancelar os seus sonhos em prol de terceiros, é acreditar quando ninguém mais acredita.

“Ser Mulher”: - É sermos nós próprias, mães, filhas, amigas, amantes, companheiras,

atenciosas, carinhosas, trabalhadoras, donas de casa, etc.”

“Feliz do homem que um dia conseguir entender a alma da mulher.”

Esmeralda Helena Gomes, Mulher

Bibliografia retirada da Internet http://pt.wikipedia.org Direitos da mulher, http://pt.wikipedia.org Dia Internacional da Mulher, http://pt.wikipedia.org Ser Mujer, http://www.enbuenasmanos.com Simplesmente Mulher, http://iluminado.org _____________________________________________________

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Detalhes da vida privada no Convento de Aracaeli

Marisol Ferreira1

Esmeralda Helena Gomes2

A Ordem religiosa das freiras foi fundada em 1212 por Santa Clara de Assis, da qual tomou o nome. As clarissas são freiras de 2º Ordem Franciscana, também chamadas Claristas, Senhoras Pobres e Damianistas, do nome do primeiro mosteiro, o de S. Damião, nos arredores de Assis.

À Ordem de Santa Clara é reconhecido como carisma particular a pobreza e encontra-se a sua melhor interpretação na ideia da expropriação.

Esta expropriação, que imita o despojo de Cristo, além de abdicação dos bens terrenos estende-se a quase toda a vida religiosa. Pelo voto da pobreza renunciam ao direito de dispor licitamente de qualquer bem temporal, que seja estimado como preço, sem a licença do legítimo Senhor.

Pelo voto da obediência as irmãs obrigam-se a obedecer a seus legítimos superiores que mandam segundo o direito comum, a Regra e Constituições. A lei da clausura trás consigo uma grave obrigação tanto para as monjas como para os estranhos. A clausura compreende a casa e aquela área reservada particularmente às irmãs, separadas por um muro ou cercado.

Cada mosteiro, além de irmãs dedicadas unicamente à vida contemplativa dentro da clausura, pode, segundo a regra, ter “Servatis de jure servandis”, também irmãs serventes fora do mosteiro, chamadas externas ou irmãs dedicadas ao serviço externo.

Para promover o bem de toda a comunidade, o Mosteiro tem o Capítulo Conventual, que é constituído por todas as irmãs solenemente professas. O Capítulo é convocado pela Abadessa quantas vezes os assuntos o exigirem. A Abadessa preside ao Capítulo Conventual e, no seu impedimento, a Vigaria.

1 Arqueóloga da Câmara Municipal de Alcácer do Sal. 2 Arqueóloga do Direcção Regional de Cultura de Lisboa e Vale do Tejo.

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Os trabalhos efectuados pelas Clarissas tinham que ter em conta a vida contemplativa, pelo que não aceitavam outro tipo de trabalhos que absorvessem as forças ou exigissem excessivos cuidados e atenção do espírito.

O hábito destas freiras é constituído por uma túnica de tecido tosco, cinzento-escuro ou preto, atado à cinta com um cordão branco na cabeça e sandálias. O Convento de Nossa Senhora de Aracaeli

Fundado no reinado de D. Sebastião, durante a segunda metade do século XVI (1573), por iniciativa de Rui Salema, fidalgo da casa de D. Luís, duque de Beja e filho do rei D. Manuel I, o convento de Aracaeli ocupa instalações do palácio da Ordem de Santiago da Espada aí pré existente. Os finais do século XVI, foram uma época próspera para este convento, sendo de assinalar a construção da igreja da qual ainda restam vestígios da sua monumentalidade.

Vista geral do Convento de Aracaeli

Do edifício religioso além da igreja, é possível ainda assinalar a sala do capítulo, o refeitório e a cozinha bem como o deambulatório situado por cima das arcadas do claustro.

Claustros do Convento de Aracaeli antes de serem recuperados

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As freiras que aqui passaram a viver provinham do Convento de Santa Clara de Évora. O espaço conventual de Alcácer viria a ser utilizado pelas irmãs durante mais de trezentos anos. De acordo com as actividades tradicionais desta Ordem, também aqui as Clarissas praticavam acções ligadas à educação de meninas e jovens raparigas, ensinando leitura, escrita, canto, artes domésticas

Elementos de costura

Verifica-se, através dos achados arqueológicos, que a premissa de pobreza, característica da ordem, não era integralmente cumprida o que acontece noutros espaços de clausura da ordem, entretanto municiados por esmolas generosas, uma vez que muitos deles, admitiam as filhas de famílias mais destacadas ao nível social.

Sola de sapato com marca de loja parisiense

Muitos dos artefactos encontrados nas escavações aqui efectuadas denotam escolhas de algum requinte e um amaciamento dos hábitos conventuais, facto especialmente testemunhável durante os séculos XVI a XIX, encontrando-se entre eles vestígios de faiança e até calçado de origem parisiense.

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Durante as escavações do

Convento de Aracaeli foram encontrados 59 esqueletos. Estes enterramentos distribuíam-se pelo Coro Baixo, Claustro, Capítulo e Igreja. De uma maneira geral, a maioria dos esqueletos exumados encontravam-se em bom estado de preservação. No entanto, verifica-se que à medida que se avançava em profundidade uma diminuição no

grau de conservação, assim como no teor de cal usado que aumenta nos enterramentos mais profundos. Vestígio de madeira muito desfeita e pregos sugere o uso de caixões. Foram também detectados fragmentos de tecidos e outros materiais que envolveriam o corpo.

Enterramentos de freiras clarissas. Vestígios de tiara no crânio.

Elementos pertencentes a freiras

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Foi possível confirmar o sexo feminino e realizar a estimativa da idade, por altura da morte, em 45 destes esqueletos. As idades variam entre os 13 e os 70 anos, sendo mais frequentes os indivíduos adultos de meia-idade. Estas freiras apresentavam uma altura que em média rondava os 155 cm, eram pouco robustas, não se identificando sinais de grandes esforços físicos No entanto, reconheceram-se alguns vestígios traumáticos nos joelhos, eventualmente relacionados com a posição de oração e do ajoelhamento. Teriam uma dieta pouco abrasiva e rica em hidratos de carbono.

Sabe-se, também, que um dos meios de rendimento das freiras Clarissas deste convento era a tradicional confecção de doces. Subsiste, aliás, na memória popular do povo alcacerense a fama da doçaria produzida pelas freiras, de que são exemplo os doces conventuais ainda hoje localmente confeccionados.

Objectos associados aos enterramentos

Conjunto de faianças

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Perante a necessidade de restabelecer os cofres do Estado, D. Pedro IV decretou a extinção das ordens religiosas (1834) e os seus bens foram nacionalizados e incorporados na Fazenda Pública e alienados.

No entanto, não foi imposto às irmãs o abandono total dos espaços monásticos, sendo-lhes permitida a permanência nos conventos até à morte. Neste convento a última freira terá morrido no princípio do século XX.

O facto é que, em função do decreto, muitos destes edifícios religiosos foram caindo no abandono. A mão-de-obra e os financiamentos para a sua manutenção cessaram ou foram conduzidos para outros sectores, uma vez que conventos e mosteiros sobreviviam de dotes, doações e esmolas. Assim, deu-se um processo de gradual deterioração que, em muitos casos conduziu à ruína. O Convento de Nossa Senhora de Aracæli foi-se degradando

progressivamente ao longo do século XX, chegando a um estado de ruína muito acentuado. O edifício conventual e a própria igreja perdeu todo o seu recheio.

A invocação do templo a Nossa Senhora de Aracaeli, ou seja, a Nossa Senhora do Altar do Céu, consiste numa referência directa a uma das litanias da Virgem, o que está de acordo com a piedade católica do século XVI. Mas parece também - e decerto é -, um reflexo, aliás conhecido entre as elites cultas cristãs, da implantação do novo templo e do convento ocorrer num local que fora, reconhecidamente, outrora, um lugar pagão ou, pelo menos, “infiel”, tendo em conta os antecedentes islâmicos. A invocação ao “altar do céu”, na esteira da invocação de um dos mais celebrados templos do mundo católico, a igreja de Ara

Livro de receitas do Convento de Aracaeli

Fragmento de faiança com o nome de Aracaeli

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Coeli, em Roma (ao lado e, parcialmente, instalada sobre o Capitólio romano da cidade) corresponde, assim e também, a uma cristianização do lugar.

Igreja do convento de Aracaeli antes de ser recuperada

Bibliografia:

Azevedo, Carlos Moreira,(2000), Dicionário de História Religiosa de Portugal. Circulo de Leitores, Lisboa. Carvalho, Cármen; Cunha, Eugénia; Silva, Ana Maria, (2000), Contribuição para o conhecimento da comunidade religiosa das Clarissas do Convento de Aracoelli (sécs. XVII-XIX). “Actas do 3º Congresso de Arqueologia Peninsular. Contributo das ciências e das tecnologias para a arqueologia da Península Ibérica”, Volume 9, p. 441-446, Porto. Marrafa, Lucília do Carmo dos Santos Ruas, (1996), Vida e Morte no Convento de Aracoelli (Alcácer do Sal) – sécs. XVII a XIX, Dissertação de Mestrado, Braga 1996 (dactilografado). Paixão, A.C.; Faria, J.C.; Carvalho, A.R. (1994), O Castelo de Alcácer do Sal: Um projecto de arqueologia urbana. Bracara Augusta, 97(110): 215-256.

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A MULHER ALCACERENSE: PERÍODO ROMANO ALTO IMPERIAL

António Rafael Carvalho3

1. Introdução4

Na realidade, não é fácil estudar a mulher ao longo dos séculos. Não só porque a sua voz foi silenciada, como o seu espaço de actuação,

quase sempre pertencia à esfera da família, na intimidade do lar, ou seja; - na esfera e domínio do privado.

Por outro lado, as fontes demonstram claramente, que elas foram sistematicamente incompreendidas, sendo obrigadas a lutarem pelos seus direitos.

Nós sabemos que elas sonhavam, falavam, cantavam, criavam os filhos, discutiam, etc; - mas toda essa riqueza, movimento e criação deixam escassos testemunhos arqueológicos (para não dizer, quase nada!).

Em arqueologia, a prova ou ausência dela, permite “ler” o passado! Poderão alguns de nós dizer, que restam as fontes escritas! – Sim, não deixa de ser correcto, contudo as fontes, independentemente

da sua natureza, iluminam escassamente o passado. Temos que tactear e percorrer com cuidado o discurso elaborado.

Em sociedades onde o registo escrito e o seu usufruto é privilégio de uma minoria, a palavra fixada num determinado tipo de suporte, encerra à partida, a necessidade de reforçarem mensagens orientadoras de comportamentos, justificar desigualdades, relatar para memória futura o que se julga importante nesse momento5!

Se ficarmos reféns desses relatos, sem uma análise critica adequada, a ideia de mulher que iremos construir, será sempre incompleta, não traduzindo o que efectivamente terá sido o seu quotidiano (no plural).

A mulher romana, a muçulmana, a medieval cristã ou a actual, tem em comum o facto de serem mulheres (ou sejam; - não são homens 6); - e que desde cedo, se aperceberam, que nem tudo o que se passa à sua volta, era

3 Arqueólogo da Câmara Municipal de Alcácer do Sal. 4 A bibliografia vem referenciada nas notas de rodapé. 5 Por outras palavras, é a reprodução do poder e a sua manutenção para “memória futura”. 6 Esta afirmação não implica juízos de valor. Implica antes posturas diferentes de sentir o quotidiano e dar as repostas mais adequado para cada situação, porque as nossas estruturas de pensamento estão adaptadas biologicamente e socialmente a reagirem de maneira diferente. (não vamos entrar na análise “bioquímica” dos comportamentos, apesar de eles explicarem coerentemente padrões de respostas a determinados estímulos)

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correcto ou melhor para elas; por isso foram aperfeiçoando mecanismos de defesa e estratégias evolutivas ao longo dos séculos 7.

Face à precariedade da documentação disponível e dos raros estudos existentes (em termos genéricos), será possível estudar o quotidiano da mulher em Alcácer, ao longo dos séculos?

- Sim e não! O caso afirmativo só tem sentido se ficarmos pelo básico, associados a

alguns preconceitos, ou seja: - A mulher casa jovem, é quase sempre objecto de desigual tratamento perante a lei, morrendo cedo devido a partos mal resolvidos. (na realidade, algumas recusam a serem mães, outras repudiam os maridos, outras contornam a lei, uma minoria revolta-se, e algumas conseguem serem felizes no casamento!)

A negação ou impossibilidade de estudar a mulher ao longo dos séculos, nas mais amplas dimensões de actuação, que assumem ao longo do seu percurso de vida, prende-se com as armadilhas tecidas pela documentação, que chegou até nós:

- Os investigadores, por mais imparciais que consigam ser, constroem o tipo de mulher que acham que terá existido, com base na documentação que estão a manusear no momento. Por outro lado, “esquecem-se” de que as fontes disponíveis, foram filtradas por autores masculinos. 8

Ou seja; - quando falamos das mulheres, na realidade falamos de quem? - Falamos de mulheres no plural, num determinado território, (em

perspectivas sincrónicas e diacrónicas), procurando construir os modelos possíveis.

Por isso, é importante assumir as limitações atrás referidas e definir desde já os limites metodológicos deste breve contributo:

- O Espaço Feminino em análise: - A urbe de Salacia e a sua Civitas - Âmbito Cronológico Privilegiado: O Alto Império - Espaço Imperial Seleccionado: - O Ocidente de Língua Latina. Em termos de quotidiano, havia as mulheres que viviam na cidade e as

que passavam toda a sua existência no campo. Para complicar mais este quadro, nota-se (uma quase) ausência de voz

própria, registada em documentação da época. Em suma, pretende-se com este trabalho, elaborar uma síntese sobre a

mulher, de forma a começar a dar-lhe a voz e a visibilidade que sempre tiveram em Alcácer, ao longo dos séculos.

2. O Enquadramento Geográfico e Histórico. • Uma Cidade Portuária desde o I Milénio a. C 7 Na realidade, se nós homens ou mulheres; - somos altos, baixos, morenos, louros, etc; isso é resultado dos milhões de opções, que foram tomadas ao longo de gerações. Todos nós temos antepassados. 8 Houve mulheres de várias épocas, que conseguiram transmitir até hoje os seus pensamentos, mas infelizmente elas constituem uma minoria.

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A mulher romana alcacerense em contexto Alto Imperial, vai ser o resultado de uma “simbiose”, da mulher de cultura autóctone 9, com a mulher romanizada que acompanha os colonos romanos10 que aqui se instalam.

A mulher com estatuto de “livre”, vive o seu quotidiano em diferentes espaços, consoante a sua situação, perante a lei e a família em que está inserida.

Elas são bebés, filhas, mulheres, avôs ou tias; - e espalham-se pelas domus/insulae11 da urbe, pelas villae e nos vicus12.

As escravas tiveram menor sorte e o seu quotidiano é quase sempre precário e nubloso, segundo a vontade dos seus senhores 13, mas houve excepções a este padrão, tendo muitas delas sido libertadas.

As salacienses circulavam por cidades da Lusitânia, que eram muito diferentes entre si:

- Umas comportavam-se como centros administrativos e religiosos, outras eram ricas, muitas seriam medianas, enquanto algumas caminhavam para a decadência.

Existiam alguns pólos económicos de âmbito regional, enquanto outras serviam de porto de ligação entre as diferentes parcelas do império.

- E Salacia!; - que tipo de cidade seria?

Um barco fenício de transporte de mercadorias no mediterrâneo, num alto-relevo Assirio14, rodeado por aquilo que simbolizava o mar, ondulação e peixes

9 Cultura local de forte influência fenícia e púnica, que poderemos com os devidos cuidados de apelidar de “Neo-Púnica”. Na Tunísia após a III Guerra Púnica, a cultura e a língua púnica sobreviveram até ao Baixo-império. 10 A legislação desta época proíbe que as mulheres legítimas acompanhem as legiões em guerra. Quem se arriscava a desobedecer, tinha que viver em condições difíceis num acampamento à parte, mas isso foram casos raros. O que acontecia geralmente, era o casamento entre os soldados romanos e as autóctones. 11 Sem entrar em pormenores, correspondem a diferentes tipos de casas em espaço urbano. 12 Correspondente à actuais vilas e aldeias, que dominam um espaço rural mas nunca uma Civitas. 13 Sejam eles homens ou mulheres.

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Ela assume-se como urbe portuária, fervilhante de vida, num vai e vem

de cidadãos, peregrinos, escravos e com provavelmente défice de mulheres 15. O nome que possui (Salacia), da “Deusa 16 da Espuma Salgada”, traduz

de uma forma clara, a importância do seu porto e da ligação umbilical que ela possui com o oceano Atlântico17.

A vastidão do mar, com os seus perigos, as ondas e os peixes representados no alto-relevo Assírio, poderá corresponder a uma metáfora da fragilidade do ser humano perante um oceano, sem fim!

Antes de ter sido anexada ao império romano, Salacia, já contava com mais de 5 séculos de existência, como porto oceânico em contexto orientalizante:

- Primeiro em contacto com comerciantes Fenícios e numa segunda Fase, inserida no “Aparelho Imperial Cartaginês”, assumindo uma matriz cultural de natureza púnica.

O litoral do Líbano como espaço de vida, guerra e comércio em contexto Fenício.

14 Império essencialmente de matriz continental, com génese no norte do actual Iraque. Deixou uma liberdade de acção em termos comerciais às cidades-estados Fenícias, como vassalos do Império. 15 Situação bastante normal em cidades portuárias, porque quem chega e parte são quase sempre homens. As mulheres ficavam quase sempre, “reféns” do espaço onde nascem e se movem. 16 Outros autores consideram Salacia uma ninfa. Num ponto estão ambos de acordo, ela representa o oceano Atlântico e a “Espuma Salgada”. 17 Sobre esta questão, consultar, CARVALHO, A. Rafael, (2007). Salacia. A Cidade da Deusa da Espuma Salgada. Neptuno nº 12, páginas 2-5.

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A cidade ter-se-á chamado “Bevipo”; e a presença de uma “feitoria” em Abul, pressupõe a necessidade de preservar a cultura fenícia, contra uma assimilação mais que provável com os autóctones, por via familiar.

Temos que aceitar a presença de mulheres de cultura fenícia e púnica na nossa região, algumas delas instaladas em Bevipo.

O alto-relevo Assírio, que representa o quotidiano no litoral da Fenícia, dá-nos uma pálida ideia do fervilhar de vida e comercio que terá existido no estuário do Sado durante o I Milénio a. C.

Numa altura em que se começam a construir impérios à escala de continentes·, a navegação e a defesa naval começam a serem vitais para a manutenção da coesão administrativa da “Superstrutura Estatal”.

Alcácer vai servir o esforço de guerra púnico, mas a sua anexação ao espaço imperial romano, contribui para a construção imperial deste último.

Se analisarmos com atenção a construção do espaço imperial romano, verificamos que este durante a Republica e Alto império, constrói-se de forma descontínua, ao longo do litoral do mar Mediterrânico, em resultado das Guerras Púnicas.

Posteriormente, Roma começa a interferir na política”caótica” das cidades e reinos de cultura Helénica instalados na Ásia, África e Grécia.

Quando por fim alcança um território do tamanho do “Mundo Conhecido”, cria uma frota naval, que se vai apoiar numa rede eficaz de portos. É nesta perspectiva de actuação, que Alcácer é valorizada e usada.

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A história tem demonstrado que a navegação é um factor da máxima importância estratégica e de valorização económica18.

Na altura da sua anexação, em meados dos séculos II/I a. C, Alcácer encontrava-se numa periferia do “Império Romano”.

Contudo, no final do século I d. C, após a conquista da “Bretanha” por iniciativa de Cláudio, consolida-se o comércio na “Rota Atlântica”, a cidade deixa de ser periférica, para se tornar num porto activo da costa da “Província da Lusitânia”.

Gravura retirada de Cousteau.19

Roma torna-se a “rainha” e senhora do mar Mediterrânico, após a destruição de Cartago.

Aventura-se no Atlântico como herdeira da estrutura imperial e comercial púnica e ciente da riqueza dos bancos de pesca e da produção de sal da Ibéria voltada ao Atlântico, não hesita em sacrificar legiões inteiras para a sua anexação à força. 18 Mesmo nos nossos dias esta ideia continua actual. Basta lembrar a aposta actual de reforço do comércio internacional por via marítima no espaço da Comunidade Europeia. 19 Obra citada, (1986) O Mundo Submarino: Ciência: Volume 12, página 20.

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Fica-lhe o gosto pela conquista; - e qualquer candidato ao poder em Roma, tem que ter no seu curriculum uma campanha militar.

Mas se o império tem como heróis míticos dois homens: - Rómulo e Rémulo, nascido de uma princesa e alimentados por uma loba!..., a cidade fundada por Rómulo tem o nome de Deusa: - Roma.

Os imperadores orgulhavam-se de serem descendentes da deusa Vénus, que tambem era evocada no discurso e combate político, no senado romano.

Ela era a “Deusa da Guerra” que tinha ajudado na destruição definitiva de Cartago20 e o seu culto e colagem ao aparelho militar romano, alastra como fogo pelo império.

A frota naval romana num fresco romano.

• Testemunhos Arqueológicos da Actividade Portuária em Salacia

O meio privilegiado para o registo da actividade portuária em Alcácer é sem dúvida a pesquisa em meio aquático, no rio e no estuário do rio Sado.

Sabemos da existência de naufrágios de embarcações de época romana, no denominado “fundiador” de Tróia e também junto a Alcácer.

Como o nosso objectivo é o quotidiano feminino e não a actividade naval alcacerense, vamos deixar essa temática para outro trabalho, expondo unicamente neste estudo, alguns desenhos referentes à documentação que pode ser encontrada nesses ambientes. 20 De facto, após as guerras púnicas, assiste-se a um incremento do seu culto.

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Esquema de três tipos diferentes de desmantelamento de um navio romano naufragado, demonstrando, que o que chega até nós, são unicamente “restos” 21.

21 Cousteau (obra Citada), página 78.

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3. Ser mulher em Salacia22

Duas formas cartográficas de representar a localização da Civitas de Salacia em contexto Alto Imperial.

As fronteiras provinciais e conventuais são aproximadas.

22 Como já foi frisado anteriormente, pretende-se com este trabalho, expor uma abordagem sintética sobre a mulher romana, adaptada à realidade de Alcácer. Para um aprofundamento destas questões podem consultar a bibliografia, o site do município ou pedir elementos documentais ao Gabinete de Arqueologia. Muito vai ficar por escrever, desde o nascimento até à morte, mas tal não é possível pela vastidão das matérias a abordar.

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• Palavras para designar a mulher Por ordem alfabética temos as seguintes palavras 23:

Amita, tia do lado paterno. Anus, velha mulher, avó ou antepassada. Auia, avó (de ambos os lados) Conjux, aquela que partilha o jugo conjugal. Domina, dona de casa (derivada de domus, a residência familiar, mas também significa senhora no amor). Femina, fêmea de qualquer animal. Honesta femina, significa respeito por uma mulher distinta. Filia, filha, feminino de filius, criança que se educa. Filiastra, literalmente filha de outro leito ou resultado de união ilegítima. Infans, sem distinção de sexo, corresponde às crianças que não falam. Mater, mulher casada, para se tornar mãe. (materfamilias ou matrona definem o seu

estatuto social) Matertera, tia do lado materno (literalmente significa a outra mãe). Mulier, mulher Nouerca, madrasta, segunda mulher tomada por um viúvo (deriva de nouus/novo) Priuigna, filha de um primeiro leito. Puella, feminino de puer, rapariga saída da infância e que ainda não entrou na adolescentia Iuuentus, rapariga de baixa condição. Sobrina, prima do lado da irmã, prima em geral. Socrus, sogra. (mesma raiz que soror, parente pelo sangue) Virgo, rapariga que ainda não conheceu um homem. Votrix, outra palavra para madrasta. Uxor, esposa legítima. • O Enquadramento Jurídico

O jurisconsulto Papiniano24 escreveu por volta do ano 200 d. C o seguinte:

23 GOUVEVITCH, RAEPSAET-CHARLIER, (2005). A Mulher na Roma Antiga. Páginas 26-27. Como frisam as autoras, a riqueza deste vocabulário traduz bem o lugar complexo ocupado pela mulher na sociedade romana. 24 Digeste, 1,5,9.

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“ Em muitas regras do nosso direito, a condição das mulheres é pior que a dos homens”

Esta frase espelha as “três incapacidades impostas por lei”, às mulheres romanas:

- 1. O poder paterno (patria potestas) do pai de família (pater familias)

- 2 A tutela (tutela) seu substituto após o falecimento do pai e designado por ele.

-3 O manus (literalmente a mão), que significa a autoridade do marido após o casamento.

Apesar de ser uma ciuis Romana, as mulheres não podia exercer nenhum dos direitos de cidadão, nomeadamente:

- Servir no exército, votar, ser eleita

magistrado (gerere magistratum). Na prática, o estado romano, retira-lhe os seus direitos políticos.

Apesar de Ulpiano ter escrito que: “ - As mulheres encontram-se afastadas de todas as funções cívicas ou

públicas” Muitas mulheres não queriam ficar presas ao seu estatuto jurídico e

muitas delas por iniciativa individual e de todas as condições sociais, dirigiram libelos aos imperadores que lhes respondiam, sobre os assuntos mais diversos25.

Fresco romano de Pompeia, retratando o nascimento de Vénus

25 Nomeadamente, epítetos femininos honoríficos, problemas de património, negócios, heranças e julgamentos de direito comum ou sagrado.

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No século II a.C. teve início um processo de emancipação das mulheres. Abandonaram-se gradualmente as formas mais antigas de casamento e adoptou-se uma, na qual a mulher permanecia sob a tutela de seu pai, e retinha na prática, o direito à gestão dos seus bens.

Temos notícias de mulheres versadas em literatura. A frequência do divórcio aumentou. Podemos ver mulheres inteligentes e ambiciosas como Clódia, e Semprônia (mulher de D. Júnio Bruto), que participou da Conspiração de Catilina.

Algumas mulheres actuavam nos tribunais: - "Jurisperita" é o título de uma fábula togata escrita por Titínio; e Valério Máximo, os quais mencionam uma certa Afrânia no Século I a.C., como sendo uma litigante habitual, que cansava os tribunais com seu clamor.

A obrigatoriedade da fidelidade conjugal (aparentemente) só existiria para as mulheres.

No caso de uma recém divorciada grávida, esta devia anunciar o seu estado no prazo de trinta dias, para que o marido pudesse reconhecer o filho. Antes de voltar a casar, esta era obrigada a ter um periodo de isolamento de dez meses.

Fora destes prazos estipulados, a Legislação de Augusto obrigava a um novo casamento no prazo de 2 anos para as viúvas e de dezoito meses para as divorciadas, caso contrário estariam impedidas de receberem a sucessão26.

Esta obrigação em relação ao casamento, também era aplicada aos homens. Caso este recusasse, estava igualmente sujeito a coimas pesadas, que tinha que pagar ao “Estado Romano”.

26 Ulpiano, Regras, 14.

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Mas nem tudo eram limitações. As mulheres nobres desfrutavam de um certo prestígio e tinham que ter

especial atenção pela sua aparência. Segundo as fontes, o mais importante, terá sido o estilo de cabelo: - muito bem elaborado, com diversos tipos de enfeites, e complementando com brincos e pulseiras de pedras preciosas, colares ou gargantilhas. Os vestidos eram sempre longos, combinando com um manto bordado com cores variadas.

Alguns direitos foram concedidos às mulheres, como medidas protectoras, mescladas com privilégios e tabus.

Vamos citar algumas: - Ninguém podia levantar a mão a uma matrona, nem um magistrado no

exercício do seu dever. - A matrona escapava ao castigo corporal e era sacrilégio força-la a

descer do seu meio de transporte, porque o contacto com a mão do homem teria conspurcado a sua pudicitia matronal • A Família e o Casamento

Quando se fala em família (a gens ou família nuerosa), fala-se casamento.

Porque se casavam os romanos? A resposta é dada pela própria raiz da palavra matrimonium (mater).

Logo “liberorum creandorum causa.”

Um dos problemas de Roma, terá sido a baixa taxa de natalidade

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Depois da guerra civil, César toma medidas para favorecer a natalidade com a propaganda suboles.

As leis de Augusto reforçam nesse sentido com as leis sobre o casamento, especialmente em 9 d. C, implementando a lex Papia Poppaea. Com o “ direito dos filhos” (ius liberorum) estes começam a sentir vantagens, enquanto o celibato e a viuvez eram motivo de pesadas multas, dificilmente suportados pelos mais ricos.

Para casar é necessário escolher o cônjuge. Este era seleccionado utilizando os critérios mais variados de natureza: - Moral, social, política ou económica. Outro problema complicado “ Quem vai escolher por genro, alguém com

menos fortuna e bens do que a donzela?27 O casamento é uma cerimónia privada que exige um ritual específico. Impõe a presença física da mulher. Como o magistrado está ausente, o

seu valor legal é traduzido pela existência de um dote, cujo conteúdo é descrito como um contrato.

Contudo a validade do casamento só terá efeito se for assumido por ambos os cônjuges.

Uma cláusula importante deve ser respeitada: - A idade mínima dos esposos, especialmente no caso das jovens, que

têm que ter os doze anos já completos.

27 Sátiras, III, 160-161: (em Latim) “ Quis gener hic placuit censu minor atque puellae/sarcinulis impar?

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Estes dados só eram válidos para as núpcias justas (matrimonium iustum) ou matrimónio legal, que constituía um dos direitos civis dos cidadãos romanos (ius conubii).

Nas cidades, entre as elites dirigentes, eram apreciados outros atributos para definir uma noiva ideal.

Plínio dá-nos algumas pistas: -Ela deve ser castitas (castidade, reserva) e pudicitia (pudor). Segundo o conselho do poeta Estácio: “Para as tuas núpcias, desejo-te uma mulher culta (docta) e adaptada ao

teu génio, tal como te dariam a acariciante Vénus ou Juno, pela sua beleza, simplicidade, urbanidade, fortuna, nascença, sedução e elegância”.

O casamento prepara-se com bastante antecipação. A data tem que corresponder a um dia propício. Estão proibidos os dias religiosos, os feriados, as grandes festas aos deuses, os dias especiais de cada mês (calendas, nundinae), os dias de mercado, etc.

Na realidade sobram poucos dias úteis e por esse motivo prefere-se casar durante o inverno.

Na véspera do casamento, a jovem consagrava o seu vestido à Fortuna Virginalis e depois, oferecia os seus brinquedos às divindades familiares.

No dia do casamento as mulheres da casa preparam-na para a cerimónia.

Fazem-lhe um penteado especial, semelhante ao usado pelas vestais com seis tranças. Os cabelos são puxados para um cone e coberto por um véu cor-de-laranja (flammeum) deixando ver o rosto, sendo coroado com uma grinalda de flores28.

A preparação da casada podia constituir um momento para a troca de conselhos entre as mulheres.

Por outro lado, há evidências na literatura (p. ex., Estácio, e Plínio, nas suas cartas) e em epitáfios, de que terão havido casamentos felizes.

O exemplo mais marcante é o elogio preservado numa inscrição, presumivelmente de um certo Lucrécio Vespílio que serviu sob o comando de Pompeu em 48 a.C. e foi

cônsul na época de Augusto (em 19 a.C.), a propósito de sua esposa Túria. O elogio regista a coragem e a fidelidade de Túria em relação às aventuras românticas e perigosas com Lucrécio Vespílio, tanto durante o noivado, como ao longo de quarenta anos de vida conjugal.

___________________________________________________________ 28 Uma análise pormenorizada do ritual do casamento encontra-se no trabalho que tem sido amplamente citado neste estudo. A Mulher na Roma antiga, páginas 86 a 91.

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A MULHER ALCACERENSE:

EM CONTEXTO ISLÂMICO TARDIO (SÉCULOS XI-XIII) 29

António Rafael Carvalho

1. Introdução

Se o quotidiano alcacerense no “feminino”, em contexto islâmico é um mundo por descobrir 30; - investigar esse universo, desde a Fase Pós-Califal até às vésperas da conquista portuguesa, é um desafio que nunca foi feito.

Que podemos nós fazer, quando não existem fontes arquivísticas para o Ġarb al-Andalus, tão ricas como as existentes na parte cristã do nosso país?

29 A bibliografia vem referenciada nas notas de rodapé. 30 Que durou 5 séculos como poder instituído em Alcácer e depois de 1217, quase 3 séculos como minoria em contexto cristão.

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Resta-nos a arqueologia e ler com análise crítica, o que dizem as fontes

muçulmanas mais tardias, provenientes dos reinos Naṣrí (Granada) ou Merinida (Fés/Marrocos).

De forma a tornar mais perceptível a problemática que temos em mão, vamos citar algumas palavras de Thierry, na reflexão que fez sobre a problemática das fontes, em género de “conselho”, para quem pretende efectuar o estudo da família em contexto muçulmano31:

“- O funcionamento interno da célula familiar árabe ao longo dos nove primeiros séculos do Islão – período que corresponde à Idade Média na Europa – é mal conhecido e levará ainda muito tempo até esta espessa névoa se dissipar. Os textos redigidos nesta época aos quais temos acesso, se bem que numerosos e variados, nada nos revelam acerca da vida privada dos indivíduos: jardim secreto cuja intimidade não podia nem devia ser violada ou domínio de um quotidiano demasiado trivial para merecer um registo escrito? O silêncio é tal que ignoramos mesmo se existia um nível dialectal na língua árabe medieval, (...). O que se passava e se dizia no aconchego do lar pertencia à esfera do mundo feminino, sendo consequentemente expresso numa linguagem essencialmente oral e fugaz.32”

31 BIANQUIS, T. 1997. A Família no Islão Árabe. História da Família. Ed. Terramar, Vol. 2, 257-297. 32 Apesar de concordarmos com o autor, não partilhamos o seu excessivo pessimismo em relação às fontes. É possível começar a entrar nesse mundo de intimidades, mas para isso é

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Antes de tentarmos conhecer e entrar no “quotidiano” das “alcacerense muçulmanas”, temos que ter uma noção de como seria Alcácer nessa época.

2. Introdução à Medina al-Qaṣr e ao seu Território33 A época privilegiada em análise (Séculos XI-XIII), corresponde grosso ao

que poderemos designar (globalmente) de “Pós-Califal”. É nesta fase que se assiste à afirmação de Alcácer como base naval

“Oficial do Califado”34 e de pólo económico e cultural no Andalus.

Delimitação dos territórios militarizados de fronteira em contexto Almorávida (séc. XII),

necessário prosseguir o trabalho de investigação. Este vai ser o primeiro estudo sobre a Mulher Muçulmana Medieval em Portugal (que tenhamos conhecimento!) e é natural que a quase totalidade vai ficar por reflectir! Saiu o ano passado um estudo importantíssimo que recomendamos: - Trata-se da dissertação de doutoramento de Ana Rodrigues Oliveira sobre a Criança na sociedade Medieval Portuguesa, que naturalmente fala das mulheres muçulmanas (pouco), privilegiando antes a mulher cristã portuguesa medieval e as suas crianças, que é a base da sua obra. 33 As questões ligadas à importância de Alcácer como porto fluvial foram expostas no estudo anterior, que apesar de se referirem a Idade do Ferro e à Romanização, podem globalmente dar uma ideia da importância desta estrutura portuária em contexto islâmico. 34 Decisão politica de carácter estratégico do califado, que poderia ter optado por Lisboa, mas não o fez.

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com base no texto de al-Idrisi. Uma das mais extensas estruturas desta natureza, era denominado al-Qasr, com sede em Alcácer 35.

Gradual a medina portuária de vertente comercial, transforma-se como

essencialmente base naval militarizada. Assiste-se ao afastamento dos Banu Danis, provavelmente por iniciativa

de Ibn Āmir, meados do século X. Após a queda oficial do califado omíada de Córdova, Alcácer torna-se

“Reino Taifa”. Terá sido provavelmente anexada pelos Abádidas de Sevilha, mas pouco depois passa para a Taifa Aftássida de Badajoz.

É reforçada em contexto Almorávida, para apoio na “Guerra Santa”. Quando o emirato começa a desintegrar-se em finais do século XII,

Alcácer ganha de novo autonomia como reino autónomo e estabelece alianças com D. Afonso Henriques, através do seu soberano, Ali Wahibi.

Imagem digital do acesso a Alcácer por via marítima, desde o oceano Atlântico.

35 A análise da expressão territorial do espaço referente a al-Qaṣr, permite verificar que este parece seguir de perto os limites da extinta Taifa de Badajoz, na altura da sua anexação ao Império Almorávida. Este dado reforça a ideia, de que o novo poder central Magrebino, ao mudar a sede administrativa de Badajoz para Alcácer, queira provavelmente “castigar” as “velhas elites” de Badajoz (aqui entendido como Reino). Poderá também representar a valorização do oceano Atlântico, como novo espaço de confronto com os cristãos. Não podemos esquecer que a recuperação de Lisboa e Santarém, anteriormente cedidas pelo soberano de Badajoz ao rei de Castela, foram obra de tropas Almorávidas, apoiados nas suas bases militares de Alcácer e Évora.

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Alcácer sempre se definiu pela sua componente oceânica e entrada no estuário do Sado, enquadrado a norte pela Serra da Arrábida e a sul pelas dunas de Tróia até à Comporta/Carvalhal.

Esta fase é algo confusa, mas é a partir desta altura, que os Banū Wāzir

assumem o domínio da cidade e do seu território, (confirmado posteriormente pelo novo poder Almóada), numa postura de domínio, que será mantida até à conquista cristã de 1217.

Esta ligação ao oceano, continua a ser muito importante. Os naturais de Alcácer são famosos e temidos como piratas pelos

cristãos e regularmente atacavam as costas portuguesas, a norte de Lisboa. Este facto desesperava o bispo de Lisboa, D. Soeiro. Quando a oportunidade surge em 1217, com a ancoragem dos navios da

5ª Cruzada em Lisboa para aguada, o bispo, com a autorização táctica de D Afonso II 36, convence um grupo de cruzados na empresa de conquistar a então poderosa base militar almóada, que de facto acontecerá com o sucesso que todos conhecemos. 2. Ser mulher em al-Qaṣr 37 • A designação de mulher, segundo a documentação Andalusa 38

Como se chamavam as mulheres em

Alcácer em contexto islâmico? Será que existia uma riqueza de

expressões como verificamos no contexto anterior (Romano)! O que é que nos dizem as fontes medievais?

As palavras valem da maneira como nos tocam: - No caso do árabe convêm ter presente esta questão. Temos a transcrição fonética possível, mas sentir a palavra é algo mais complexo, porque sons aparentemente semelhantes podem ter significados literalmente opostos.

36 Alguns autores sugerem que o rei soube do projecto militar, mas não terá acreditado muito nele. Quando a cidade foi conquistada, apressou-se a comunicar ao Papa, que contente com o feito emitiu uma Bula a confirmar a confiança que a Igreja tinha no rei, como legítimo descendente de D. Afonso Henriques e governante do reino. 37 Vamos seguir de perto a estrutura adoptada para o estudo anterior. 38 O trabalho básico continua a ser o de Manuela Marín (2000). Mujeres en al-Ándalus, que foi fundamental neste estudo. Outro bom contributo é a tese defendida na Universidade de Granada (2007), de Muhammad Sayyah M. Alesa, El Estatus de la Mujer en la Sociedad Árabo-Islámica Medieval entre Oriente y Occidente, no qual faz uma importante comparação entre ser mulher muçulmana no oriente medieval e no Andalus.

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Tomemos como exemplo a palavra nisā. Num contexto normal, a palavra

significa mulheres, contudo noutras situações pode significar “servidoras 39”: - E se for o caso do topónimo Niza que era coutada no Termo de Alcácer

no século XIV 40?; - Aqui o problema é mais complexo. Assim temos a palavra Imra´a, que significa mulher num sentido lato. No

plural usam-se as palavras, nisā´, niswa, e niswān. Quando nos referimos a mulheres de uma família, os textos usam termos

genéricos, como por exemplo: - ahl 41 e ´iyāl 42. De um modo geral, as mulheres em contexto islâmico são consideradas

“sagradas” e “intangíveis”, que tem que ser protegidas. Por isso empregam-se as palavras derivadas de ḥuram 43.

Neste sentido, o corpo feminino, como espaço de recato (´awrāt), devia-se envolver de roupas e proteger-se dos “olhares”.

As mulheres que não respeitavam este princípio (mutabarriŷāt al-nisā´) estavam expostas à censura pública.

As mulheres de origens aristocratas e da classe dirigente, denominam-se; ḏawāt al-qadr, ḏawāt al-šaraf ou ḏawāt al-šaraf wa-l-qadr.

Uma artesã ou uma mulher que desenvolva uma profissão denomina-se; ḏāt mihna.

As ḏāt wajš eram as mulheres das classes mais desfavorecidas.

Para o cônjuge, o vocabulário seria mais copioso.

Genericamente utiliza-se a palavra imra´a, mas tambem se pode usar a expressão zawŷ/zawŷa (pl. zawŷāt/azwāŷ). Conhecemos outros termos, como; - ´aqīla (pl. ´aqā´il) e ḥalīla (pl. ḥalā´il), para designarem uma esposa distinta (admirável).

Em relação às etapas da vida das mulheres: - As meninas e as recém-nascidas são chamadas de bunayya ou ṭufayla.

As fontes não são claras em relação à etapa seguinte, porque não é estabelecido uma fronteira precisa. Por isso o termo, ṣabīya, aplica-se 39 Ao serviço de uma dama de alta estirpe. 40 Actualmente chamava-se Anisa e localiza-se no concelho de Grândola. 41 Esta palavra significa “família”. Por vezes pode-se utilizar no colectivo para indicar uma só pessoa – a esposa. 42 Esta palavra significa todas as pessoas a cargo de um chefe de família, mas também pode referir uma ou várias mulheres. Por exemplo para assinalar que um homem está casado, os textos dizem que ele tem um ´iyāl. Na realidade este e o termo anterior são bastante ambíguos. 43 Caso de ḥarīm, ḥurma ou ḥurum, que nos transmitem uma ideia pesada de proibição.

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indistintamente às raparigas ou ás quase adolescentes, que “atraem o amor”, dos que olham para elas 44.

Por exemplo, Ibn Mugīṯ 45, refere uma rapariga ṣabīya com apenas 10 anos.

As jovens donzelas (raparigas ou filhas), denominam-se de banāt (pl. de bint).

Segundo os juristas, o termo “solteirona” (mu´annis), só era empregue às mulheres que ao atingirem os 30 anos, ainda não se tinham casado.

Outros juristas afirmavam que esse termo só tinha sentido numa mulher solteira, com mais de 45 anos.

Aos 50 anos, casada ou não, a mulher é considerada idosa e recebe o termo de, ´aŷūz.

Para um contexto de afectividade, como por exemplo referindo-se à própria mãe, utilizava-se a palavra - ´aŷūzi. 46

A mulher livre só possuía um termo derivado da raiz - ḥurra (pl. ḥarā ´ir). Deste modo tínhamos as seguintes expressões; - ḥarā ´ir al-muslimāt (designa as mulheres muçulmanas livres); o cônjuge recebe o termo; al-zawŷa al-ḥurra.

Para designar uma escrava, as palavras mais usadas são respectivamente; - ama (pl. ịmā´) e mamlūka.

As escravas cantoras recebiam o nome de ŷāriya (pl. ŷawārī). Estes termos quando é aplicado às mulheres, designam as donzelas.

As escravas que executavam os trabalhos domésticos recebiam o nome de imā´taṣarruf.

Na alta sociedade o termo ŷawārī, pode eventualmente designar as damas da soberana e também outras mulheres, que executavam outros tipos de tarefas.

A palavra ḥurra poderia ser empregue como título honorífico a uma mulher.

Em contexto Almorávida, temos a expressão al-ḥurra al-´ulyā 47 e al-sayyida al-ḥurra.48

Os omíadas do andalus criaram o título honorífico al-sayyida al-kubrà para a mãe do príncipe herdeiro.

44 Ibn al-Abbār, Takmila (ed. Alarcón), nº 2423; Ibn Ḥāriṯ al-Jušanī, Quḍāt Qurṭuba, p. 49/60 e Ibn Bassām, Ḏajīra, II, p. 35. 45 Na sua obra, Muqni´, p. 175. 46 Al-Maqqarī, Nafḥ, III, p. 489. 47 Ibn al-Jaṭīb, Iḥāṭa, III, p. 523. 48 Ibn Rušd, Masā´il, II, 946 (nº 252).

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O nome de uma mulher também podia albergar num acto oficial, um conjunto de adjectivos honoríficos, caso de um documento administrativo do século XIII, enviado a favor de ´Ā´iša bt. Abī Isḥāq b. Al-Ḥāŷŷ e do seu marido:

Enquanto esta recebe os adjectivos nobres de, livre, nobre, inteligente, temerosa a Deus, pura, honesta, honorável e piedosa (al-ḥurra al-aṣīla al-zakīya al-taqīya al-ṣāliḥa al-maṣūna al-mukarrama al-mabrūra), o seu esposo só recebe adjectivos ligados à sua actividade, como por exemplo, asceta, predicador, etc. 49 49 M. Marín,(2000) Mujeres en Al-Ándalus, p. 45.

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• Os nomes próprios dadas às mulheres.

Trata-se de um tema bastante complexo, mas vamos tentar simplificar, focando unicamente alguns aspectos.

Pela análise da documentação que nos chegou, o nome mais popular no Andalus e em Alcácer, para dar a uma mulher, terá sido Fāṭima 50. A seguir vinham os nomes da família do Profeta. Os mais difundidos terão sido os de, Zaynab e ´Ā´iṣa, seguidos de Asmā e Ruqayya. Raramente eram usados os nomes de, Jadīŷa e Āmina. Outro nome muito usado terá sido o de Maryam (Maria) 51.

Em termos carinhosos, atribuíam-se outros nomes às mulheres, como por exemplo:

- Ḍaw´al-ṣabāḥ (luz da manhã); Gāyat al-munà e Muntahà l-munà

(objecto dos desejos); Riyāḍ al-ḥusn (jardins das formosas); Sirr al-ḥusn (segredo da formosura); Uns al-qulūb (casa dos corações) e Zahr al-riyāḍ (flor dos jardins).

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50 Nome da filha do Profeta, que era considerada um modelo exemplar de filha, esposa e mãe, em oposição à figura mais polémica de ´Ā´iša. 51 Mãe de Jesus. A difusão deste nome, que só aparece na documentação do al-Andalus, depois do século X, poderá provir da islamização da maioria da população de origem cristã, que absorve as suas crenças e usos.