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Álcool e volante, uma relação mortal

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Matéria da Revista ABCFARMA: Álcool e volante, uma relação mortal

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14 | Revista ABCFARMA | DeZeMBRO / 2011

textO: celsO aRnaDO aRaujOfOtOs: DivulgaçãO

Comportamento

Álcool e volante

s números são oficiais: nada menos do que 40.610

brasileiros morreram em acidentes de trânsito no ano passado.

São 11 por dia, 8% a mais do que no ano anterior e o maior

número em 15 anos, segundo o Ministério da Saúde.

As autoridades atribuem essa tragédia em parte ao enorme

aumento da frota de motos. Mas, em qualquer estatística, pelo

menos 50% dos acidentes têm a ver com embriaguez ao volante.

Em São Paulo, nos últimos meses, uma série de acidentes fatais,

todos envolvendo carros importados dirigidos por motoristas

sob o efeito do álcool, comprova dramaticamente essa relação

de causa e efeito. Será que a Lei Seca perdeu a eficiência dos

primeiros tempos? Por que uma pessoa com um bom nível social

e cultural enche a cara e vai dirigir, assumindo o risco de morrer

e matar? A Revista ABCFARMA foi buscar as respostas com

o Dr. Mauro Augusto Ribeiro, presidente da ABRAMET, Associação Brasileira de Medicina do Tráfego Dr. Mauro Augusto Ribeiro

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Só para citar São Paulo, a cidade com a maior frota do país, a taxa anual de mortalidade por acidentes de trânsito é de cerca de 18 por cem mil habitantes – era de 28 antes do novo Código Nacional de Trânsito, mas ainda está muito acima de qualquer cidade desenvolvida. Qual é o papel do álcool nessa mortandade?

A taxa anual de mortalidade no trânsito em São Paulo tem se reduzido nos últimos anos e, se não reduziu mais, é devido ao aumento de pes-soas motorizadas e à ampliação da participação das motocicletas na frota de veículos. Considera-mos os índices de São Paulo “menos ruins” que os de outras regiões brasileiras, mas não che-gam a ser sequer comparáveis aos países ditos desenvolvidos. A Abramet não dispõe de dados precisos a respeito da participação da condução sob efeito de álcool nas mortes no trânsito, até porque no Brasil não se investiga sistematica-mente a presença de álcool no sangue de condu-tores envolvidos em acidentes. Esta busca só é feita sistematicamente nas vitimas que morrem logo após a ocorrência. O IML constata álcool nas vítimas fatais em torno de 50% a 70%, às vezes muito acima dos limites. No primeiro mês de vi-gência da Lei Seca tivemos uma redução de 50% de fatalidade. A Abramet credita a metade das mortes no trânsito ao fator de risco álcool.

Essa série de acidentes recentes em São Paulo, envolvendo carrões e álcool, são uma espécie de “surto”?

A Saúde já considera os acidentes de trân-sito como epidemia há muito tempo. Uma certa “variação epidemiológica” é perfeitamente nor-mal e o fato de, neste momento, notarmos esta incidência como se fosse um fato recente e iso-lado deve-se apenas à sensibilização produzida pelo despertar dos meios de comunicação. O ál-cool é um hábito arraigado, socialmente difundi-do. Um dos fatores que contribui para o aumen-to de consumo é o poder aquisitivo que ocorre numa fase de crescimento econômico. Este au-mento propicia também a aquisição de veículos mais sofisticados, incrementa a motorização o numero de deslocamentos e de viagens, aumenta o engarrafamento e o estresse.

Três anos depois de sua instituição, a Lei Seca perdeu sua força?

A lei seca, se analisada isoladamente em termos de eficiência, como potencial redutor de acidentes de trânsito ao longo dos três anos de sua existência, re-presenta uma grande frustração, uma oportunidade perdida. Mas também representa um avanço, pela refle-xão coletiva que introduziu em nosso meio. Certamente sairemos deste processo culturalmente muito diferen-tes de como entramos, em relação à percepção de que beber e dirigir é um hábito de altíssimo risco. Mas isso não basta. É preciso cumprir a lei.

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E a eterna guerra entre carros e pedestres?

Historicamente, parte importante das vi-timas de acidentes de trânsito não são ocupan-tes de veículos. O espaço público, ao contrário da casa de cada um, é um espaço de disputa, de conflito, quando deveria ser um espaço de-mocrático com tratamento igualitário a todos, apesar das diferenças individuais. Na prática, não é o que se passa, cada um pretende trata-mento democrático para os outros e privilé-gios aristocráticos para si. O espaço público é utilizado como campo de guerra. A função da lei, que é exatamente equalizar estas diferen-ças e administrar os conflitos, não se realiza pela omissão do estado.

Existe algum limite seguro de consumo de álcool antes de dirigir?

A Abramet, historicamente, com base em evidência científica, defende o índice zero de concentração de álcool no sangue para o exer-cício da direção. O índice 0,2 g de álcool por litro de sangue (equivalente a uma lata de cer-veja ou uma taça de vinho) apenas é aceitável em função de uma margem de tolerância por uma possível falha na medição. Quem ingere

Há pessoas que garantem que, se bebem um pouco antes de pegar o volante, ficam mais cuidadosas ao dirigir. Isso faz sentido?

Ninguém fica mais cuidadoso quando bebe. O álco-ol é um depressor do sistema nervoso central, é bebido para eliminar inibições e melhorar a convivência social, e ao mesmo tempo prejudica funções importantes para a direção, funções cognitivas, sensitivas e motoras. Exis-tem pessoas sensíveis e pessoas que se mostram mais resistentes ao efeito do álcool. Mas, quando ocorre au-mento da resistência, isso apenas demonstra que esses indivíduos já estão numa escala mais avançada da pro-gressão da doença do álcool – a necessidade de aumen-tar dose para obter os mesmos efeitos é uma das primeiras características da instalação de um processo de dependên-cia de álcool.

bebida alcoólica deve se abster de dirigir até certeza que não se encontra mais sob efeito de álcool, sendo válido um autoteste em bafôme-tro descartável para esse fim. Devemos usar todo o poder de influência para dissuasão da direção nesse estado.

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Por que a Lei Seca não tem mais a eficiência dos primeiros tempos?

Na pratica, a grande carência da Lei Seca é de aparelhamento. A Or-ganização Mundial de Saúde sugere a abordagem de um terço dos condutores por ano. Aparelhar a lei é dimensionar e equipar as polícias com recursos e meios para realizar uma intervenção desta envergadura, aparelhar os ór-gãos administrativos e órgãos judiciais para o processamento dos produtos desta ação e aparelhar estruturas para assegurar que estas penas serão efeti-vamente cumpridas.

Há juristas que se opõem à prisão de motoristas embriagados antes que eles causem acidentes – porque isso seria puni-los apenas pela expectativa de um crime. Qual é sua visão sobre isso?

A Abramet entende perfeitamen-te, e de uma forma convicta, que é muito melhor prevenir que remediar. O álcool

certamente produz males a quem o consome, mas é inaceitável que as pes-soas que cercam o condutor fiquem expostas a danos apenas porque, pela lei, ninguém é obrigado a produzir provas contra si mesmo. Evidentemen-te médicos bebem, jornalistas bebem, políticos bebem e juristas também be-bem, mas nunca podemos nos posicio-nar diante um problema desta magni-tude baseado em um comportamento ou interesse pessoal. Dirigir sob efeito de álcool deve ser considerado tentati-va de acidente – ou não existe tentati-va de homicídio? Que aliás fica confi-gurada quando a tentativa de acidente se consuma no acidente. Alguém tem dúvida da eficácia das vacinas? Não é válida a intervenção apenas pela expectativa da doença?

Pelo Código de Trânsito Brasileiro, motoristas alcoolizados podem se recusar a fazer o teste do bafômetro para não produzirem provas contra si mesmos. O que a Abramet acha disso?

No seu artigo 276, o CTB coloca a mera suspeita de dirigir sob efeito de álcool como uma das indicações para fazer medi-ção de alcoolemia. Não faz o menor sentido o direito à recusa, pois dirigir é um privilegio e, para manter esse privilégio, o con-dutor deve assumir o compromisso de se submeter ao teste de alcoolemia sempre que for solicitado e ponto final. Um parágra-fo desse artigo estabelece que quem se recusar a se subme-ter ao teste, quando houver suspeita de alcoolemia, responderá administrativamente pela recusa. Mas deveria também haver um parágrafo no qual o autor da recusa respondesse também pe-nalmente. Seria bom reforçar o

que ainda não está claro: a lei considera crime conduzir veículos com qualquer quantidade de álcool no sangue. A lei fala em índice zero de álcool, não?

A Abramet participou do processo de elaboração da Lei Seca, bancou o índice zero e continua plenamente convicta dis-to. A Abramet luta para conscientizar as instâncias decisórias executivas, judiciais e legislativas no sentido de viabilizar a ple-na aplicação da lei seca. A Abramet defen-de o uso intenso de campanhas de cons-cientização da sociedade, a formulação de uma legislação nacional que dificulte o acesso ao álcool – como taxação mais alta, aumento da idade-limite para consumo regular de álcool, responsabilização dos fornecedores de álcool a menores, regu-lação da publicidade dirigida a menores, horário de publicidade, intervenção mais intensa da saúde no rastreamento do uso abusivo de álcool na população em geral e em particular nos condutores de veícu-los, a ser realizada nos exames médicos para renovação e obtenção de carteira de motorista, através de intervenções de educação, aconselhamento e motivação a mudança de hábitos de uso de álcool. n

Na pratica, a grande carência da Lei Seca é de aparelhamento

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