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Rev. Nutr., Campinas, 23(1):137-147, jan./fev., 2010 Revista de Nutrição SEÇÃO TEMÁTICA | TEMATIC SECTION 1 Doutora em Antropologia. R. Clodomiro Amazonas, 1220, ap. 71, Vl. Olímpia, 04537-002, São Paulo, SP, Brasil. E-mail: <[email protected]>. Alegrias e desventuras do paladar: a alimentação no Brasil holandês Bliss and misfortunes of taste: food from the Brazilian Dutch Colony Claude Guy PAPAVERO 1 R E S U M O O objetivo deste trabalho é desenvolver uma descrição histórica dos eventos relacionados à problemática do abastecimento alimentar durante a conquista de parte do Nordeste brasileiro, entre 1630 e 1654, pela Com- panhia das Índias Ocidentais holandesa, que revelou o modo de pensar dos conquistadores e permitiu demonstrar as dificuldades de subsistência no Brasil holandês e a precariedade do domínio político estabe- lecido. Durante o governo do conde Maurício de Nassau-Siegen, entretanto, os forasteiros maravilhados descobriram o sabor da fauna e da flora local que os colonos portugueses costumavam comer, e adotaram sem demora essas iguarias que eles utilizaram para elaborar imagens convincentes do poder conquistado. A descrição dos hábitos alimentares e dos problemas de abastecimento encontrados na documentação analisada permitiu apontar os parâmetros sócio-culturais que regiam aquela sociedade, favorecendo um enfoque bem documentado sobre a alimentação da época. Termos de indexação: Alimentação colonial. Antropologia da alimentação. História da alimentação. Brasil Holandês. A B S T R A C T An analysis of food resources of the civil population and the occupation army that the Dutch West Indies Company brought to the Northeast of Brazil from 1630 to 1654 demonstrated the hard situation of subsistence of the Brazilian colony and the precariousness of the political dominion established. Under the governorship of count Moritz van Nassau-Siegen, however, the Dutch, enchanted with the flavors of the local fauna and flora that Portuguese colonists were used to eating, soon adopted such delicacies at their tables and used them to develop convincing images of their political power over the land. The description of the food habits and the problems of sully found in the analyzed documents allowed the determination of the sociocultural parameters that governed that society, favoring a well documented focus on the eating habits of that time. Indexing terms: Colonial alimentary diet. Alimentary anthropology. History of food. Dutch Brazil. I N T R O D U Ç Ã O O objetivo deste trabalho é desenvolver uma descrição histórica dos eventos relacionados à problemática da abastecimento alimentar no período do Brasil colonial (segunda metade do sé- culo XVII), durante a conquista de parte do Nordes- te brasileiro pela Companhia das Índias Ocidentais

Alegrias e desventuras do paladar. a alimentação no Brasil Holandês - Claude Papavero

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Rev. Nutr., Campinas, 23(1):137-147, jan./fev., 2010 Revista de Nutrição

SEÇÃO TEMÁTICA | TEMATIC SECTION

1 Doutora em Antropologia. R. Clodomiro Amazonas, 1220, ap. 71, Vl. Olímpia, 04537-002, São Paulo, SP, Brasil. E-mail:<[email protected]>.

Alegrias e desventuras do paladar:a alimentação no Brasil holandês

Bliss and misfortunes of taste: food

from the Brazilian Dutch Colony

Claude Guy PAPAVERO1

R E S U M O

O objetivo deste trabalho é desenvolver uma descrição histórica dos eventos relacionados à problemática doabastecimento alimentar durante a conquista de parte do Nordeste brasileiro, entre 1630 e 1654, pela Com-panhia das Índias Ocidentais holandesa, que revelou o modo de pensar dos conquistadores e permitiudemonstrar as dificuldades de subsistência no Brasil holandês e a precariedade do domínio político estabe-lecido. Durante o governo do conde Maurício de Nassau-Siegen, entretanto, os forasteiros maravilhadosdescobriram o sabor da fauna e da flora local que os colonos portugueses costumavam comer, e adotaramsem demora essas iguarias que eles utilizaram para elaborar imagens convincentes do poder conquistado. Adescrição dos hábitos alimentares e dos problemas de abastecimento encontrados na documentação analisadapermitiu apontar os parâmetros sócio-culturais que regiam aquela sociedade, favorecendo um enfoque bemdocumentado sobre a alimentação da época.

Termos de indexação: Alimentação colonial. Antropologia da alimentação. História da alimentação. BrasilHolandês.

A B S T R A C T

An analysis of food resources of the civil population and the occupation army that the Dutch West IndiesCompany brought to the Northeast of Brazil from 1630 to 1654 demonstrated the hard situation of subsistenceof the Brazilian colony and the precariousness of the political dominion established. Under the governorshipof count Moritz van Nassau-Siegen, however, the Dutch, enchanted with the flavors of the local fauna andflora that Portuguese colonists were used to eating, soon adopted such delicacies at their tables and usedthem to develop convincing images of their political power over the land. The description of the food habitsand the problems of sully found in the analyzed documents allowed the determination of the socioculturalparameters that governed that society, favoring a well documented focus on the eating habits of that time.

Indexing terms: Colonial alimentary diet. Alimentary anthropology. History of food. Dutch Brazil.

I N T R O D U Ç Ã O

O objetivo deste trabalho é desenvolveruma descrição histórica dos eventos relacionados

à problemática da abastecimento alimentar noperíodo do Brasil colonial (segunda metade do sé-culo XVII), durante a conquista de parte do Nordes-te brasileiro pela Companhia das Índias Ocidentais

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holandesa (West Indische Compagny - WIC). Porintermédio das atividades de subsistência, o modode pensar, de agir e de sentir dos forasteiros desem-barcados pôde ser delineado indiretamente, bemcomo os percalços de seu ajustamento ao estilode vida brasileiro instituído pelos colonos lusos.

As narrativas sobre o tema indicavam aexistência de um hiato curioso entre afirmaçõesmirabolantes de prosperidade colonial e mençõesrecorrentes às dificuldades práticas do abaste-cimento alimentar. Comparando textos de diversosautores do período, foi possível rastrear o elencodos problemas cotidianos que afligiam os holan-deses. Circunstâncias materiais e valores ideais,conjugados, ilustravam aspectos relevantes dasociedade neerlandesa em vias de se constituir.

As circunstâncias prévias da conquista

Antes de analisar os contornos do episó-dio histórico, todavia, seria necessário relembraralguns de seus aspectos notórios. Apesar do caráterinegavelmente político, o projeto de conquistar aárea do Brasil, onde o açúcar era fabricado, de-sembarcando ali um exército de ocupação e umapopulação civil composta de voluntários de diver-sas nacionalidades, foi o empreendimento de umacompanhia comercial financiada por acionistas

seduzidos pelos lucros proporcionados pela WIC.O motivo principal da guerra residia no empenhodas Províncias Unidas dos Países Baixos em se livrarda antiga submissão ao rei da Espanha (que, naépoca, também reinava em Portugal). Prevendoassaltos ao território holandês, era preferível ante-cipar a luta e deslocá-la para o ultramar, impe-

dindo a monarquia espanhola de transformar emrecursos bélicos as riquezas em ouro, prata eaçúcar que recebia das colônias americanas.

A ideia do estabelecimento de uma base

sul-americana, para facilitar a perseguição às frotascarregadas de ouro do Caribe e de prata peruanae privar a Espanha dos rendimentos do açúcarbrasileiro resultou, portanto, em um ataque aSalvador em 1624, na manutenção dessa primeira

capital da colônia em mãos holandesas atémeados de 1625 e na conquista de várias capita-nias situadas ao norte da Bahia, após a queda deOlinda em 1630. Porém, na prática, nem em Sal-vador, nem em Olinda, as populações lusas estabe-lecidas na área rural se submeteram de bom gra-do, não obstante a perda dos portos por ondeescoavam o pau-brasil, o açúcar, o tabaco, o algo-dão e os couros, e foi preciso dominá-los à forçaapós alguns anos de resistência armada.

Dissabores da alimentaçãoholandesa no Brasil

Ao desembarcarem, as tropas da WIC en-contraram uma grande quantidade de alimentosnas casas de Salvador e de Olinda, abandona-das pelos proprietários. O militar inglês CuthbertPudsey relatou a benvinda abundância que cele-brou a tomada de Olinda:

E não havia provisões que um soldado

não tivesse: vinho, azeite, farinha, uvas,

azeitonas e similares, e esses víveres

vieram a calhar, tendo todo nosso susten-

to vindo da Holanda1 (p. 10).

Tamanha fartura, todavia, se esgotou rapi-damente. Durante os 12 meses de permanênciaholandesa em Salvador, um dos grandes proble-mas causados pelo cerco luso foi a carência dosalimentos frescos. Saques a engenhos do Recôn-cavo baiano, convites de colonos pretensamentedispostos a confraternizar, emboscadas e tentativas

mal sucedidas de negociações para a compra degado bovino, relatados por Frei Vicente do Salva-dor2, demonstraram a precariedade do domínio

territorial alcançado.

Em Recife, entre 1630 e 1632, o exércitoencurralado em território urbano consumiu quaseque exclusivamente gêneros europeus salgados,

secos e defumados providos pelas naus batavas.Duarte Coelho de Albuquerque, donatário da capi-tania de Pernambuco, assinalava orgulhosamenteas privações que a resistência lusa infligia aosadversários:

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Unidos assim puderam fazer retirar o ga-

do para o centro e subtraí-lo à cobiça do

inimigo, que, estando na posse do Recife

havia quase dois anos, ainda não lhe era

possível (nem lho consentia o nosso

general, já por si, já por seus capitães)

comer uma só vaca. Alimentavam-se

somente com os gêneros que a Holanda

lhes enviava; pelo que pode dizer-se sem

escrúpulos que, estando eles em terra ha-

via tanto tempo, ainda navegavam, pois

que não tinham outros mantimentos mais

que salgados3 (p.113).

Durante os dois primeiros anos do Brasilholandês, frutas frescas e carnes verdes foram

almejadas em vão, no âmbito de uma guerracujos procedimentos incluíam o abate de rebanhosbovinos e a destruição de roças de mandioca para

impedir o abastecimento alimentar inimigo. Nascolinas de Olinda e nos caminhos entre essa vilae o Recife, os pomares existentes testemunharam

emboscadas sangrentas1.

Fome e sede atormentaram os militares

da WIC até a adesão ao partido neerlandês do

mestiço Calabar, versado nos usos bélicos da terra,

além das propostas de aliança contra os portu-

gueses, formuladas por muitos grupos indígenas,

quando os forasteiros começaram a vencer bata-

lhas. A Companhia, auxiliada por indígenas, ma-

melucos e mulatos, que conheciam bem o terri-

tório e imaginaram encontrar melhores condições

de vida junto aos holandeses, expandiu então seu

domínio na área rural. Como ressaltou Evaldo

Cabral de Mello, expedições seguiam a bordo de

naus até localidades previamente escolhidas. Na

chegada ao destino sigiloso, as tropas desem-

barcavam e atacavam povoados que nenhum

reforço de combatentes lusos defendia4. Seme-

lhantes ataques atemorizavam os colonos, e o

saque dos vencidos fornecia gêneros alimentícios

frescos. À conquista da Paraíba completada dessa

forma, João de Laet observou como o coronel

Artichau Arcizewski, passou a substituir os saques

por apropriações legais. Distribuiu passaportes aos

colonos portugueses em troca de mantimentos ede um juramento de fidelidade à WIC:

[...] o qual estivera ocupado por alguns

dias em estabelecer a boa ordem na gente

do campo e fazer com que trouxessem

ao acampamento as contribuições de

víveres (porque acharam que por esse

meio obtinham mais carne e farinha de

mandioca do que necessário e por tal pre-

ço que a manutenção de cada soldado

não custava mais de um florim por sema-

na à Companhia) e pôs-se logo a deliberar

o que deviam empreender mais contra o

inimigo5.

Por volta de 1636, os holandeses contro-lavam a maior parte da capitania de Pernambucoe as capitanias de Itamaracá, da Paraíba e do RioGrande, mas desejavam estender ainda mais seudomínio e necessitavam de fontes locais de subsis-tência para suplementar o aprovisionamento rece-bido da metrópole. Alimentar e pacificar o exércitode ocupação, a população civil e os colonos lusosremanescentes, em uma região arrasada pelaguerra e afetada pela fuga de muitos lavradoresportugueses, constituía uma tarefa nevrálgica daqual dependia a manutenção da posse colonial.De modo que a WIC escolheu então o condeJohan Maurits de Nassau-Siegen, humanista echefe militar reputado, para administrar o territórioconquistado.

Inúmeros escritos do período mencionarama irregularidade do abastecimento e as dificuldadesda subsistência no Brasil holandês. Os relatóriosde Nassau e de seus subordinados, e os comen-tários espontâneos dos letrados, registraram, am-bos, um farto manancial de informações sobre aescassez dos gêneros comestíveis e sobre asmedidas paliativas ideadas para fazer frente asituações de carência. O potencial elucidativo dasmedidas de provimento alimentar não escapou aAntônio Gonsalves de Mello6. Em sua obra Tempodos flamengos, o estudioso apontou o caráterpromissor da análise das crises enfrentadas e dassoluções instauradas em prol da manutenção dacolonização holandesa.

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Porém, as providências oficiais para o sus-tento da colônia que, por vezes, tiveram o condãode desagradar ao mesmo tempo aos colonos lusos,aos soldados e à maior parte da população civil,não representaram a única fonte de conhecimentorevelada pela análise dos procedimentos alimen-tares batavos. À consideração das formas de ajustepragmático da dieta às circunstâncias ambientaise sociais do território, seria necessário acrescentaro estudo corolário da maneira como os novos donos

do Brasil conceberam uma alimentação condi-zente com suas pessoas e sua posição social. Comefeito, o fenômeno interessante da transformação

de avaliações de gêneros comestíveis palatáveisou repudiados em classificações simbólicas refe-rentes aos próprios integrantes da nova sociedade,

também se tornou evidente nos comentários da-queles que experimentaram delícias e agruras dopaladar durante o Brasil holandês.

Apesar da fugaz duração do domínio polí-

tico alcançado na terra pela Companhia das Índias,os textos dos cronistas e as representações pictóri-cas dos artistas do conde de Nassau ilustraram

temas efetivamente discutidos no Brasil holandês.Os recursos alimentares mais saborosos, frequentesna mesa palaciana, serviram para que, sob a égi-

de de Nassau, se elaborasse uma imagem políticaconvincente do poder holandês. Em contrapartida,a sobrevivência da população mais pobre resultou

na ingestão de ingredientes pouco apetecidos.

Entre janeiro de 1637 e meados de 1644,durante os cerca de oito anos de seu governo, oconde de Nassau se empenhou em conciliar os

interesses conflitantes dos diversos segmentos depopulação. Multiplicaram-se os esforços para am-pliar o domínio territorial, restaurar a prosperidade

abalada pela guerra e dar feições batavas ao

Brasil. As práticas eficazes dos colonos portu-

gueses, referentes à produção e ao consumo de

alimentos, permaneceram em uso. A farinha de

mandioca seca (dita farinha de guerra), a carne

bovina seca ou salgada dos rebanhos criados nosertão, a carne fresca de reses conduzidas até olitoral e os barris de peixes apanhados no mar,

nas lagoas ou nos rios e conservados secos ousalgados, continuaram a prover reservas estra-tégicas de alimentos.

Os holandeses aderiram, por conseguinte,à distinção dos colonos lusos, entre os víveresfrescos de produção ocasional, que comple-mentavam agradavelmente as refeições, e aosmantimentos básicos, substanciais, resistentes àdegradação e facilmente armazenados, que per-mitiam certo planejamento e controle da produ-ção7. Os feijões, que em épocas posteriores decolonização lusa se tornariam ingredientes primor-diais da dieta alimentar brasileira, apesar de co-nhecidos e consumidos pelos índios, pelos portu-gueses e pelos holandeses, não integravam entãoo rol dos alimentos indispensáveis.

No cotidiano, a dieta mínima que os manti-mentos garantiam era incrementada, segundo adisponibilidade ambiental e o poder aquisitivo decada indivíduo, por um elenco variado de carnesde criações domésticas ou de caça, de peixes, demoluscos e de crustáceos, de hortaliças ou delegumes europeus, asiáticos, africanos ou nativos,e de preparos que incorporavam açúcar ou subpro-dutos do açúcar. De forma que, apesar de contarcom gêneros comestíveis brasileiros nos armazéns,e de assegurar a obtenção de quantidades impres-cindíveis de farinha de mandioca, por meio dedecretos considerados abusivos pelos lavradores,a Companhia das Índias nunca deixou de enviarperiodicamente para o Brasil naus carregadas demilitares, de colonos e de mantimentos europeus.Semelhantes remessas visavam a fortalecer a colô-nia. Destinavam-se ao sustento de novas expe-dições bélicas e à obtenção de dinheiro líquido.

Com efeito, na colônia nassoviana, comosob o domínio luso, a população apreciava comergêneros europeus. As autoridades coloniais bata-vas (como as antecessoras lusas) continuaram asatisfazer o gosto dos homens abastados e seudesejo de ostentação, vendendo-lhes, por altospreços, gêneros que o Brasil não produzia, comoa farinha de trigo, os vinhos ou o azeite. Na voltaà metrópole, as frotas neerlandesas carregavammercadorias produzidas na colônia e, enquantodurou a guerra, o botim apresado pelos corsários.

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Uma vez efetivada a conquista, os acionis-tas da WIC, acreditando que as fontes locais deabastecimento seriam suficientes, deixaram deenviar aprovisionamento em quantidades adequa-das. Em tais circunstâncias, a falta, tanto de nume-rário quanto de provisões para remunerar e ali-mentar condignamente a população pesou, e foinecessário abusar de expedientes desagradáveise desrespeitar as promessas de convívio pacíficofeitas aos súditos portugueses, como ressaltou JoséHygino Duarte Pereira em seu ensaio sobre aBatalha naval de 1640 e outras peripécias daguerra holandesa no Brasil:

Queixam-se os moradores de que nós lhes

tomamos tudo o que elles têm para ali-

mentar a vida e que, sustentando há tanto

tempo com o seu os nossos soldados em

toda terra, ficaram pobres e cahiram na

penúria de víveres; e, entretanto nós não

lhes deixamos tirar do que é nosso, e,

pelo contrário, lhes fechamos tão rigoro-

samente o Recife que mal podem obter,

ainda mesmo para os doentes, um vaso

de azeite, uma libra de peixe secco e

cousas semelhantes; que desarrazoado é

que lhes tomemos os generos com que

elles se alimentariam, e nada lhes queira-

mos dar do que é nosso8.

No primeiro relatório endereçado à WIC,em janeiro de 1638, um documento intituladoBreve Discurso sobre o estado das quatro Capi-tanias conquistadas no Brasil, pelos holandeses,Maurício de Nassau e dois Altos e Secretos Con-selheiros relatavam:

Já anteriormente comunicamos que pu-

semos todos os empregados da Com-

panhia, desde os mais baixos até o mais

elevado, às suas próprias expensas no que

se refere à alimentação, com que eles se

arranjam, e até os soldados, que à velha

ração preferem receber o seu soldo e

pensão, pois fica-lhes cômodo proverem-

-se no mercado dos frutos indígenas,

sendo que todos os dias se corta carne

fresca; não podem porém comprar com

o seu soldo muitos víveres da Holanda, a

não ser favas, ervilhas, cevada, e preferem

as favas e os frutos da terra9 (p.109).

Mesmo em períodos de fartura, a alimen-tação das tropas se ressentia de economias prati-cadas às suas custas. O jovem Zacharias Wagener,por exemplo, inicialmente contratado comosoldado raso, mas que chegou a ser nomeadodespenseiro de Nassau testemunhou, em suasmemórias, o preparo culinário de um vegetalbrasileiro, o perrexil do mar que crescia em estadoselvagem em torno dos fortins e dos cemitérioslitorâneos:

Cresce esta erva por toda parte nas terras

baixas e salgadas, motivo pelo qual ela

mesmo é salgada. Porém, quando a faze-

mos cozinhar durante bom tempo em

água doce, deve-se jogar a água quente

fora para cozinhá-la de novo em água

doce e assim três ou quatro vezes, perden-

do, desta forma, seu mau gosto de sal,

dando um bom petisco depois de bem

temperada com azeite de oliva e vinagre.

Á falta de pão e de outro alimento, duran-

te um ano inteiro fui obrigado, mais do

que desejava, a comê-la diariamente, sem

manteiga nem azeite10.

As expedições bélicas esgotavam os arma-zéns e resultavam em carências de alimentosacompanhadas de fortes altas dos preços. Nosmeses subsequentes, a penúria se fazia sentir. Em1640, após o fracasso do ataque de Nassau àBahia, o pastor Soler comentava em cartas aosseus correspondentes: “Os soldados morrem defome apesar de parte de seus salários ter sidoretida para alimentá-los”11 (p.581).

Previsivelmente, os colonos lusos da árearural sofreram as incursões predatórias de soldadosesfomeados. Como se desprende do texto das Atasda Assembléia legislativa, as autoridades admi-nistrativas da colônia reconheciam:

Há ainda outra espécie de ladrões tam-

bém mui incommodos e prejudiciaes a

respeito dos quaes se faz necessário pro-

videnciar pelo damno que causam aos

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moradores, são os soldados indisci-

plinados que ora surgem nos caminhos,

ora vão as casas, e, a pretexto de pedir

comida, tomam tudo, maltratam e fazem

grandes vexames aos moradores, o que é

inteiramente contra a nossa vontade e

vós sabeis que querendo remediar este

mal temos usado de todo rigor contra os

officiaes12.

Em Recife, a situação dos colonos não eramelhor. Segundo afirmava o pastor Soler:

Agora temos homens (os navios que os

trouxeram não pertencem à Companhia)

em número suficiente para nos defender,

mas não temos víveres. Há cinco ou seis

meses que seus preços dobraram. Apenas

vegetamos. É a maior miséria que observei

nesse país11 (p.575).

A notícia da restauração de um monarcaluso no trono português, em 1640, colocou umfreio às ambições holandesas de assegurar ao Brasilholandês fronteiras mais amplas e defensáveis eum acesso aos portos africanos dedicados ao trá-fico negreiro. Valendo-se do intervalo de tempodecorrido entre o anúncio da ruptura entre portu-gueses e espanhóis e a assinatura oficial de umtratado de paz, Nassau se apressou em tomar deassalto Sergipe, o Maranhão, São Paulo de Loandae a ilha de São Tomé. Circunstância que enfureceua população lusa, e deixou à míngua os armazénsda Companhia, desencadeando uma nova crisede abastecimento em 1642 e 1643, que agravoua situação de endividamento da maioria dossenhores de engenho. Nieuhof13 atribuiu ao esgo-tamento dos celeiros da Companhia em meadosde 1643, a decisão impopular do Grande Conselhode lançar mão das importâncias devidas à Com-panhia para poder pagar o salário dos militares efuncionários.

Nassau permaneceu no comando da colô-nia até meados de 1644. O triunvirato de conse-lheiros que o substituiu preocupou-se particular-mente com a cobrança das dívidas dos senhoresde engenho junto a credores particulares ou àCompanhia (dívidas que embutiam juros exor-

bitantes). Na área rural, os ânimos lusos acirraram--se de forma explosiva e ao cabo de um ano derelações tensas, os colonos se rebelaram, iniciandouma guerra de libertação que durou nove anos,graças ao auxílio sorrateiro de reforços vindos daBahia. Nesse período, ambos os adversários expe-rimentaram fome e miséria extremas e, em diver-sas ocasiões, ambos quase se renderam.

Ao perderem paulatinamente o domínioda área rural, os holandeses foram tambémperdendo aos poucos o acesso aos mantimentosda terra, a despeito dos provimentos em farinhae em carne bovina do Rio Grande, que conti-nuaram por muitos anos. A dependência do abas-tecimento europeu voltou a ser crucial. A maioriada população fiel à WIC ficou sitiada na áreaurbana do Recife e da Ilha Maurícia, lugares ondesomente existiam fontes de água salobra e ondehavia pouca madeira para cozinhar. A situaçãose tornou crítica e gêneros comestíveis perten-centes a comerciantes e a particulares foram confis-cados. Praticou-se um racionamento severo dosvíveres. Certa vez, uma cesta apetitosa de frutassumarentas chegou a ser introduzida na cidade,mas as frutas continham veneno. Foi necessárioimpedir as deserções. Mercenários suspeitos denutrir intenções de fuga foram enforcados. Aterro-rizaram-se os escravos afirmando-lhes que, casose refugiassem entre os inimigos, seriam comidospelos índios. Em razão da penúria do abaste-cimento, as atividades da pesca decuplicaram deimportância. Em alguns textos que relatavam ossofrimentos padecidos, como o Diário ou brevediscurso acerca da rebelião e dos pérfidos desígniosdos portugueses do Brasi, a alcunha desdenhosade João Toucinho passou a designar a populaçãocolonial lusa14.

À mesa dos poderosos não faltaramfrutas, hortaliças e carnes saborosas

O consumo prazeroso de vegetais e ani-mais encontrados no Brasil limitou-se, efetivamen-te, ao momento áureo e fugaz da prosperidadenassoviana, período de convívio entre forasteiros,

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colonos lusos, indígenas, africanos escravizados,mulatos e mamelucos. A observação dos gêneroscomestíveis locais e de suas técnicas de produção,de preparo e de consumo, procedimentos imitadosou alterados, deu início a um recenseamento dosrecursos alimentares e à atribuição de valoressimbólicos aos novos ingredientes da dieta.

Para os donos do Brasil, o conhecimentoda terra prometia a ampliação do rol dos produtoscomercializados e um aprimoramento da quali-dade de vida cotidiana. Pela força das circuns-tâncias, a descoberta batava do meio ambiente edos usos e costumes lusos, repercutiu tanto noimaginário quanto na organização prática de umestilo de vida colonial. Não surpreende, por conse-guinte, que os relatórios dos administradorescoloniais, fontes documentais destinadas às instân-cias metropolitanas da Companhia, e as narrativasde letrados seduzidos pela aventura da WICtenham registrado de modo consistente o teor dasdiscussões marcantes que ocorriam na capital doBrasil holandês.

Piso, Marcgrave, Zacarias Wagener e JoãoNieuhof, por exemplo, descreveram algumas dasiguarias que incorporavam ingredientes locais.Todavia, a despeito de o médico Piso e de seuassistente, o naturalista Marcgrave, especificaremas denominações indígenas dos alimentos e suaorigem nativa, os textos holandeses assinalavamsobretudo os hábitos alimentares dos colonosportugueses. Receitas autóctones, modificadas aogosto luso pela adição de açúcar, de azeite ou demanteiga, de ovos, de farinha de arroz, de flor delaranjeira (como os beijus ou as marmeladas demandioca)15 foram provadas, elogiadas e adotadassem grandes questionamentos16. Quanto aos ani-mais e aos vegetais provenientes da Europa, daÁfrica ou da Ásia, introduzidos na terra pelos colo-nos lusos, eles foram inventariados pelos cronistasem termos de igualdade com os recursos amerín-dios da fauna e da flora.

O conde de Nassau, chefe militar reputado,humanista versado nas artes e nas ciências deseu tempo e nobre formado em diversas corteseuropeias, não deixou ao acaso o registro de seus

feitos brasileiros. Em uma colônia organizada emtorno do açúcar os gêneros comestíveis locaisadquiriram valores emblemáticos. As represen-tações dos pintores e dos cientistas convidados aacompanhar Nassau ao Brasil geraram imagensconvincentes do domínio holandês. Como desta-cou José Hygino Duarte Pereira, uma das primeirasprovidências de governo do conde foi a concepçãode brasões para representar o domínio político daWIC. Além do brasão da Câmara de Recife, queostentava uma donzela segurando um espelho ecanas de açúcar, havia tainhas no brasão dasAlagoas, caranguejos naquele de Igarassu, cachosde uva representaram Itamaracá e pães de açúcar,a Paraíba8.

Merece reparo também o fato de 12 gran-des naturezas mortas, cuja autoria foi atribuídaao pintor retratista Albert Eckhout, figurarem asprincipais espécies vegetais do Novo Mundo, aolado de vegetais europeus de uso cotidiano comoos repolhos ou os nabos. Atrai a atenção, nessesquadros, a existência de correspondências en-tre detalhes representados e comentários deMarcgrave sobre as maneiras adequadas de cortara polpa dos ananases ou partir frutos de mara-cujá15. A ausência em tais composições dos ani-mais nativos apreciados por suas carnes precisaainda ser ressaltada. Em nenhuma das naturezasmortas brasileiras o artista inseriu peixes, aves ouanimais silvestres, procedimento frequente emsemelhantes representações. Evitaram-se as ima-gens de caçadas predatórias. Às frutas, às hortali-ças e aos legumes do Brasil coube o papel, prova-velmente alegórico, de descrever a fartura local.

Da mesma forma, as célebres represen-tações de tipos humanos brasileiros, compostaspor Eckhout e copiadas por Wagener, omitiramdiplomaticamente o registro pictórico dos súditoslusos da Companhia. A premissa do domínio ho-landês, com efeito, residia na exequibilidade dasubstituição do domínio luso-espanhol por um

domínio próprio, tornando necessário minimizarcausas de conflitos. Exceto pela constatação queos índios bebiam vinhos de frutas fermentadas ecozinhavam sem acrescentar sal ou óleo às suas

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iguarias, que os portugueses se deliciavam combanha de porco, toucinho ou azeite, preferindopães doces de farinha branca aos brotes e à man-teiga holandeses, as peculiaridades dos antigos edos novos colonos foram pouco contrastadassimbolicamente por meio de hábitos alimentares.

Se os usos locais portugueses orientaramprioritariamente a seleção dos ingredientes sabo-reados no Brasil holandês, isso se deveu, provavel-mente, ao fato de lusos e holandeses respeitaremambos os preceitos da medicina humoral (hipo-crática ou galênica) vigentes na Europa atémeados do século XVIII17. Acreditava-se, então,que as doenças resultavam de um desequilíbrioperigoso dos fluidos corporais (os humores) e asaúde, de um estado de equilíbrio do sangue, dabílis amarela ou da bílis negra e da fleuma. Reco-mendava-se evitar todos os excessos de calor ede secura, que espessariam os humores e ostornariam viscosos, bem como a ingestão de ali-mentos muito frios e úmidos, que provocariamsua excessiva fluidez.

A relevância dos manejos culinários residia,por conseguinte, em seu papel de auxílio prévio àdigestão, considerada um processo interno decocção. A lógica dos preparos culinários consistiaem servir iguarias temperadas. Sal, pimenta eazeite adicionavam-se às carnes nutritivas, vistascomo demasiadamente duras e frias. A naturezaquente ou fria dos ingredientes comestíveis, ou amelhor maneira de consumi-los eram temas dis-cutidos até pelos mercenários mal pagos e maltra-pilhos da Cia da WIC, quando apregoavam asvirtudes da garapa azeda, isto é o decantado caldofermentado das canas.

Outrossim, os comentários suscitados pe-los novos ingredientes da dieta evidenciavam aatuação subjacente de um elenco de conceitosque davam forma às práticas sociais. Além dafacilidade da digestão, semelhanças de gosto comingredientes europeus conhecidos, avaliaçõesfavoráveis de sabor e considerações de vantagenseconômicas presidiram a classificação dos ali-mentos. Os textos enfatizaram também circuns-tâncias surpreendentes que destoavam dos usos

europeus, como os empecilhos à produção delaticínios ou, como bem enfatizou Nieuhof, a rápi-da deterioração das carnes que incluía até mesmoaquelas cozidas com adição de vinagre13.

O apego dos imigrantes aos hábitos nataisnão impediu a substituição do pão de trigo pelafarinha de mandioca (bem o constatou Moreau)18,porém, as iguarias elaboradas com os alimentosnativos não deviam diferir muito das receitas euro-peias, pois, apenas as especificidades exóticas,como as peculiaridades das carnes de iguanas oude capivaras, mereceram comentários. O interesseda WIC pelos costumes lusos, entretanto, se reve-lava inegável. Em o Breve discurso sobre o Estadodas quatro capitanias conquistadas se ressaltava,por exemplo, que, não obstante apreciarem comerem baixelas de prata, os portugueses mantinhamhábitos frugais. Em suas casas não existiam qua-dros nas paredes, nem móveis que não fossemestritamente indispensáveis à cozinha, à cama eà mesa:

Não há profusão nos seus alimentos, pois

podem sustentar-se muito bem com um

pouco de farinha e um peixinho seco,

conquanto tenham galinhas, perus, por-

cos, carneiros e outros animais, de que

também usam de mistura com aqueles

mantimentos, sobretudo quando comem

em casa de algum amigo9 (p.66).

Nos engenhos da área rural, o passadioera farto. A honra dos colonos dependia de osten-tar hospitalidade generosa. Não faltavam escravosprovedores, nem carnes, peixes, crustáceos ou ma-riscos. Havia também legumes, hortaliças e frutasem abundância. Mas semelhantes confortos sefaziam mais raros em regiões de lavouras de manti-mentos. Nas Alagoas, segundo um Relatório sobreo estado das Alagoas em outubro de 1643, redi-gido por Joan van Walbeeck e por Henrique deMoucheron, os cultivadores holandeses que be-biam vinhos em companhia de seus amigos,acabaram falindo19.

As refeições holandesas, pois, funda-mentaram-se, como as lusas, em um consumode farinha de mandioca complementado por

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preparos de carnes bovinas secas, salgadas oufrescas e de carnes de caça ou de criações domés-ticas, acompanhadas de vegetais. Ressaltavam--se nos textos a estima pelos mingaus de carimãcom caldos apimentados de carne ou de peixe,pelas carnes bovinas e suínas e pelos peixes. Entreos temperos, citavam-se, além de pimentas nati-vas com sal (iuquitaia), vegetais notáveis, como onhambi e o urucum. O comissário Nieuhof assina-lava a relevância extrema da pecuária e da pes-ca15.

Os escravos africanos conhecedores dastécnicas indígenas proviam pescados e mariscos.À diferença da colônia em mãos portuguesas,feiras públicas foram organizadas no Brasil holan-dês. Pescava-se no litoral com armadilhas, linhasou redes, pescava-se em alto mar com barcos ecom jangadas ao longo dos rochedos da costa.Pescava-se também nos rios, nas lagoas e nospântanos. Em certos períodos do ano, quando aságuas dos rios baixavam, praticava-se a pesca comtimbó. Muitos pescadores visavam ao consumo,mas, às vezes, soldados procuravam comple-mentar os salários vendendo os produtos de suacaça ou de sua pesca. Os grandes proprietáriosadquiriam barris de peixes salgados ou secosfornecidos pelos donos de pesqueiros particulares.Porém, a Companhia das Índias também mantinhaseus próprios pesqueiros e importava bacalhaus.Moreau explicava:

No dia da volta de Claesz chegou, tam-

bém outro navio da Terra Nova, carregado

de bacalhau, peixe muito seco, que se

assa sobre brasas e come-se com azeite18

(p.51).

Havia, entretanto, critérios consistentes per-meando as apreciações dos naturalistas e doscuriosos. A preferência ia para os peixes de sabordelicado, cor clara, de carnes abundantes e friáveiscom poucas espinhas e uma gordura natural quedispensava regá-los com azeite. Tais peixes eramassados. Evitavam-se cozinhar em água aquelesque continham muitas espinhas. Gabava-se o gostoadocicado de peixes apanhados junto aos roche-dos. Outros, cujas carnes eram magras, serviam-

-se fritos ou grelhados com azeite, limão e pimen-tas nativas. Outros ainda preparavam-se em esca-beche com azeite e vinagre.

Nas hortas e nos pomares também haviafartura. Legumes variados acompanhavam osmantimentos básicos. Parece que costumavam serpreferencialmente cozidos em água e servidos comazeite ou manteiga e pimenta. Receitas europeiasde espinafres e de acelgas serviram de modelopara o preparo de receitas de vegetais locais, comoo perrexil do mar e as folhas de taioba15, todavia,segundo notavam Nieuhof e Marcgrave, frutascomo os mamões acompanhavam também ascarnes e os peixes15. No Breve discurso, Nassauenumerava:

Têm belíssimas frutas, como laranjas,

limões, melões, melancias, abóboras,

pacovas, bananas, ananazes, batatas,

maracujá-açu, maracujá-mirim, araticum-

-apê e o belo e o mais delicioso dos frutos,

a mangaba, e ainda vários legumes,

milho, arroz e outros mais, de que fazem

diversidade de confeitados. Estes são

muito sãos, e deles comem em quan-

tidade9 (p.109).

Considerava-se perigosa a ingestão de fru-tas cruas e frias, mas, segundo Piso, era benéficocomê-las tomando-se precauções. Laranjas, porexemplo, quando comidas no desjejum ou no iníciodas refeições, faziam bem à saúde9. O sabor damaioria das frutas brasileiras deslumbrou os holan-deses. Muitos autores descreveram mangabas eananases em termos entusiastas. Apresentandoas melancias, Wagener afirmava:”chamadas pelosnossos de limão d’água [...] têm sabor suave eagradável, estando repletas de suco adocicado esão muito saudáveis [...] refrescam e aliviam oorganismo cansado e enfraquecido”20.

Por seu gosto explícito pelas frutas brasi-leiras, o conde de Nassau deu o exemplo. Fezquestão de possuir nos jardins de seu palácioexemplares de todas as variedades interessantesque o Brasil produzia. Mas, exceto no que diziarespeito aos amendoins, sobremesa indígena,considerada afrodisíaca, e às conservas em calda

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de açúcar que as mulheres dos colonos lusos sa-biam preparar, poucas informações explícitas sobrereceitas foram registradas pelos autores. Abóboras,mangabas, araçás, ananases, cajus, frutos decabaças, pimentões, gengibre, talos de alfacesetc., confeitados, foram degustados, já que, apesarde o açúcar constituir um produto, sobretudodestinado à exportação, a transformação das frutasem doces permitia evitar as doenças de naturezafria.

Do mesmo modo que sob domínio portu-guês, o cotidiano holandês proporcionou dietasdiferentes às camadas pobres e ricas da sociedade.Tubérculos substanciais, como as batatas docesque provocavam flatulências, costumavam seradquiridos pelas pessoas mais pobres. Existiu tam-bém um consumo diferenciado das bebidas nãoalcoólicas. À garapa doce dos menos remediadoscontrapunham-se os xaropes de açúcar clarificadodas elites21.

Coube também um papel diacrítico evi-dente aos peixes, cujo consumo assinalou a po-sição social dos comensais. Peixes valorizados,adquiridos pelos magnatas alcançavam preçoselevados. Enquanto os privilegiados saboreavamovas de robalo prensadas e secas (as botargas,preparo difundido na Europa e no Oriente Médio),apreciando música e bebendo cerveja nos jardinsda Cidade Maurícia, soldados aquartelados emRecife consumiam garapa nas tavernas da rua dovinho e comiam, como os escravos, peixes depoucas carnes ou de textura visguenta. Os bagres,todavia, peixes sem escamas, que os judeus nãocompravam, tinham sabor agradável e preço mo-derado.

Além do apetite dos holandeses pelas bebi-das alcoólicas, prevalecia seu gosto pelos líquidosadoçados, por refrescos com limões ou por infusõesde erva cidreira. O Breve discurso reparava: “abebida dos portugueses é principalmente água dafonte que é muito boa e agradável; nela ensopamum pedaço de pão de açúcar e vão chupando oque é muito são e refrescante”9 (p.109).

E Nieuhof registrava: “Os portugueses eholandeses preparam um refresco com água,

açúcar, e limão. Ás vezes, põem de infusão certaservas, outras vezes usam apenas água com li-mão”13 (p.381).

Em ambiente palaciano não faltavam opão, os peixes servidos com manteiga e mostarda,os queijos holandeses, as goiabas com ervascozidas em vinho e as marmeladas de mandioca,uma abundância que não se verificava em todosos lares e quartéis da colônia. Todavia, mesmoque em certas ocasiões a população estivessereduzida a comer aves com sabor pronunciadode maresia, insetos, como as formigas, e outrosalimentos estranhos, a descoberta holandesa daterra brasileira, efetuada por meio do paladar,parece ter oferecido compensações tão prazerosasaos cronistas que, ricos ou pobres, eles fizeramquestão de relatar as minúcias do cotidianocolonial.

C O N S I D E R A Ç Õ E S F I N A I S

Um exame circunstanciado dos problemasalimentares que afligiram o Brasil holandês reveloua fragilidade do domínio político conquistado pelaWIC. Reservas insuficientes de víveres e de man-timentos locais impediram a independência dacolônia em relação ao envio de alimentos euro-peus, o que dificultou a ampliação da conquista ea aceitação da nova sujeição por parte dos colonosportugueses que produziam açúcar e gênerosalimentícios.

A descrição dos hábitos alimentares e dosproblemas de abastecimento encontrados nadocumentação analisada permitiu apontar osparâmetros sócio-culturais que regiam aquela

sociedade, favorecendo um enfoque bem docu-mentado sobre a alimentação da época.

R E F E R Ê N C I A S

1. Pudsey C. As memórias de Cuthbert Pudsey sobreo Brasil holandês (1629-1640). História Naturalis.Seropédica. 2000; 3:1-262.

2. Salvador FV. História do Brasil 1500-1627. 5ª ed.São Paulo: Melhoramentos; sem data. p.451.

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3. Coelho DA. Memórias diárias da guerra do Brasil.Recife: Secretaria do Interior de Pernambuco; 1944.p.113.

4. Mello EC. Olinda restaurada: guerra e açúcar nonordeste (1630-1654). 2ª ed. Rio de Janeiro:Topbooks; 1998. p.63.

5. Laet J. História ou anais dos feitos da CompanhiaPrivilegiada das Índias Ocidentais. Rio de Janeiro:Biblioteca Nacional; 1916. p.522-23.

6. Neto JAGM. Tempo dos flamengos. Rio de Janeiro:José Olympio; 1947. p.44.

7. Papavero CG. Mantimentos e víveres: o domíniocolonial holandês no Brasil [dissertação]. São Paulo:Universidade de São Paulo; 2002.

8. Pereira JHD. Batalha naval de 1640 e outras peri-pécias da guerra holandesa no Brasil. RIHGB. 1895;58(91):1-58.

9. Breve discurso sobre o estado das quatro capi-tanias conquistadas de Pernambuco, Itamaracá,Paraíba e Rio Grande, situadas na parte seten-trional do Brasil. In: Mello JAGM, organizador.Fontes para a história do Brasil holandês. Recife:MEC; 1981. p.1-109.

10. Zacharias TW. In Teixeira D, organizador. Brasilholandês: documentos da biblioteca universitáriade Leiden. Rio de Janeiro: Index; 1997. p.116-7.

11. Bots H., Leroy PE. Le Brésil sous la colonisationnéerlandaise. Douze lettres de Vincent- JoachimSoler, pasteur à Recife, à André Rivet (1636-1643).Bulletin de la Société de l’Histoire duProtestantisme Français. 1984; 130(4):556-94.

12. A primeira assembléia legislativa no Brasil. RIHGB.1893; 56(87):117-39.

13. Nieuhof J. Memorável viagem marítima e terrestreao Brasil. São Paulo: EDUSP; 1989 p.72-328.

14. Diário ou breve discurso acerca da rebelião e dospérfidos desígnios dos portugueses do Brasil,descobertos em junho de 1645 e do mais que sepassou até 28 de abril de 1647. RIAGP. 1887; 4(32):121-225.

15. MarcGrave J. História natural do Brasil. São Paulo:Museu Paulista; 1942. p.33-70

16. Piso G. História natural do Brasil. São Paulo: Ed.Nacional; 1948. p.58-62.

17. Hippocrate. L’art de la médecine. Paris: Flammarion;1999.

18. Moreau P. História das últimas lutas no Brasil entreholandeses e portugueses. São Paulo: EDUSP;1979. p.46-62.

19. Walbeeck JV, Moucheron H. Relatório sobre oestado das Alagoas em outubro de 1643. RIAGP.1886; 4(35):153-65.

20. Wagener Z. O “Thierbuch”. In: Teixeira D, organi-zador. Brasil holandês: documentos da bibliotecauniversitária de Leiden. Rio de Janeiro: Index; 1997.p.98-9.

21. Antonil AJ. Cultura e opulência do Brasil. 2ª ed.São Paulo: Nacional; 1967. p.203.

Recebido em: 3/9/2009Aprovado em: 2/2/2010

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