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N. º 5 OUTUBRO NOVEMBRO 2016 Alcântara Machado

Alcântara Machado

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N.º 5 OUTUBRO

NOVEMBRO 2016

Alcântara Machado

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Editorial

OUTUBRO - NOVEMBRO 2016

ISSN 2393-6649

O fazer do tradutor

Apresentação do autor

Textos selecionados

N.º 5 OUTUBRO

NOVEMBRO2016

Alcântara Machado

EQUIPE EDITORIAL

Amanda Duarte BlancoDoutora em Linguística pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Brasil).

María Noel MelgarProfessora de Língua e Literatura, formada pelo Centro Regional de Profesores del Norte e estudante de Tradução Pública em idioma Português na Faculdade de Direito, Universidad de la República (Uruguai).

Carla RapettiTradutora Pública em idioma Inglês formada pela Faculdade de Direito, Universidad de la República (Uruguai), e estudante de Tradução Pública em idioma Português na mesma universidade.

Mayte GorrostorrazoTradutora Pública em idioma Português formada pela Faculdade de Direito, Universidad de la República (Uruguai), e docente de Língua Portuguesa e Língua Espanhola na Licenciatura em Comunicação da mesma universidade.

Leticia LorierLicenciada em Comunicação e especialista em Tradução Literária espanhol-português pela Universidad de la República (Uruguai) e docente de Língua Portuguesa na Licenciatura em Comunicação da mesma universidade.

Verónica Machado Tradutora Pública em idioma Português formada pela Faculdade de Direito, Universidad de la República (Uruguai), e estudante de Tecnicatura em Correção de Estilo na mesma universidade.

Manuela PequeraTradutora Pública em idioma Português formada pela Faculdade de Direito, Universidad de la República (Uruguai), e estudante de Tecnicatura em Correção de Estilo na mesma universidade.

Federico SörensenTradutor Público em idioma Português formado pela Faculdade de Direito, Universidad de la República (Uruguai), e estudante de Licenciatura em Letras da mesma universidade.

Ideia original: Equipe de PontisColaboradores permanentes: Rosario Lázaro, Cleci Bevilacqua, Karina Lucena, Liliam Ramos, Magali PedroIlustrações: Junior SantellánRevisão de textos: Amanda Duarte BlancoDesign gráfico: Sebastián CarreñoProgramação digital: Gunther GlahnApoia: Instituto de Comunicação da Faculdade de Informação e Comunicação - Udelar

A revista Pontis - Práticas de Tradução é um projeto selecionado na categoria Revistas Especializadas em Cultura do Fundo Concursável para a Cultura, da Direção Nacional de Cultura (MEC, Uruguai), em sua convocatória 2015. Trata-se de uma revista digital bilíngue espanhol-português para a divulgação da literatura uruguaia no Brasil e da literatura brasileira no Uruguai, a partir da tradução de textos de autores selecionados de ambos os países. Pretende, além disso, constituir-se em um espaço de debate sobre o fazer tradutório literário em âmbitos não necessariamente acadêmicos e de formação de jovens tradutores uruguaios.

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os poucos vamos nos aproximando do final do ano com este projeto que continua crescendo. Nossos últimos dois números de 2016 estarão dedicados à tradução de crônica, gênero intermediário entre o jornalismo e a literatura. Para esta edição,

contamos com a inestimável colaboração de Rosario Lázaro Igoa, que se responsabilizou por selecionar o autor, pré-selecionar as obras a serem traduzidas e a escrever os textos correspondentes às seções “O fazer do tradutor” e “Apresentação do autor”, este último em coautoria com o professor Walter Carlos Costa, do Programa de Pós-Graduação em Estudos da Tradução (PGET) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

Na primeira dessas seções, apresentamos o texto intitulado “Notas sobre a tradução de crônica”. Lázaro inicia esse trabalho afirmando que “traduzir crônica é, sobretudo, e sem desmerecer aspectos específicos da passagem entre duas línguas ou desafios do gênero em particular, um gesto que promove a circulação em sentido amplo”. A autora prossegue mencionando brevemente as palavras de um dos mais importantes críticos literários brasileiros, Antonio Candido, que lembra que o destino primeiro de uma crônica é o papel de jornal, e destaca

que a efemeridade do meio faz com que o suporte desses textos tenha como destino último forrar o chão da cozinha. É por isso que, no artigo, ressalta-se quão interessante é a tradução de crônica, pois é uma contribuição na circulação de textos entre diferentes tradições deste gênero.

Neste número, trabalhamos com crônicas publicadas em Pathé Baby, uma obra de Antônio Castilho de Alcântara Machado de Oliveira (1901-1935), conhecido mais brevemente como Alcântara Machado, autor fundamental do movimento modernista brasileiro. No texto de apresentação desse escritor, correspondente à seção “Apresentação do autor”, Costa e Lázaro Igoa nos contam: “Pathé Baby, de 1926, reuniu crônicas publicadas no Jornal do Comércio no ano anterior, durante a viagem de oito meses de Alcântara Machado pela Europa”. Os autores mencionam um dado curioso em relação ao nome da obra selecionada: Pathé Baby também é o nome de um tipo de sistema de reprodução cinematográfica, criado por Charles Pathé na França em 1922, destinado ao público em geral, de pequenas dimensões e com todo o necessário para poder aproveitar o cinema em casa, que se tornou popular nas décadas seguintes. Talvez seja possível interpretar que o título da obra responda a um paralelismo simbólico entre este tipo de filmagem e as

Pontis N.º 5

Editorial>

A características da crônica como gênero particular.Do livro Pathé Baby, selecionamos cinco crônicas que

desenham uma Europa peculiar, um pouco diferente da conhecida naquela época nas latitudes do sul. O autor propõe relatos repletos de imagens que são autênticos retratos de um continente ruidoso, envelhecido, grotesco, mas com uma beleza diferente, terrena, mais humana; uma visão menos idealizada do velho continente. As crônicas selecionadas para integrar este número são:

• “Assis”: a beleza de Assis, a perfeição e a suntuosidade da arte sacra que ultrapassa todos os sentidos. Traduzida por Mayte Gorrostorrazo.

• “Charing Cross”: um percurso pela ruidosa Londres, em que se cruzam multidão, luzes e agitação. Traduzida por Manuela Pequera.

• “A tourada”: detalhes de uma sangrenta corrida de touros; a selvageria do público, o humano da fera. Traduzida por María Noel Melgar.

• “País da música”: a festa de rua e o entusiasmo italiano se misturam com o olhar estrangeiro no carnaval veneziano. Traduzida por Verónica Machado.

• “Paris”: um baile frenético que convoca todas as etnias, classes e idades; ali não há lugar para juízos morais. Traduzida por Leticia Lorier.

Pontis continua firmemente convencida de seu projeto de tradução colaborativa, pois entende que é esta prática a que permite nos formarmos continuamente, construirmos pontes entre pares e crescermos mediante a interpelação, a discussão e a construção coletiva. É por isso que foram feitas alianças com equipes de diferentes universidades brasileiras. Particularmente, neste número, trabalhamos com a UFSC, onde foi ministrada, no mês de setembro, a oficina “Crônica: oficina de tradução castelhano-português e português-castelhano, revisão e edição”, organizada pelo PGET. Foi neste âmbito em que se realizou a revisão coletiva das crônicas publicadas na presente edição de nossa revista. Esta colaboração foi possível graças ao já mencionado professor Walter Carlos Costa e a Rosario Lázaro Igoa, colaboradora permanente de Pontis e pós-doutoranda do PGET. Na revisão das traduções ao espanhol das crônicas deste número participaram os seguintes estudantes: Silvio Somer, Davi Silva Gonçalves, Leide Daiane de Almeida Oliveira, Myrian Vasques Oyarzabal, Larissa Ceres Rodrigues Lagos, Naylane Araújo Matos, Paulo Henrique Pappen, Ana Maria Martins Roeber, Sophia Caroline Samenezes de Jesus, Thiago André dos Santos Veríssimo e Verônica Rosarito Ramirez Parquet Rolón.

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EDITORIAL>

Além de trabalhar na preparação do presente número, durante setembro e outubro ministramos duas oficinas sobre tradução literária português-espanhol: uma em Montevidéu, no Instituto de Cultura Uruguaio-Brasileiro, e outra em Rivera, no Centro de Profesores del Norte de ANEP. Contando ambas as atividades, tivemos a assistência de aproximadamente cem participantes, entre eles estudantes, docentes, tradutores e outros profissionais vinculados à área e interessados em tradução literária. Adiantando o lançamento de Pontis n.º 5, organizamos a palestra “Crónica en traducción. Apuntes sobre la circulación entre Brasil y el Río de la Plata”, a cargo de Lázaro Igoa.

Tendo também o objetivo de difundir regionalmente o projeto e de estabelecer novas pontes de intercâmbio, apresentamos o trabalho intitulado “La traducción literaria como proyecto colaborativo. La propuesta de la revista Pontis - Prácticas de Traducción” no I Congresso Internacional de Língua Portuguesa, organizado pela Universidad de Santiago de Chile e realizado na mesma instituição nos dias 13 e 14 de outubro. Nessa ocasião, tivemos a oportunidade de conversar com docentes e estudantes de português não somente do Chile, mas também de países de fala portuguesa, como Brasil, Portugal e Angola.

Como em todas as edições, gravamos a leitura dos textos selecionados e de suas traduções graças às colaborações de Federico Falco e da Facultad de Información y Comunicación da Udelar. Neste número, nossa convidada especial, Cláudia Pires, cedeu sua voz para dar vida à crônica “Paris”, tanto em sua versão original como em sua respectiva tradução ao espanhol. Nossa convidada se define como uma brasileira de coração uruguaio, foi cantora e docente de língua portuguesa e é coach de voz para crescimento pessoal, aperfeiçoamento

da comunicação, expressividade e presença. Para conhecer seu trabalho atual, é possível acessar seu Facebook: Cláudia Pires Coach. Os áudios de todos os textos podem ser acessados tanto em nossa página como em nosso canal de Youtube.

Agradecemos as participações de Emiliano Santos, que ilustra o autor de cada edição, e de Loli Espósito, artista plástica que ilustrou cada uma das crônicas deste número. Estendemos nosso agradecimento a todos aqueles que, de alguma maneira, colaboram dia a dia com a equipe de Pontis para que cheguemos cada vez a mais leitores e possamos contribuir com nosso grãozinho de areia neste vasto mundo da tradução literária.

Desejamos a todos uma boa leitura!

Integrantes de Pontis

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O FAZER DO TRADUTOR

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fragmento? Por um lado, é fácil detectar certa “retórica da crônica” em seu texto, ou seja, leveza no estilo, ironia no olhar ou pretendida consciência da caducidade do escrito. Mas essa retórica não invalida o fato de que a crônica, tal como surge a partir do modelo francês do feuilleton, vive no jornal e a partir dele. E nada mais caduco que uma página de imprensa escrita, se falamos de habitat. Bilac sabia e aproveitava, tal como outro cronista contemporâneo dele, João do Rio, pseudônimo de Paulo Barreto, que tão cedo, em 1904, publicou a primeira antologia de séries jornalísticas de sua autoria, As Religiões do Rio. Aos poucos, tanto no Brasil quanto na América Hispânica, a edição de crônicas em formato de livro, antologia indefectivelmente, consolida-se como uma prática editorial frequente, mas não os fluxos de tradução destes volumes.

Mesmo assim, e sem pretensões de exaustividade neste levantamento, no mercado rio-platense podem ser encontradas as crônicas de Clarice Lispector publicadas pela editora Adriana Hidalgo e intituladas Descubrimientos (2010) e Revelación de un mundo (2004). Clarice vem pouco depois da geração que consolida as bases da crônica brasileira segundo Candido: Carlos Drummond de Andrade, Rubem Braga, Mário de Andrade e Manuel

Bandeira (o texto de Candido é o prólogo de uma antologia dos textos dos quatro). Inclusive antes, entre os cronistas que herdavam o ofício de Machado de Assis, José de Alencar ou do próprio Bilac, mas o difundiam, cita-se a antologia de João do Rio, organizada e traduzida pelo professor Pablo Rocca, intitulada Las mariposas del lujo y otras crónicas (2013). Poderíamos ampliar o levantamento até o México e a Espanha, onde a editora Sexto Piso publicou Crónicas escogidas, de Machado de Assis (2008), que esperamos seja um primeiro passo na tradução de suas crônicas para o espanhol.

Tal é a importância da dimensão midiática da crônica que a tradução deste gênero entre uma língua e outra motiva desafios semelhantes aos da instância da edição. Isto se deve, entre outras coisas, à mudança de suporte que implica a mediação de antologização e tradução. Como visto, a crônica, escrita para a cotidianidade de um meio de comunicação com um papel significativo como o do jornal, ou da revista, quando editada ou traduzida, nos faz pensar sobre as adequações para funcionar em uma atualidade diferente da que a viu nascer. Desconhecer a dimensão histórica das crônicas, ou sua profunda imbricação com as circunstâncias materiais em que surgiram, é tão perigoso quanto excluir

NOTAS SOBRE A TRADUÇÃO DE CRÔNICA1

O FAZER DO TRADUTOR

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Rosario Lázaro Igoa é tradutora literária, escritora e jornalista freelance. É doutora e mestre em Estudos da Tradução pela Universidade Federal de Santa Catarina, possui um Diploma de Especialização em Tradução Literária de Idioma Inglês pela Universidad de la República e é graduada em Ciências da Comunicação pela mesma universidade.

>ROSARIO LÁZARO IGOA

1 Estas reflexões surgem da pesquisa realizada em minha tese de doutorado, intitulada “Crónica brasileña del siglo XIX y principios del siglo XX en castellano: una antología en traducción comentada” e disponível em: http://tede.ufsc.br/teses/PGET0294-T.pdf 2 Proposta de tradução da autora do artigo, conforme nota no texto original.

1raduzir crônica é, sobretudo, e sem desmerecer aspectos específicos da passagem entre duas línguas ou desafios do gênero em particular, um gesto que promove a circulação em sentido amplo. É provável que o gesto da tradução ocorra entre duas tradições cronísticas

diferentes, que poucas vezes se conhecem ou que não têm sido exploradas de forma comparada. Poderia argumentar-se que a tradução é sempre a extensão de um vínculo entre duas tradições, o que é certo. No entanto, no caso da crônica, não podemos esquecer suas condições materiais primeiras, a ligação à página do jornal, que potencializa a divulgação do texto entre os leitores contemporâneos, mas que circunscreve as possibilidades de releitura na posteridade. A crônica está refletida naquela página que serve para forrar o chão da cozinha, como sugeria em uma breve passagem sobre a sua duração o crítico brasileiro Antonio Candido (1992). Mas Candido também reconhecia a durabilidade que o livro lhe outorgava em algumas ocasiões. Nesse sentido, a digitalização atual de grandes corpus de jornais ou o surgimento de revistas

digitais como Pontis são fenômenos que, inclusive em uma escala reduzida, podem dar nova e impensada circulação à crônica em geral e, especialmente, à crônica entre o Brasil e o Rio da Prata.

A dimensão que as tecnologias digitais abrem a este gênero hoje em dia permite repensar afirmações como a de Olavo Bilac, poeta mas também prolífico cronista do Rio de Janeiro a fins do século XIX e princípios do XX. Ao refletir sobre a escrita cronística, Bilac sentenciava, querendo antecipar:

Estes comentários leves, que duram menos ainda do que as estafadíssimas rosas de Malherbe, não deitam abaixo as instituições, não fundam na terra o império da justiça, não levantam nem abaixam o câmbio, não depravam nem regeneram os homens: escrevem-se, leem-se, esquecem-se, tendo apenas servido para encher cinco minutos da monótona existência de todos os dias. Mas, quem sabe, talvez muito tarde, um investigador curioso, remexendo esta poeira tênue da história, venha a achar dentro dela alguma coisa...2 (DIMAS, 2006: 227).

Quais são os pontos que Bilac evidencia neste

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seu valor estético. Isto não é uma afirmação em detrimento da especificidade da tradução, mas sim o contrário. A passagem entre línguas é uma radicalização do processo de edição, pois aqui entram em jogo as transformações interlinguísticas3, além das culturais, estéticas, históricas e políticas envolvidas no projeto de tradução. Mantêm-se as datas de publicação original? E o meio de imprensa onde surgiu? Faz-se a atualização ortográfica no caso de crônicas não contemporâneas? Será uma edição com notas? Caso afirmativo, qual é o limite das notas? Todas essas perguntas exemplificam o gesto crítico que supõe antologiar, editar e traduzir crônica, ou “reescrever”, nas palavras de André Lefevere (1992).

Por outro lado, quando da circulação desses textos, é lógico que ocorram ajustes entre os gêneros em contato. Na tradição rio-platense, a crônica não possui a mesma univocidade terminológica que no Brasil, onde goza de ampla aceitação crítica. No contexto da América Hispânica, a crônica hoje pode ser o escrito por José Martí a fins do século XIX em Nova Iorque, ou, mais provavelmente, aquele texto extenso, que dá conta de um problema social ou político, na linha de Martín Caparrós, Leila Guerriero ou Juan Villoro, herdeira de certa forma daquela de Carlos Monsiváis ou Elena Poniatowska. Esta “crônica latino-americana”, ou jornalismo narrativo, circula em revistas como Gatopardo, Etiqueta Negra, ou El Malpensante, entre outras. Nesses casos, não está ausente a dimensão poética, o trabalho sobre a língua, mas em geral não é o fator determinante, como é em uma parte importante da crônica brasileira.

De todas as formas, a denominação “crônica”, bem como sua consolidação editorial em livros de circulação continental, é um fenômeno recente, dos anos 90, como assinala Leila Guerriero em um artigo para El País. Falamos,

neste caso, de “histórias de não ficção que requerem longos trabalhos de campo e que são narradas utilizando recursos formais da literatura de ficção” (GUERRIERO, 2012: s/n). Podemos mesmo mencionar, relacionada com esta crônica hispano-americana, aquela escrita na revista brasileira Piauí, caracterizada por extensas reportagens em que o “cronista” não deixa de marcar seu lugar e sua visão das realidades díspares retratadas, diferentemente de um cronista de estilo mais leve e desenfadado, como, por exemplo, Mário Prata ou Luis Fernando Verissimo.

Em outras palavras, os desafios são múltiplos e revelam o gesto crítico que implica traduzir. A reconfiguração material que supõe a passagem da crônica do jornal à edição em revista bilíngue digital ou o vínculo entre gêneros que supõe levar Alcântara Machado ao espanhol do Rio da Prata são dois aspectos que surgem da colocação em circulação de textos em uma nova contemporaneidade e em outra língua.

Obras citadasCANDIDO, Antonio. “A Vida ao Rés-do-Chão”. In: CANDIDO, Antonio et al. A Crônica. O gênero, sua fixação e suas transformações no Brasil. Campinas: Editora Unicamp; Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1992. Pp. 13-22.DIMAS, Antonio. Bilac, o Jornalista. Crônicas- Vol. 2. São Paulo: EDUSP/Editora Unicamp/Imprensa Oficial, 2006.GUERRIERO, Leila. “La verdad y el estilo”. In: El País. 18 de febrero, 2012. Disponível em <http://cultura.elpais.com/cultura/2012/02/15/actualidad/1329307919_560267.html> [consultado no dia 11/07/2015]. LEFEVERE, André. Translation, Rewriting, and the Manipulation of Literary Fame. London/New York: Routledge, 1992.

O FAZER DO TRADUTOR>

3 Para não afirmar que o fenômeno de tradução é o único que diz respeito ao linguístico, recordemos as mudanças ortográficas, intralinguísticas, na edição de crônicas do século XIX.

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APRESENTAÇÃO DO AUTOR

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ALCÂNTARA MACHADO

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publicação de traduções de crônicas de Pathé Baby pela equipe da Pontis continua com a ideia da revista de promover a circulação de autores relevantes para a cultura, embora não sejam aclamados pela crítica e não tenham sido traduzidos anteriormente. No caso de Antônio

Castilho de Alcântara Machado de Oliveira (1901-1935), conhecido como Alcântara Machado, esse fato se confirma de duas maneiras. Por um lado, é um resgate de um autor essencial do movimento modernista brasileiro que, no entanto, não tem tido a mesma divulgação de Mário de Andrade ou Oswald de Andrade; por outro lado, foram escolhidos textos publicados na imprensa, que, geralmente, são menos traduzidos.

Alcântara Machado publicou três obras durante sua curta vida, interrompida pouco antes de seus trinta e cinco anos. Em 1926, publica-se Pathé Baby, da qual se selecionaram as crônicas desta edição; em 1927, Brás, Bexiga e Barra Funda; e, em 1928, Laranja da China. Porém, no momento de publicar seus livros, ele não era um desconhecido, pois tinha se dedicado, desde jovem, ao jornalismo em São Paulo, escrevendo crítica teatral.

Alcântara Machado soube aproveitar as possibilidades que o jornalismo lhe oferecia. Como lembra Alfredo Bosi, em sua História concisa da literatura brasileira (2006), colaborou em vários meios de imprensa, alguns deles essenciais na consolidação do Modernismo brasileiro, como Terra Roxa e Outras Terras e Revista de Antropofagia (BOSI, 2006: 374). É importante ressaltar que o próprio cronista foi diretor da Revista de Antropofagia no final da década de 1920.

Como assinalou José Brito Broca, Pathé Baby marcou um momento de ruptura da literatura brasileira, na medida em que “[…] desempenhou um importante papel no Modernismo, não só do ponto de vista literário — por ter constituído a primeira demonstração da prosa modernista — como do ponto de vista da vida literária — por ter marcado uma posição nova em nossa maneira de encarar a Europa” (BRITO BROCA, 1982: 57). Embora Brito Broca ponha de lado o livro Memórias Sentimentais de João Miramar (1924), de Oswald de Andrade, menciona duas características centrais dessas crônicas editadas em forma de livro, a saber, a experimentação sobre a prosa e a atitude irreverente a respeito do europeu. Alfredo Bosi reafirma também o caráter inovador da

prosa de Alcântara Machado, que denomina “prosador do Modernismo paulista”. Ao contrário de Oswald e Mário, que, na sua opinião, seriam mais poetas do que qualquer outra coisa, Alcântara Machado seria o pioneiro na prosa experimental, que Bosi liga pelo seu caráter urbano àquela já pré-configurada por Lima Barreto (BOSI, 2006: 374). Essa visão de Bosi desconsidera a importância da prosa de Oswald e Mário, bem como de outros prosadores experimentalistas do século XIX, entre eles o próprio Machado de Assis, mas tem o mérito de valorizar a obra de Alcântara Machado na história da prosa brasileira.

De qualquer modo, Alcântara Machado trabalhava com as possibilidades que o jornal oferecia anteriormente. Ali vemos, por exemplo, as crônicas que servem de ponto de partida a Brás, Bexiga e Barra Funda, como “Gaetaninho”, de 25 de janeiro de 1925, publicada no Jornal do Comércio. Como na segunda metade do século XIX, o jornal foi o meio no qual se realizaram determinadas operações, testaram-se os limites da língua e as possibilidades que oferecia.

Não menos importante é a inserção de Alcântara Machado na tradição cronística brasileira, fecunda desde, entre outras, as pioneiras crônicas de José de Alencar

(1829-1877). Como exemplo, na crônica publicada no Correio Mercantil em 18 de novembro de 1855, Alencar já explora as possibilidades metatextuais do gênero, como se pode observar no fragmento a seguir:

Desta vez estou de verve; vou escrever um livro.Se bem me lembro, já dei aos meus leitores um folhetim-romance, um folhetim-comédia, um folhetim em viagem, um folhetim-álbum.Faltava-me, porém, dar um folhetim-livro, e por isso quero hoje realizar essa nova transformação do Proteu da imprensa. (ALENCAR, 19-: 1)

Desde Alencar e Francisco Otaviano em diante, a crônica brasileira, denominada no começo “folhetim” pelo espaço físico do jornal onde aparecia, foi se tornando mais complexa pelos seus dispositivos, com Machado de Assis como cronista por excelência. A crônica ampliou também a capacidade de dar conta do processo modernizador no final do século XIX. A celeridade das mudanças, a exaltação da vida urbana são assuntos, inclusive, de crônicas do poeta parnasiano Olavo Bilac, que escrevia, em 4 de outubro de 1894 na Gazeta de Notícias:

Alcântara Machado

APRESENTAÇÃO DO AUTOR

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A

> WALTER CARLOS COSTA | ROSARIO LÁZARO IGOAWalter Carlos Costa estudou Filologia Românica na Katholieke Universiteit Leuven, Bélgica, tem doutorado sobre as traduções de Borges para o inglês pela University of Birmingham, Reino Unido, e pós-doutorado pela Universidade Federal de Minas Gerais. É professor do Departamento de Língua e Literatura Estrangeiras da Universidade Federal de Santa Catarina. Atualmente se encontra em colaboração técnica no Departamento de Letras Estrangeiras da Universidade Federal do Ceará.

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Que é isto? Que algazarra é esta que enche os ares, que sacode a cidade, que me fura os tímpanos? — Carne! — bramam as esposas aos maridos, — Carne! — berram os maridos aos açougueiros. — Carne! — rugem os açougueiros aos magarefes, — Carne! — urra o povo aos intendentes… E nas colunas dos jornais, as cinco letras dessa palavra se estampam, altas e grossas, apunhalando a vista, túrgidas de insistência e de tinta de impressão. (DIMAS, 2006: 179)

Neste último sentido, a obra de João do Rio, pseudônimo de Paulo Barreto, é a que melhor refletirá as preocupações do repórter moderno, que deixa a redação do jornal e procura retratar um mundo urbano em radical transformação, no seu caso o do Rio de Janeiro. Uma porção desse ofício de repórter na rua estará também nas crônicas de Pathé Baby, vertiginosas e cheias de ironia em pinceladas curtas, precisas. Por sinal, esta escrita, originada nos experimentos literários pós-românticos, é uma tendência internacional, e está presente na produção de cronistas como Roberto Arlt, Salvador Novo ou, inclusive, na do uruguaio-argentino Soiza Reilly, entre muitos outros.

Sobre Pathé BabyPathé Baby, de 1926, reuniu crônicas publicadas no Jornal do Comércio no ano anterior, durante a viagem de oito meses de Alcântara Machado pela Europa. Trata-se de um livro de crônicas que segue um percurso pelas principais cidades daquele continente. Os textos são breves e ricos em imagens, que se desprendem das poucas frases sobre cada cidade. Os fragmentos são curtos, numerados como se fossem instantâneos. A atitude a respeito da Europa não é de fascinação, mas de irreverência:

Homens caricatos. Elegância desopilante. Não usam chapéu: usam juba. Formidável. Os cabelos formam chumaço. Calças sacos. Os paletós param inesperadamente. Bengalinha em punho, os terríveis com o olhar despem e apalpam as mulheres. Reúnem-se em grupos, riem e cantarolam, gesticulam, berram, cospem e assobiam. (ALCÂNTARA MACHADO, 1982: 87)

Essa sintaxe quebrada, que acaba gerando um ritmo fascinante pelo Velho Continente, foi destacada por Sérgio Buarque de Holanda em Terra Roxa em 6 de julho de 1926, quando sublinhou que era um “[…] livro seco, quase todo de frases incisivas e cortantes que nem tiririca” (LARA, 1982: 50). Essa ânsia de dar conta do ritmo da viagem de uma forma quase visual foi, porém, criticada por alguns de seus contemporâneos e, como anota Lara, provocou reações incendidas em alguns leitores, insatisfeitos com o tom áspero das edições (LARA, 1982: 12).

Enquanto Mário de Andrade escrevia que o autor de Pathé Baby transmitia uma “[…] sensualidade cheia de saúde com que encara a vida [e que] lhe dá esse ar gostoso, gostador até das coisas ruins” (LARA, 1982: 55), outros não faziam as mesmas apreciações. Tal o caso de uma resenha sem assinar publicada no Correio Paulistano no 25 de fevereiro de 1926, na qual o resenhista se queixa:

É pena que o A. repita as imagens a todo instante, achando que todos os caminhos são riscos de lápis, riscos de giz, etc. Pena é, também, que os seus olhos só tivessem fotografado o que as cidades maravilhosas da civilização europeia apresentam de pouco recomendável e de menos estético. Neste particular, o livro todo denota mau gosto. (Em LARA, 1982: 51).

APRESENTAÇÃO DO AUTOR>

Outra era a opinião de Oswald de Andrade, que, no prólogo a Pathé Baby, chamado “Carta-oceano”, condensava telegraficamente sua leitura ao escrever: “[…] grande literatura nossa época é reportagem” (ANDRADE, 1982: 13).

Outros aspectos das crônicas que se destacam: diálogos breves que localizam uma ação cinematográfica, veloz, e parecem alimentar esse mesmo ritmo, impulsando-o adiante. Pontos de exclamação, presença de palavras extrangeiras irrompendo na crônica: tudo contribui para que a Europa seja observada como se fosse um filme projetado pelo sistema de cinema francês pathé baby, inventado em 1922. As ilustrações contribuem a tal efeito, pois começam retratando uma banda completa, para pouco a pouco mostrar os músicos saindo da cena. Justo em cima da banda, há uma projeção de imagens características da cidade.

Pathé Baby fecha com a referência à “Canção do exílio”, de Gonçalves Dias, o que pode ser lido como uma declaração de independência literária, sobretudo levando em conta o título desta “declaração”:

“moralidade.Nosso céo tem mais estrellas,Nossas varzeas tem mais flôres,Nossos bosques tem mais vida,Nossa vida mais amores.A. Gonçalves DiasCanção do Exiliofim”

Do jornal ao livroNem sempre a crônica passa do jornal ao volume impresso. Neste caso, estamos frente a textos que foram reunidos em formato livro no ano seguinte, com várias adequações e modificações introduzidas por Alcântara Machado.

Poucos meses depois de voltar da Europa, o cronista já estava reescrevendo-as, ampliando e organizando para uma publicação em livro com prólogo, como já mencionamos, de Oswald de Andrade e ilustrações de Antônio Paim Vieira (1895-1988). A recepção do livro foi positiva — há menções de que se esgotou com rapidez —, mas somente em 1982 a obra foi reeditada por Cecília de Lara, autora do livro também citado aqui Comentários e notas à edição fac-similar de 1982 de Pathé Baby (1982). O Pathé Baby de 1982 realiza atualizações ortográficas, mas reproduz o desenho da edição original, incluindo as ilustrações de Paim que abrem a crônica sobre cada nova cidade.

Como observa Lara nos Comentários, a “montagem gráfico-cinematográfica” (LARA, 1982: 14) da passagem ao livro introduz elementos que não estavam presentes nas crônicas do jornal. Alcântara Machado escreve partes adicionais às crônicas, soma textos novos, alguns reservados desde antes para a eventual publicação em livro, altera a ordem das cidades; e se preocupa por diferenciar cada capítulo, numerando-os, com espaços em branco antes e depois, como se se tratasse do começo de um novo filme. Lara nota que já havia diferenças na ortografia entre a edição em jornal e em livro de 1925 e 1926, com a edição em livro mais moderna e homogênea, o que o leva a afirmar que o cronista “[…] tinha posição definida ante a questão e seguiu um modelo coerente” (LARA, 1982: 27). Assim, o livro aderia à simplificação ortográfica com base fonológica, seguindo Gonçalves Viana (LARA, 1982: 28).

Tal como as crônicas experimentaram mudanças na passagem do jornal ao livro, e depois as reedições, hoje algumas delas são apresentadas de uma nova forma na edição de Pontis: traduzidas para o espanhol e em formato digital. Vale lembrar que o gesto de resgate foi precedido

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APRESENTAÇÃO DO AUTOR>

pela publicação em formato livro da tradução francesa de Pathé Baby em 2013. Seja ora em jornal, ora em livro, ora em português, francês ou em espanhol, estamos perante necessárias releituras de textos que adquirem vida renovada em nosso presente.

ReferênciasANDRADE, Oswald de. “Carta-oceano”. Em ALCÂNTARA MACHADO, Antônio de. Pathe-Baby. São Paulo: IMESP/DAESP, 1982, pp. 11-13.ALCÂNTARA MACHADO, Antonio de. Novelas paulistanas: Brás, Bexiga e Barra Funda, Laranja-da-China, Mana Maria, Contos avulsos. Rio de Janeiro: José Olympio, 1961.__________. Pathe-Baby. São Paulo: IMESP/DAESP, 1982.__________. Pathé-Baby. Tradução de Antoine Chareyre. Paris: Petra, 2013.ALENCAR, José de. Ao correr da pena. São Paulo: Edigraf, [19- ].BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 2006.DIMAS, Antonio. Bilac, o Jornalista. Crônicas. Vol. 1. São Paulo: EDUSP/Editora Unicamp/Imprensa Oficial, 2006.LARA, Cecilia de. Comentários e notas à edição fac-similar de Pathe-Baby, de Antonio de Alcântara Machado. São Paulo: IMESP/DAESP, 1982.

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TEXTOS SELECIONADOS>

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s patas do touro negro golpeiam a terra. Borboletear de capas. O cavalo de olhos vendados recebe a chifrada, sacode as patas dianteiras no alto, cai destripado. O touro cola-se contra outro.

— ¡Que viene! ¡Que viene!O picador é uma peteca no ar. O ventre lacerado do cavalo sobe e desce com vida. — ¡Arriba!

Balançando meio metro de intestino grosso, manchado de areia, a azêmola dança sobre as pernas moles. A banda, vestida de vermelho, toca La bejarana.

Só, Lagartito avança. Devagar. O touro abaixa a cabeça diante do homem azul que caminha. E pula como um autômato. A capa resvala sobre os chifres.

— ¡Ole!Vai e vem diante do focinho espumante.— ¡Ole!O toureador é um pião roçando a nuca peluda.— ¡Ole!Para diante do touro, olhar contra olhar.— ¡Ole!Ajoelha-se, agitando a capa.— ¡Ole!O delírio levanta vinte e cinco mil entusiasmos. As palmas sacodem o anfiteatro ondeante.O primeiro par de bandarilhas desenha um arabesco de sangue.No centro da arena, Genesillo, mãos no alto, bate as farpas coloridas. Sobre o bico dos pés, avança. Freme. É uma

volúpia. Desliza. É um sadismo. Aproxima-se. Corre. Espeta. Escapa.A assistência é um turbilhão em pé.Com a espada sob a capa, Lagartito volta. Cola-se ao touro. Os chifres, depois o touro, passam por baixo do pano

estendido como uma asa.— ¡Ole!Duas marradas roçam o braço que não treme.— ¡Ole!O vulto azul se expõe e se encolhe. Sem alcançá-lo, o vulto negro estonteia.— ¡Ole!Ribomba a aclamação.— ¡Mátalo! ¡Mátalo!O silêncio principia com um toque de clarim. Arqueja a emoção coletiva.A três passos da vítima raivosa, toureador e lâmina são um ângulo reto que espreita. Um segundo. Dois. Tr... A

espada branca mergulha por metade na nuca arqueada. Reluz, tremendo. Em silêncio, no silêncio, o touro tomba diante do matador ereto.

A tourada

A

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No berreiro desvairado, lenços se agitam como flâmulas que saúdam. Bengalas, pentes, mantilhas e carteiras são o despojo do entusiasmo rolando no chão revolto. Lagartito recebe uma orelha do touro. Ganha a outra. Ganha o rabo. Dá duas voltas pela arena, chapéu erguido.

— ¡Viva! ¡Viva! ¡Viva!A banda berra a Canção do Toureador.

O touro n.º 44, cor de terra seca, vira o rabo às capas provocadoras. Contempla os cavalos com ternura. Quer brincar. Salta contente.

— ¡Otro toro! ¡Otro toro! ¡Otro toro!A indignação zune assobios. A vaia sobe como uma inundação. Transborda em injúrias. Voltados para a presidência

de palheta, os meninos que urram, as mulheres de punhos levantados, os homens de olhar assassino são uma onda que se ergue, se avoluma e espuma de cólera para rebentar. O desespero sacode lenços.

— ¡Lástima de toro! ¡Hay que cambiarlo! ¡Otro toro! ¡Otro toro!Dois bois macambúzios entram, badalando. O touro n.º 44 sai pateado. O cavalo de ventre costurado esborracha-se no chão. O touro tira de outro os arreios e as tripas. O terceiro se

estende na arena como uma bola de borracha furada. A terra embebeda-se de sangue quente.— ¡Mira qué toro, hombre! ¡Bravito y noble! O animal esvazia a arena. Fica só, bufando.— ¡Qué valientes! ¡Qué valientes!A assuada ri.O capinha de roxo avança. O touro investe. O capinha de roxo dispara. O touro alcança-o. O capinha de roxo é

recolhido com a perna esquerda rasgada.Sobre os toureadores a vaia cai como uma bofetada.Genesillo adianta-se. Chega perto. Balança a capa. A arrancada quase o derruba. A pateada também. As farpas de Lagartito caem murchas. O berreiro das arquibancadas é um estouro longo.Genesillo enfia a espada obliquamente. Inteira. A ponta, fora da barriga do touro, derrama sangue. O touro continua

de pé. Toque de clarim. Outra estocada.— ¡Mal colocada!O touro continua de pé. Raiva dos assobios que silvam. Toque de clarim. Procurando a medula, a lâmina pica três

vezes. O touro cai de joelhos como um penitente. Estridula a vaia. O que custou a morrer dá uma volta junto ao palanque, puxado por dois cavalos que sacodem guizos. Sob

aclamações. O corpo malhado deixa na arena um círculo úmido, vermelho.A banda estrondeia a Marcha triunfal da Aida.

Setembro de 1925.

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o Subasio verde-escuro, Assis, branca e triste, é o anjo da guarda da Umbria.Os contrafortes da Basilica di S. Francesco amparam a montanha. O cachorro late. O automóvel

buzina. O garoto grita. O vento faz pssiu! E restabelece a paz mística.Sob os pórticos da Piazza Inferiore di S.Francesco, o franciscano de hálito fedorento limpa os dentes

com o polegar.Pouco a pouco, a igreja vestida de sombras vai-se desnudando e o corpo liberto desvenda as perfeições. No braço

direito do cruzeiro, sobre o altar, o S. Francesco espantoso de Cimabue, na cara de caboclo brasileiro, resume a vida de esposo da pobreza e amante do cilício. Seus olhos enxergam.

A escola de Giotto, nos cinco companheiros do santo, materializa a fé, a oração, o recolhimento, o êxtase, a contemplação. Definitivamente. E se perpetua.

A comissão de técnicos alemães avança lentes de aumento, pensativamente mede, escreve em caderninhos, cheira a cerveja.

Sobre o altar-mor os quatro afrescos de Giotto dantescos, enormes, cansam o pescoço porque arrebatam os olhos.Nos armários da Sagrestia Segreta, um espinho da coroa de Cristo, o véu de Nossa Senhora, uma lasca da cruz do

Calvário, um braço de Sant’Antonio di Padova, outro de S. Estanislao, uma porção de coisas de S. Francesco são de autenticidade garantida. Pelo sacristão, que recebe duas liras. Autênticas.

Cimabue, Giotto e discípulos enchem a Chiesa Superiore. A monotonia da arte conseguida. Nem um tico mal feito. Enjoa até.

A cripta, sim, é uma indecência estupenda do século XIX.— Sembra la sala d´aspetto di un cinematografo.Verdi, Umberto I, Garibaldi, outros notáveis, em oleogravuras de salão de engraxate, são exemplos pregados nas

paredes de convento feito colégio, para edificação diária dos meninos.À esquerda da Torre Comunale, na praça que ouviu S. Bernardino da Siena, o Tempio di Minerva ergue seis colunas

coríntias.A Cattedrale di S. Rufino é só fachada. Na porta principal, leões engolem homens principiando pela cabeça. Uma

alemã sem meias coça as costas.A freira de rosto coberto abre a janela, no subterrâneo da Basilica, descerra as cortinas da urna de bronze e cristal,

onde S. Chiara mostra o rosto mumificado e, com as mãos de virgem, sustenta o lírio sem mancha.Na Capella del SS. Sacramento, outra freira de rosto coberto abre também uma janela. E no muro escuro, o Cristo

que conversou com S. Francesco estende os braços magros sobre a cruz cheia de santos.O sacristão, que é gordo e tem boa memória, recita as palavras do crucificado:— Francisce, vade et repara domum meam, quæ, tu cernis, tota destruitur…Assis sobe no Subasio para ficar mais perto de Deus. Para lá é Eremo delle Carceri, onde S. Francesco foi tentado

pelo demônio e abençoou os pássaros. Do lado do oriente, é o Santuario di S. Damiano, onde S. Francesco rezou e internou S. Chiara. Aqui, S. Francesco nasceu num estábulo, como Jesus. Esta é a Chiesa di S. Nicolò, onde S. Francesco

Assis

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estudou o evangelho. Ali, S. Francesco beijou os leprosos. Longe, naquele buraco, em S. Maria degli Angeli, S. Francesco morreu. E foi para este céu que subiu.

Os irmãos ciprestes e as irmãs oliveiras têm cor de sombra no vale irmão. A Umbria reza. E as irmãs estrelas, em procissão pela noite, vêm carregando velinhas.

Julho de 1925.

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Criterion despeja na confusão do Piccadilly Circus mantos de zibelina com colares de pérolas, smokings com claques, caras raspadas com monóculos, cabeças louras com diademas.

Os ônibus vermelhos de dois andares cruzam-se, esfregam-se, enfileiram-se. A multidão errante cobre a Regent Street. Senhor do trânsito, o guarda de um metro e noventa faz com as mãos enluvadas geometria no espaço. O ruído é um atropelo de mil sons diferentes. Os cafés sorvem a gente que sobra

das calçadas. Mas a gente não diminui. Coventry Street lateja como um vaso cardíaco.Motoristas de chapéu coco ridicularizam táxis acrobáticos. Um cab passa sumido como o passado. Mulheres

vendem flores por obrigação. Indianos de olhos imensos reúnem turbantes diante da Corner House. O cego de óculos pretos está bêbado com certeza. O moço míope só vê a beleza tropical que enlaça.

Os anúncios luminosos, galgando os prédios, policromos, despencando dos últimos andares, travessos, rodando, piscando, ágeis, desaparecendo à direita, surgindo à esquerda, subindo, descendo, indo, vindo, LEARN LANGUAGES AT BERLITZ! MAZAWATTE TEA, DO YOU COMPOSE?, BOVRIL, MONICO, põem, na tela desigual da multidão que não para, pinceladas de Léger e Delaunay, vermelhas, azuis e verdes, depois de novo verdes, azuis e vermelhas.

A National Gallery estende a fachada encarvoada.E enquanto Trafalgar Square reflete a vida de oito milhões de vidas (a coluna de Nelson é o bastão que dirige a

circulação do mundo), o escocês de saiote, nas escadarias de Saint-Martin´s in the Fields, tira sonzinhos pastoris da cornamusa.

Uma da madrugada.

Charing cross

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o alto do Campanile, fogos de Bengala ensanguentam a noite. As pombas disparam. E a multidão vermelha, ondulando na praça, estoura em aplausos.

Os palácios abrem mil olhos brilhantes. Os cavalos da Basilica puxam um carro fantástico de carnaval em que esplendem cúpulas.

Sobre a cabeça branca, no centro da praça, treme uma batuta.Os pedidos de silêncio engrossam o ruído que sobe e desce.— Cinquanta centesimi il programma del concertone! Dieci soldi il programma!A banda luta contra o vozerio. Vence-o com o estridor dos metais. As notas esvoaçam sobre dez mil cabeças

inquietas.— Ma che razza di musica è questa?— Ouverture nell’opera “I maestri cantori”.— Ah! si capisce. Roba wagneriana.A sinfonia ganha espaço, bate asas, toma toda a praça, transborda para o céu roxo.As espadas dos oficiais prendem a renda dos xales femininos. Choradeira infantil. Bandejas de refrescos.

Abalroamentos. A pituitária estrangeira sente indisfarçavelmente a aversão nacional ao banho. Toscanos fumegando.Os braços do maestro fardado fecham-se em cruz. Um grupo de escoteiros alemães bate palmas meditabundas. Só.Dez minutos de agitação berrante.De novo, a batuta se movimenta. Silêncio de parlamento (brasileiro, por exemplo). Governamentalmente completo.

Estúpido.O Inno al sole da Iris desfere as primeiras notas. Segreda. Aos poucos, inflama-se. A melodia toma corpo. Apressa-se

o ritmo. As notas galopam, atropelam-se. Cento e cinquenta vozes unem-se à orquestra. Estardalhaço mascagniano. Na noite quente parte para o céu a oração tumultuosa que o sol deus não ouve. A batuta sobe, tremendo. E o hino cresce. E o hino estronda, cascateia, vocifera.

Para.O entusiasmo italiano da multidão rompe um tiroteio de aclamações. As mãos estalam. As bocas explodem.

Docemente, o velhinho inclina a cabeça cor de açúcar.Repete-se o hino. Encerra-se o concerto.— Gelati! Gelati!

Descem pombas no coreto abandonado.

País da música

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tabuleta diz: JAVA. Estrepitosamente a orquestra toca La Belote. Música saltitante, tremelicante.Cinquenta, cem, duzentos pares. Incontáveis. Frenéticos.Prazo-dado de todas as raças, de todas as idades, de todas as classes. Do amor e da alegria. Paris que

a Agência Cook não conhece.Peito contra peito, boca contra boca, fronte contra fronte, um estudante chinês dança com uma

datilógrafa cubana. Duas raparigas gingam coladas, os lábios da mais alta no pescoço da baixa. Pulos. Gritos. Gargalhadas. Uma costureirinha do Boulevard des Filles-du-Calvaire abraça o indiano de óculos e corcunda.

— Voilà mon père qui arrive avec sa gonzesse…Que boca tão vermelha! Os braços magros de um argeliano fazem-se quilométricos para enlaçarem os cento e

cinco quilos de uma norte-americana de colar de pérolas. Cada par tem o seu estilo: o estilo que lhe convém. Os passos improvisam-se, traduzem estados de espírito. Passos burgueses. Passos cômicos. Passos pitorescos, voluptuosos, escandalosos.

Vozes roucas, imitando a de Mistinguett, principiam o estribilho irresistível:On fait un’ petit’ beloteet puis ça va…Outras continuam, misturando cinquenta pronúncias diferentes:Tout le reste, c´est d´la gnognotteà côte d´ça…Confusão estonteadora, policroma. Peitilhos de casaca. Fardas. Caras barbudas. Um par de lábios grudados, parado

no meio do salão. Mamãs suarentas, com copos de cervejas. Um inglês manco e que salta, arrastando os sessenta anos da romaica alta. E o estribilho que recomeça:

On fait un’ petit’ beloteet puis ça va… E continua:…on belote et rebeloteà tour de bras!Algazarra de dançarinos que se chocam. Hálitos que se misturam. Cheiro azedo de aglomeração pública.— Ah!…— Non!…— Oh!…A orquestra silencia. Por segundos. Aplausos. A orquestra ataca de novo La belote. O saxofone faz prodígios. Acrobacia

sonora de todos os instrumentos. A música (tararirarirará-pum! tarirará-pum!) berra, silva, detona. Estardalhaço da bateria.

A um canto, voltados para a parede, cabeças unidas, baixas, o rapaz e a rapariga tremem. O brasileiro, da mesa mais

ParisO baile do Magic City

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próxima, arrisca um olho, e sorve a limonada. Muito vermelho.SAMBA, diz a tabuleta da outra orquestra.Maxixe de S. Guido. Delírio de pernas que se cruzam e se esfregam. Giro doido de corpos unidos. Ginástica e

desarticulação de todos os membros. Contorções. Equilibrismo. Reviravoltas. Na vertigem, no gozo, no espasmo, o respeito humano desaparece. O próximo não existe. Ninguém tem olhos para o que se passa em torno. Quem que beijar, beija. Quem quer bolinar, bolina.

Agora tocam as duas. Tocam tudo. Sem intervalo.— Déjà?Assalto aos vestiários. Longos apertos de mão. Beijos de fim de fita. Empurrões.— Bonsoir. On se verra demain au métro…— Oui, ma gosse…Da boca de um bêbado de cócoras na calçada (chuvisca), saem baforadas de álcool e versos da Internacional.

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