Alcantara Machado_mana Maria

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  • 8/6/2019 Alcantara Machado_mana Maria

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    MANA MARIA

    Alcntara Machado

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    - V perguntar pra mana Maria.

    Era assim desde que a me morrera. Era assim a propsito de tudo. Mana Maria que resolvia,

    mandava, punha e dispunha, fazia, desfazia. E Ana Teresa obedecia.

    Quando Dona Purezinha morreu, deixou Ana Teresa com dez anos. Tinha duas tranascompridas e com uma delas quis enxugar as lgrimas diante do cadver da me. E foi ai quesentiu pela primeira vez a nova autoridade. Mana Maria deu um puxo na trana e lhe ps umleno na mo:

    - Enxugue com o leno.

    Leno seco.

    De fato a coragem de mana Maria foi uma coisa que admirou toda a gente. No derramou umalgrima. No teve um gesto, uma expresso de sofrimento. Ningum esperava tanta fortaleza denimo num corpo to franzino.

    Dona Purezinha agonizou seis meses com um cancro no piloro. Era gorda, foi ficando magrinha.Tambm era boa, paciente, e foi ficando m, impertinente. Parecia que tudo nela morria, menosos olhos que enxergavam uma sombra de poeira na cmoda e os ouvidos que percebiam l

    longe, na cozinha, o bater de um prato na pia.

    Em torno dela foi se fazendo um silncio que j era de tmulo. Primeiro se suprimiu o piano deAna Teresa. Para ela foi uma alegria. Mesmo a aula de Portugus, Aritmtica, Geografia,Histria do Brasil, Religio, Desenho e Caligrafia, tudo ensinado por Dona Mercedes, passoupara o poro.

    No poro vivia. Subia para almoar, lanchar. jantar, dormir. Fora disso, mal punha os ps naescada que conduzia copa, uma criada, a irm, o pai, algum falava:

    - No venha que mame est doente.

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    Era o estribilho. Pegava no voador, rodava dez metros no cimento do jardim, uma janela seabria:

    - No faa barulho! Mame est doente!

    Na mesa, no queria sopa ou queria po com manteiga e acar:

    - Seja boazinha. Olhe que mame est doente.

    Aos poucos se habituou. Ficava no quarto grande do poro horas e horas vendo a arrumadeirapassar roupa. Tambm ia visitar o galinho garnis. Corria atrs dele, ele no se deixava pegar,ela dizia:

    - No faa barulho que mame est doente.

    At que chegou tambm o dia do garnis. O canto dele incomodava Dona Purezinha. Foi para afaca. E Ana Teresa nem direito de chorar teve porque mame estava doente.

    J era sossegada de natureza, ficou uma santinha na opinio da cozinheira. Parecia gentegrande. Amorteceram com algodo a campainha da entrada, a campainha do telefone. Todos seentendiam por gestos. Joaquim Pereira pensou at em imitar o vizinho senador que quando amulher esteve para morrer arranjou uns grilos que no deixavam os choferes tocarem clxonnas imediaes. Mas desprovido de qualquer influncia poltica desistiu da idia. Ana Teresapassou a fazer parte do silncio: se perturbava quando falavam perto dela. Quase no ouvido daprofessora segredava as capitais dos Estados do Brasil. E ficou com o hbito de respondermovendo a cabea, sacudindo os ombros, movendo as mos. A boniteza dela no entristeceu:ficou indiferente, perdeu a vivacidade, ficou distante.

    Uma madrugada mana Maria acordou Ana Teresa. Como estava, de camisola e descala, foilevada at o quarto de Dona Purezinha. O pai a ergueu nos braos, molhou de lgrimas o rostodela, abraou forte, beijou muito a filha. Depois falou:

    - Venha beijar sua mezinha que foi pro cu. No quarto estavam um padre, o mdico, aenfermeira, tio Laerte e a mulher dele, tia Carlota. Ana Teresa sacudida pelo choro agarrou namo da morta, deu um beijo. Porm silencioso. Algum falou: - "Pobrezinha". Com certeza tiaCarlota que a tirou do quarto. Ana Teresa viu no fundo do corredor uma vela acesa nas mos demana Maria. Teve medo, dobrou o brao no rosto. Voltou carregada pro seu quarto. Ainda ouviumana Maria falar:

    - bom que tio Laerte v encomendar o caixo.

    Na hora do enterro que mana Maria no a deixou enxugar os olhos com a trana. Foi o

    primeiro gesto de mando. E por isso Ana Teresa nunca mais esqueceu dele. Era um quadro queela via sempre. Sobretudo de noite, no escuro, de olhos fechados, na cama: a sala repleta, ocaixo muito alto e florido, a cara barbuda do pai, o jeito duro com que mana Maria lhe puxou atrana, lhe deu o leno. Leno seco.

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    E trs dias depois, logo de manh cedo, Ana Teresa teve a revelao fsica de mana Maria. Atento nunca reparara direito na irm. Quer dizer: reparara sim, mas sem compreender. Nessamanh ela principiou a compreender. Pela primeira vez a viu de culos. E isso j foi umasurpresa. Nunca suspeitara da existncia daqueles culos de aros de tartaruga. Nunca, nuncamana Maria pusera os culos na presena dela. Pois mana Maria a recebeu assim, de culos.Estava com a costureira e mandara chamar Ana Teresa para tomar as medidas. Ana Teresaficou em p, no meio do quarto, imvel, com os olhos nos culos. A arrumadeira entrou, Ana

    Teresa olhou para ela e viu tambm nos olhos dela a mesma surpresa dos culos. Nunca,nunca mana Maria aparecera de culos para ningum. Ana Teresa se deixou dominar poraqueles vidros redondos, aqueles aros de tartaruga manchada. Sentiu a autoridade daquelesculos.

    Aumentou nela o respeito que j tinha pela irm mais velha e que a levava instintivamente acham-la mana Maria. No Maria simplesmente. A irm, quinze anos mais velha, imps-sedesde logo ao respeito de Ana Teresa. E esse respeito se exprimiu como de regra por um ttulo:mana Maria valia por Doutora Maria, Excelentssima Senhora Baronesa Maria, Sua Majestade aRainha Maria. Sempre a chamou assim.

    Ana Teresa olhava os culos. Depois disfarou, olhou as mos. Mos magras, unhas bemtratadas, mos esquisitas. Magras demais. Depois bruscas. Faziam tudo depressa. Ajeitavam ocabelo com um repelo. Ana Teresa olhou os cabelos. Eram ondeados. Eram pretos. Pretosdemais. E no eram cortados. Todas as moas usavam os cabelos cortados. Todas. ManaMaria no usava. Mana Maria enrolava os cabelos na nuca. E o penteado quase cobria asorelhas. S se viam os lbulos.

    As sobrancelhas eram grossas. Grossas demais. E o nariz tambm era ossudo demais. E osdentes? Os dentes no se viam. Mana Maria falava sem mostrar os dentes. Ana Teresa noachava mana Maria bonita.

    Mas aqueles culos, passada a surpresa, eram bonitos. Iam bem para mana Maria. Ana Teresano sabia direito o que era mas j agora lhe parecia que mana Maria sempre usara aquelesculos. E ficava melhor assim. Ficava completa.

    Mana Maria olhou num papelzinho, falou pra costureira:

    - O uniforme pra sair tem gola branca.

    Uniforme? Ana Teresa no compreendeu. Nem mana Maria lhe explicou nada. S dias depois que o pai com ela no colo contou tudo:

    - muito bom. o melhor colgio de So Paulo. As internas so tratadas como filhas.

    Falou outras coisas, reparou nas lgrimas da filha, enxugou, parecia triste. E disse:

    - Eu por mim no punha voc interna. Mas sua irm quer. Ela que a mezinha de meu bemagora. Precisa fazer como ela quer, obedecer em tudo, ser bem boazinha pra ela. Como pramame antes de ir pro cu. Igualzinho.

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    - Que que voc acha de eu comprar um Ford?

    Mana Maria perguntou:

    - Pra qu?

    - Que pergunta. Pra qu? Pra usar.

    Mana Maria como que esboou um sorriso. Joaquim Pereira no disse mais nada.

    2

    Diante da mulher conservou sempre uma atitude de inferioridade. Morta a mulher no tevedificuldade nenhuma em reconhecer na filha mais velha a herdeira de Dona Purezinha, nogoverno domstico.

    Quando conheceu Dona Purezinha era terceiro-escriturrio do Servio Sanitrio. Seu pai, queera agente de seguros e juiz de paz da Consolao, lhe arranjou esse emprego dias antes demorrer.

    Joaquim herdou uma casa, uma caderneta da Caixa Econmica, acusando um saldo de sete

    contos e coisinhas, um seguro de vinte contos e os nove volumes encadernados da GenealogiaPaulistana de Lus Gonzaga da Silva Leme.

    O pai tambm enviuvara moo. Era homem austero e tratava o nico filho severamente.

    Tinha dois orgulhos que manifestava cem vezes por dia, com e sem propsito:

    - Voc vem dizer isso a mim, descendente de bandeirantes? A mim, que fui amigo do CoronelMursa? Ora tire seu cavalo da chuva!

    Joaquim guardava do pai uma lembrana nada afetuosa. Ela vinha sempre com uma bofetada euma desiluso. Bofetada, porque certa vez durante o jantar se permitira com a ingenuidade dosdezesseis anos pr em dvida a justia de uma sentena de que o pai se vangloriava. O juiz depaz estourou:

    - Como, seu cachorrinho? Eu descendente de bandeirantes, amigo do Coronel Mursa, receberlies de um frangote! Cale essa boca, j, imediatamente!

    Joaquim se disps a no dar um pio. Mas o pai continuou a falar, a gritar, a invocar a suaprognie bandeirante e a sua amizade com o Coronel Mursa, ele se irritou e disse muitoatrevido:

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    - Ningum nunca ouviu falar nesse Coronel Mursa que o senhor...

    A levou a bofetada. Na boca. E foi trancafiado no quarto. Ouviu o pai dar um berro com acriada. Depois as passadas dele pelo corredor indo e vindo. Depois um silncio. Passos denovo. Parou. Abriu a porta. Estava mais calmo e estendeu ao filho uma folha de jornalamarelecida, com as marcas das dobras bem acentuadas:

    - Leia para se instruir. No fundo a culpa no sua, mas dos professores que no lhe ensinarama histria de sua terra.

    O pai saiu sem fechar a porta chave; Joaquim percorreu a folha encardida. Na primeirapgina. o ttulo do jornal e a data: So Paulo, 20 de novembro de 1889. O resto era meioalegrico: uma mulher com barrete frgio na cabea segurava um ramo de caf com a modireita e com a esquerda levantava um facho que iluminava trs medalhes com os retratos doCoronel Mursa, Prudente de Morais e Rangel Pestana. Embaixo: Homenagem JuntaProvisria. Em volta: lees deitados, pombas voando, ramalhetes de flores com laos de fita, oZ-Povinho de chapu erguido. Na segunda pgina, ento, vinha o elogio do triunvirato, daRepblica, da Democracia e do Brasil. Joaquim leu com toda a ateno: "O Coronel Mursasimboliza a espada gloriosa que fulgurou nas lutas da Independncia, combateu nascampanhas do Prata, venceu na Guerra do Paraguai e ajudou a implantar a Repblica." Virou afolha, se demorou na contemplao do Coronel Mursa. Era aquele. Sim senhor. Simpatico. Nodia seguinte quis devolver para o pai mas o pai falou:

    - Guarde para voc que eu tenho vrios exemplares.

    Joaquim guardou. Da por diante cada vez que o pai falava na sua amizade com o CoronelMursa, o filho abaixava os olhos. No fundo tinha dio dessa amizade, por causa da bofetada. Oque no impediu que num domingo de tarde, queixando-se o pai de certo tenente do Exrcitoque lhe devia cem mil-ris e se recusava a pagar, o filho falasse:

    - Se o Coronel Mursa fosse vivo o senhor falava com ele e arranjava tudo!

    A coisa foi to inesperada que o juiz de paz olhou desconfiado para o filho. Mas Joaquim fitava oassoalho humildemente. E o velho exultou:

    - Que dvida! Homem de peso, homem de peso! No h mais disso hoje em dia!

    Depois recapitulou com todos os detalhes a histria da famosa amizade. Depois (conversa puxaconversa) falou na sua prognie bandeirante. Disse:

    - Eu estou morre no morre, voc menino, bom que saiba quem foram seus avs paraamanh, quando eu j no estiver no mundo, no deixar ningum pisar em voc!

    Foi no quarto, voltou com dois volumes da Genealogia Paulistana.

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    - Est vendo, Joaquim? Ttulo Cordeiros de Paiva. Olhe aqui: Joo Duarte Pereira Castro, irmode um seu tio-av, no, tio-bisav, casou com uma Cordeiro de Paiva. Ns somos primosdesses Cordeiros de Paiva, gente de tutano, uns lees. Mas tem mais. Olhe aqui neste outrovolume. Ttulos Aguirre. Olhe: um Aguirre, Joo Afonso, casou em segundas npcias com abisav paterna de sua me, sua tatarav, portanto, minha bisav por afinidade. Nunca seesquea que voc tem sangue de Aguirres nas veias e ligado com os Cordeiros de Paiva. Doisttulos. H pouco paulista hoje que se possa orgulhar de sua nobreza, como voc. Veja l que

    responsabilidade.

    Por fim deu uma nota de vinte mil-ris para o filho, j era noite:

    - V se divertir.

    Joaquim beijou a mo do pai e foi se divertir no Cinema Bijou. Pina Menichelli suicidou-se nosexto ato e ele na sada encontrou o Albertino. O Albertino conhecia uma casa na Rua dasFlores. Joaquim o acompanhou at l. Dona Filomena veio abrir a porta:

    - Que que querem? Ah! Albertino, como vai?

    Albertino ficou conversando com Dona Filomena, Joaquim enfiou pelo corredor. Uma voz demulher falou:

    - A senhora deixou a porta aberta! Faz favor de fechar, Dona Filomena!

    Joaquim espiou e viu o pai sentado diante de uma garrafa de cerveja, com uma gorda de cabelovermelho no colo. A gorda gritou:

    - Olha essa porta aberta, Dona Filomena!

    Joaquim deu meia volta rpida, esbarrou em Dona Filomena que vinha fechar a porta, dissepara o Albertino:

    - Vou me embora, estou me sentindo mal.

    Albertino quis ret-lo pelo brao, ele se desenvencilhou brutalmente, atravessou a rua, dobrou aesquina, passo apressado quase correndo. Sentia uma preciso de chorar. Um homem comopapai com uma vagabunda no colo. impossvel. impossvel. Mas ento... Meu Deus impossvel, papai, papai num bordel. Mas ento... O pensamento dele ficava suspenso. Masento... Mas ento... No h nada. No existe nada no mundo. Nada. E se lembrava da me.

    Tomou o bonde, foi para casa. Fechou-se no quarto, atirou-se na cama. Tinha pena da me.

    Estendeu o brao, pegou o retrato no criado-mudo, falou: Minha me! Coitada de minha me!

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    Beijou o retrato. Que coisa, meu Deus, meu Deus do cu! Ps o retrato no criado-mudo. Umhomem que falava tanto na sua seriedade e mais isto e mais aquilo. Descendente debandeirante, amigo do Coronel Mursa. Levantou-se. Abriu uma gaveta da cmoda. Tirou a folhade jornal. Amigo do Coronel Mursa. Espera um pouco que j te mostro. Picou a folha empedacinhos. Jogou na latrina. Ps a mo na chave da porta, se arrependeu: o pai podia chegar,no queria ver o pai. A lhe deu uma curiosidade m. A que horas ele voltaria? Passaria a noiteno bordel? Abanava a cabea. Pensou: meu pai na putaria. No. No era bem isso. Que coisa

    besta. Sorriu por dentro. Chorou. Apagou a luz, se jogou de novo na cama. Mas no dormiu.Vinha um pensamento perverso, ele expulsava com outro ainda mais perverso, e sofria. Poucodepois de meia-noite o pai chegou e Joaquim dormiu mais aliviado.

    Entretanto o respeito que at ento tivera pelo pai no diminuiu pelo menos exteriormente. Omal-estar que passou a sentir na presena dele aumentava at a atitude humilde, cabea baixa,olhos no cho. Quando o juiz de paz falava nos avs bandeirantes ou na sua histrica amizadecom o Coronel Mursa Joaquim no fundo sentia uma espcie de volpia em apresentar aos seusbotes o reverso da medalha. O pai falava:

    - Um paulista como eu, de autntico sangue bandeirante...

    E o filho continuava com o pensamento:

    ... e que freqenta bordis baratos...

    O pai acrescentava:

    ... amigo inseparvel do Coronel Mursa...

    E o filho rematava:

    ... e bebedor de cerveja com polaca vagabunda no colo...

    At que meses depois, no dia de Finados, vendo o pai chorar diante do tmulo da mulher,quinze anos j passados de sua morte, ele comeou a compreender esse dualismo em que eleprprio cairia mais tarde.

    O pai morreu com setenta e dois anos num dia de So Joo. E no primeiro aniversrio de suamorte j foi Purezinha que colocou um ramo de cravos no tmulo e providenciou sobre a missa.Como tambm foi Purezinha que arranjou com o parente deputado a promoo do marido parasegundo-escriturrio, depois primeiro, depois chefe de seo. E assumiu discricionariamente ogoverno do lar, cabea do casal, alugando a casa deixada pelo sogro, aplicando o dinheiro doseguro, economizando, comprando o palacete em que Ana Teresa nasceu, emprestandodinheiro sob hipoteca em pequenas parcelas para render juros mais altos, tudo, tudo. Purezinha,coitada. Morrer daquele jeito. Felizmente deixava uma substituta, sua filha de palavra medida edura, gesto brusco e decidido, olhar firme, direto, autoritrio.

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    Por isso Joaquim Pereira no se atreveu a insistir na compra do Ford. Pacincia. Maria noaprovava, ele se conformava. Entretanto era coisa que lhe apetecia bem, um Fordinho fechado.Satisfazia bem aquela nsia de gozo que se apoderara dele vivo. Gozo da vida, das coisasmaterialmente boas da vida. Da a poucos anos se aposentaria. E j tinha um plano de vidafeito. Como o Ciancullo barbeiro que com mais cinqenta contos fechava o salo e ia fazer ilsignore. isso mesmo. Bancar o milionrio. Inclusive e sobretudo no captulo das mulheres. Foifiel, foi um co de to fiel, para Purezinha. Mas ela morta, ele era moo ainda, ficava neste

    mundo miservel, era disfarar a misria do mundo. s vezes se lembrava do pai e como que serevia (em lugar do juiz de paz) no quarto da Rua das Flores com uma gorda de cabelo vermelhono colo que mandava dona Filomena fechar a porta. Ento sentia uma vergonha inexprimvel deser homem, homem como o pai, seu herdeiro na contingncia de semelhantes fraquezas.Pacincia. No era o nico. Como que havia de fazer? Casar? Ele j pensara nessa soluomas esbarrava na oposio da filha mais velha, que ele sabia fatal, e no tinha nimo paraenfrentar. Que esperana. Atentava no jeito frio e agressivo da filha e desistia logo de qualqueridia a respeito de novo casamento. Nada disso. O melhor era fazer como todos os homens, atcasados, at recm-casados. O melhor era fazer como, como, como o pai. A est. Joaquim pormais que expulsasse a lembrana amarga daquela noite da Rua das Flores era constantementeperseguido por ela. Da a timidez de suas primeiras aventuras, nome com que ele dourava asentida sordidez dos coitos pagos vista. Uma aventura, uma conquista. Parecia um criminoso.Escolhia horas adiantadas da noite, se exasperava quando custavam para abrir a porta e eleficava sujeito s olhadas dos transeuntes, exigia um quarto bem trancado, tapava o buraco dafechadura. Inutilmente procurava se confortar com a idia de que no tinha filhos. Inutilmente. Alembrana da Rua das Flores no o largava. Teve um sonho horrvel em que o pai o espiavacomo ele o vira.

    Um dia se surpreendeu chamando a filha de mana Maria, tal e qual Ana Teresa. E searrependeu, quis corrigir logo em seguida, no teve jeito, deu uma risadinha (a filha calma,olhando para ele), repetiu: mana Maria. A filha disse:

    - Eu o envelheo tanto assim?

    Custou a compreender, compreendeu, falou:

    - No isso!

    No era e a filha sabia que no era. Mas mesmo quando lhe agradavam (e o pai chamando-aassim lhe agradara) ela dava um jeito pra responder com uma bicada certeira.

    O pai bandoleiro no parava mais em casa. Mana Maria s o via durante as refeies. Tinha oestmago delicado, comia sempre em casa, discutia negcios com ele. Por ocasio da partilhano inventrio de Purezinha, mana Maria fez questo de ficar com a casa onde moravam. O paiobjetou generosamente que no dava renda pois era residncia deles, era melhor que ficassena sua meao, a menos que a filha no concordasse em receber o aluguel. Mana Mariarespondeu:

    - Eu quero morar na minha casa.

    Repetiu, acentuando bem:

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    - Minha casa. E isso de aluguel bobagem.

    Joaquim acedeu:

    - Como voc quiser.

    E acrescentou:

    - Voc de fato a dona da casa, fica tambm dona do prdio.

    O olhar de mana Maria exprimiu a satisfao de quem se sente bem compreendido. Discutia asquestes do inventrio com tanta segurana que o pai um dia se espantou. Ela explicou:

    - Conheo as leis de meu pas.

    Foi no quarto, voltou com um exemplar encadernado do Cdigo Civil Brasileiro. O pai estouravade admirao:

    - Voc sua me escarradinha.

    Porque Purezinha que comprara o Cdigo. Ele nem se lembrava mais de que o tinha em casa.Pois mana Maria descobrira o Cdigo, lia o Cdigo. Incrvel. Definitivamente sumiu diante dafilha. Ela que conversou com o advogado, estabeleceu os quinhes dela e de Ana Teresa(favorecendo esta) e concludo o inventrio passou a tomar conta de todos os negcios. Do paiinclusive.

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    Nas frias de fim de ano Ana Teresa caiu doente de escarlatina. Joaquim queria chamar o velhoDr. Tibrcio que receitava calomelanos a trs por dois e j tratara da menina por ocasio de

    uma coqueluche. Mas mana Maria telefonou para o Dr. Samuel Pinto, recm-chegado daEuropa, com prtica dos hospitais de crianas de Berlim, Viena e Paris.

    Dr. Samuel chegou, mandou abrir as janelas do quarto. Ar, ar. Tratamento moderno. Aescarlatina cedeu. Ana Teresa se levantou.

    Nada de excesso, recomendou o Dr. Samuel. Escarlatina molstia traioeira, costuma deixarmarca. Alimentao sadia, ginstica, muita ventilao durante a noite.

    Ana Teresa j estava perfeitamente boa e o mdico prosseguia nas visitas. Mana Mariaestranhou.

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    - Mdico moderno, voc quis mdico moderno, agentar com a explorao - falou o pai.

    Ento mana Maria escreveu um cartozinho para o Dr. Samuel Pinto pedindo a conta. E ele amandou bem mdica. Joaquim comentou:

    - Esquisito. S se para garantir o cliente. Deve ser isso.

    Ana Teresa voltou para o colgio nem alegre, nem triste. Estava habituada a obedecer. Recebiaas coisas boas e ms com a mesma mansido. Mana Maria resolvia por ela e ela aceitava aresoluo. Nunca lhe passou pela idia discutir isto ou aquilo. exprimir suas preferncias,mostrar um tiquinho que fosse de vontade. At nas coisas mnimas. Aceitava sempre o que lheofereciam e quando lhe concediam o direito de escolha se decidia sempre pela ltima oferecida.Mana Maria perguntava na mesa:

    - Voc quer banana ou laranja?

    Ana Teresa respondia:

    - Laranja.

    Se a pergunta fosse laranja ou banana ela diria banana. Ainda quando houvesse tambm pra eesta lhe apetecesse mais.

    Uma noite, j fazia quinze dias que Ana Teresa tinha ido para o colgio, a criada anunciou o Dr.Samuel Pinto para mana Maria. Mana Maria tirou os culos, levantou o olhar do livro, fixou-o nacriada. Pensou: - O que ser? Mas disse:

    - Faa entrar.

    Ficou um momento imaginando o que seria, passou diante do espelho sem nenhuma olhadela efoi receber o mdico. O Dr. Samuel falou logo:

    - Desculpe no ter vindo mais cedo. Hoje foi um dia cheio de servio.

    E mana Maria muito calma:

    - Mas deve haver engano. Daqui de casa no se fez nenhum chamado.

    Dr. Samuel, sentado no sof, com um livro na mo arregalou os olhos num bruto espanto:

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    - Oh! mil desculpas, foi o recado que me deram.

    Mana Maria imvel, o olhar parado, as mos paradas no colo, considerava aquele moreno meiocareca, subitamente ruborizado, que lastimava o engano de sua enfermeira, uma alem aindano muito familiarizada com a lngua portuguesa. Estava mentindo. Era visvel. Que que oteria levado ali? Impossvel, mana Maria (Dr. Samuel agora se estendia sobre os criados em

    geral, sua negligncia, sua insolncia diante dos patres) se decidia diante do menor gesto dointruso a dar um grito que faria vir dos fundos da casa a copeira, a arrumadeira, a cozinheira.No. Ele no ousaria tanto. E se ousasse ela no apelaria para ningum. Sozinha, sem elevar avoz, talvez com um simples olhar, poria o atrevido imediatamente no olho da rua.

    Dr. Samuel perdia aos poucos o desembarao dos primeiros instantes. J gaguejava, dizia o jdito procurava palavras. Mana Maria reparou (como j fizera durante as visitas a Ana Teresa) navoz cantada que abria as vogais, arrastava os erres, prolongava as tonais. Na terra dele que agente ainda encontrava empregados como os de outrora, humildes e fiis. Mana Mariaperguntou:

    - Que terra?

    - Sergipe.

    Ela bem que estava percebendo. Dr. Samuel tinha saudades daquela terra. Estava radicado emSo Paulo. Mas pretendia (talvez em breve) voltar para l, rever o seu bero. Que que deu emmana Maria? Ela no sabia ou no queria saber. O fato e que disse:

    - Com certeza deixou uma noiva l?

    Qualquer coisa iluminou os olhos midos do Dr. Samuel e ele readquiriu a desenvoltura doprincpio. As frases tornaram a sair fceis, redondas, descansadas. Que penetrao psicolgicaa de Dona Maria. Que extraordinrio esprito observador. Como que adivinhara que ele erasolteiro? Porque no usava anel? No, porque hoje em dia poucos maridos o usam. No haviadvida: admirvel esprito de observao. E esse dom aliado cultura, a uma educao perfeita,era a maior riqueza a que o homem pode aspirar.

    Dr. Samuel (como se percebesse o nojo nascente de mana Maria) cortou os elogios e confessouque no tinha noiva. Mas pensava seriamente em casar, est visto. Sentia at que precisavacasar. O casamento era um ideal que todos, todos, homens e mulheres, sem nenhuma exceo,deviam acalentar. Pois no exato? Mana Maria no disse nem sim nem no.

    Dr. Samuel esboou um sorrisozinho. Naquele livro que ele tinha ali, por exemplo, um romancefrancs, havia uma frase sobre o casamento, que lhe parecia admirvel. Ele ia traduzir. No:traduzir trair, como dizem com acerto os italianos. Seria mesmo em francs. Mas Dona Mariahavia de prometer primeiro que no caoaria do francs dele. Mana Maria (tomada de uma idiaque ela pensava perversa) em vez de prometer falou:

    - Eu mesma leio. Com licena um segundo. Vou buscar meus culos.

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    Foi. Veio com os culos postos. Num timo procurou ler no rosto do Dr. Samuel a impressoproduzida. Leu. Disse:

    - Acho banal.

    E devolveu o livro.

    Dr. Samuel concordou em que no era coisa original mas no s o original que admirvel.Ou Dona Maria por acaso seria adepta das idias modernas, do futurismo?

    Mana Maria, conservando os culos, fez um gesto vago. E a copeira (com quem ela trocaraduas palavras rpidas quando foi buscar os culos) apareceu pra dizer que a pessoa que DonaMaria mandara chamar estava na cozinha esperando. Mana Maria falou:

    - Vou j.

    E se levantou olhando o Dr. Samuel. Dr. Samuel tornou a perder o jeito. Levantou-se tambm.sentia-se que ele levava consigo uma poro de coisas que desejava falar, desculpou-se peloincmodo que dera, lastimou mais uma vez o equvoco da enfermeira e tomando coragem(falando, ele tomava coragem) fez questo que Dona Maria ficasse com o romance. Ele j tinhalido. Ou por outra: estava relendo.

    Dona Maria veria que livro admirvel era. Mana Maria recusou. Ele, fazendo muitos gestos, coma voz meio alterada, ps o livro na mesa. No, positivamente no levaria o livro. Ficava ali emtimas mos. E Dona Maria que no se preocupasse em ler depressa. Lesse com todo o vagar.Depois telefonasse que ele mandaria buscar. J com o chapu na mo, hesitou um instante,acrescentou:

    - Ou ento, se a senhora me quiser dar a honra de trocar impresses sobre ele, eu mesmo vireibuscar. Sem incmodo nenhum. S prazer, imenso prazer.

    Mana Maria lhe estendeu a mo.

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    Fechou a porta. E esta agora? Virou-se. Olhou o livro. Francamente. Deu uns passos, ps amo no livro, ps o olhar na Paisagem de Outono da parede, tamborilou os dedos na capaamarela do romance. Mordeu o lbio superior, o inferior, de novo o superior. Foi cerrando osolhos, cerrando, cerrou. Ento viu claro o que tinha a fazer. Pegou no livro, pediu papel ebarbante para a copeira (qualquer um serve!) embrulhou, amarrou nervosamente. Escreveu: AoSenhor Doutor Samuel Pinto. Procurou o endereo na lista telefnica. Residncia ou escritrio?Mandava para a residncia. Teria telefone? Tinha. Apartamento. A palavra deflagrou a

    imaginao de mana Maria. Apartamento, champanha e mulheres. Um tango dizia assim. Todosos santos dias ouvia no rdio. Quero um apartamento com champanha e mulheres. Champanhae mulheres. Mulheres. Escreveu o endereo. Mandava levar amanh cedo. Sem uma linha quefosse de agradecimento? Agora ela no ia abrir o embrulho. Colocaria o carto por fora, entre o

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    barbante e o papel. No. No colocaria nada. O livro s. Para o atrevido compreender. Atrevido?Mana Maria pesou a palavra, pesou-a bem, arrependeu-se. Afinal que atitude era aquela? Paraque ferir o moo com tamanha grosseria?

    Mana Maria sentou-se diante da secretariazinha, tirou da gaveta um carto de luto, molhou apena no tinteiro, escreveu por cima do nome: Com os melhores agradecimentos de... Rasgou o

    carto. Pegou outro. Escreveu: Com os agradecimentos de... Leu uma poro de vezes: Com osagradecimentos de Maria H. Pereira. Comeou a pr a data por baixo do nome. Escreveu SoPaulo e parou. Rasgou o carto. Levantou-se, foi at a janela, da janela at a porta que davapara o corredor, deu duas voltas na chave, veio at o meio do quarto, parou, olhou para oespelho. E deu um jeito no penteado. Foi para a escrivaninha de novo. Precisava agradecer olivro, falar no livro. Seno um estranho que visse o carto no saberia que agradecimentos eramaqueles.

    Agradecer o livro e dar o nome do livro. Assim afastaria todas as suspeitas ruins. Levantou-se.No. Ia ler o livro. Desfez o embrulho. Assim em duas linhas daria sua impresso, ele noprecisava aparecer para perguntar. Mas tambm se desse ele seria capaz de aparecer para

    discutir. Nunca hesitara assim. Nunca. Por que no ficava na primeira idia? Como sempre?Levantou-se. Diante do espelho passou os dedos pelas sobrancelhas. O embrulho j estavadesfeito, lia o livro. E amanh cedo mandava. Pronto. Estava resolvido o assunto.

    Abriu a porta. O carrilho da sala de jantar deu dez horas. Ela correu a casa inteira para ver se acriada fechara todas as portas e janelas. Foi para o banheiro. Furiosamente escovou os dentes.Como de costume: furiosamente. Bochecho e gargarejo com gua oxigenada.

    Tinha a mania da higiene. Vivia lavando as mos, escovando as unhas. E nas coisas da casaexigia asseio e ordem. Queria tudo limpo e no seu lugar. Andava sempre com um leno na mo

    e no sentava numa cadeira sem antes passar o leno nela. Agora, no banheiro, continuava atoalete rigorosa. E acabou deixando tudo como encontrara: cada coisa no seu lugar.

    Fechou-se no quarto. Deitou-se, abriu o livro. Dez e pouco. Antes da meia-noite estava lido.Principiou pulando a descrio do parque porque detestava descries. Um parque: j se sabe oque . Ela e ele voltam de seu passeio a cavalo. So noivos. Conheceram-se num baile. O paidela estava na iminncia de uma runa. O pai dele, em vez, era riqussimo. Casamento deconvenincia? O autor dizia que sim e que no. Que sim na inteno do pai. Que no porque elagostava do feitio esportivo do noivo. Muito que bem. Esto voltando do seu passeio matinal. Derepente (na pagina 27) Bismarck, o co pastor alemo, pula diante dos cavalos. E o dela seespanta, pula tambm, ela cai na areia branca da alameda. carregada sem sentidos para o

    castelo. Na pgina 43 o jovem mdico abana a cabea e diz para o visconde:

    - Fratura dupla no tero superior do fmur.

    O pai desesperado pergunta:

    - Ficar defeituosa?

    O jovem mdico mais uma vez abana a cabea:

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    - A cincia tudo far para evitar tamanha desgraa.

    Mas na pgina 98 a cincia depois de mil esforos inteis se declara vencida: aquela flor deuma estirpe milenar ficar com uma perna mais curta que a outra. O visconde trata de apressaro casamento. E h uma cena horrvel em que a aleijadinha ignorante de seu defeito faz umesforo supremo (quer receber o noivo levantada) deixa a cama, o p falseia, ela d um grito e

    tomba sem sentidos. Agora, o noivo mal disfara sua repugnncia. Enquanto que o mdicoredobra sua dedicao. O choque moral tremendo, bem mais perigoso que o fsico. A cinciavela. A cincia s? O autor insinua que o amor, o amor tambm vela.

    A pgina 167 toda ela a transcrio da carta em que o esportista rompe o noivado, tristedocumento de um invertebrado moral. E como o visconde julga enojado. Mais nojo ainda lhecausa a insistncia dos credores cuja sanha o projetado casamento amenizara um pouco.Precipita-se a catstrofe: a filha aleijada, o visconde arruinado, castelo, parque, terras, tudovendido em hasta pblica. De que modo resistir a tamanha dor e tamanha vergonha? Na salados retratos, onde lado a lado figuravam os antepassados (quatro com o basto de Marechal deFrana) o visconde estoura os miolos no momento exato em que pisavam as escadarias do

    castelo as autoridades judicirias que iam proceder ao inventrio dos bens.

    Mas o amor vela. E na pgina 233 um moo de cincia e uma moa coxa (casados horas antes)pelo porto dos fundos deixam o castelo (j propriedade de um fabricante de conhaque) parauma vida modesta de trabalho e rica de afeio.

    Meia-noite e um quarto. Joaquim Pereira entra em casa, bate na porta da filha.

    - Ainda est acordada, mana Maria? Est sentindo alguma coisa?

    - Nada disso. Estava lendo.

    - Boa noite.

    - Boa noite.

    Apagou a luz. Virou do lado direito. Romance bobo. Um mdico se casava com uma aleijada. Eagora um mdico queria casar com uma, uma, uma feia. Mas feia que sabia que era feia, noescondia sua fealdade, at aumentava, aumentava de propsito. Por que motivo?

    Mana Maria se revia indo para a Escola Normal com Dejanira e Alice. Ela saia de casa, Dejanira j estava esperando na porta do n.0 53, se juntavam. dobravam a esquerda, Alice estavaesperando no n.0 17, tocavam para a Escola. Com passagem forada pelo Ginsio Piratininga.Onde as gracinhas choviam. Tetias, diziam. Tetias. Dejanira e Alice fingiam que nogostavam. Mana Maria gostava sem fingir que no. Aos poucos porm foi percebendo que astetias eram duas com excluso sua. Dois ginasianos mais ousados passaram a se dirigirdiretamente a Dejanira e Alice. Mana Maria props:

    - Vamos passar agora pela outra calada.

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    Mas as amigas no concordaram. Mana Maria no insistiu. E se remoeu de despeito.

    Um dia no encontrou Dejanira na porta do 53. Tocou a campainha, a me de Dejanira informouque ela j tinha sado. Dobrou a esquina. no viu Alice no nmero 17. E a irmzinha informouque Alice j tinha sado. Na calada do Ginsio Piratininga os estudantes formavam grupinhos.Mana Maria passou por eles completamente despercebida.

    Junto de uma rvore, a um quarteiro da Escola, havia dois casais parados. Mana Mariareconheceu logo os namorados. Sentiu um peso nas pernas. Passava fingindo no ver?Passava. Com o rosto em fogo passou. Dejanira chamou:

    - Maria!

    Nem se virou. E a explicao na Escola foi um sofrimento para ela. No tem importncia, dizia.

    Na sada viu os dois estudantes no mesmo ponto em que de manh os descobrira com asamigas. Disse para elas:

    - At logo!

    E sem querer ouvir o que elas falavam passou pelos moos j de chapu na mo (era de ironiao olhar que lhe dirigiram, cachorros), apressou cada vez mais o passo, chegou ofegante emcasa. Da por diante ia sozinha para a Escola e sozinha voltava para casa. Pensou milvinganas, cartas annimas avisando os pais por exemplo. Mas atentou na mesquinhez delas edesistiu. Entretanto sua amizade com Dejanira e Alice esfriou. Mal se cumprimentavam

    passados poucos dias. Deu ento de reparar na atitude indiferente dos homens para com ela.Indiferente - ou respeitosa? Dava no mesmo. Quantas vezes ela andava, um, dois, trs,quarteires atrs de uma saia qualquer, uma, italianinha suja, uma mulatinha at, ouvindo osgracejos que dirigiam para a italianinha, para a vagabunda. Ela no ouvia nenhum. E o maisesquisito que quando mana Maria se aproximava muitas vezes os gracejos dirigidos italianinha ou mulatinha cessavam. Por respeito dela, mana Maria. Isso lhe dava um amargore ao mesmo tempo um orgulho indefinveis. Era respeitada. No era desejada.

    Foi ai que se tornou a primeira de sua classe. O que perdia por um lado, queria ganhar poroutro. E ganhava. Tambm se tornou severa para as mulheres, no juzo e no trato. Umaslevianas e umas idiotas. E se maltratava. At em frivolidades. Era Filha de Maria. Um pequeno

    sacrifcio por dia, aconselhava o vigrio. Vontade de se olhar no espelho e no se olhar, porexemplo. Mana Maria levava a coisa ao extremo: passava o dia inteiro sem por os olhos numespelho, sem beber gua, sem comer carne. Veio nela o desejo de ser a primeira em tudo, umesprito de emulao que a levava a passar na frente de todas as mulheres que encontrava narua. Apostava consigo mesma: Chego na esquina antes daquela gorda. E chegava.Aparentemente se masculinizou: sapatos de salto baixo, abolio do decote, supresso de jias,mangas compridas.

    Por ocasio das festas de formatura de normalista recebeu um golpe dodo com a sua escolhapara fazer de pai da ingnua na comdia Quem com Ferro Fere... a ser representada no TeatroMunicipal. O Professor Tadeu, autor da pea, a indicara como a nica aluna capaz de fazer bem

    o papel. Ela recusou.

    O Professor Tadeu, burrssimo, insistiu pensando ser amvel mas magoando-a ainda mais:

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    Naquela tarde precisava falar com o advogado por causa de um inquilino atrasado. Eram trshoras quando ela perguntou para o empregado:

    - O Dr. Tobias est?

    No estava, s voltava s cinco. Saiu. Em frente, o Cine Universal engolia um homem de fraque.Olhou o cartaz: Greta Garbo em Mulher Vendida. Detestava vampiros. Hesitou entre o cinema euma volta vagabunda pela cidade. Cinema. A indicadora mostrou com uma lmpada o nicolugar vazio. Pescadores barbudos decepavam com um s golpe certeiro a cabea dos peixesprateados.

    E a orquestra tocava a Serenata de Toselli. Luz. O cavalheiro sua esquerda murmurou:Perdo! E puxou a aba do fraque. Mana Maria se sentara na aba do fraque. O homem dofraque. Usava pencine. No cabar fumarento Greta Garbo diante de um clice vazio cismavacom o olhar distante. E uma sujeita de boina fazia o possvel para desviar a ateno docompanheiro daquele olhar distante. Mana Maria percebeu a agitao do homem do fraque seremexendo na poltrona. Justo no momento em que o olhar distante como que por acaso secruzou com o do seu admirador a mo do homem do fraque se pousou com hesitao na pernade mana Maria. Um pulo, um comeo de escndalo e mana Maria precipitadamente demandoua sada. Na rua se perguntou se fizera bem em no esbofetear o imundo. E se respondeu quesim. Fizera bem. O que sentia era um misto de indignao e de nojo. Uma vontade de bater.Mas fora melhor assim. Cachorro. Um txi passou. Tomou-o e mandou tocar para casa. Oadvogado ficava para outro dia. Fechou-se no quarto pensando que devia ter esbofeteado ocachorro.

    Comeou a andar (deu mais uma volta na chave do armrio, endireitou uma cadeira, o vaso deflores, as almofadas), sentou-se na cama. E sentiu perfeitamente na perna esquerda um peso,

    uma presso. Arrepiou-se, se levantou. No tinha ningum. De repente lhe veio essa idia. Viviasozinha. Vida estpida de isolada. No tinha me, o pai na rua o dia inteiro, a irm no colgio oano todo, no tinha amigas. Que coisa mais esquisita: no tinha amigas. Ia visitar tia Carlota.

    O telefone tocou, depois a criada bateu na porta. Era o advogado. Que quinze dias de prazo,nada. Cinco no mximo. E se no pagasse, executasse. Deixou o telefone mais calma. A criadainformou que o Dr. Samuel Pinto j telefonara duas vezes. A est. Tinha o Dr. Samuel Pinto.Dando ordens na cozinha, mexendo no jardim, verificando a conta do emprio, no tirava opensamento do Dr. Samuel Pinto.

    J no ia visitar tia Carlota. J no se sentia to sozinha. Mas como sempre a hiptese de umcasamento era sumariamente afastada. Se contra a vontade atentava nela, todo o bem-estarque lhe produzia (quisesse ou no quisesse) a certeza daquela inclinao do Dr. Samueldesaparecia. Que esperana. Ainda que a mo fosse do marido e o marido fosse o Dr. Samuel.Que esperana. Pensava que no era bem isso. No queria saber de homem e acabou-se. Nemde homem nem de coisa nenhuma. Pois mais duas telefonadas inteis deu o Dr. Samuel aqueledia. E mana Maria cada vez mais calma, mais dona de sua vontade, mais senhora de si, maismana Maria, desviou seu pensamento do Dr. Samuel Pinto, ouviu pacientemente a conversaintil do pai, jantou bem, concluiu uma blusa de tric, dormiu sossegada.

    7

    Joaquim Pereira tirou o chapu, estendeu o jornal para mana Maria:

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    - Tem uma notcia a que interessa voc.

    E mostrou com o dedo. Mana Maria leu e fincando o olhar no pai:

    - Interessa por qu?

    Joaquim desconcertado por aquele olhar to duro balbuciou:

    - Por nada, ora! Por se tratar de seu mdico moderno!

    Mana Maria ps o jornal na mesa, olhou de novo para o pai. No. No havia segunda intenonenhuma nas palavras dele. E o olhar perdeu a dureza tranqilizando o chefe de seo doServio Sanitrio que comeou logo a alinhar as vantagens de uma viagem de estudos aos

    Estados Unidos por conta da Misso Rockefeller. Dr. Samuel Pinto fora escolhido entre muitoscandidatos e isso demonstrava o valor dele. Ia estudar a organizao de hospitais de crianas.Estava feito na vida. Naturalmente o governo, assim que ele voltasse o incumbiria da fundaode hospitais, ou nomearia diretor-geral, o que o Dr. Samuel quisesse. Quanto clientela, nemera bom falar.

    Mana Maria ouviu e comentou:

    - Poltica.

    E apesar dos protestos do pai no disse mais nada. Um momento ela pensou na possibilidadede qualquer relao entre os propsitos casamenteiros do mdico e aquela viagem. Viagem denpcias custa da Misso Rockefeller? Despeito por causa dela? O esprito crtico em manaMaria era bem mais forte do que qualquer sentimento de vaidade. Sem nenhuma emoopendeu para a primeira hiptese. Ficava o desejo dele de se casar com ela. E isso era coisaresolvida, morta, no a preocupava mais. No perdia tempo com coisas inteis. A pretenso doDr. Samuel era coisa intil.

    Todos os santos dias o Dr. Samuel telefonava para ouvir da criada que Dona Maria no estavaem casa e nem dissera a que horas voltava. At que uma tarde Joaquim Pereira chegou emcasa com a notcia de que o Dr. Samuel estivera no Servio Sanitrio. Vinha encantado com oDr. Samuel. Que moo mais amvel. E inteligente. Conversa bonita. Dentro de trs meses partiapara os Estados Unidos. Estava aprendendo ingls. Falara muito em Ana Teresa, em manaMaria. verdade. Ele no sabia que o Dr. Samuel tinha estado h pouco tempo com manaMaria. Houve um equvoco e ele pensou que o tinham chamado. Joaquim falou:

    - Voc no me contou nada. Ele me disse at que lhe emprestou um livro, um romance ou nosei qu, em francs?

    Mana Maria confirmou percorrendo o jornal da tarde que o pai trouxera. Dr. Samuel faziaquesto fechada de apresentar suas despedidas pessoalmente para mana Maria. E Joaquimlembrou:

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    - Se a gente oferecesse um jantar para ele hem? Que tal?

    Mana Maria detrs do jornal respondeu:

    - No.

    Que diabo. Mana Maria parece que j estava implicando com o moo que tratara to bem deAna Teresa e cobrara to pouco. No custava nada dar um jantar.

    Mana Maria ps o jornal no colo:

    - No, papai.

    Pela primeira vez diante da filha, Joaquim Pereira tentou uma resistncia. Pensasse bem. Ele sefalava em jantar porque o Dr. Samuel dera a entender, quer dizer, ele era muito delicado,moo educado, no falou claramente mas deixou perceber que teria grande prazer nisso e tal.Mana Maria examinava as unhas. E ele - que que havia de fazer? - ele por sua vez prometera,quer dizer, no fizera um convite franco, mas insinuara tambm que possivelmente jantariam juntos e tal. Logo. Logo, porque o Dr. Samuel antes de embarcar para os Estados Unidosprecisava passar uns tempos no Rio e quem sabe mesmo dar um pulo at Sergipe. Que diabo.No custava nada fazer uma gentileza para o moo.

    Mana Maria sem erguer o rosto virou os olhos na direo do pai:

    - Pois oferea o senhor o jantar num restaurante.

    Joaquim se queixou:

    - Voc me pe numa situao!

    Durante algum tempo jantaram em silncio. Houve um momento porm em que Joaquim Pereirafez um gesto bem mal fingido de quem se lembra de repente:

    - Que cabea! Ele quer saber se voc gostou do tal livro!

    Mana Maria veio com outra pergunta:

    - Ele, quem?

    Joaquim se impacientou:

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    - Ora, quem! O Dr. Samuel!

    Ento mana Maria destacou as slabas:

    - De-tes-tei!

    E a queixa voltou:

    - Voc me pe numa situao!

    - Bem menos difcil do que o senhor pensa.

    - Isso voc diz. Agora eu tenho que dar uma resposta amanh para o moo! Imagine a minhacara! Eu no sei ser malcriado, uma coisa que no est em mim, que que voc quer que eufaa?

    - Nada.

    - Como, nada?

    - Mas, papai, o senhor est dando importncia a uma coisa que no tem nenhuma!

    - Tem! Como que no tem? Ento o moo se desfaz em gentilezas e eu vou ser grosseiro paraele?

    - Mas o senhor no vai ser grosseiro. Depois, no vejo onde esto as gentilezas do moo.

    - Ah! bom! Voc no v as gentilezas! Ah! bom Ento no discuto mais!

    - Mas quem que est discutindo, papai? Que nervosismo esse? Homem!

    - Sabe de uma coisa? Ele me pediu sua mo em casamento! Pronto! Acha pouco?

    - Acho idiota.

    Pela primeira vez o pai chegara a engan-la por uns instantes. Nem ela podia imaginar que oDr. Samuel Pinto ousasse tanto. Mesmo quando, com o nervosismo do pai, percebeuclaramente que sob aquela insistncia inacostumada havia uma inteno oculta no pensounum pedido formal de casamento. Naturalmente o Dr. Samuel, elogiando-a, dissera do seu

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    desejo de constituir famlia, que nem falou para ela. E Joaquim Pereira pegara logo a coisa noar.

    Agora o silncio punha entre os dois uma distncia imensa. Joaquim acendeu um cigarro. Nocompreendia aquela atitude da filha. Nunca pensara na possibilidade de um casamento paramana Maria. Nunca a realizara casada. Mas agora que uma oportunidade se oferecia todos os

    seus instintos casamenteiros de pai acordavam. E se irritava diante da oposio da filha.

    Mana Maria aproximou o cinzeiro:

    - No derrube a cinza na toalha, papai.

    Joaquim se levantou, deu alguns passos, parou ao lado da filha, teve um mpeto carinhoso delevantar a cabea de mana Maria pelo queixo, reprimiu-o, disse baixinho o que pensava:

    - Mas eu no compreendo...

    Mana Maria fingiu ajudar:

    - O qu?

    Essas interrupes (ela sabia) o desconcertavam sempre. Por isso engoliu o resto:

    - Nada. Uma coisa aqui que eu... Nada.

    Mana Maria dobrou os guardanapos, ps as xcaras de caf na bandeja, saiu.

    O pai pensou: - Vai escovar os dentes.

    De fato: entrou no banheiro.

    Aquela calma incrvel o punha fora de si. Era pedida em casamento e ia escovar os dentes.Como todos os dias, como se aquele dia fosse igual aos outros. Uma calma irritante. Sua filhaera um monstro. Pensou e se arrependeu envergonhado. Que maada. Que maada. Puxou orelgio: oito horas. Tinha um encontro na cidade s nove.

    A copeira veio arranjar a sala, deu com ele, voltou. Mana Maria surgiu logo:

    - Vamos para a saleta, papai, que a Ernestina; precisa acabar de tirar a mesa.

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    Mana Maria sentou no sof, Joaquim hesitou um pouco e sentou ao lado. Ps as mos nosjoelhos tomou coragem.

    - Voc pensou bem?

    - Papai, melhor dar por encerrado esse assunto. O senhor se irrita e no adianta nada.

    - Mas que que eu vou dizer pro moo?

    - Que o pedido no foi aceito.

    - Mas no foi aceito por qu?

    - Porque eu no pretendo me casar.

    - Mas no pretende por qu?

    - Porque no.

    Joaquim teve um gesto de desanimo. Depois lhe veio uma idia:

    - Mana Maria, voc ama algum!

    - Ora, papai, deixe disso.

    O tom era tal que ele mudou de ttica:

    - Voc j refletiu sobre sua vida? Voc j pensou na possibilidade de ficar s no mundo comAna Teresa?

    Mana Maria se contentou em sorrir. E pai (atentando no ridculo do argumento aos olhos dequem sempre soube se governar por si) procurou corrigir:

    - Eu sei que voc no precisa dos conselhos da ajuda de ningum nesta vida. Mas um homemem casa sempre representa alguma coisa, que diabo!

    Mana Maria com a boca semi-aberta sacudiu a cabea primeiro, depois fincou o olhar naspupilas do pai:

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    - O senhor est falando srio?

    Joaquim perdeu o jeito de uma vez. S teve uma sada:

    - Voc sua me escarrada, nunca vi!

    E acendeu outro cigarro. Ficou com o fsforo apagado na mo, quis guarda-lo na caixa, manaMaria apontou com o dedo:

    - Olhe ali o cinzeiro.

    Estava infeliz. Era intil. No podia com a filha. Mas lhe custava se declarar vencido. Tudo nelese revoltava contra a deciso de mana Maria. E por mais que se esforasse no conseguia

    esconder o que lhe ia por dentro. Arquitetava e destrua planos. E se amesquinhava com acerteza humilhante de sua fraqueza. De repente lhe veio uma idia. No deu a si mesmo tempopara arrepender e disse:

    - Muito que bem. No digo mais nada Mas tambm lavo as mos e no me meto mais nisso.Voc que responda pro moo como entender. E boa noite que preciso sair.

    Deu dois passos na direo do guarda-chapus. Mana Maria falou devagarinho:

    - Mas, papai, o senhor mesmo no sustentou h pouco a utilidade de um homem em casa? Eme incumbe de uma coisa que cabe ao senhor? Ao senhor e mais ningum?

    Qual o qu. O melhor era se confessar mesmo vencido. Mana Maria reconheceu imediatamenteo Joaquim Pereira de sempre:

    - Amanh no almoo a gente continua isso.

    E sem esperana nenhuma:

    - At l, voc pense melhor.

    E com a mo no trinco:

    - O travesseiro bom conselheiro. At amanh.

    Mana Maria falou:

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    - At logo.

    J no terrao, antes de fechar a porta, Joaquim balbuciou:

    - Quero dizer: at logo.

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    Tia Carlota vivia sorrindo e mostrava dentes bonitos. Mana Maria tinha um fraco por ela. S apresena de tia Carlota faz bem pra gente, disse um dia. A me falou:

    - Voc tambm acha? Quando ela era moa toda gente dizia isso. Os moos, ento!

    Purezinha no sabia que ainda depois de casada a irm com sua presena fazia bem aoshomens. A ela, dava uma impresso de desordem. E s outras mulheres, de perigo. ManaMaria, severa com as mulheres (sobretudo do temperamento da tia), abria uma exceo paraaquela criatura alegre que a divertia, at a enternecia que nem uma criana. E era mesmo umacriana.

    - Deus no me deu filho (dizia tio Laerte) mas me deu uma mulher que uma menina perfeita:esposa e filha ao mesmo tempo.

    Era quinze anos mais velho do que ela, sofria de asma e nunca soube o que era trabalho.

    Mana Maria (antes que a criada lhe anunciasse a visita) ouviu da copa o som do piano: tiaCarlota na certa. Tocava um tango maneira dela: velozmente, trepidamente. Assim executavatudo, fosse o que fosse. E nunca ia at o fim. Mal percebeu a entrada de mana Maria, deu umsoco no teclado (- uma lata este piano!), meia volta no tamborete e um pulo:

    - Bom dia!

    Sentaram-se no sof.

    - Tire o chapu - disse mana Maria.

    - No, prefiro ficar com ele por causa da ondulao - respondeu tia Carlota.

    - Como queira.

    - No; melhor tirar.

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    Tirou, abriu a bolsa, olhando o espelhinho ajeitou as ondas.

    - Voc no tem um espelho decente nesta sala? Ento vou no seu quarto.

    Penteava, passava a escova, acariciava o cabelo com a mo, no acabava mais.

    - Para fazer a boca prefiro o da bolsa.

    Perto da janela, com a bolsa aberta bem erguida na mo esquerda, o lpis na direita, fez,desfez, fez, desfez, fez a boca.

    - Agora um pouco de p-de-arroz. Este nariz a minha diferena. Tenho horror de narizvermelho! E voc?

    Mana Maria nem respondeu. Agora as pestanas. Molhava a escovinha na boca, passava naspestanas. Agora as sobrancelhas, dois fios. Agora de novo a boca. E de novo o penteado. Emais um pouco de p-de-arroz.

    - No se toma ch nesta casa?

    - Toma-se!

    - Ento v providenciar enquanto eu dou inspeo nas unhas.

    Um minuto depois mana Maria voltou encontrando tia Carlota bastante contrariada.

    - Eu acabo no tocando mais piano por causa destas malditas unhas! No h dia que nolasque uma! Que horror! Que que tem para o ch? Uma poro de coisas gostosas? timo.Estou com uma fome! Voc no pode imaginar como a Etelvina est cozinhando mal! Quaseno almocei. Tambm eu para dona de casa no tenho jeito mesmo, intil! Voc, sim, puxou

    por sua me! Como vai Ana Teresa?

    - Vai bem.

    Tia Carlota tomou dois goles de ch, engoliu um pedacinho de bolo, suspirou:

    - Pronto! J estou farta! Que ser, hem, Maria? Em tudo eu sou assim! Estou com fome, sentona mesa, perco a fome! Vejo um vestido bonito, compro o vestido, me enjo logo! Que ser?

    - Fartura.

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    - Fartura? o que voc pensa, minha filha!

    Acendeu um cigarro, cruzou as pernas, estalou as unhas, demorou o olhar em mana Maria:

    - Vamos pra outra sala?

    Tinha alguns livros sobre a mesinha redonda.

    - Voc est lendo livros comunistas, Maria?

    - Estou.

    - Que horror! Ali! verdade! Seu pai me falou que voc tem um romance estupendo que um talDr. Pinto lhe deu! Voc quer me emprestar?

    - J devolvi. Foi emprestado, no foi dado. E no tem nada de estupendo.

    - Seu pai que disse!

    - Quando que esteve com ele?

    - Ontem. Achei ele preocupado!

    Tia Carlota de repente pegou nas mos de mana Maria:

    - Vamos! Responda! Por que que voc no quer casar com o Dr. Ismael Pinto?

    - No Ismael: Samuel.

    - Isso mesmo: Samuel.

    - Por qu? Papai que lhe encomendou essa pergunta, est visto!

    - Foi ele sim. Mas isso no tem importncia. Responda pra mim. Por qu?

    - Por que que voc casou com tio Laerte?

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    - Ora essa. Porque... porque gostava dele, porque queria casar.

    - Pois isso.

    - Como isso?

    - No caso porque no gosto do mdico e no quero casar.

    Tia Carlota esmagou o cigarro no cinzeiro (Abdulla tem esse defeito, queima sozinho) tornou apegar nas mos da sobrinha, arranjou um ar grave:

    - Sabe de uma coisa? Voc faz muito bem! No gosta dele, no case! Depois, voc temdinheiro, no precisa de amparo de ningum.

    - Nem que precisasse.

    - Ora essa. Ah! no! Isso no!

    O protesto foi to pronto, to vivo, que mana Maria estranhou. Tia Carlota percebeu aestranheza:

    - Para que essa cara.

    - Nada. Pensava que voc no dava importncia a dinheiro.

    - No dou mesmo. Gasto tudo quanto tenho. Desprezo dinheiro. Dinheiro para um lixo. Jogofora logo. Mas no vale a pena falar em coisas tristes.

    Ergueu-se, foi at o porta-chapus (- Voc precisa reformar estes mveis, no se usa maisporta-chapus de gancho!) olhou de perto a boca, olhou mais de longe os cabelos, suspirou.

    - Bom. Vou dar o fora. Minha misso est cumprida.

    Mas era evidente o desejo de ficar. Mana Maria sentia isso, percebia na tia a vontade, talvez anecessidade de um desabafo.

    - Fique mais um pouco falou.

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    - Est bem. Fico se voc me deixar fumar um cigarro. Quem fuma seus males espanta. Nosabia?

    - Fico sabendo.

    Aquela figura sentada no bordo do sof, de pernas tranadas, o busto inclinado para a frente,cotovelos fincados no regao, a mo que segurava o cigarro altura da boca, mana Maria viasempre, igualzinha, nos desenhos de capa de revista, nos retratos de estrelas cinematogrficas.Todos os gestos e atitudes de tia Carlota eram convencionalmente elegantes, de tela.

    - Que olhar esse? Nunca me viu? No gosto que olhem para mim!

    Mana Maria sempre pensou o contrrio.

    - Voc se engana! Detesto que me olhem! Toda a gente me acha bonita. Me d uma raiva! Euno me acho feia. Mas tambm essa maravilha que dizem!...

    Ento se queixou da vida. Estava farta da vida, estava farta de ouvir elogios. S isso que ouviaem toda a parte, a toda a hora. E de repente:

    - Voc no sente s vezes vontade de fazer uma loucura? No sei bem dizer, uma coisa assimcomo se jogar pela janela, quebrar tudo, apunhalar gente na rua? Eu sinto. Hoje estou nos meusdias. Briguei com Laerte, gritei com os criados, pintei o sete! Este maldito cigarro, se a genteno toma cuidado, queima os dedos. Tambm a ltima caixa...

    - Por qu?

    Fez um sorriso amargo.

    - Por qu? Voc quer saber por qu? Porque no h mais dinheiro! Ah! Senhor! melhor noligar pra esta misria de vida!

    Foi para o piano.

    - Sabe que isso?

    - Viva Alegre?

    - Ainda no, infelizmente!

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    E riu. Mana Maria no achou graa.

    - Voc precisa arranjar uma ocupao qualquer, tia Carlota. Uma coisa que lhe encha o tempo.Uma coisa sria. Um filho, por exemplo.

    - Est doida! Basta o marido! Voc ainda quer me dar um filho! Deus me livre!

    Largou o piano, acendeu mais um cigarro:

    - Isso que eu disse brincadeira minha. Voc precisa se casar.

    Ento chegou a vez de mana Maria rir.

    - No ria no. isso mesmo. Mulher foi feita para casar.

    - E ter filhos.

    - Isso no. Quer dizer: voc por exemplo o tipo da me. Mas eu no. No tenho sade, notenho jeito e agora tambm j no tenho dinheiro.

    Esse assunto de dinheiro no agradava mana Maria. Ia dirigir a conversa para outro lado. Mastia Carlota continuou:

    - Se voc soubesse a apertura em que ns estamos...

    No houve outro jeito seno falar:

    - No possvel.

    - sim.

    E os olhos umedeceram logo porque em tia Carlota as lgrimas eram fceis como a alegria. Foipreciso ir para o quarto de mana Maria onde havia deixado a bolsa com o leno. De p, virandoa cabea de forma a concentrar as lgrimas no canto do olho para chup-las com a pontinha doleno torcida, tia Carlota ia falando:

    - J h tempos eu via Laerte preocupado. At que ontem ele me contou a verdade. De forma

    que este inverno no podemos sair de So Paulo. Veja voc que situao!

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    Mana Maria sem dizer palavra esperava o momento da facada. Recusaria? Recusaria.

    - E de vestidos, ento, nem se fala! A mana Maria falou:

    - Que criancice, tia Carlota! Para que mandar fazer mais vestidos? Voc j tem uma coleoenorme. E toda ela moderna. Esse de hoje por exemplo novo.

    Tia Carlota guardou o leno na bolsa, estava mesmo em frente do espelho grande do guarda-roupa, aproximou-se, passou as mos pelas cadeiras, arqueou os braos, colocou-se de vis esem tirar os olhos do espelho:

    - Voc no acha que ele me engorda um pouco?

    - No. Vai muito bem para voc.

    Tia Carlota comeou a pr o chapu.

    - Se eu pudesse diminuir um pouquinho estes seios! Operao eu no fao, tenho medo. Masno so muito exagerados, voc no acha?

    - Que idia!

    No jardim tia Carlota perguntou:

    - Ento, nada feito?

    - Como, nada feito?

    - Casamento? Seu pai na certa aparece hoje a noite para saber o resultado. No fale nada comele, bem?

    - Fique descansada.

    - Nada feito?

    - Nada.

    Mana Maria acompanhou-a at o automvel. J o chofer batera a porta quando tia Carlota selembrou:

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    - verdade! Vocs vo jantar comigo quinta-feira?

    - Vamos!

    - No se esqueam! s oito horas!

    Mana Maria fechando o porto pensava no presente de aniversrio para tia Carlota. Um vidro deperfume? . Tabac Blond.

    9

    Joaquim Pereira ainda no eram sete horas e j atropelava a filha:

    - Voc no vai se vestir?

    - cedo. Em cinco minutos eu me apronto.

    - Est bem.

    Mas positivamente no estava. Ia para o quarto, perfumava o leno, dava uma escovada no

    cabelo, voltava para a saleta onde a filha lia um jornal da tarde.

    - Olhe que j so sete horas!

    Mana Maria pousou o jornal no colo:

    - Mas, papai, que pressa essa?

    - Voc sabe que eu gosto de comparecer na hora marcada. Acho uma falta de educao agente chegar tarde.

    - Fique sossegado que ns chegaremos a tempo.

    E chegaram. Joaquim se demorou pagando o txi. Depois, como a filha no se movesse dacalada, falou:

    - V entrando, que eu tenho ainda de comprar cigarros na esquina.

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    Mana Maria entrou. E logo no hall, sentado entre tio Laerte e um irmo deste, Major Nicolau,membro do Instituto Histrico e Geogrfico, deu com o Dr. Samuel Pinto. Instintivamente teveum movimento de recuo. Mas foi um segundo. Tio Laerte veio ao seu encontro. Visivelmentecontrafeito.

    - O Joaquim?

    - Vem j.

    Mana Maria apertou a mo do major. O Dr. Samuel Pinto estendeu a sua.

    - J se conhecem, no verdade? falou tio Laerte.

    - J. Boa noite, doutor.

    E quando o mdico afogueado e sorridente observava que h muito no tinha o prazer de a ver,etc.:

    - Com licena.

    Tia Carlota estava na sala de jantar s voltas com um vaso de flores. A mulher do Major Nicolau

    contava as graas do neto. Tia Carlota se enrubesceu um instante. Mana Maria viu o rubor, falouentregando o presente:

    - Para voc perfumar seu aniversario.

    - Ora, para que voc foi se incomodar? Muito obrigada.

    Esperava uma palavra de protesto, uma censura indignada. Mas a calma da sobrinha, seu ar deindiferena, a fez pensar que vinha avisada pelo pai ou ao menos com o esprito preparado.

    Antes assim. A presena do Dr. Samuel lhe fora anunciada horas antes. Ela protestara aprincpio. Falou mesmo em indecncia. Mas o marido, para sua grande surpresa, fincou o p. Eela cedeu certa de que a sobrinha se indignaria, faria um escndalo, qualquer coisa assim. Aresponsabilidade no era dela. E isso mesmo pretendia explicar para mana Maria.

    - Venha tirar o chapu.

    Foram para o toucador.

    - Olhe, Maria, eu lhe dou minha palavra de honra que o convite ao Dr. Samuel...

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    - Eu estou lhe perguntando alguma coisa?

    - No. Mas eu fao questo que voc saiba...

    - Eu no quero saber nada.

    Tia Carlota ficou sem jeito.

    - Ao menos voc no est zangada com comigo?

    - Zangada propriamente, no. Surpresa. Nem isso. Est tudo certo.

    E sorriu. O sorriso doeu em tia Carlota. Humilhou-a.

    - Olhe, Maria, eu no sei o que voc est pensando. Mas eu juro para voc que seu pai e Laerte que arranjaram essa embrulhada. Laerte s me avisou faz umas duas horas, se tanto. E meproibiu que prevenisse voc.

    Era verdade. Mana Maria sentiu. Nunca a tia lhe falara naquele tom de sinceridade.

    - Acredito. Fique descansada que isso no tem importncia nenhuma.

    Voltaram para a sala de jantar. Uma porta envidraada separava-a do hall. Tia Carlota falou:

    - Faam o favor...

    Joaquim foi o ltimo a entrar. Parecia um menino chamado para receber o castigo datravessura. Seu olhar se encontrou com o da filha. Um segundo. Mas bastou para que ele

    percebesse o desastre. De forma que um mal-estar horrvel tomou conta dele. Sem saber bem oque fazia olhou o relgio. O Major Nicolau caoou:

    - Que isso? Est com pressa, homem? Quis dizer qualquer coisa, no soube, sorriudesenxabido. Tia Carlota colocou o Dr. Samuel sua direita e para junto deste mana Maria sedeixou empurrar por tio Laerte. Do outro lado da mesa redonda bem em frente ficou o pai. DonaEster, mulher do Major Nicolau, perguntou para mana Maria:

    - Ana Teresa como vai?

    - Vai bem, obrigada.

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    - J deve estar mocinha.

    Dr. Samuel entrou na conversa:

    - Guardo uma excelente impresso dela. Uma menina muito dcil, muito bem-educada. Develhe dar muita satisfao, pois no?

    Mana Maria no respondeu.

    - Imagine! como se fosse filha dela! - falou tia Carlota.

    - Esta sopa de milho verde?

    - . Voc no gosta? perguntou tio Laerte. O major falou:

    - Gosto muito. Parece espargo.

    - espargo que se diz? Sempre ouvi dizer aspargo.

    O major deu duro na mulher:

    - Espargo, sim senhora! Aspargo falam as cozinheiras. Delas que voc ouviu dizer aspargo!

    - Voc est enganado! Ouvi dizer de muita gente boa.

    - Ignorncia.

    - Mas que discusso! exclamou tia Carlota. Deixa isto para o Instituto Histrico, Nicolau.

    - Se o senhor gosta de Histria, Dr. Samuel, tem aqui um entendido.

    - A Histria mestra da vida, minha senhora. Quem sabe Histria sabe o futuro.

    - Bravos! aplaudiu o major.

    - Para que saber o futuro, agora? Depois cartomante tambm sabe sem estudar Histria. Estoubrincando, Nicolau, no v se zangar.

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    O major arranjou um ar galante:

    - Com voc eu no me zango nunca.

    O que amargou profundamente a mulher:

    - Guarda toda a zanga para mim.

    E comearam ento a discutir, Dona Ester e tia Carlota atacando os maridos que fora de casavendem alegria e no lar implicam com tudo, num mau humor constante. Dr. Samuel achouazado o momento para conversar em voz baixa com mana Maria:

    - Se no fosse esse jantar eu no teria com certeza o prazer de cumpriment-la antes de minha

    partida?

    Mana Maria no abaixou a dela para responder:

    - Com certeza no teria mesmo esse aborrecimento intil.

    - Aborrecimento? A senhora sabe perfeitamente que no seria.

    Mana Maria com o olhar posto no pai, que desviara o seu, foi logo s do cabo:

    - Mas eu creio que lhe dei uma resposta bem clara ao seu pedido de h dias. S se no lhetransmitiram.

    Insensivelmente abaixou a voz que tremeu um pouco. O Dr. Samuel sorriu amarelo:

    - Transmitiram sem me tirar de todo a esperana. Depois, ns do Norte somos tenazes. Nocedemos diante do primeiro obstculo no.

    Mana Maria sentiu o rosto afogueado. Em torno dela era visvel o mal-estar. A discusso sobreos maridos mal-humorados havia cessado. A razo daquela presena cerimoniosa, at entodisfarada, se patenteava grosseiramente mesmo aos olhos desprevenidos do major e suamulher. Havia em todos um ar de condescendncia contrafeita, de cumplicidade acanhada.

    Tia Carlota querendo salvar a situao, piorou-a dirigindo-se ao cunhado:

    - Que tristeza essa, Joaquim? No disse uma palavra at agora.

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    A resposta saiu tmida, arrastada:

    - Eu? Eu estou... ouvindo... No tenho... motivo nenhum para tristeza.

    - Muito ao contrrio - pensou sublinhar com malcia o major.

    Mana Maria foi ganhando um nojo enorme daquela comdia toda. E com o nojo tinha pena dopai, do papel triste que ele fazia ali. Estava arrependido. Era visvel. E temia as conseqncias,o pedido de explicao da filha, a censura fatal que o humilharia. S o sentimento de suasuperioridade dava a mana Maria a calma necessria para no estourar, acabar de uma vezcom a farsa. Ela era a mais forte. E a conscincia disso tornava sem importncia o resto. ejantar podia durar a noite inteira, a vida inteira. Inutilmente. Ela era a mais forte.

    Tia Carlota no tinha vontade nenhuma de conhecer os Estados Unidos.

    - Aposto que o senhor vai se aborrecer, Dr. Samuel. verdade que o senhor vai estudar, no vaise divertir.

    - A senhora prefere a Europa?

    - Tenho uma vontade louca de conhecer a Europa. Mas Laerte no se decide.

    O olhar de tia Carlota era um olhar de subentendidos. Punha reticncias, segunda inteno, nafrase mais banal. Olhar que encorajava. Doutor Samuel aos poucos foi se entregando seduo. Como um derivativo. Mana Maria discutia educao infantil com o major. Dona Estercontava graas do neto para o cunhado, tia Carlota e o mdico pegaram a conversar entresorrisos. Joaquim, sem dizer palavra, fingia prestar ateno a Dona Ester. Inteiramente voltadapara o major, seu vizinho da direita, mana Maria defendia a educao religiosa. At que umarisada mais alta e demorada de tia Carlota desviou para ela a ateno de todos.

    - Sabem o que o doutor acaba de me confessar?

    Doutor Samuel ficou uma pinia.

    - Acredita ainda no teu amor e uma cabana!

    Ningum achou graa. E o mal-estar voltou. O mdico passou a odiar tia Carlota. Uma leviana.Uma mulher perigosa. Naturalmente tinha amantes. Ou ento era dessas que de repente cortama ponte que elas mesmas lanam. O major falou:

    - Mas o Dr. Samuel tem toda razo, Carlota. O amor se contenta com pouco.

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    - S que o doutor se esqueceu dos filhos - disse Dona Ester. - Os filhos completam a felicidade.

    Tia Carlota estava de veneta:

    - Que que voc entende por felicidade? Felicidade para mim no pr desgraados no mundoA est!

    - Ah! Bom ! voc pensa assim...

    Dr. Samuel achou oportuno se dirigir a mana Maria:

    - As crianas so o encanto do mundo, a senhora no acha, Dona Maria?

    Mas foi tia Carlota que respondeu:

    - Para os mdicos de crianas principalmente!

    Ento o Dr. Samuel, a princpio irritado, depois visivelmente deliciado com as prprias palavras,fez o elogio da criana. Para o Dr. Samuel, acreditassem, curar uma criana ele no poderiadizer que era um prazer. Sim. Podia. Era um prazer. Isto : no era dos que curavam porobrigao, com mero fito de lucro. No. Ele punha na salvao do corpo o mesmo ardor que um

    sacerdote poria na salvao da alma.

    - Belas palavras, sim senhor ! - exclamou o major.

    E partidas do corao, acreditassem. Do leito de uma criana doente ele nunca se aproximousem piedade e nunca se afastou sem proveito. A infncia e a velhice so as coisas maissagradas deste mundo porque so as que se encontram mais perto de Deus. Sobretudo aprimeira. Porque o velho vai para Deus purificar-se das misrias do mundo. E a criana vempura de Deus, livre ainda das misrias terrenas.

    - Bravos, doutor ! Eu sempre pensei assim! - falou Dona Ester.

    E com razo. Os povos de civilizao superior tm o culto da criana. Por qu? Porque a criana o futuro, o que conforta e sustenta os homens, aquilo que os anima ainda na hora da morte:a esperana.

    - isso mesmo! "Lasciate ogni speranza..."- aparteou tio Laerte.

    Sim. Na porta do inferno. Ele poderia citar mil casos de sua clnica para provar a superioridadeda criana. Mas seria repetir o que est na conscincia de todos. Contaria um fato s, bastanteeloqente. Tratava ele uma menina, vtima de pertinaz molstia infecciosa. Era rf. Mas tinha

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    ao seu lado quem lhe fizesse as vezes de me e de me extremosa. Um dia, examinando otermmetro, verificou que a doentinha ainda estava com febre.

    E ele ia comunicar isso quela que dia e noite na cabeceira da criana se desdobrava emdesvelos verdadeiramente maternais, e que naquele momento se achava de costas para o leito,quando seu olhar se encontrou com o da doentinha. E naqueles olhos infantis de expresso

    purssima, que a febre tornara ardentes, ele leu claramente um pedido a que no pde deixar dese submeter: o pedido de no dizer nada, de no afligir a enfermeira dedicada, com a notcia deque a febre ainda no cedera. S depois de se retirar do quarto, pondo seu dever de mdicoacima de tudo, que ele fizera a comunicao com tanta grandeza de alma proibida pelacriana.

    - Lembra-se, Dona Maria?

    Era a chave de ouro. Dona Ester emocionada quis falar:

    - Meu netinho tambm...

    Mas no pde concluir. Porque o marido cobria sua voz:

    - o que eu sempre sustentei! Desses gestos s uma criana capaz! Admirvel! Admirvel! Esem saber bem o que dizia:

    - Meus cumprimentos, Joaquim! Tambm para voc, Maria!

    A admirao que sempre lhe causava a facilidade oratria do Doutor Samuel quebrara oembarao mudo do chefe de seo do Servio Sanitrio:

    - Sempre foi de fato uma menina de muitos sentimentos, Ana Teresa! Felizmente.

    Mana Maria procurou uma sada para aquela cena ridcula. Falou no ouvido do major:

    - Creio que hora da sade.

    - ? Voc acha? No ter champanhe? Eu no vejo taa!

    - nesse copo comprido que servem.

    O major observou:

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    - Futurismo.

    E alto para o irmo:

    - Como , Seu Laerte, no tem champanhe para a sade?

    - Tem, como no!

    De forma que depois de um ligeiro protesto de tia Carlota (para quem era bobagem essa histriade sade) se fez um silncio de expectativa. A criada encheu os copos. Feito o qu, o majortomou a palavra de copo erguido:

    - Carlota, queira receber os nossos votos de muita felicidade!Ad multos annos!

    - Muito obrigada pela felicidade e pelo latim! latim, no ?

    - Do bom! Daquele que se ensinava no meu tempo, no desse de hoje.

    Mana Maria perguntou sorrindo:

    - Tem diferena?

    Mas no obteve resposta porque tio Laerte bebia sade de Dona Ester, marido, filhos enetinhos. Pousados os copos, houve nova sade levantada pelo major que desejou muitaprosperidade para o caro Joaquim e suas gentilssimas filhas. A criada surgiu com uma bandejade sorvetes. Tio Laerte falou:

    - Espere um pouco. Tem ainda uma sade. felicidade do Doutor Samuel e ao bom xito desua prxima viagem!

    Dr. Samuel se declarou comovido no seu agradecimento. E reparou que mana Maria mal ergueuo copo sem lev-lo aos lbios. O major achou o sorvete timo. Joaquim e a filha concordaram.Dr. Samuel adiantou que nunca tomara to bom. Dona Ester em vez do esperado elogioperguntou:

    - Sua cozinheira que fez?

    Tia Carlota falou:

    - Quem mais?

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    - Podia ser de confeitaria.

    O major se zangou:

    - ta mulher, meu Deus! Quando que confeitaria j fez sorvete assim?

    Dona Ester ostensivamente deixou o sorvete pela metade.

    - Caf aqui ou no hall?

    - No hall - preferiu tio Laerte.

    Tia Carlota se levantou. Sentada na cadeira de vime depois que o Dr. Samuel lhe acendeu ocigarro comps seu olhar mais perigoso e disse baixo:

    - Perdoe a minha brincadeira de h pouco.

    - Ora, minha senhora! Eu que lhe peo perdo de contrariar suas teorias amorosas.Naturalmente fruto de uma experincia que me falta..

    Era a vingana. Acadmico na Bahia, o Dr. Samuel ganhara fama de terrvel ironista.

    - Voc acha?

    Estranhou o voc. No. Com ironia no ia. Melhor ser cnico. Tinha sempre na lembrana o quelhe dissera sua me sobre as donas da alta sociedade: so as piores.

    - Meu olho de clnico, minha senhora. No falha.

    Tia Carlota desviou o rosto, franziu as sobrancelhas, demorou o olhar na sobrinha queconversava com Dona Ester, encarou o doutor, disse num sorrisozinho:

    - Ento certo o que dizem? Os mdicos s acertam no diagnstico e conseguem curar quandose trata de doena alheia? Quando eles mesmos ficam doentes no sabem se tratar?

    Com mulher daquele tipo ele no sabia lidar. No era a primeira vez que verificava isso.

    - Que que a senhora quer insinuar com isso?

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    Ela fingiu impacincia:

    - Ora! Morda aqui! E a minha experincia amorosa onde que est? Se quiser eu lhe servirei demdico-assistente.

    - No se brinca assim com os sentimentos alheios, minha senhora!

    - Mas eu no estou brincando. E francamente acho seu caso desesperador, sem remdio...

    Dr. Samuel ia ser malcriado. Positivamente. Com certeza tia Carlota percebeu isso no jeitonervoso dele. A criada entrava com o caf, ela disse:

    - Em todo o caso experimente uma xcara de caf. Quem sabe far bem...

    Levantou-se, foi para junto da sobrinha. Ento o major e Joaquim se aproximaram do mdico. Omajor desenvolvia um de seus temas histricos prediletos: a vantagem que resultaria para oBrasil se tivesse vingado a colonizao holandesa. E era uma de suas manias: no diziaHolanda, dizia Batvia. De forma que Joaquim concordava sem entender direito.

    - Hein, doutor? No verdade? O Brasil colnia da Batvia! Que colosso.

    O Dr. Samuel no estava disposto a discutir o que quer que fosse naquele momento. Sentia-sehumilhado. Era homem que se humilhava com facilidade mas no inutilmente. Ento o seuorgulho doa.

    - Sob o ponto de vista da eugenia, por exemplo. Que que o senhor acha?

    O Dr. Samuel no quis achar nada:

    - No sei no. Seria um caso interessante a estudar.

    - um ignorante, pensou o major. E com redobrada segurana prosseguiu em suasconsideraes. Enquanto o mdico procurava tomar uma resoluo. Retirava-se. Despedia-sesecamente e retirava-se. Logo. Mas isso era abandonar a luta e no era de seu feitio abandonaruma luta. Nem at ento fora vencido em nenhuma. Quando Joaquim timidamente, por meiaspalavras, lhe comunicou a resposta da filha ao pedido de casamento, ele perguntara: Ocasamento de seu gosto, pois no? Joaquim pela milsima vez disse que sim. E Dr. Samuel,dominando vontade aquele homem sem nenhuma, obteve dele que arranjasse um encontrocom a filha: - Eu a convencerei, tenho certeza. Mas de que forma? - Joaquim no descobria umjeito bom. Andava procura dele quando lhe apareceu o concunhado para pedir depois de umaconversa muito longa cinco contos de ris por quinze dias. Cinco Joaquim no tinha. O que

    confessou sumamente envergonhado. Tinha (ia dizer trs) mas insensivelmente saiu um. Disse,um, sentiu remorso, acrescentou: um e quinhentos. E ficou em paz com sua conscincia. TioLaerte guardou o cheque e ouviu as queixas de Joaquim.

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    - Ento no quer casar mesmo?

    - Veja voc. Recusar um partido dessa ordem!

    - E ele continua firme? Firmssimo.

    - Ah! Ento fique tranqilo. A Maria acaba cedendo. Voc no conhece nortista.

    A questo que conhecia a filha. Contou o embarao em que estava. E foi ento que tio Laertesugeriu convidar o pretendente para o jantar de aniversrio da mulher. Esta ficaria por contadele. Joaquim (como sempre) relutou em aceitar a idia. Mas o cunhado avocou para si toda aresponsabilidade:

    - Se ela ficar zangada, voc manda falar comigo.

    Joaquim cedeu:

    - Assim, sim.

    Apertou agradecido a mo do concunhado (podia ter dito dois contos), recusou osagradecimentos dele, comunicou logo o plano ao Dr. Samuel.

    - Olhe que a ltima tentativa que eu fao. Dr. Samuel garantiu que nem era necessria outra.E entregava os pontos? No entregava.

    - J disse para os confrades do Instituto Histrico e estou pronto a repetir onde e quandoqueiram: se o Brasil tivesse passado para o domnio da Batvia seria hoje o primeiro pas domundo!

    Joaquim arriscou uma pergunta tmida!

    - Maior que a Inglaterra?

    - Maior que a Inglaterra!

    Tio Laerte perguntou:

    - Que que maior que a Inglaterra, Nicolau?

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    E informado do que se tratava deixou o grupo das mulheres para discutir com o irmo. O que elefazia sempre para pr em destaque os conhecimentos histricos do major, sua grandeadmirao. Fazia umas objeezinhas que ele mesmo sabia idiotas para o major responder comvantagem. O Dr. Samuel se decidiu e entrou na conversa das mulheres. Dona Ester falava donetinho. No tinha outro assunto.

    - Que idade tem ele, minha senhora?

    - Vai fazer quatro anos em agosto.

    - forte?

    - Oh! uma criana linda! S queria que o senhor visse!

    Por enquanto ele no tirava os olhos de mana Maria. Mas como dizer o que queria na presenadas outras? Se no o deixavam a ss com ela por que aquele jantar? Tia Carlota falou:

    - Sente-se, doutor.

    Sentou-se no canap de vime ao lado de mana Maria. O olhar malicioso de tia Carlota irritava-o.Aquela mulherzinha estava se divertindo custa dele.

    Tinha umas pernas bonitas a sem-vergonha. Dona Ester traava um plano de educao para onetinho:

    - Eu j disse para Nini. Nada de botar o menino desde cedo num colgio. A melhor educao a que se d em casa. Dizem que os comunistas na Rssia separam as crianas das mes.Comigo, eles veriam! Preferia matar meu filho a entregar para os bandidos! O senhor no comunista?

    - Sou adversrio decidido do comunismo, minha senhora! A sociedade no prescinde dessa

    clula que a famlia e o comunismo destroi a famlia! Ainda h pouco li um estudo...

    Tia Carlota interrompeu:

    - Comunista aqui s existe a Maria.

    Dona Ester se sacudiu toda na cadeira:

    - Que horror, minha filha! verdade?

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    - Brincadeira de tia Carlota.

    - No no. Voc comunista.

    Doutor Samuel interveio:

    - Dona Maria naturalmente uma inteligncia aberta s reformas sociais. Percebe, como todosns, os erros do regime capitalista e quer...

    - No! Eu no posso acreditar que Maria seja comunista! Que horror, meu Deus!

    Mana Maria sossegou Dona Ester:

    - No acredite. Tia Carlota gosta de brincar. Eu tenho um instinto de propriedade tremendo. Oque meu meu. E em geral s gosto do que me pertence. No poderia morar numa casa queno fosse minha.

    Levantou-se.

    - E vou para ela, papai, minha casa que j so horas. Papai, vamos indo?

    Disse num tom to brusco que assustou tia Carlota, incomodou Dona Ester, empalideceu o Dr.Samuel. Joaquim perguntou de mansinho:

    - Voc falou comigo?

    Tia Carlota no deixou a sobrinha responder:

    - No nada, Joaquim! Pode continuar sua conversa!

    Mana Maria se arrependia mas no cedia. A idia lhe veio de repente, ela falou, se levantou,no se sentava mais.

    - No, papai. So horas. Vamos?

    Tia Carlota teimou:

    - No admito! Que horas, coisa nenhuma! Sente-se, Maria, deixe de ser boba!

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    - No. Se papai quiser ficar, eu vou sozinha. Mais uma vez (tinha conscincia disso) decidia oseu destino.

    E abandonando o caminho que para outras seria o mais agradvel ou o menos desagradvel(para ela tambm, quem sabe, no queria saber) escolhia o outro, o dela, onde seria sozinha.Joaquim no dizia palavra, ar de tonto, hesitando. A filha decidiu por ele:

    - Fique papai. Naturalmente tio Laerte quer jogar. Eu tomo um txi. No tem importncia. Comlicena.

    Foi pr o chapu. Dona Ester falou baixinho para o Doutor Samuel:

    - Ela teria ficado aborrecida com o negcio do comunismo?

    - Como, minha senhora?

    - A conversa sobre o comunismo parece que contrariou a moa.

    O Doutor Samuel ps um profundo sarcasmo na voz:

    - No foi isso no, minha senhora! A razo outra. Eu conheo bem esses temperamentos.

    Freud explica isso.

    - Quem?

    - Freud. A senhora nunca ouviu falar em Freud?

    - No. Quer dizer...

    - Pois Freud explica o caso perfeitamente, esses nervosismos subitneos, essas exploses.

    Tia Carlota seguira a sobrinha.

    - Eu compreendo sua vontade de ir embora. mas faa um esforo e fique mais um pouco.

    Mana Maria disse que no, que estava de fato cansada, se levantara muito cedo, passara atarde inteira na cidade fazendo compras, queria dormir.

    - Est bem. Mas no guarde nenhuma raiva de mim.

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    - Raiva por qu?

    Enquanto a sobrinha punha o chapu (foi um segundo), calava as luvas (nem arranjara orosto). Tia Carlota aprovava a resoluo da sobrinha:

    - Voc quer saber de uma coisa? Voc tem toda a razo. um boc de mola. Quer dizer: todometido a sebo, falando difcil, teimoso (eu gosto de homem teimoso), mas um boc. Depois,feio! Parece um sapo. Papap, papap, papap, minha senhora pra c, minha senhora pra l,medicina sacerdcio. famlia no sei qu, no vai no.

    Mana Maria (estava nervosa) falou:

    - Pois eu pensei o contrrio. Pensei que ele tinha agradado voc.

    - Por qu? Porque brinquei com ele?

    - ...

    - Xii, Maria, voc no me conhece!

    Sorriu, acrescentou com um brilho nos olhos:

    - Quando eu quero de verdade ningum resiste...

    Outra qualquer dizendo isso irritaria mana Maria. Tia Carlota era diferente. Era uma meninalouca. Mana Maria falou e abriu a porta:

    - Eu imagino.

    - Como os homens so idiotas, meu Deus!

    Mana Maria quis chamar um txi.

    - No. Eu mando levar voc. O chofer est a para isso.

    Mana Maria no aceitava nada de ningum:

    - Para qu? Eu vou bem de txi.

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    - No, senhora. Um marido eu compreendo que se recuse. Mas um automvel no admito. ocmulo.

    Agora era o momento difcil da despedida. Ningum se sentia vontade. Mana Maria apertou amo do major:

    - Boa noite, major.

    - Ento, j vai?

    - J.

    - Boa noite.

    Apertou a mo mole (mana Maria desconfiava de quem no punha energia no aperto de mo)de tio Laerte:

    - At qualquer dia.

    - Quer deixar mesmo a gente to cedo?

    - Preciso.

    - V com Deus.

    Apertou a mo de Dona Ester (mana Maria detestava beijos):

    - Lembranas para Nini. E para o netinho tambm.

    - Voc precisa marcar um dia para conhecer ele.

    - Qualquer dia telefono.

    - No deixe mesmo de telefonar.

    Apertou a mo do Doutor Samuel sem dizer palavra. S uma ligeira inclinao de cabea. Foicomoo, foi qualquer coisa. ele reteve a mo enluvada murmurando:

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    - Muito prazer...

    Com um ligeiro puxo, ela se desembaraou, disse para o pai:

    - Ento, at logo.

    - At logo. Eu no demoro muito.

    Tia Carlota acompanhou-a at o terrao:

    - Desse voc est livre.

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    Felizmente para Joaquim o Doutor Samuel logo depois da sada de mana Maria retirou-setambm. No se justificava mais a presena dele, no havia mais conversa que pegasse, tioLaerte props que se jogasse bridge, Doutor Samuel no jogava, tio Laerte por delicadezaretirou a proposta, ele compreendeu:

    - Eu peo licena para me retirar.

    Foi uma despedida fria, remate rpido de um aborrecimento. Joaquim se sentiu aliviado,readquiriu a fala, pediu para a cunhada tocar, desafiou os campees presentes para um bridgebravo. Estava por ora livre do que ele mais detestava no mundo: uma explicao. E no casoeram duas. Mas a filha estaria dormindo quando ele chegasse em casa e o Dr. Samuel ficariapara o dia seguinte. Com certeza ele o procuraria no Servio Sanitrio. E seria uma conversadesagradvel. Pacincia. At l o homem se acalmaria, se convenceria de que malhava emferro frio. E quanto filha, ele a conhecia. S falaria se provocada. O pai no tocando noassunto, ela tambm no tocaria.

    O licor aumentou o seu bem-estar. J meia-noite passada tomou o caminho de casa. A p para

    fazer um pouco de exerccio. Se fosse ver a Zoraide? No. Sem telefonar primeiro era arriscado.

    - Txi, doutor?

    - No.

    Dobrou a esquina. Ningum. bom surpreender assim as ruas desertas no silncio noturno. Dedia a ateno se perde no bonde que passa, na casca de banana, no prego dos vendedoresambulantes, nuns olhos, num palavro, num anncio. A gente v perto e v baixo. Das casas stem importncia a vitrina das de comrcio, o nmero das de moradia. De noite, tudo muda. Noh perigo de esbarros, de atropelamentos. A vista se alonga desembaraada. possvel parar,erguer a cabea, embasbacar, cismar, examinar, no h respeito humano. E a rua: postes,

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    rvores, jardins. fachadas. Os homens dormem: a rua vela. Ele no saberia exprimir (no eraliterato, graas a Deus) a sensao gostosa que lhe davam essas voltas a p para casa noitealta. Mas era evidente que se sentia mais forte, mais homem, o nico homem. De dia se anulavana multido, era ningum. De noite ganhava outro relevo na sua solido, uma certeza mais gratade sua realidade. Ouvia os prprios passos, via a prpria sombra.

    Dobrou a esquina. Ningum. Era como se a rua dissesse: - Pode passar, trnsito livre. Depoisna noite vazia, silenciosa, o cheiro dos jardins mais forte, a feitura das casas mais branda, ascaladas mais largas, as esquinas mais misteriosas. A imaginao tem campo livre. Os homensso prisioneiros das casas, tranca na porta, cadeado no porto. Est reintegrada a rua na possede si mesma, no gozo de sua liberdade. Tal como e no como a fazem e sujam os homens, adesfiguram os homens de dia. Deserta a cena, vive o cenrio. Atravs das venezianas noterceiro andar da casa de apartamento se escoa uma luz vermelha. Se ele fosse ver a Zoraide?Quase uma hora. Tarde demais.